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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25005: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - IX (e última) Parte: De Cobumba para o COMBIS; em Bissau, em novembro de 1971, e fim da comnissão em abfril de 1974


Guiné > Bissau > Café Bento > c. setembro de 1972 >  
Foto tirada na esplanada do café Bento, local de encontro não só para quem prestava serviço na cidade, mas também para muitos que pelas mais variadas razões passavam por Bissau

Era cerca de meia noite quando a foto foi tirada, estávamos todos muito animados… Os três que estão trajados à civil não eram da minha aldeia, Moleanos, com o posto de primeiro sargento enfermeiro prestavam serviço no hospital militar de Bissau. O que está com o copo na mão era nosso vizinho, de Alcobaça, o primeiro sargento Canha.

Dos que estávamos com farda militar, o do centro era eu, Jerónimo, a primeira vez que vim de férias, o  outro, a seguir ao Canha,  era o Inácio (António Ferreira da Silva Inácio, pertencia à polícia militar, o único da nossa aldeia que passou todo o tempo de comissão em Bissau); e o último da direita era o Faustino (José Fernando Pimenta Faustino, de seu nome completo, assentou praça em em agosto, era soldado condutor auto, embarcou, em rendição individual, para a Guiné em 12 de março de 1971, no navio Uíge; esteve seis meses em Teixeira Pinto, CAOP 1, o resto da comissão foi passado em Bissau; veio uma vez de férias à metrópole; regressou por via aérea a de fevereiro de 1973).



Guiné > Bissau > Combis > Aqui estava encostado a uma papaeira, no local onde passei os últimos meses de comissão, COMBIS, faltavam poucos dias para regressar à metrópole, mas a incerteza quanto ao regresso era total, o tempo “normal” de comissão há já muito que terminara. Só no dia, e com o avião no ar, nos convencemos que era mesmo verdade, estávamos a deixar a guerra e a regressar a casa, eram cerca de dez horas locais quando embarcamos no aeroporto de Bissalanca.

Antes, tinha aproveitado para gastar o resto dos pesos que tinham sobrado, eram poucos, depois foi o tão desejado embarque. Durante cerca de vinte minutos o avião esteve sujeito a uma turbulência nada agradável, mas pensar que aquela era a viagem que muitos de nós chegamos a pensar que poderíamos não chegar a fazer…

Depois desses minutos agitados, a que fomos sujeitos, o resto da viagem decorreu normalmente. Na tarde desse dia 2 de abril de 1974, o avião aterrava no aeroporto da Portela com saída pelo Figo Maduro e, dali para o RAL1 (creio que se chamava assim) onde fizemos o resto do espólio, depois foi o regresso à vida civil.


Guiné > Região de Tombali > Cobumba > CART 3493  > 1973 >  Eu com a minha companheira de vinte seis meses e mais uns dias junto ao local onde todas as noites que estivemos em Cobumba fiz reforço. Durante a noite disparavávamos muitos tiros mesmo sem inimigo à vista. Certa noite um desses tiros cortou um fio condutor de energia que suportava a fraca iluminação junto ao arame. O  eletricista Vieira é que ficou muito aborrecido teve de interromper o sono para reparar a avaria, eu não fiquei menos… Chego a pensar se ainda lá estivesse hoje a disparar tiros provavelmente não voltava a conseguir cortar o fio.

Fotos (e legendas): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira,  (Évora de Alcobaça, Alcobaça, 15 de maio de 1950- Moleanos, Alcobaça,  19 de outubro de 2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou em 2012 o blogue Molianos, viajando no tempo que manteve até 2017.



IX ( e última)  parte - Novembro de 1973: de Cobumba para o COMBIS, em Bissau; abril de 1974: fim da comissão


Chegou o dia do regresso a Bissau. Nessa manhã a única viatura que tínhamos operacional avariou, todas as coisas que tínhamos connosco para levar para a LDG que nos foi buscar, tiveram de ser transportadas às costas. 

Mas por essa altura eu estava fisicamente bastante fragilizado, tive que pagar a um homem da população para me levar o caixote com os meus pertences, tendo eu levado apenas a G3, as cartucheiras, e um pequeno malote onde transportava dois ou três quilos de peso, mesmo assim, ao fim de escassas centenas de metros até chegar ao barco, já não conseguia caminhar mais. 

Há pouco tempo tinha passado por lá o médico, que creio estava sediado em Bedanda (CCAÇ 6),  a quem eu me queixei, tive como resposta:

- De facto, estás doente, mas não te posso mandar para Bissau.

Deixámos Cobumba descendo o rio Cumbijã, alguns quilómetros mais abaixo estava outra companhia à espera para seguir connosco para a cidade, vindo de Cafal Balanta. Dessa companhia fazia parte um vizinho meu, o Victor Santos, da Lagoa do Cão. Se um vizinho deixava aquela zona, um outro que o tinha ido render ficava bastante triste e só:  era o José Balbino... Sabendo que eu vinha a caminho de Bissau,  quis vir ver-me, não foi fácil para ele, como não seria para qualquer um, despedir-se de um vizinho com a comissão quase terminada… e ele ainda no inicio e numa zona tão má como era aquela.

Normalmente as companhias quando vinham do mato para a cidade era para regressar à Metrópole, ou para fazerem trabalhos de menor risco. Sabíamos ir estar mais alguns meses na cidade, o que não sabíamos era que a nossa companhia ia passar a ser cem por cento operacional, só os criptos exerciam a sua especialidade, todos os outros faziam os mesmos serviços. 

Para além do serviço de segurança à cidade (missão atribuída ao COMBIS),  que constava de percursos a pé durante a noite na periferia, em grupos de três ou quatro homens, serviços ao paiol, ao Palácio do Governador, no cais quando chegava algum barco da Metrópole, e também serviço junto ao arame farpado, que em alguns sítios circundava a cidade.

Como se tal não chegasse com vinte e seis meses de tropa, fizemos uma coluna a Farim, viagem de alto risco. Por essa altura a minha saúde não era a melhor, pela primeira vez tinha tido paludismo, e dois dias antes de se realizar a coluna fui ao médico tentando que ele me dispensasse de serviços pesados.Tive sorte, fui dispensado de ir a Farim, apenas eu e outro camarada que estava também de baixa não fomos.

No tempo em que estivemos em Bissau, o quartel ficava a poucos quilómetros do centro da cidade, na COMBIS,  em Brá, nós de vez em quando íamos até lá. Na cidade havia muito movimento apesar de mesmo por lá as coisas começarem a não ser totalmente seguras. 

Por essa altura, rebentou um engenho explosivo no café Ronda, sempre muito frequentado por militares. Também dentro do QG houve uma explosão, e no Pilão certa noite houve tiroteio durante bastante tempo, estando a nossa companhia pronta para sair. A tropa esteve mais de uma hora em cima das viaturas à espera de ordem para avançar, era cerca da meia noite os tiros pararam pelo que o estado de prontidão foi suspenso. Nesse dia eu estava de cabo dia, razão pela qual se a companhia tivesse saído eu teria ficado no quartel.

Um dos locais com paragem obrigatória para quase todos que vagueavam pela cidade, era o café Bento, ou a 5ª Rep,  como toda a gente lhe chamava. Assim que nos sentávamos, ainda antes do empregado de mesa, chegavam os engraxadores que se preparavam e insistiam para nos engraxar as botas a troco de dois pesos e meio, ou três. 

Naquela tarde sentei-me na esplanada e logo apareceu um dos muitos engraxadores, o Marreco. Disse-lhe que só lhe dava dois pesos e meio, ele começou a engraxar as botas, quando acabou a primeira disse-me:

- Olha que são três pesos!

E eu disse-lhe que não, e ele levantou-se e foi embora, deixando-me com uma bota engraxada e outra não, mas o mais caricato é que as minhas botas uma era mais velha que a outra e eu coloquei primeiro a nova a jeito de ser engraxada, e assim a mais velha mais mal ficou a parecer ao pé da engraxada. Anda prometi os dois pesos e meio aos outros engraxadores que estavam por ali, para me engraxarem a outra, mas solidários com o Marreco nenhum quis. Não me restou outra alternativa a não ser sair pela porta oposta à esplanada e voltar a sujar a bota engraxada, com terra para não parecer tão mal.

Os serviços continuavam na cidade, o tempo normal de comissão já há meses que tinha passado, e nós sem saber quando seria o nosso regresso à Metrópole. Poucos dias antes de virmos embora tivemos uma baixa, o furriel Trindade, o homem que tantas minas tinha levantado, ao ser atropelado pela viatura que lhe ia levar o almoço, quando se encontrava em serviço com alguns homens num dos postos de guarda junto ao arame farpado que existia em alguns sítios em redor da cidade.

Faltavam três dias para o nosso regresso, fomos informados que teríamos de fazer mais uma coluna a Farim pelo que à tarde fomos levantar as viaturas que íamos levar na madrugada seguinte. Estávamos completamente arrasados, a dois dias de terminar o nosso tempo de Guiné, irmos fazer uma coluna a Farim, para essa também eu já tinha levantado viatura, mas a poucas horas do inicio da viagem alguém teve o bom senso, e decidiu que não seriamos nós a ir na coluna.

Faltavam dois dias mas não tínhamos a certeza que seria assim, só quando nos encontrámos dentro do Boeing e já no ar acreditamos que era desta que a nosso regresso ia acontecer. Embarcamos perto do meio dia em Bissau no dia  2 de abril de 1974 e chegámos ao fim da tarde a Lisboa.

Passados trinta e oito anos da minha chegada à Guiné,  dando uma volta pela memória encontrei os factos aqui relatados, certamente muitos não terei conseguido lembrar-me, mas fiquei satisfeito com aqueles que consegui lembrar em apenas três semanas.

Se alguém chegar a ler este relato de vida que foi a minha, durante o tempo de tropa que passei em África, e que foi também o de muitos jovens do meu tempo, em particular aos que passaram pela Guiné, verá que as coisas agora não são tão más como parece! 

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24157: O nosso livro de visitas (218): Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra: "por vezes passo os olhos pelo blogue, fui alf mil trms, Cmd Agr 2952 e COMBIS, Mansoa e Bissau, 1968/69"

1. E
m comentário de 9 de abril de 2022, a uma das páginas do nosso blogue. de que só agora demos conta, o Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, escreveu:

Por vezes passo os olhos pelo blogue, porque estive na Guiné em 1968-1969 (oficial de transmissões do Comando de Agrupamento 2952, de Mansoa, e do COMBIS), tendo regressado, a convite da embaixada de Portugal em Bissau, por duas vezes. 

Como hoje me apareceu no meu computador, desta vez sem o procurar, lembrei-me de informar os camaradas que jamais esqueci a Guiné, onde o meu filho fez 2 anos quando fui transferido para Bissau com todo o Comando, tendo mais tarde, como professor da Universidade de Coimbra, orientado a tese de doutoramento de um guineense, Julião Soares Sousa, sobre Amílcar Cabral. É considerada por muitos o melhor trabalho de investigação sobre o líder do PAIGC. Foi várias vezes publicada com o seguinte título: Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e morte de um revolucionário africano. Lisboa: Vega, 2011 (1.ª edição).

Grande abraço
Luís Reis Torgal



2. Comentário do editor LG:

Meu caro professor e camarada Luis Torgal:

Muito nos honra a sua visita. Desconhecia de todo a informaçáo que nos dá: (i) foi nosso cmaarada em Mansoa  e Bissau, nos anos de 1968/69; (ii) e foi o orientador da tese de doutoramento do  Julião Soares Sousa (que tem no nosso blogue nada menos que 37 referèncias).

Fica desde ká convidado a integrar a nossa Tabanca Grande e assim poder partilhar as suas memórias da Guiné, que do seu tempo do C,md Agr 2952 e do Combis quer das visitas que fez depois da independência. Tem aqui um resumo do nosso livro de estilo.

Para os nossos leitores, que o não conhecem da vida académica, aqui fica um resumo curricular, retirado da Wikipedia:

Luís Manuel Soares dos Reis Torgal (Coimbra, 14 de Janeiro de 1942) é oriundo da Beira Baixa e foi um professor universitário português, lente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Actualmente intervém na área de História do Estado Novo. (...)

Licenciou-se em História em 1966, doutorou-se em 1978 e tornou-se catedrático em 1987. Leccionou disciplinas de História Moderna e Contemporânea e de Teoria da História na Universidade de Coimbra.

Em 2010 declarou publicamente que a decisão do governo português abolir 4 feriados (dois civis e dois religiosos) foi muito mal organizado e uma trapalhada completa e ilegítima. (...)

É coordenador de investigação do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século XX. (...)

É primo do prelado D. Januário Torgal Mendes Ferreira.

 3.  Ficha de Unidade: Comando de Comando de Agrupamento nº  2952

Identificação Cmd Agr 2952
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Cmdt: Cor Art António dos Santos Gonçalves | Cor Inf José Martiniano Moreno Gonçalves
CEM: TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas | Maj Inf José Bonito Perfeito
Divisa: "Para bellum ad pacem"
Partida: Embarque em 10Jan68; desembarque em 15Jan68
Extinção: Foi extinto em 7Jan69, passando a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS)

Síntese da Actividade Operacional

Em 16Jan68, assumiu a responsabilidade da zona Oeste, com sede em Mansoa, rendendo o Cmd Agr1976, com o dispositivo dos batalhões sediados em S. Domingos, Farim, Bula, Teixeira Pinto, Mansabá e Mansoa.

Desenvolveu intensa actividade operacional de comando e coordenação das forças instaladas na zona e das atribuídas de reforço, planeando, impulsionando, e controlando a respectiva actuação sobre as linhas de infiltração e bases inimigas existentes.

Em 10Ju168, foi rendido na zona Oeste pelo Cmd Agr 2951 e transferido para Bissau, onde assumiu a responsabilidade operacional da zona respectiva, então criada a nível Agrupamento e integrando o sector do BCaç 1911, com a missão de comandar e coordenar a actividade das unidades e subunidades ali existentes e garantir a defesa da ilha de Bissau e dos seus pontos sensíveis.

Em 7Jan69, o Cmd Agr 2952 foi extinto, passando os seus elementos a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS), então criado por despacho do Ministro do Exército.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 123 - 2." Div/ 4* Sec., do AHM).

Fonte: Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2022 Guiné 61/74 - P23887: O nosso livro de visitas (217): Pedro Galriça, filho do ex-cap art Fernando Manuel Jacob Galriça, cmdt da CART 1647 / BART 1904 (Bissau, Quinhamel e Binar, 1967/68)

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23875: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IX - Bissau à vista e Agora sim, era verdade



1. IX e última parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


bissau à vista…

Neste momento já creditávamos que era chegada a hora do regresso ao nosso ‘ninho’, à nossa família e amigos, o que nos deixava algo excitados.

Instalados no COMBIS, restava-nos descansar um pouco, relaxar e viver os últimos dias de ansiedade…
Ali perto, no Depósito de Adidos, estava um amigo meu do Porto, também já em fim de comissão, com quem me encontrava de vez em quando.
Ele queixava-se do mesmo que nós, saturação, cansaço, saudades da Metrópole.

Uma das vezes, estávamos a conversar sobre a vida, quando um outro graduado da companhia dele se lembra de fazer um cocktail, convidando-nos para o brinde.
Pegou numa cafeteira de cinco litros, de alumínio, e meteu para lá de tudo o que encontrou nas prateleiras que tinham acabado de ser abastecidas, desde whisky, brandy, gin, coca-cola, pasta de dentes, sabonete, creme da barba, leite com chocolate…, sempre a mexer com uma colher de pau, a transbordar de espuma.

Éramos quatro e foram servidos quatro copos altos, para o brinde à Metrópole.
A seguir, rebolar com dores e má disposição!...
Realmente, já não conseguíamos responder com bom senso e até a razão parecia ter sido penhorada…

Enquanto havia pesos, íamos dando um saltinho à cidade, de táxi ou em viatura militar, para uma lufada de alguma civilização, pois sempre apareciam caras novas, chegadas da Metrópole, para as respectivas comissões. Compras, já não era possível, pois estávamos sem cheta!
Limitávamo-nos a uns copos na Solmar, no Pelicano, no Bento, conhecido como a 5ª Rep.

Todos os dias nos diziam que o nosso avião estava reservado e era no dia seguinte!
Foram dois meses assim, com a impaciência e ansiedade que era difícil dominar.

Durante uma das visitas à cidade, sentado na esplanada do café Pelicano, perto do cais, um indivíduo sai do grupo de amigos, senta-se à minha mesa e, falando em inglês, identifica-se como ligado a uma legião estrangeira, residente na África do Sul e membro de uma equipa de instrutores.
Faz-me algumas perguntas, a minha especialidade, o meu curriculum militar, se era solteiro e sem filhos, se estava em fim de comissão e se tencionava regressar ao meu país.

Logo lhe respondi a tudo, claro, sem reticências ou receios, e frisei o meu interesse em regressar ao meu país, Portugal.
Já com um certo à vontade, propõe-me uma estadia na África do Sul, por um período a combinar, mínimo um ano, para dar instrução militar a voluntários africanos.
Como torci o nariz e não mostrei interesse, completou a proposta com as condições: apartamento com segurança, viatura militar ou deslocações em táxi, acompanhamento médico assegurado, cerca de 1.000 dólares americanos mensais, colocados onde eu quisesse, enfim, uma tentação, de certo modo.

Tudo isto me deu uma ideia da organização de que se tratava, embora com todas as dúvidas, mas devia ter mão dos américas… ou dos… soviéticos…
Tentador, claro, mas eu queria ver-me livre de tudo o que se relacionasse com âmbito militar, com guerras, com estar longe do meu cantinho português.
Apresentei as minhas razões e reforcei a minha decisão, como irreversível, agradecendo a proposta e desejando-lhe muita sorte.

Eu acabava de sair de uma experiência que desejava ver riscada da minha memória.
Mas tinha uma certeza: não esqueceria realidades que me acompanharam durante dois anos, embora com facetas algo diferentes, pelas circunstâncias de cada local por onde passei.
Gentes humildes e sérias dos ‘buracos do mato’, principalmente, Gadamael Porto, cujas coordenadas não mais esqueceria: Sul da Guiné-Bissau, fronteira com a República da Guiné-Conacry, sede do PAIGC, do presidente Sekou Toré e do mentor Amílcar Cabral, com grandes comandantes, como o Nino Vieira, e profissionais mercenários, como cubanos e russos…

Pureza e ingenuidade, a par do instinto de sobrevivência, da luta pela defesa dos seus e pela continuidade dos seus costumes, dos seus hábitos, da sua cultura, mesmo sabendo-se que agarrados a tradições por nós consideradas horríveis, pré-históricas.

O presidente Sekou Toré foi o líder do movimento para a libertação e independência da Guiné-Conacry, ex-colónia francesa, como o Daniel sabe.
Mas as etnias não conseguem esconder um objectivo comum: poder, liderança, por vezes, anulando os seus ideais.
Lamento recordar imagens que me ficaram gravadas de lutas quase selvagens entre gente de diferentes etnias, mas da mesma condição, com os mesmos problemas que, em vez de se unirem para conseguirem o objectivo comum, se digladiam até à morte.
Independente das etnias, têm a mesma raça, mas o racismo está presente, com evidência.

Aparentemente, as populações nativas lutavam pelos mesmos objectivos mas, quando se tratava de definirem e atribuírem poderes, lá vinha o ‘instinto’ marcado no sangue que ultrapassava o sentido da união e gerava conflito, luta pela afirmação, pelo poder, mesmo que isso pudesse pôr em causa esses objectivos.
Isto via-se nas mais pequenas atitudes e confirmou-se, mais tarde, quando da libertação do domínio português.

E lá estávamos nós, aguardando algum sinal que nos fizesse acreditar que era amanhã, o dia da nossa partida, mas sempre amanhã, amanhã.

"Após o 25 de Abril e logo a seguir à descolonização, realmente, começaram os conflitos, como o Adolfo diz, mas nós desconhecíamos o grau de ambição das etnias pelo poder, e sempre ouvíamos falar em união, no sentido da autodeterminação dos povos africanos, o que supunha a tal união…"

Pois, pois, Daniel, tanta coisa veio a descobrir-se, com o tempo, desde as manobras do processo de descolonização até às guerras internas de cada uma das ex-colónias, dando o que todos nós sabemos…
Aliás, ainda hoje se põe em dúvida a existência real das nações, angolana, moçambicana e guineense…
O que alguns políticos pensadores ou historiadores defendem é que existem, sim, diversos povos dentro de cada um daqueles territórios.

Também poderemos defender a ideia de que qualquer dos movimentos de guerrilha foi criado e financiado por outros países, outros interesses.

Em Angola, a UPA e a FNLA, criados e financiados pelos americanos, apoiados pela CIA, a que se seguiu o MPLA, criado e financiado pela União Soviética, primeiro, com Agostinho Neto, depois, com José Eduardo dos Santos, de maior confiança.
A UNITA, com o Jonas Savimbi, criada e financiada pela China e, depois, pela África do Sul, e o Jonas Savimbi chegou a mostrar interesse em negociar connosco, mas não chegou a resultar, pois deram cabo dele, como se recorda.

Em Moçambique, a FRELIMO criada pelos americanos, apoiada na CIA, em que o líder era casado com uma americana que, segundo diziam, o controlava e fornecia informações aos americanos.
Aquele líder foi morto e a liderança passou para o Samora Machel, simpatizante das linhas políticas da Tanzânia, país que lhe deu apoio, depois da saída de Portugal.

Na Guiné, o PAIGC deveu-se a Amílcar Cabral, com apoio da União Soviética, claro, e a organização era baseada em cabo-verdianos, conseguindo o apoio de Sékou Touré, líder da Guiné-Konakry, que ambicionava absorver a Guiné-Bissau.

Engraçado: em Cabo Verde, não houve guerrilha nem manifestações revoltosas - dá que pensar, não é, Daniel?..
No fundo, conclui-se que a nossa guerra de treze anos foi travada contra forças estrangeiras e não contra os muitos povos daquelas ex-colónias, mas nada podemos dar como certezas e a história contará, embora saibamos que as versões abundarão e continuarão a deixar todos confusos…
Aqui para nós, Daniel, se os quatro principais países das Nações Unidas são os principais fabricantes de material de guerra, porque apregoam pr’aí que as Nações Unidas são uma entidade séria e que promove a paz?!...
Os motivos existem, as razões existem, mas ficam guardadas fora do alcance do povo, pelo menos, dissimuladas…

Já está, acabou, embora nunca devamos esquecer o que nos custou, a todos nós, aquele período duro de treze anos!
E as feridas só passarão quando as próximas gerações nos substituírem e deixarem de ouvir falar nos capítulos que abrangerem esta parte da nossa história, seja ela contada de que forma for…
Como é costume dizer-se, ‘o tempo tudo cura’…

E lembrei-me, agora, das notícias que davam conta de um massacre ocorrido na aldeia olímpica de Munique, protagonizado por um grupo palestiniano, cujo objectivo era chamar a atenção do mundo para a causa da independência da Palestina, cujo território se mantinha ocupado por militares israelitas.
Este grupo infiltrou-se na aldeia olímpica e fez reféns alguns atletas olímpicos israelitas, segundo diziam, devido ao deficiente sistema de segurança da organização dos jogos, que pretendiam evitar que a cidade apresentasse um cenário militarizado, como tinha acontecido nos jogos olímpicos de 1936, tempo de Adolf Hitler.
Logo a seguir ao atentado, a primeira-ministra Golda Meir propôs ao então primeiro-ministro Willy Brandt a intervenção de uma equipa de operações especiais, mas foi recusada por aquele primeiro-ministro alemão.

"Sim, um acontecimento polémico, que fez correr muita tinta e levou tempo a esquecer…"


agora, sim, era verdade…

O tão ansiado e desejado dia da partida, finalmente, chegou!

Dia 5 de Outubro de 1972, uma data que ficaria bem marcada, como outras, mas de forma mais intensa!
Preparar as coisinhas para o caminho até ao aeroporto, ali perto, em viaturas militares.

Antes disso, o desfile da praxe, numa das artérias do COMBIS, em frente à tribuna de honra, onde estavam, perfilados, o Governador Spínola e outros oficiais superiores.
À frente, o capitão, todo emproado, como lhe era habitual…

Na primeira fila da companhia, eu fiquei à direita, logo, todos deviam perfilar por mim.
Aproveitei para retardar o passo, dando como que meios passos, obrigando a companhia a guiar-se por mim, o que significou o capitão ir avançando até ficar bem longe de nós.
Quando terminou o desfile, os olhos vidrados em mim e as veias marcadas no rosto dele, donde poderiam sair raiva e fogo, se rebentassem!

Avião no ar, sobre aquela paisagem de mata, o serpentear dos rios, a bolanha, pensando que talvez fosse bom começar a arquitectar uma ideia que pudesse ficar, na minha mente, como um sonho ou pesadelo, e nunca uma realidade.

Quatro horas depois, estávamos, em Lisboa!
Infelizmente, nem todos os que partiram a 31 de Outubro de 1970 tiveram a nossa sorte!
Durante a viagem, recordo-me de olhares que trocávamos, uns com os outros, como que buscando uma cumplicidade, uma confirmação de que estávamos a regressar a casa.

No aeroporto, as nossas gentes aguardavam que saíssemos do avião, ansiosos por um abraço forte e de alívio!

Como as viaturas militares nos apanharam à saída do avião, dentro da pista, e nos levaram para o RALIS, ali na zona do Bairro da Encarnação, que o Daniel conhece, as nossas gentes tiveram de lá ir ter, onde aguardariam a nossa saída.

O ‘espólio’ era um ritual e obrigação, principalmente, pelas ‘peças’ que deixariam de estar ao nosso dispor, assim como alguns papéis de última hora, e a lembrança de que manteríamos o nosso estatuto, por mais uns dias, até à disponibilidade, a ‘peluda’.
Só conseguimos estar despachados por volta da dez da noite!

A despedida dos homens que nos acompanharam, durante tanto tempo, comungando de realidades e criando cumplicidades, por força das circunstâncias, requeria uma certa frieza, pelo momento difícil que era.
Sabíamos que todos tínhamos deixado uma vida, uma realidade que conhecíamos, para enfrentarmos o desconhecido, por mais informação que tivéssemos, levados por uma boa dose de ingenuidade, quer queiramos, quer não.

E também sabíamos que a separação, neste dia, seria temporária, pois alguém pegaria na tarefa de nos fazer juntar, de vez em quando, para um convívio, reviver os bons momentos, sem deixar de recordar os maus momentos, próprios de cenários como o que nos aguardava, quando saímos dos nossos cantinhos de conforto, naquele dia 31 de Outubro de 1970.
E estes maus momentos estariam, sempre, ligados a quem não mais poderia concretizar projectos de vida, os que poderíamos lembrar e homenagear nestes convívios.
E aquela vida, aquela realidade, voltava às nossas mãos, agora, com os ensinamentos que ganhámos nesse tempo e nesse espaço, mas nunca suficientes para nos compensarem três anos de algo pouco parecido com vida…

FIM

_____________

Nota do editor:

Postes anteriores de:

24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

27 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria

29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias
e
11 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

domingo, 11 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

1. VIII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VIII - de novo, guiné…

E os trinta e cinco dias de férias esgotaram-se, num ápice!

Preparei tudo para o regresso à Guiné, mas sem vontade nenhuma, claro, pois bem sabia para onde ia e o que me esperava, mas os homens mereciam toda a minha consideração e apoio…

"Imagino, Adolfo!
Depois de um ano naquela situação, deve ter sido difícil encarar novo período, com privações e riscos constantes…"


O meu irmão fez questão de me acompanhar e despedir-se de mim, assim como um colega e amigo dele da Força Aérea, o Zé Durães, de quem fiquei amigo.
Noite numa discoteca, melhor, boate, e eu enfrascado e bem enfrascado, a não querer ir para o aeroporto.
Lá me levaram e conseguiram meter-me na zona do check-in, onde fiquei, sentado no chão, de saquito da TAP na mão, enquanto eles batiam nas vidraças para que alguém tratasse de mim, ao mesmo tempo que riam e riam…

Passados uns minutos, aparecem um comissário e uma hospedeira, perguntam-me o nome e pedem-me o bilhete, ao mesmo tempo que vasculham o meu saquito da TAP, onde encontram a minha carteira e identificação.
Confirmaram que o passageiro que faltava era eu, um militar.
Não tinha o bilhete comigo, mas fizeram eles próprios o check-in e levaram-me para o avião.
Sentaram-me e fiquei sossegado, embora triste e contrariado.

Descolagem efectuada, avião no ar, quando alguém chama e diz que tem um bilhete daquele voo, que encontrou numa rua de lisboa - era o meu bilhete!

Chegada a Bissau, seguindo para o Depósito de Adidos, obrigatório, para registo de entrada e rotinas da praxe.
Mas pirei-me, logo a seguir, pois não tinha paciência para os serviços a que era obrigado.

Na cidade, em andanças pela avenida principal, conheci um mercenário francês, o capitão Charles André, capturado na operação Mar Verde, de que já lhe falei, pois estava ao serviço do PAIGC, na altura, em Conacry.
O Charles André, naturalmente, como prisioneiro de guerra, tinha a assistência própria de um prisioneiro de guerra, mas sob vigilância da polícia militar e da PIDE, vinte e quatro horas, prática corrente.
Com trinta e sete anos, mercenário de guerra desde os dezassete anos, em missões já dos tempos das guerras da Indochina, a designada Indochina francesa, território que incluía os actuais estados do Vietname, Laos e Camboja, também tendo passado pela guerra da Coreia.

Na Indochina, casou com uma indochinesa, a única mulher que o levou ao casamento, não só pela beleza, mas pela cultura, pela educação - dizia.
Durante uma flagelação ao aquartelamento, a mulher morreu, mas salvou-se a filha, ainda bebé, que ela tinha escondido debaixo de um caixote.
A filha, entretanto, já com doze anos, se bem me lembro, estava num colégio interno, em Lyon.

Fazia questão de me falar da cultura indochinesa, que considerava exemplar e digna de referência, em qualquer parte do mundo.
Por exemplo, quando um casal se passeava pela rua e aparecia um homem a olhar e apreciar a mulher, o marido parava, apresentava-se e agradecia o olhar do outro para a sua mulher, sem qualquer gesto de desagrado, sinal de que o marido tinha bom gosto.

Alguém que passasse na rua e olhasse para uma casa onde havia festa, se o dono da casa visse, saía e vinha convidar essa pessoa para entrar e participar na festa, no fundo, em sinal de solidariedade para com essa pessoa. Uma curiosidade: sempre que eu me referia à mulher e, por exemplo, dizia ‘a tua mulher era…’, logo reagia, com firmeza, e dizia ‘era, não, é…!’
Para ele, a mulher existia, apesar de morta…

Como o Governo da Guiné o hospedou no Hotel Portugal (uma espelunca) e, claro, lhe dava algum dinheiro, tudo controlado, logo me disponibilizou uma parte do quarto e pediu uma cama extra, para que eu não fosse obrigado a gastar os meus poucos pesos, uma vez que eu me recusava a dormir no Depósito de Adidos.
Repartia as refeições e cigarros comigo, o que evidenciava um autêntico espírito de partilha, solidariedade, digno de admiração, embora isso tivesse a ver com o que se aprende em cenário de guerra.
As provas de amizade e espírito de protecção foram evidentes e achava que a nossa guerra era estúpida e eu corria perigo de vida, pelo local em que estava - fronteira do sul, com a República da Guiné-Conakry, sede do PAIGC.

Quando saíamos para os subúrbios de Bissau, designados por ‘tabanca’, ‘poilão’ ou ‘pilão’, o Charles André logo se colocava em posição de segurança, embora desarmado, como que a proteger-me de uma qualquer eventual agressão.
Pudera, andava em guerras há vinte anos!

Falou-me em fugir e que eu deveria pensar nisso, também, pois era novo e tinha direito a viver, saudavelmente e em ambiente civilizado.
A saída seria pelo norte da Guiné, pelo Senegal e, depois, aventuras até chegarmos a França.
Frisou que tencionava passar o Natal com a filha, o que seria no mês seguinte, logo, dificuldade agravada.

Pediu-me que, caso lhe acontecesse alguma coisa, durante a fuga de Bissau, e eu pudesse passar por Lion, tentasse ver se a filha estava bem.
Claro que eu concordava com o que me dizia, mas só podia dizer-lhe que tinha homens à minha espera, em situação delicada, que não podia abandonar, além do enorme risco que correríamos na tentativa de fuga.

Como disse, eu deveria estar no Depósito de Adidos, enquanto em Bissau, em trânsito, sendo obrigado a fazer serviços de dia, mas continuava ‘desenfiado’.
Deveria fazer um trânsito curto, em Bissau, e regressar a Gadamael, o mais depressa possível, alugando avioneta civil ou aproveitando algum héli, mas não o fiz, pois sabia bem o que me esperava, em todos os aspectos.

Uma vez que fui ao Depósito de Adidos, só por precaução, fui informado que me enviavam rádios para Bissau a saberem de mim, mas era difícil encontrarem-me…
Doze dias em Bissau, escandaloso, e era hora de partir para Gadamael, onde era esperado, sabe-se lá como, pois o capitão andava em perseguição obsessiva…

Despedi-me do Charles André, que não correspondeu, pois dizia que não gostava de despedidas e insistiu que não aceitava que eu morresse naquele inferno.

Fui ao porto de Bissau e consegui lugar numa LDG que ia para sul e, depois, arranjei lugar numa LDM e batelão, até Gadamael Porto.

Já na LDG, quando abri o meu pequeno saco de campanha, encontrei um bocado de presunto e o cantil do Charles André, com um bilhete: ‘bonne chance et pensez à ma proposition’.
Mais tarde, soube que tinha sido executado pelos agentes da PIDE, durante a tentativa de fuga de Bissau!

Para estas acções, a PIDE tinha grande expediente, era organizada, inteligente, activa.
O mesmo não se podia dizer, quando eram necessárias informações concretas e indispensáveis à execução de operações militares, durante a guerra do ultramar…

Pode parecer lamechice, mas não mais esqueci aquele francês, apesar de mercenário, um homem direito, corajoso, resistente a adversidades, independente dos critérios que possamos ou queiramos ter em conta, um exemplo de solidariedade e espírito de grupo, além da particular preocupação que mostrava por mim, um menino de vinte e três anos, lançado às feras, embora consciente.
É com estes exemplos humanos que mais aprendemos e nos preparamos para a vida.

"Não vejo, apenas, sinto que o Adolfo vive as palavras, sempre que se refere a alguém, como exemplo que o marcou!"

A chegada a Gadamael Porto não foi seguida de uma boa recepção, por parte do capitão, bem pelo contrário, mas não esperava outra coisa.
Em contrapartida: uma calorosa recepção, por parte da companhia, que me deixou um pouco emocionado, mas sem conseguirem esconder a saturação e cansaço.

O capitão manda chamar-me e começam os ataques e as ameaças: ‘Cruz, tem aqui trinta e seis mil pesos para pagar, porque desapareceu uma data de material para o reordenamento!’
A minha reacção foi imediata: disse-lhe que fizesse o que entendesse.

Depois de explorar a que se referia, concluí que era material que vinha de Bissau, destinado a obras de reordenamento, um programa relacionado com a designada ‘psico’, e tinha desaparecido uma parte, o que era um hábito em qualquer ponto da Guiné, pois os diversos nativos eram conhecidos pela habilidade no desvio…
Ele ficava furioso, quando se reagia com indiferença à sua agressividade, apoiada nos galões, apenas!

"Falou em reordenamento e psico e gostava que me explicasse o que significam, realmente."

REORD, reordenamento, é uma acção estratégica que consiste na construção ou reconstrução de uma tabanca ou um conjunto de tabancas, visando a protecção da população e impedimento o seu contacto com o IN (inimigo).

Claro que esta e outras acções cabem no âmbito da designada ‘psico’, actividade que tem a ver com a captação da confiança e simpatia das populações indígenas, de forma que se sintam protegidas pelas NT (nossas tropas), importante para a nossa missão, como se entende.

Um dos dramas do capitão continuava a ser o facto de que a maioria dos graduados se mantinha afastada dele, mostrando-lhe indiferença, com evidente sinal de que o considerávamos ‘persona non grata’…
Daí, a sua obsessiva perseguição e agressividade, atitude contrária ao perfil de um líder.
Mas, afinal, além de o termos considerado um caso típico de sorte, pois nada lhe aconteceu, muitos de nós acabámos por sentir pena dele…
E continuámos a enfrentar o cenário de guerra, sem alternativa, claro, uns dias melhores do que outros.

Tínhamos ouvido qualquer coisa relacionada com tempos de estadia em determinadas zonas da Guiné, pela maior dificuldade operacional e psicológica, como era o caso de Gadamael Porto, o que significava o período máximo de doze meses para uma companhia completa, um pelotão de cavalaria e um pelotão de artilharia.
Assim, devia estar a aproximar-se a autorização de rendição da nossa companhia, pois já íamos em dezasseis meses.
Mas as coisas nem sempre acabam bem…

Uma das últimas operações, reconhecimento na zona de Sangonhá, pertinho da fronteira, saíram parte de dois grupos de combate, do segundo grupo, e do quarto grupo, o meu.
Tudo a correr bem, até que somos surpreendidos por mais uma emboscada, com alguma confusão, e o Fernandes, um dos furriéis do segundo grupo, é ferido, gravemente.

Foi a última ‘bofetada’ que levámos, naquela zona já tão massacrada e com tanto para contar!...


finalmente, o prémio…

E
a ordem chegou: seríamos rendidos, brevemente!

Como faz parte das estratégias militares, há um período de sobreposição, para que a companhia a ser rendida possa ‘passar o testemunho’ à nova companhia.
A entrega de armas e sua localização, os pontos mais vulneráveis do próprio aquartelamento, os locais estratégicos de saídas e entradas do aquartelamento, as picadas e trilhos de conveniência dentro e fora das matas, os pontos de instalação das nossas armadilhas e minas, os detalhes sobre a comunidade indígena, enfim, a preparação mínima da nova companhia para o que a espera…
Como a companhia tem quatro grupos de combate, saem dois para o novo destino de operações e ficam os outros dois, que fazem a sobreposição.

Chegados os batelões, toca a embarcar e seguir o rio Cacine, transbordar para as LDM, já no rio Geba, seguindo pelo mar, até Bissau, o trajeto contrário ao de dezasseis meses antes.
Depois, de viatura até aos quatro destacamentos, na zona noroeste da Guiné, um grupo de combate em cada um, como ‘prémio’ da campanha em Gadamael Porto, demasiado longa e cem por cento operacional e dura, assim classificada.

A mim, tocou-me Ome/Bijemita, o segundo destacamento, a partir de Bissau.
Zona de etnias Balanta e Biafada, principalmente, embora por lá andassem outras etnias.
Notava-se um pouco mais de movimento e evolução, pois estávamos perto da capital.

A missão, agora, limitava-se à defesa da área de Bissau, cujas ‘operações’ se reduziam a pequenos reconhecimentos e patrulhamentos na zona, incluindo os patrulhamentos do rio Mansoa, uma chatice…
Como era da praxe e bem importante, a designada ‘psico’ estava presente, quer para captar a simpatia da comunidade indígena, pela sua protecção, além da imagem que as forças portuguesas queriam fazer passar.

Os outros três grupos foram colocados em Ponta Vicente da Mata, Quinhamel e Biombo.

Ainda chegámos a ter connosco, uns tempos, o tal célebre Marcelino da Mata, guerrilheiro que ficaria na história desta guerra, por inúmeras e difíceis operações em que participou, nomeadamente, na operação Mar Verde, de que já lhe falei.
Voltarei a falar dele, se tiver oportunidade.

As condições deste destacamento permitiram apreciar alguns dos costumes das etnias locais, principalmente, quando em festa, a que chamavam ‘ronco’, assim como as cerimónias fúnebres que envolviam cenas dignas de filme.

Também era possível dar umas saltadas a Bissau, em viatura militar, sem grandes riscos, nomeadamente, para adquirir bens que não nos eram proporcionados pelo exército.

Recordo-me de um dos patrulhamentos que fiz, no rio Mansoa, com os designados ‘sintex’, barcos de fibra com motor fora de bordo, salvo o erro, com cinquenta cavalos, a que chamávamos banheira, pela configuração.
Saímos da zona posterior do destacamento, entrámos no rio e rumámos para a foz, que chegava mesmo ao Biombo, onde tínhamos um dos grupos.
Mas a operação limitava-se a uma parte do rio, embora tenhamos continuado um pouco mais, e mais, sem repararmos na quantidade de gasosa que tínhamos de reserva.
E as águas revoltas confirmavam o que já tínhamos ouvido sobre a fauna que ali habitava, como tubarão e crocodilo.
Já perto da foz e quase a atingir o Biombo, tivemos de aproveitar a corrente do rio, para conseguir lá chegar, pois a gasosa tinha acabado.

Quando já perto da margem, um dos homens resolve saltar para a água para empurrar o ‘sintex’- má ideia!
Começa a ficar rodeado por umas coisinhas avermelhadas e o corpo cheio de manchas e borbulhagem vermelha, comichão desesperante, difícil de suportar, que só foi atenuada com umas pomadas que o enfermeiro do Biombo lhe pôs no corpo, chamavam flor do congo ou coisa parecida.

E o que nos valeu foi o grupo que estava no Biombo ter gasosa suficiente para nos dispensar, para podermos voltar ao nosso destacamento, graças à solidariedade do Campinho, o alferes comandante do terceiro grupo.
Estas situações não deviam acontecer, pois os riscos estão sempre presentes, com forte probabilidade de consequências graves, mas sabemos que acontecem…

E não posso deixar de recordar as caldeiradas que um dos nossos homens fazia, aproveitando as minúsculas tainhas que as bajudas balantas ou biafadas apanhavam, com redes artesanais, enterradas nas lamas do rio, aguardando a maré.
Claro que as tainhas só serviam para dar o sabor, pois eram difíceis de comer, só espinhas…
Isto passava-se às seis da manhã, já com um calor insuportável, e era o pequeno-almoço.

E, realmente, acreditei no que nos disseram sobre o facto de terminarmos a comissão nestes destacamentos, como ‘prémio’, pelo facto evidente de termos estado aquele tempo todo em Gadamael Porto.
E já íamos em vinte e dois meses, quando sempre tínhamos ouvido falar em dezoito meses de comissão, quando se tratava da Guiné.

Faltava a ordem de saída para o COMBIS (comando de bissau), onde aguardaríamos avião para regresso à Metrópole.

"O Adolfo fala em prémio, como se isso fosse, realmente, um prémio!
Mas acredito que assim considerassem, tendo em conta a diferença de cenário de guerra que passaram a experimentar, com melhores condições e menos riscos, se bem entendi."


Isso mesmo, Daniel, melhores condições e menos riscos, permitindo o descanso merecido a todos nós.
Além disso, a parte psicológica enriquecida, pelo facto de estarmos perto de Bissau, naturalmente, local de partida para o regresso a casa…

Mas esta última etapa, a partida, rumo a Bissau, apesar de ansiada e muito desejada, deixou-me triste e marcado por um episódio simples, mas recheado de emoção.
A lavadeira que eu tinha neste destacamento tinha um filho com cerca de oito anos, a quem eu me tinha dedicado, pela doçura do olhar, simpatia e esperteza, que aceitava pequenas e simples coisinhas que eu lhe ia arranjando, principalmente, comida e alguns pesos.
E aquela minha dedicação nada tinha a ver com carência afectiva da minha parte ou outro qualquer sentimento, mas talvez com uma forma de agradecer o facto de estar no final da comissão, sem grandes mazelas físicas próprias daquela guerra, apesar de reconhecer que as psicológicas acabariam por emergir, mais tarde ou mais cedo.
Além disso, com o facto de ter acumulado uma forte dose de revolta e frustração, pois tinha estado em teatro de guerra que, a certa altura, depois de acordar, reconheci como desnecessária e injusta.

Pois é, este menino não conseguiu aguentar mais e desabafou comigo, mais ou menos, isto: ‘mê furiel, a mi miste bá com bó pr’a Lisboa!’

É um murro grande no estômago, já tão debilitado!...
E tive de pensar bem nas palavras de resposta a este miúdo, com todo o cuidado para não lhe fazerem mal, bem bastava o cenário onde vivia, mesmo que integrado na comunidade onde tinha nascido!...

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Nota do editor

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terça-feira, 19 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23441: O consulado do general Bettencourt Rodrigues (3): Directiva "Guarda Matutina", de 17Dez73, com vista ao reforço da defesa das áreas urbanas e suburbanas de Bissau


Guiné > Bissau > Bissalanca > Base Aérea 12 > s/d. 



1. A terceira (e última, no ano de 1973) directiva do novo Com-Chefe, gen Bettencourt Rodrigues (*), é a Directiva "Guarda Matutina", de 17Dez73, sem número. 

É também um sinal dos tempos.  Bissau está ao alcance dos foguetões 122 mm e vulnerável a eventuais acções de sabotagem e terrorismo urbano (como virá acontecer, já em 1974, com o rebentamento de engenhos explosivos num café de Bissau, em 26 de fevereiro,  que provocou 1 morto e a sabotagem no próprio QG/CTIG, em 22 de fevereiro, onde parte do edifício principal foi destruída, numa acão reivindicada pelas (ou atribuída às) Brigadas Revolucionárias. O perímetro da base aérea nº 12, e o aeroporto  de Bissalanca também  também podia estar sujeito à infiltração de um furtivo apontador de Strela...

Por outro lado, a  CECA (2015, pág. 12) recorda que já em 1971 se registaram dois factos graves e/ou preocupantes:

(i)  em fevereiro, "2 aviões MiG-17 com as cores da República da Guiné, tripulados por argelinos, sobrevoaram Bissau, tendo continuado a verificar-se, posteriormente, acções várias de violação do espaço aéreo por helis e aviões não identificados";

(ii) e em 9 de junho, "o PAIGC levou a efeito o primeiro ataque a Bissau e a diversos aquartelamentos das proximidades, provocando num deles um número significativo de baixas".
 
Ainda segundo a mesma fonte, mas já em 1972, explodiram três engenhos explosivos, durante a noite, em locais diferentes da cidade de Bissau, capital do território,  "o que indiciava propósitos de terrorismo urbano". Nestes engenhos foram utilizados espoletas de efeito retardado MUV-2 (CECA, 2015, pág. 121).

Não em Bissau, mas na segunda maior cidade, Bafatá, o PAIGC em 8 de janeiro de 1972 levara a cabo  "um aparatoso ataque", com foguetões 122 mm (CECA, 2015, pág. 121).  

Destaca-se também, nesse ano, em 9 de março, "a flagelação ao topo norte da Base Aérea de Bissau, no dia 9 de Março, fazendo uso de lança-granadas foguete RPG-7".
 
Num dos últimos discursos que proferiu antes de ser assassinado, em Conacri, em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral "referiu a necessidade de intensificar a guerrilha
em todas as frentes e nos centros urbanos, com base numa organização clandestina, sabotando meios, destruindo instalações e causando o maior número de baixas na retaguarda, e que, no novo ano, seriam utilizados novas armas e meios mais poderosos." (CECA; 2015, pág. 239). 

E como é sabido em março desse ano entram em acção os mísseis terra-ar Strela...
 
2. Directiva "Guarda Matutina", de 17Dez73, sem número. Excertos:

"1. SITUAÇÃO

a. Inimigo

A área de Bissau, com toda a sua infraestrutura civil e militar, constitui o objectivo principal do lN.

Nas áreas urbanas e suburbanas destacam-se, como pontos sensíveis a acções de sabotagem lN:
  •  as instalações da SACOR; 
  • a Central Elevatória da Mãe de Água;
  • o Centro Emissor de Brá; e
  • a Central Eléctrica (Av. Brasil).

b. Forças Amigas

A PSP tem tido o encargo da defesa dos pontos sensíveis referidos. Porém, a partir de Novembro de 1973, os guardas europeus da 7ª CMP - Companhia Móvel de Polícia são, na sua quase totalidade, soldados no cumprimento do serviço militar obrigatório, com pouca idade, experiência e prática de serviço.

Este facto, aliado à fraca capacidade de enquadramento, tornam impossível à PSP continuar a garantir satisfatoriamente a segurança e defesa de todos os pontos sensíveis.

c. Reforços e cedências

(1) Reforços

O COMBIS passa a ser reforçado com a Companhia de Milícias Urbana.

2. MISSÃO

As Forças Armadas colaboram na defesa dos pontos sensíveis das áreas urbana e suburbana de Bissau, ficando a seu cargo a defesa das instalações da Central Eléctrica (Av. Brasil), da Central Elevatória da Mãe de Água e do Centro de Brá.

3. EXECUÇÃO

a. Conceito da Manobra

Tendo em consideração a localização dos referidos pontos sensíveis em relação às áreas de responsabilidade do COMBIS, é minha intenção defender a central Eléctrica (Av. Brasil), a Central Elevatória da Mãe de Água e o Centro Emissor de Brá, com meios do COMBIS reforçados com a Companhia de Milícias Urbana.

b. COMBIS (Comando de Agrupamento de Bissau)
  • Garante a segurança imediata da Central Eléctrica (Av. Brasil);
  • Garante a segurança imediata da central Elevatória da Mãe de Água;
  • Garante a segurança imediata do Centro Emissor de Brá. [... ]"

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 293-294 (Com a devida vénia...)

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos,  para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
___________

Nota do editor:

Postes anteriores da série:


sábado, 30 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia: a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

 


Capa do livro do Fernando Magro - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005, 86 pp.  Na foto, o filho, Fernando Manuel, e o seu cão, na casa em que a família vivia em Bissau. 



Fernando Pinto Valente (Magro), ontem e hoje


1. Mais uma história da Spinolândia (*): desta vez não envolve diretamente a figura do gen Spínola,  mas sim um dos seus próximos colaboradores, o "Coronel Onze",  e um futuro capitão de Abril, o capitão inf Vasco Lourenço, cmdt da
CCAÇ 2549/BCAÇ 2879 (Cuntima e Farim, 1969/71).

Foi já aqui oportunamente contada  pelo Fernando Valente (Magro) (**) que, aos 33 anos, casado e pai de um filho menor, foi mobilizado para o CTIG,  como cap mil art,  BENG 447,Bissau, 1970/72, e que publicou em 2005 um livrinho com as suas memórias da Guiné, de 86 pp.  (reproduzidas no nosso blogue, na série "Memórias da Guiné,  por Fernando Valente (Magro)".

Há dias recebi, pelo correio, uma cópia do livro, via Hélder Sousa (que faz parte parte dos corpos sociais da ANET - Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos, tal como o Fernando Magro; aliás, a edição do livro teve o apoio da ANET, e havia por lá sobras do livrinho: obrigado, Hélder, pela encomendinha que chegou a boas mãos pelo correio).



Capa do livro de Vasco Lourenço do Interior da Revolução, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Âncora, 2009, 608 pp.  

"Vasco Correia Lourenço nasceu em 19 de junho de 1942, em Lousa, Castelo Branco. Integrando desde o início o Movimento dos Capitães, coordenou a organização da sua primeira reunião em 9 de setembro de 1973, vindo a pertencer à sua Comissão Coordenadora e à sua Direção. Único oficial que pertenceu sempre aos órgãos de cúpula do Movimento dos Capitães (CC e Dir.) e do MFA (CCPMFA, CE, C20 e CR). Das várias condecorações que possui, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Presidente da Direção da Associação 25 de Abril, desde a sua fundação em outubro de 1982. Coronel na Reforma". Fonte: Wook


A melena, pouco "regulamentar", 
do cap inf Vasco Lourenço 


(...) Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné. Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão. Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo. Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

 (...) Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre. Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção. Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite. Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia. Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço. Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
– Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
– Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde. Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha
 curiosidade.

Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau. O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
– O Senhor Capitão é miliciano?
– Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
– Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.

Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze. 
(...)

Fonte: Excertos de Fernando Magreo - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005,  pp. 37

[Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]

2. Comentário do nosso editor LG:

O nosso camarada José Câmara, em comentário ao poste P12028 (**) identificou o "Coronel Onze" como sendo o "Coronel Santos Costa". E acrescentava: "não era só austero, era desumano". Não conseguimos, no entanto,  encontrar nenhum coronel, no CTIG, com este apelido nos livros da CECA...

Será que se trataria do cor cav Fernando Rodrigues de Sousa Costa, um dos comandantes do COMBIS (Bissau), não ?!

O Carlos Pinheiro acrescentou (**): "Gostei desta memória e acima de tudo de ouvir falar do tal "coronel 11" que era mais que famoso na cidade de Bissau. A maior parte dos militares nem o chegou a conhecer, mas histórias acerca dele toda a gente conhecia."

Veja-se este episódio do "anedotário da Spinolândia" também como uma homenagem ao sentido do humor do nosso veterano Fernando Magro (um dos seis membros da família Magro que fizeram a "guerra do Ultramar") e sobretudo ao capitão de Abril , Vasco Lourenço, uma figura que, como diz o Carlos Silva (**), já pertence à história deste país, tal como o gen Spínola,  e que, como tal, merece o nosso respeito. (Felizmente ainda está vivo e vai fazer em breve 80 anos.)

sábado, 3 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22339: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte III: Cumeré, março de 1969




Guiné > Sector  de Bissau > Cumeré > Março de 1969 > Deslocámo-nos num zebro e estamos a subir o pontão. Aqui funcionava um CIM (Centro de Instrução Militar) e estava sediado o COMBIS .-Comando de Agrupamento de Bissau. Muitas unidaesd que chegavam ao CTIG, faziam aqui a IAO e, uma vez terminada a comissão, aguardavam aqui o embarque para a Metrópole.

Fotos (e legenda): © João Rodrigues Lobo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Duas mensagens de João Rodrigues Lobo que agregamos num texto único:


[ João  Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez 1967/fev1971): fez o 1º COM, em Angola, na EAMA, Nova Lisboa; vive em Torres Vedras onde trabalhou durante mais de 3 décadas como chefe dos serviços de aprovisionamento do respetivo hospital distrital; membro nº 841 da Tabanca Grande.]


Date: quarta, 23/06/2021 à(s) 15:50
Suject: PTE - BENG 447
Date: quinta, 24/06/2021 à(s) 16:44
Subject: Angola

Boa tarde,

Sobre o meu "curriculo": Não cheguei a frequentar o IST em Lisboa . Chumbei no exame de admissão realizado em Luanda. Depois da passagem á disponibilidade frequentei o Curso de Engenharia mecânica da Universidade de Luanda mas desisti porque arranjei um óptimo emprego como Agente de Navegação internacional.

Quanto a questões colocadas sobre as fotos de Angola (*):

Nas recrutas, em Nova Lisboa, quer no COM que fiz na EAMA quer depois na instrução que dei no CICA a arma diária era a Mauser. Só na parada usei a Uzi ou FBP, e de serviço, a pistola Walter 9mm.

A coluna da foto, era de instrução para os condutores auto se habilitarem a conduzir em coluna em condições reais. Mais uma vez com as Mauser embora na foto só se veja uma.

A zona era calma na data (1968) mas nunca se sabia se surgiriam surpresas.

A coluna parou para a "bucha" perto do "Paraíso " que ficava nos arredores de Nova Lisboa (Huambo).

As Fotos 13 e 14 são do Jornal publicado pela Região Militar de Angola (Só tenho o número 18). A assinatura da capa é "Higino".

Sobre outars questões e comentários que tenho lido no blog:

Residia em Luanda quando fui incorporado, nessa altura a regra era "quem chumbasse ia para a tropa" e eu chumbei !

Sobre a minha ida para a Guiné, sim, a única explicação foi o intercâmbio entre Províncias Ultramarinas.  Estava no Quartel General de Angola e um Tenente-Coronel foi ter comigo e anunciou a mobilização. Mais disse ter questionado o Ministério, por rádio, porque eu fazia lá falta já estando habituado ao serviço e a chefiar os MVL,  e, só lhe responderam que não tinham mais explicações e eu iria ser substituído por um ido da Metrópole. 

Do Primeiro COM em Nova Lisboa, dado por Comandos, só saímos 6 para Transportes Rodoviários pois tinhamos óculos, e não podiamos ficar nos Comandos. Um reprovou, ficámos 5 e eu fui para a Guiné!
 
Fui em rendição individual, não tendo conhecido quem fui substituir nem quem me substituiu (, ambos idos da Metrópole). Não vou especular sobre o que levou a tal decisão. Fui em avião militar de Luanda para a ilha do Sal em Cabo Verde , onde estive uma semana a aguardar outro voo militar para Bissalanca. (Base aérea em Bissau)

Não estive em Bambadinca,  aliás só saía esporadicamente acompanhando as viaturas ás obras, especialmente das estradas. (Bem protegidos pelos camaradas de armas) ( e embora levasse a minha G3 bem á mão, conduzindo sempre a viatura onde me deslocava).

A coluna das fotografias foi uma dessas colunas e a foto foi tirada após saída de Brá julgo que para a estrada de Có / Pelundo.

Por essa estrada, de Brá a Có, cheguei a ir em carro civil com outros camaradas, pois a guarnição da jangada de João Landim nos transportou para a outra margem, por, nessa data, a estrada até Có ser considerada segura. (Mas pouco , como depois vim a saber...)

Lembro-me das Galion que transportávamos, mas não reconheço o major numa fotografia junto dela, Não me parece ser de Engenharia, ou do meu tempo.

Sobre a tal construção, ou não, de pontões não posso esclarecer absolutamente nada pois não passava pelo meu pelouro.

Vou pôr a memória a funcionar para trocar mais recordações.

Junto duas fotos a caminho do Cumeré , mas subindo o pontão onde fomos num Zebro. (Março de 1969)

Sobre a minha passagem pela EAMA, poderei em próximo post juntar fotografias se tal considerares de interesse neste blog da Guiné.

Os melhores cumprimentos,
João Rodrigues Lobo



Guiné > Sector de Bissau > Carta de Bissau (1949) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bissau, Brá, Bissalana e Cumeré (na maregm esquerda do canal do  Impernal)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


2. Fichas de unidades> Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS)

Identificação: COMBIS

Cmdt: 
Cor Inf José Martiniano Moreno Gonçalves
TCor Art Aristides Américo de Araújo Pinheiro
Cor Cav Fernando Rodrigues de Sousa Costa
Cor Art Gaspar Pinto de Carvalho Freitas do Amaral
Cor Inf António Mendes Baptista
Cor Inf João Afonso Teixeira Henriques
Cor Inf António da Anunciação Marques Lopes

CEM: 
TCor Inf José Bonito Perfeito
TCor Cav António Maria Rebelo
TCor Art Aristides Américo de Araújo Pinheiro
TCor Inf Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto
TCor Inf João Polidoro Monteiro
Maj Inf Arménio Soares da Cruz Sampaio Nunes
Maj Cav João Luís Moreira Arriscado Nunes
TCor Inf João Salavessa Moura
TCor Inf João Afonso Teixeira Henriques
TCor Art Altinino Fernandes Gonçalves
TCor Art João Augusto Fernandes Bastos

Divisa: -
Início: 8Jan69 
Extinção: 20Set74

Síntese da Actividade Operacional

Este comando foi constituído a partir do Comando de Agrupamento n." 2952, sendo o seu pessoal nomeado por rendição individual. 

O Agrupamento tinha a missão de garantir a defesa da ilha de Bissau, de assegurar a manutenção da ordem pública e de controlar as vias de comunicação, as populações e os
abastecimentos, utilizando meios e pessoal dos três ramos das Forças Armadas
e das forças militarizadas sediadas em Bissau.

Em 8Jan69, substituindo o CmdAgr 2952, assumiu a responsabilidade da referida zona de acção, com a sede em Bissau e integrando as forças instaladas no respectivo sector, o qual englobava os subsectores de Brá (Bissau), Nhacra e Quinhámel.

Em 6Ag070, este comando passou a ter integrado na sua orgaruca o BArt 2866 e depois o BCaç 2929, incluindo as respectivas CCS, cujo pessoal passou a desempenhar funções no COMBIS. 

Em 1Set72, foi constituída e organizada a Formação do COMBIS, a qual substituíu a CCS do BCaç 2929 nas respectivas funções.

Em 18Nov71, por criação do COP 8, a sua zona de responsabilidade foi reduzida do subsector de Nhacra tendo, a partir de lJu173, o sector de Bissau sido articulado nos subsectores de Brá, Bor, Sa fim, Quinhámel e Prábis, este, apenas de nível pelotão.

Comandou e coordenou a actividades das forças atribuídas, em acções de patrulhamento e reconhecimentos, a par do controlo e fiscalização das populações e das acções de polícia militar e da segurança e protecção das instalações e pontos sensíveis da respectiva zona de acção.

Após ter voltado a integrar a zona de acção do COP 8, extinto em 12Set74, e depois da organização e montagem do dispositivo final das tropas portuguesas em Bissau, foi extinto em 20Set74, passando os subcomandos então definidos a assumir a responsabilidade das respectivas áreas, sob a dependência directa do Comando-Chefe.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 597/598