sábado, 25 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19824: Efemérides (302): Faz hoje 46 anos que morreu, na sequência de ferimentos em combate (, um estilhaço de RPG 7, ) o fur mil cav João Carlos Vieira Martinho, do EREC 8740/73, sediado em Bula... Era meu amigo e vizinho do Sobreiro Curvo, A dos Cunhados,Torres Vedras, e eu fui o último dos seus conhecidos a vê-lo, ainda com vida, mas já em coma profundo, no HM 241, em Bissau (Eduardo Jorge Ferreira, ex-alf mil da Polícia Aérea, BA 12, Bissalanca, jan 1973 / set 1974)


Foto nº 1 > O João Carlos Vieira Martinho, a bordo do Uíge,
a caminho do CTIG, em 1973


Foto nº 2 > Teor do telegrama enviado à família, com data de 26 de maio de 1973,  às 12h32, assinado pelo Comandante do Depósito Geral de Adidos, Ajuda Lisboa:

"Nº 602787. Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano João Carlos Oliveira Martinho ocorrido dia 25 corrente Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências

"Comandante Depósito Geral de Adidos 
Lisboa"




Foto nº 3


Foto nº 3A

Foto de grupo com conterrâneos em que o João Martinho é o primeiro de pé à direita,  estando eu a seu lado de camuflado [Fotos nº 3e 3A].


Fotos (e legendas): © Eduardo Jorge Ferreira  (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




1. Mensagem do Eduardo Jorge Ferreira, régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, Lourinhã,  residente em A dos Cumhados, Torres Vedras:

[tem mais de 4 dezenas de referências no nosso blogue; entrou para a Tabanca  Grande em 31/8/2011;  foi alf mil da Polícia Aérea, na BA 12, Bissalanca, de 20 de janeiro de 1973 a 2 de setembro de 1974, colocado na EDT (Esquadra de Defesa Terrestre);  presidente da assembleia geral da Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro; noutra encarnação foi sargento, integrado no exército luso-britânico que derrotou o exército napoleónico na batalha do Vimeiro, Lourinhã, em 21 de agosto de 1808]



Data: quinta, 23/05/2019 à(s) 16:18

Assunto: Efeméride: a morte do meu amigo e vizinho João Martinho, ex-fur mil cav, EREC 8740/73, Bula, em 25 de maio de 1973:


Caro Luís:

No próximo sábado, dia 25 de maio, precisamente no dia do convívio anual da Tabanca Grande , no I, faz 46 anos que morreu no Hospital Militar de Bissau o Fur Mil João Martinho, meu amigo e quase conterrâneo - era natural do Sobreiro Curvo, A dos Cunhados, concelho de Torres Vedras.

Quando conheci o Blog e entrei para a Tabanca Grande [,  em  31 de agosto de 2011],  prometi a mim próprio prestar-lhe uma simples homenagem,  evocando a sua memória num texto para publicação e para o qual obtive desde então a concordância da família.

Mas remexer no baú desta recordação tem sido muito penoso: fui o último conhecido e amigo a vê-lo ainda vivo, em coma profundo, deitado numa maca do HM 241, enfeixado em gase e com uma mão cheia de tubos e maquinaria à sua volta ...

Não me sai um nó da garganta quando relembro aqueles dias e quando falo do caso com alguém nunca consigo deixar de me emocionar e, a maior parte das vezes, deixar de verter uma lágrima.

O Fur Mil Cav João Carlos Vieira Martinho, nascido a 12 de julho de 1951, pertencia ao Esquadrão de Reconhecimento (ERec) n.º 8740/73 que teve como Unidade mobilizadora o RCAV 7 (Ajuda). A unidade partiu a 3 de abril de 1973 a bordo do Uíge,  tendo chegado a Bissau a 9 onde permaneceu 2 dias no DA/CTIG daí partindo para Bula no dia 11 a fim de reforçar o Erec 3432 (dados recolhidos com a devida vénia do blogue Panhard - Esquadrão de Bula, Guiné 1963-1974.

No dia 22Mai73, uma terça-feira, o João Carlos veio em serviço a Bissau e passou pela BA12 [, em Bissalanca, ] onde combinou comigo irmos na quinta-feira ao terminal da TAP esperar um nosso amigo e conterrâneo,também Furriel Miliciano, que chegaria de férias e sabíamos que seria portador de encomendas dos nossos pais para nós.

A esse encontro só compareci eu mas não estranhei, dado o período particularmente perturbado que se vivia com ordens e contra-ordens, escalas e serviços a mudar a toda a hora. Este amigo, ao regressar, no início da tarde, da sua apresentação em Bissau contou-me que lhe tinham dito que um furriel do Esquadrão de Bula tinha sido ferido numa emboscada à coluna de reabastecimento de Bula para Binar, já no regresso, na tarde da véspera (quarta-feira, dia 23), estava em estado grave no Hospital Militar e que, pela descrição,deveria ser o João Martinho. Corri ao telefone e obtive da parte das informações do Hospital que efetivamente se tratava dele.

Só pude sair da Base [, a BA 12, Bissalanca,] pelas 17h00 e corri ao Hospital onde pedi para falar com o médico de serviço ao SO que me autorizou a vê-lo e me disse tratar-se de um caso desesperado, que só um milagre, e dos muito grandes, o poderia salvar: o estilhaço de um RPG7 perfurara-lhe os intestinos e o fígado,  deixando um grande e muito severo rasto de destruição. 

No dia seguinte, 25 de maio, uma sexta, desloquei-me logo de manhãzinha ao Hospital para saber como tinha passado a noite e deram-me a notícia do seu falecimento naquela madrugada - nem 2 meses de Guiné tinha ainda!

Soube mais tarde que nessa emboscada apenas houve dois feridos que acabaram por falecer, um soldado nativo do contingente local que deu o último suspiro à entrada do Hospital e o João Martinho. 

No blogue  Panhard - Esquadrão de Bula, Guiné 1963-1974,  acima referido, editado e administrado pelo nosso companheiro de armas [e membro da Tabanca Grande] José Ramos, que na altura estava em Bula e participou na recolha dos feridos para a sua evaquação de helicóptero e com quem falei hoje, vem descrito com bastante pormenor o que se passou bem como contém dados importantes relativos à memória daquele nosso malogrado camarada que nos deixou a escassos 2 meses de completar os 22 anos (clicar no poste de  João Carlos Vieira Martinho, de 9/3/2014)..

Envio em anexo uma foto tirada a bordo do Uíge [, foto nº 1, em cima], cópia do telegrama do Exército, datado de 26, a comunicar aos pais o seu falecimento e que, para além de anunciar friamente a desgraça, troca um dos seus nomes - Vieira por Oliveira -  [foto nº 2, em cina] e uma foto de grupo com conterrâneos em que o João Martinho é o primeiro de pé à direita estando eu a seu lado de camuflado [Fotos nº 3e 3A].

Acrescento ainda que à data do seu falecimento a sua irmã Luísa Martinho tinha acabado de fazer o curso de Enfermeira-paraquedista e estava mobilizada para a Guiné. A instâncias da mãe,  e por razões mais que óbvias, pediu a sua desvinculação da Força Aérea e passou à disponibilidade

Agradeço a tua atenção para assinalares no nosso blogue esta triste efeméride,   publicando este texto no seu todo ou em parte ou resumindo a notícia, o que achares melhor.

Abraço
Eduardo Jorge Ferreira 

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P19823: Os nossos seres, saberes e lazeres (327): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
É no rescaldo das viagens, na verificação do que se fixou nos diferentes itinerários, que se constata que ao selecionar as imagens se corre o risco de deitar fora algo de impressivo, imagens que não entram na coesão que se procura dar a um determinado dia de visitas. E lamenta-se, porque se gostou muito de fixar este ou aquele detalhe, é assim que começa o relatório que ora se entrega. E temos depois um parque que não é exatamente um jardim zoológico, tem jardins assombrosos, goza-se uma atmosfera aprazível passeando entre o arvoredo ou ficando sentado a contemplar algumas das mais belas flores do mundo.
Foi este o passeio que se deu e que antecede um outro dia de encanto passado em Burford e Kelmscott Manor, a casa de verão de um dos mais geniais artistas de sempre, William Morris, o líder do movimento Arts and Crafts.

Um abraço do
Mário


No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (6)

Beja Santos

Em nome da pequenada, vai-se até Bradwell Grove, Burford, Condado de Oxford, é aqui que se situa o Parque da Vida Selvagem de Cotswold, criado em 1970, envolve uma bela mansão vitoriana, é um local com vestígios humanos vai para 4 mil anos. O proprietário de então, lançou-se na produção de fruta e legumes e seguiu-se uma insólita coleção de animais, de jardinagem e de parque de atrações para crianças e adultos, ao tempo em que viandante e companha aqui chegaram, cheio de gente, e ao que consta sempre cheio quando o tempo é ameno. Antes porém, o viandante pede licença para mostrar, em jeito de rescaldo, imagens que lhe perduram dos dias anteriores, gosta o suficiente delas para as partilhar: o esplêndido vitral do Julgamento Final, da Igreja de Fairford, em dia de casório, pena foi que a luz tivesse um tanto baça, as cores são flamejantes, é certo que há cuidadoso restauro, é inacreditável como aqui chegaram vitrais medievais, com tal perfeição, se acaso a palavra génio é excessiva; esta estátua é do 3.º Conde de Pembroke, em pleno pátio da Bodleian Library, deu nome ao colégio que fundou, o Pembroke College e foi chanceler da universidade; algures em Oxford avistou-se uma velha caixa de correio, está a pedir uma certa manutenção, o madeirame está um tanto fanado, mas que beleza; e uma entrada de colégio, o viandante estava a deitar fora imagens, esta tocou-lhe muito, espera que o leitor goste. E então vamos para o parque.





A coleção animal é prodigiosa, de zebras a pelicanos, de rinocerontes a lémures, o visitante encontra de tudo, a pequenada já está informada de que há um comboio, casa da passarada, casa dos répteis e anfíbios, há mesmo uma anaconda com peso impressionante, não faltam macacos e camelos. Faz parte do parque uma quinta pedagógica, não longe de um impressionante recinto de muita fauna aquática, com pelicanos e flamingos. Começa-se pelos pinguins, entre interjeições e gargalhadas, risadas de espanto, é um belo espaço, dá bem para ver que os pinguins não andam constrangidos, nadam, sacodem-se e passeiam em grupo.



Depois dos pinguins, o visitante tem uma área de aviários e várias espécies de papagaios, cegonhas e outras aves pernaltas, suricatas e um espaço com preguiças, pássaros e morcegos. Aqui se deixam algumas imagens.





O parque orgulha-se de oferecer jardins para todo o ano, espécies arbóreas vindas de todo o mundo, no cômputo geral 300 mil árvores, o visitante tem belíssimos cedros do Líbano, carvalhos e sequoias-gigantes. Mas, atenção, o que marca permanente presença nas estações quentes são as flores, túlipas, glicínias, bambus, é um colorido sempre harmonioso, apetece sentar e contemplar estes cuidados florais, bem singulares no que pode ser designado por jardim zoológico.


A pequenada insiste, todos já almoçaram uma boa sopa de batata e curgete, salada de galinha e depois gelado, é hora da viagem do comboio, mas antes passeia-se junto dos pequenos carnívoros e alguns mamíferos vistosos, caso dos mangustos e das suricatas, impossível deixar de fotografar um lémure de cauda anelada.





Uma boa meia hora à volta do parque, muitos dedos a apontar aves, mamíferos, arvoredo, grandes carnívoros, a paleta de cores dos jardins. Um dia magnífico, viandante e companha deitam contas à vida, ninguém fala no fim das férias, amanhã vão todos para Burford e Kelmscott Manor. É grande excitação. E regressam a casa, beber chá e uma boa fatia de bolo, em Buscott House, depois Faringdon, estão esfusiantes, não há nada como viajar assim.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19799: Os nossos seres, saberes e lazeres (326): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (5) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19822: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (IV e última Parte)


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974)  - OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ -  IV ( E ÚLTIMA) PARTE  



1.  INTRODUÇÃO

Na presente narrativa, a última do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), apresentaremos a análise demográfica em falta, quantitativa e qualitativa, sobre os "casos da investigação" coletados, onde, ao longo dos diferentes postes, se procedeu à sua organização estratificada em dois grupos (amostras): "corpos recuperados" e "corpos não recuperados", com identificação das suas respectivas Unidades. 

Como apêndice à problemática de partida, e a exemplo da metodologia utilizada nos fragmentos anteriores, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram os casos ocorridos no Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia» [abordado na Parte II (P19710)]; no Rio Corubal, em 06Fev69, na «Operação Mabecos Bravios», em Ché-Ché [abordado na Parte III (P19788)]; e no Rio Geba, no Xime, no âmbito de uma missão das NT, em 10Ago72 [a desenvolver neste poste].


2. ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74) (UNIVERSO - n=144)

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação incidiu sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).



Mapa da Guiné-Bissau, sinalizando-se, a branco, os três acidentes na hidrografia da Guiné de que resultaram cinquenta e oito mortes, por afogamento, de militares do exército durante a Guerra (40.3%).



Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)


Quanto à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.



Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável "corpos não recuperados por unidade militar" (n=63 - 43.8%)


Quadro 1 – Nomes dos restantes onze militares naufragados, e das suas respectivas unidades do Exército, apresentados por ordem cronológica, cujos corpos não foram recuperados no período entre 1964 e 1972 (ver gráfico 2; "outras").


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ:  CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIAS



Gráfico 3 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné


Para a estruturação deste ponto, relativo a cada uma das três ocorrências identificadas no gráfico acima, foi relevante a consulta efectuada ao vasto espólio de informação disponível no blogue da «Tabanca». No caso particular do episódio do "Naufrágio no Rio Geba", foram recuperadas as narrativas escritas na primeira pessoa por duas testemunhas que nele estiveram envolvidos, como foram os casos de mim próprio [P10246 e P13494] e do nosso camarada António José Pereira da Costa que, à época, era o Cmdt da CART 3494, Unidade sediada no Xime [P13493].

Importa referir que esta opção apresentou-se-nos como a única possibilidade de dar conta do que efectivamente aconteceu, uma vez que nada consta, sobre esta ocorrência, nos documentos "Oficiais", publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II, Guiné; Livros II; 1.ª Edição, Lisboa (2015).

Por outro lado, tendo em consideração o tempo que já passou sobre este "acidente", nunca ninguém entendeu na CART 3494 as motivações (ou razões) que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se "tábua rasa", nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40]. O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 15/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode ler-se na alínea d) "Por Outras Causas" [nome dos três camaradas naufragados] "… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72."


3.1. O CASO NO RIO GEBA EM 10AGO1972 = O TERCEIRO



Mapa da região do Xime, sinalizando-se no Rio Geba, a vermelho, o local do acidente com o "sintex" que transportava os militares da CART 3494, em 10Ago72, durante a sua travessia, de que resultaram três mortes por afogamento. Dois não foram recuperados.



Foto 1 (infografia do acidente no Rio Geba, em 10Ago72). O traço a verde refere-se ao trajecto do "sintex", durante a segunda tentativa da travessia do rio, iniciado depois da passagem do "macaréu". Sinalizam-se os locais de embarque e do acidente.


3.1.1. PREPARAÇÃO DA MISSÃO «TRAVESSIA DO GEBA» EM 10AGO1972

A preparação da missão supra, que consistia num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, foi iniciada na véspera com uma reunião entre o Cmdt da Companhia, Cap Art António José Pereira da Costa [hoje, Coronel aposentado e membro da nossa Tabanca], líder da CART 3494 entre 22Jun1972 e 10Nov1972, e o furriel Cláudio Ferreira do 1.º GrComb, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, Henrique Jales Moreira.

Os recursos operacionais mobilizados para esta missão recaíram na "Secção de Bazuca" desse GrComb, da qual o furriel Ferreira era responsável, e por isso a sua participação na reunião, já que, de acordo com a escala de serviço em vigor, no dia seguinte o 1.º GrComb estava de «intervenção». De referir que esse grupo de combate tinha apenas três quadros de comando (furriéis): o Cláudio Ferreira, o João Godinho e eu próprio.

A travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por «Sintex», com motor fora de bordo, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro.

Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, vai fazer em 10Ago2019 quarenta e sete anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem.

Tal como nos casos anteriores, o método utilizado na estruturação desta última parte foi organizado cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos.


Foto 2 - Rio Geba (Xime; Ago'72) – Foto tirada uma semana antes do "Naufrágio". À direita é a margem esquerda do Geba (Xime). À esquerda é a margem direita (Enxalé).


3.1.2. O ACIDENTE NO RIO GEBA EM 10AGO1972

As actividades do 1.º Gr Comb para o dia 10Ago72, 5.ª feira, foram iniciadas com a concentração dos elementos destacados para a acção definida no dia anterior, grupo constituído por nove militares devidamente equipados, por mim próprio (em substituição do camarada Cláudio Ferreira que adoecera entretanto), com equipamento extra constituído por um rádio AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o Cmdt da CART 3494, Cap. Pereira da Costa, o Alferes Sousa, em situação de Estágio Operacional e o Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos. A este número deve-se adicionar, ainda, o do barqueiro do sintex, perfazendo então um universo de catorze indivíduos a transportar no bote que, como referido anteriormente, era aconselhada uma lotação máxima de dez unidades.

Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas.

Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que a hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do «macaréu». Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba.

Uma vez que o Aquartelamento da CART 3494 distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do «macaréu», pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem.

Foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do «macaréu», na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.

De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas, viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil «CP-10».

À ordem de "avançar porque se fazia tarde" - a mensagem que circulou - entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior. A partida aconteceu no local indicado na foto da "infografia" acima (Cais do Xime), agora em ruínas. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso.

Logo nas primeiras dezenas de metros, os "palpites" começaram a escutar-se, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi pronunciada: "desligue-se o motor", o que foi acatada pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas.

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do «macaréu», cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver – "eu não sei nadar" - no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.

A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?

Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma "navegação o mais perto possível da margem esquerda", ou seja, a mesma donde partíramos.

Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: "haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster". Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de modo a facilitar a operação proposta.

Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da gravidade).

Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva.

Na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos camaradas, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade dentro de água, procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos. Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que nunca soube, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, sede do BART 3873. Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento.

No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos.

Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime.

Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um "osso difícil de roer", passe a metáfora, uma vez que faltava transpor o obstáculo «tarrafo» até chegar a terra mais sólida. E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça.

Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar/deslizar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc..

Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado. Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades.

Fazendo uso da faca de mato que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados sob os corpos, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências e por efeito da fricção.

Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). Estávamos, então, no início de uma bolanha e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana. Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois.

Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o Ser Humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa.

Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe era o menos importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Na falta de outros recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei.

O Cmdt da força aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos ao princípio da tarde. À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré.



3.1.3. AS DECISÕES QUE FORAM TOMADAS PARA RECUPERAR OS CORPOS DOS MILITARES NAUFRAGADOS EM 10AGO1972 NO XIME


Os conteúdos relacionados com este ponto foram retirados do livro «A Minha Guerra a Petróleo», da Editora Chiado, Fev/2019, da autoria do camarada António José Pereira da Costa, na qualidade de sujeito envolvido neste acidente. Tratou-se de um tema que foi, sem surpresa minha, abordado durante a sessão de lançamento desta obra, realizada na sede da A25A, em 17 de Abril último, quer durante a sua apresentação, a cargo do Coronel Carlos Matos Gomes, quer por parte do seu autor.


Foto 3 (Lisboa; A25A, 17Abr2019) – A mesa que presidiu ao lançamento do livro "A Minha Guerra a Petróleo". Da esq/dtª: os coronéis Carlos Matos Gomes, Vasco Lourenço e Pereira da Costa, todos eles ex-combatentes no CTIG.

A propósito das memórias que guarda deste episódio, o autor do livro declara:

"O acidente ocorrido no Rio Geba, a 10 de Agosto de 1972 (quinta-feira), terá sido o momento de toda a minha vida em que mais estive em perigo, assim como todos os que me acompanhavam. Foi certamente um dos meus momentos de sorte. Mas outros houve… felizmente."

Depois da boleia proporcionada por uma coluna da CCAÇ 12, comandada pelo segundo comandante, major Sousa Teles do BART 3873, dirigimo-nos ao Xime, onde deixei o pessoal que estava comigo.

De seguida sei que fui a Bambadinca e, à chegada, vi que já lá estava um helicóptero que serviria para fazer um reconhecimento à área do acidente. Ainda tinha a ilusão de que algum dos três desaparecidos estivesse perdido e exausto no tarrafo. Fiz o reconhecimento aéreo e, de novo em Bambadinca, sugeri ao comandante que batêssemos a zona a pé, à procura de sobreviventes. Pedida autorização à Base Aérea 12, fui largado com o furriel Domingos (das Trms; homem muito generoso e empenhado na tarefa que tínhamos de executar) e três soldados da CCAÇ 12, nas imediações do local do naufrágio.

É de referir que o piloto do helicóptero era meu ex-colega do Liceu Passos Manuel – o Luís Cabanelas – que, em vez de nos largar à altura acima do solo "prevista no regulamento", deixou-nos a cerca de um metro de altura. (…) Eu levava apenas a espingarda e os carregadores emprestados pelo comandante do BArt, sem qualquer outra espécie de equipamento.

Batemos a margem do rio para montante e jusante do local onde tudo tinha sucedido e não encontrámos o menor sinal de vida. Entretanto, o helicóptero partira e nós começámos a cortar ramos do tarrafo para podermos chegar o mais à frente possível sobre o lodo, quando o sintex nos viesse recuperar. Era o que esperávamos. Porém, nada, nem ninguém apareceu…

Entretanto, por razões que não foi possível determinar, perdeu-se o contacto com o comando do BArt. A noite começou a cair e, falhado o contacto rádio com Bambadinca, chamei a minha companhia e procurei fazer sair um grupo de combate que viesse recuperar-nos pela estrada. Contava poder orientar-me pelas luzes das viaturas que viessem ao nosso encontro. Porém, subitamente, as comunicações com Bambadinca restabeleceram-se e recebemos ordem de para ali nos dirigirmos. O percurso a fazer era maior do que para o Xime ou mesmo para os Nhabijões, mas começamos a progressão debaixo de uma chuvada tropical, acompanhada daquela trovoada que ainda deixa o céu iluminado, de um tom róseo, durante segundos, depois de a faísca ter caído.

Aproximámo-nos de Bambadinca num percurso em que mal se via o caminho e orientando-nos somente pelas luzes dos aquartelamentos. Já perto do quartel fomos recolhidos por um pequeno grupo da CCAÇ 12, sob o comando do capitão Bordalo Xavier, que, com um petromax à cabeça, nos ia orientando. (…) Como entrei no quartel não me lembro… Tomei uma bica no bar de oficiais… e, depois, sentado no chão do quarto do major Sousa Teles, estou a despir-me revoltadíssimo com o modo como tudo se passou e ele a tentar acalmar-me. Regressei ao Xime, já noite alta e com uma farda n.º 2 que o major Sousa Teles me emprestou.

Depois, foi elaborado, no BArt, o relatório da acção, que eu contestei, enviando a minha versão às mesmas entidades que o tinham recebido na versão do Batalhão. Redigi a contestação com base nas achegas que o alferes Sousa e o furriel Jorge Araújo me deram. Foi pelo Sousa que fiquei a saber que os três desaparecidos tinham caído à água simultaneamente, no momento em que o sintex bateu na margem." (Op. Cit. pp 94-97).

Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (foto 4). Era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro). O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência.

O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos. Éramos oito a tirá-lo de lá… assumindo o alferes Manuel Gomes (1948-2014) a missão de tentar extrair do corpo a água que impediu o malogrado Sousa de ser sepultado dentro de um caixão.


Foto 4 (Cais do Xime; Ago'72) – Foto com a indicação do local onde foi recuperado o corpo do camarada José Maria da Silva Sousa (1950-1972).

Dois dias depois procedemos à realização do seu funeral, numa tarde de autêntico dilúvio, com as Honras Militares a que tinha direito, ficando o corpo sepultado no cemitério de Bambadinca.

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão… para sempre! Nem tampouco os seus nomes constam no 8.º Volume da CECA… É inadmissível!



Em 07Dez1973, fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda. Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu.

O veredicto final do Tribunal Militar determinou a absolvição do Réu.

Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
19Mai2019.
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

Guiné 61/74 - P19821: Notas de leitura (1180): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O nosso bardo Santos Andrade fixou a data da entrada nas hostilidades, 11 de agosto de 1963. De novo, o tema da comida, a chegada da monotonia e insipidez alimentares. E o espectro da flagelação e a saída para operações.
Valeu-nos para Companhia um confrade que legou à literatura da guerra uma verdadeira gema, "Vindimas no Capim", o Zé Brás, que fez longa permanência no Sul. Aqui temos a impressiva descrição da viagem pela noite fora até Buba, as safadezas da cantina, da messe e do bar, as desconfianças da roubalheira, de quem se abotoava com as vendas debaixo da mesa, e o primeiro embate, o inesquecível primeiro embate, de pesadelo, de um morto que não deu pela morte e de outro que suplica ver o seu filho, que não chegou a conhecer. Parece-nos boa companhia para esta entrada em funções da CCAV 488.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (7)

Beja Santos

“Algum tempo se passava
a luta começou
E no dia 11 de agosto
a 488 alinhou.

Com as marmitas na mão,
nós fazíamos grandes bichas
comendo arroz com salsichas
e sopa de macarrão.
Com esta alimentação
o pessoal não aguentava
e o vague-mestre não gostava
de dar de comer com muito azeite.
Bebendo café com pouco leite
algum tempo se passava.

Ao Sul foram dois pelotões
da 1.ª e 3.ª Companhia.
E como o António José dizia
só comiam rações.
Sofreram muitas aflições:
o Matias também as passou;
o Aníbal Joaquim chegou
a comer carne só com sal.
Com fome na guerra afinal
a luta começou.

Fartaram-se de sofrer
nesta maldita saída.
Já diziam mal da vida
quando não tinham que comer,
pois eles tinham que se defender
com a sua arma ao rosto.
Chegava a hora do sol-posto,
começava a pancadaria
E ao norte saiu o Joaquim Maria.
No dia 11 de agosto.

Ordenou o capitão
a toda a rapaziada
que nesse dia de madrugada
tinham que ir para a missão.
Juntam os comandantes do pelotão
e o que iam fazer lhes contou.
E a dois colegas meus calhou
a saída desta vez.
E no dia 11 deste mês,
a 488 alinhou.”

********************

Há o desembarque, a instalação precária, a viagem para uma unidade ou para o desconhecido, a descoberta das amarguras do rancho, as primeiras operações. Vai-nos servir hoje de guia José Brás e o seu esplêndido “Vindimas no Capim”, Prémio de Revelação de Ficção 1986 da Associação Portuguesa de Escritores:
“… E lá se foi Lisboa, agora longe outra vez, e eu de novo ali na Guiné, na noite anterior a bordo de navio de transporte de tropas Niassa a ver ao longe as luzes de Bissau; a noite toda numa LDG a navegar rios acima por essa Guiné adentro, só com o ruído do motor do barco e a mata adivinhada no escuro das margens, ora longe, ora perto, às vezes tão perto que quase roçavam os bordos da lancha; a manhã vermelha nas copas do matagal; a metralhadora 12,7 na proa, lança-rockets, morteiro 60, tudo a postos no barco a cargo dos fuzileiros. O pessoal da Companhia de Caçadores 1622 era ainda uma excursão, turistas cheios de curiosidade.
E por volta da uma da tarde, Buba!
Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a autoestrada do Norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa.
As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada; um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar. A mancha definia-se, tomava forma, decompunha-se em formas, em gestos… Já se distinguia uma palavra ou outra no emaranhado de berros e de gritos, da beira da estrada, agora de novo a armar-se em rio, para o barco dos fusas, para o Niassa, que estava em Bissau à espera, para o Cais da Rocha, onde outra mancha havia de esperar o que restava destes dois anos”.

Passemos agora, sempre pela mão de José Brás, pelas tremendas questões da cantina, ele vai falar da sua experiência de gerente de bar:
“No início, o batalhão de que dependíamos informara-nos de que deveríamos apresentar balancetes mensais de gerência. O Capitão Velez sugeriu-me que fizesse dois balancetes, um falso, para o batalhão, e um real, para nosso governo.
Queria ele que o batalhão apresentasse saldo pequeno. No fim dos 20 meses não havia de facto, cem contos de lucro, mas apenas dezassete. Espantado fiquei eu quando, no último dia de Guiné, mesmo na véspera do embarque, já com as contas todas fechadas e entregues na respetciva repartição em Bissau, o primeiro-sargento da Companhia me pediu as contas do bar que tínhamos fechado dois meses antes, com os tais dezassete contos de saldo positivo, e que ele conhecia melhor do que ninguém.
No barco ainda tentaram, ele, o capitão e dois alferes, na noite da chegada a Lisboa, até de madrugada, no camarote do Velez, apertar comigo. O único pilim que tinha era o que o Estado depositava mensalmente na minha conta do banco da vila, e com esse contava eu para me aguentar nos primeiros tempos de vida nova”.

E há descrição do primeiro contacto, andava por lá a ceifeira da morte:
“A granada de bazuca, ou de lança-rockets, irá explodir contra uma árvore atrás do bagabaga onde estará abrigado e semeará estilhaços nos corpos todos que ali estarão contraídos de medo. A sementeira é rápida e os frutos brotam de imediato. A terra é virgem e a floração, vermelha e lasciva, salta e alastra em borbotões.
A semente que coube ao Madeirense levou-lhe metade da cabeça num golpe de mágica. Num segundo era uma cabeça normal, cara de fuinha, barba rala, olhos assustados… Um segundo depois já lá não estava tampa, cortadinha assim, pela testa, num golpe a descer para a base da nuca, junto ao pescoço, atrás.
Ao Barcelos, a sementeira abriu-lhe buraquinhos no peito e na barriga. Esse deu pela morte. Levou aí uma hora a esgotar-se, às costas dos companheiros na fuga para o quartel. O perigo da proximidade dos guerrilheiros proibia-lhe os berros de dor, obrigando-nos a enfiar-lhe na boca um rolo de ligaduras.
Para evitarmos as minas na picada, dois soldados, um negro e um branco, abriam mata à faca e os ramos fustigavam-nos e fustigavam o Barcelos, destapando-lhe as brechas da barriga. Nos altos pousávamos o Barcelos no chão e viam-se-lhe dois nós na cara, um de cada lado, logo abaixo das patilhas, e rolos de lágrimas a misturarem-se com suor:
‘- Aguenta-te, pá! Aguenta! Aguenta, que os sacanas andam aqui perto à nossa volta e se nos agarram nesta mata de merda fodem-nos a todos!’.
O alferes Vilar tentava suster o desânimo do soldado e escondia-lhe a sua própria angústia e as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos vermelhos.
‘- Não quero morrer! Quero ver o meu filho!’.
‘- Aguenta, pá! Os gajos estão aqui perto, a cinquenta metros. As rajadas são para ver se a gente responde’.
‘- O meu filho! Morro e não vejo o meu filho!’
Pelo canto da boca saía-lhe um leve fio de sangue.
‘- Não morres nada, pá! Estás a aguentar bem! Ânimo! É só mais um quilómetro!’.
O Barcelos cansou-se daquilo muito antes do helicóptero e não houve forma de o convencer a ficar connosco”.


(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19820: Parabéns a você (1624): Rui G. Santos, ex-Alf Mil Inf da 4.ª CCAÇ (Guiné, 1963/65)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19812: Parabéns a você (1623): Luciano Jesus, ex-Fur Mil Art da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19819: Agenda cultural (685): Convite para o lançamento do meu livro "Brunhoso, era o tempo das segadas - Na Guiné, o capim ardia", a levar a efeito no dia 24 de Agosto de 2019, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Mogadouro (Francisco Baptista)

C O N V I T E


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Maio de 2019, convidando a tertúlia para a sessão de lançamento do seu livro "Brunhoso, era o tempo das segadas - Na Guiné, o capim ardia", a levar a efeito no dia 24 de Agosto, na Biblioteca Municipal de Mogadouro.

Camaradas e amigos:
Apresento o livro que fui fazendo com textos publicados no Blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné e alguns outros. Agradeço o grande contributo que o Luís Graça e o Carlos Vinhal sempre me deram e o incentivo que me deram muitos outros camaradas. 

Para mim os livros foram desde cedo uma paixão maior. Um livro, para o autor, é como um filho, e um pai ou uma mãe nunca dizem mal de um filho. Seria melhor se fosse escrito em pedras de xisto, como as da parede de um prédio muito antigo, que diz um irmão meu, foi mandado construir por um antepassado nosso, onde me encosto à procura da força, da beleza e da robustez que elas transmitem. Escrito nesses pedras que ajustadas umas às outras, em construção, já têm mais de 300 anos, o livro ganharia vida para algumas centenas de anos, bem mais alargada do que a vida que poderá atingir em papel. Mas não importa a vida, a fama, a eternidade, tudo é finito e nada é da nossa conta. Os deuses que nos fizeram do barro, depois de se fartarem de rir da nossa vaidade ridícula, devolvem-nos à terra para nos transformar em pó. Em pó iremos bailar ao vento, em pedra sobrepostos uns sobre os outros, os pedreiros construirão abrigos para homens ou animais.

Sem lhe atribuir a beleza e rigidez das pedras de xisto, o meu livro é bom, diverti-me muito ao escrevê-lo e divirto-me hoje a imaginar algum bisneto a folheá-lo e ler algum texto, depois de o ter descoberto, nalgum sótão, entre outras velharias.
Descreve bem as minhas vivências mais marcantes da infância, da adolescência e juventude, e as minhas vivências como militar na guerra da Guiné. Tem 388 páginas, 70 fotografias a cores e 20 a preto e branco.

Está dividido em três partes:
- A primeira fala sobre Brunhoso, a aldeia transmontana onde nasci e me criaram;
- A segunda fala sobre a Guiné que por tudo o que de bom e mau lá aconteceu, passou a ser a segunda terra para onde o nosso imaginário de camaradas ex-combatentes nos remete quando recordamos a nossa juventude;
- A terceira descreve algumas viagens da minha vida, fala sobre um grande livro que li nos últimos anos, há outros textos com traços biográficos de três amigos que nos deixaram, e que choro ainda, e outros pequenos textos nunca publicados no blogue, escritos ao correr dos dias sobre assuntos diversos.

O lançamento do Livro será às 15 horas do dia 24 de Agosto na Biblioteca Municipal de Mogadouro. 
Convido a estar presente quem quiser fazer um passeio agradável e admirar as paisagens de montanha das Beiras e de Trás-os-Montes. Agora há boas estradas em Portugal, que cruzam o país de norte a sul e de leste a oeste, os ares das serras e dos montes são mais saudáveis e as comidas mais naturais.


Um abraço a todos
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19804: Agenda cultural (684): Rescaldo do lançamento do Volume III de "Memórias Boas da Minha Guerra", de José Ferreira da Silva, levado a efeito no passado dia 11 de Maio, na Quinta Choupal dos Melros, Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar (Parte 2)

Guiné 61/74 - P19818: (Ex)citações (354): A navegação fluvial no Geba e os "barcos turras" (Manuel Amante da Rosa / Arsénio Puim)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafaá >  Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). nosso querido amigo e camarada Humberto que é também aniversariante este mês. (LG)


Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > c. 1973/74 > Rio Geba Estreito e porto fluvial, em Bambadinca, na margem esquerda.


Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné > Bissau > Cais do Pidjiguiti > 1967 >  "Barcos turras", tripulantes, passageiros e esivadores


Foto (e legenda(: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > O alferes mil cav, cmdt Pel Rec Daimler 2046 (1968/70), Jaime Machado, num "barco turra" (que fazia ligação Bambadinca-Bissau-Bambadinca)

Foto (e legenda): ©Jaime Machado  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Recorde-se aqui três  excelentes nacos de prosa sobre a navegação fluvila na Guine e os "heróicos barcos turras", do nosso tempo (*).

 Dois são  comentários de Manuel Amante da Rosa, e o outro um excerto das memórias do Arsénio Puim.

"Barco turra", e não no "barco dos turras"... Chamavam-se assim as embarcações civis que faziam a carreira Bissau-Xime-Bissau ou Bisssau-Bambadinca-Bissau... O pai do Manuel Amante da Rosa tinha uma carreira diária para o Xime, com o "Bubaque"... É possível que elementos do PAIGC, militantes ou simpatizantes, também utilizassem este meio de transporte... Não havia outros, a não a ser aéreos. A avioneta (civil ou militar) era um luxo... Muitos de nós, quando íamos a Bissau, utilizávamos o "barco turra"... Fardados, mas desarmados... Sem escolta, confiando na segurança que se fazia no Mato Cão e na Pona Varela...

O nosso ex-alf mil capelão Arsénio Puim (CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72) escreveu num das suas crónicas, sobre  "cruzeiro turístico" pelo Rio Geba abaixo... Vale a pena relembrar. Não sei se também se aplicava ao "Bubaque" o epíteto de "barco turra"... O Manuel Amante da Rosa já veio dizer aqui que o pai não tinha nenhum acordo com o PAIGC. Ele prestava um serviço público, de que todos beneficiavam de um lado e do outro (população, militantes e simpatizantes do PAIGC, militares portugueses...). Em 10 anos de navegação pelo Geba acima Geba abaixo, o "Bubaque" terá sido atacado uma vez, "por engano", em 1/6/1973, à uma e tal da manhã, em São Belchior, antes de chegar a Bambadinaca



O embaixador Manuel Amante da Rota, 2013.  Cortesia  da RTC - Radiotelevisão Caboverdiana].


Manuel Amante da Rosa (**)


[ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau,1973/74 (embaixador plenipotenciário da República de Cabo Verde em Itália entre 2013 e 2018; membro da nossa Tabanca Grande; o pai, antes de se tormar empresário de trasnsportes fluvianets, tinha sido, até ao início da guerra, comerciante em Belim, Fulacunda.]


(...) a navegação fluvual e costeira na Guiné era complexa e sempre dependente do ciclo das marés. Fazia-se muito pelos canais, à vista, com pontos de referência, e de forma impírica. 

Muito raros eram os arrais, motoristas e marinheiros que sabiam ler ou escrever. Mesmo assim tornavam-se pela prática experientes navegadores e exímios maquinistas. Muitos deles eram ainda do tempo das lanchas à vela. Muitos bebiam é certo o que em certas épocas se tornava um perigo. Metê-los no porão era a melhor opção. Pude cconstatar isso por diversas vezes. Dessa vez com o meu Pai ausente e com uma tripulação quase toda bêbada de cerveja, porque os excursionistas apesar de avisados deram-lhes à vontade de beber, sem restrições, tive de ir para o leme à partida de Bubaque. 

Era um bom navio. De ferro. Dois pisos. Um antigo e batido cacilheiro, "O Amanhã" . Dotado de um potente e excelente Caterpillar que lhe fazia bater entre 10 a 12 nós em viagem. 

O meu Velho comprara-o anos antes ao Sr. Fausto, português de Setúbal, opositor do regime de Salazar, desterrado para a Guiné, nos anos 40, e que ali se tornará um reconhecido madeireiro. Era ligado ou pelo menos tinha ligações a alguns dirigentes do PAIGC. Teria sido ele a transportar Luis Cabral, durante uma noite, até à fronteira com o Senegal para que não fosse preso pela PIDE que lhe estava no encalço. Era pessoa conhecida e ter levado para Bissau uma boa embarcação e colocado o nome de "O Amanhã" diz muito. (****)

Na realidade existe muita semelhança com a navegação fluvial do Brasil. Lembro-me que a primeira coisa que fiz ao chegar um dia a Manaus foi ir para o Hotel e apanhar um táxi para o porto/mercado. revivi o Pidjiguiti tal às semelhanças. Pontão, navios no lodo, grande amplitude das marés, mesmos cheiros, gentes, embarcações parecidas e até mercadorias. Umas boas horas somente a observar, a conversar e a passar de um navio para o outro. 

Anos mais tarde em Amapá, norte do Brasil, foi a mesma constatação e subir o Amazonas de lancha ronceira até Afuá. Pormenores inesperados que refluem na memória que julgavámos há muito desgarrados. (...)



Arsénio Puim (***)




Arsénio Puim, ilha de São Miguel, Açores, 2019.
Foto: Arsénio Puim

[ açoriano, da Ilha de São Jorge, ex-alf mil capelão; foi expulso do seu Batalhão, o BART 2917, e do CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um alferes capelão", de que se publicaram doze postes]



(...) Mas as embarcações que circulavam no Geba Estreito são também barcos a motor, para transporte de pessoas e de carga, que faziam viagens regulares e prestavam um importante serviço entre a capital do território e Bafatá.

Vim, uma vez, num destes barcos da carreira civil desde Bambadinca até Bissau, numa longa e pitoresca viagem que hoje ainda recordo.

Alguns militares usavam, uma vez ou outra, este meio de transporte para se deslocarem à capital. Penso que o grande Machadinho e meu grande amigo [, alf mil Abílio Machado, nosso grã-tabanqueiro, e que pertencia igualmente à CCS/BART 2917], também ia nesta viagem, mas não tenho a certeza.

No «Bubaque», apinhado de pessoas – muitos africanos e africanas e alguns soldados portugueses –, galinhas, porcos, cabras, (tudo em muita paz), navegámos ao longo do Geba Estreito, ladeado de mato denso e misterioso e cheio de curvas muito apertadas que obrigavam o barco a manobrar bastante próximo das margens. Depois entrámos no Geba largo, cada vez mais espaçoso e aberto aos nossos olhos curiosos, de margens arborizadas e baixas, ponteado com os seus quarteis militares estrategicamente disseminados dum lado e outro do território.

Sete horas depois, agradavelmente vividas em conversação amena e, sobretudo, a olhar, profundamente, a terra da Guiné e desfrutar da sua natureza, o «Bubaque» havia passado a grande ria do Geba e entrava no porto de Bissau, quando eram cinco horas da tarde do dia 8 de Março de 1971.

Fácil se tornou para nós pensar que, não obstante serem alvo de um ou outro ataque esporádico, não seria possível estes pequenos barcos civis, indefesos e para mais trasportando elementos do exército português, circularem regularmente numa tão extensa e recôndita área fluvial se não existisse um acordo secreto entre a empresa e a guerrilha, como aliás era voz corrente.

Mas além deste possível e mais ou menos controlado obstáculo humano, todo o movimento de barcos no Geba é condicionado por um interessante fenómeno natural que dá pelo nome de macaréu.
É, em linguagem simples, uma onda, provocada pelo choque da maré com a corrente fluvial, que avança rio acima, impetuosa e com grande ruído, operando à sua passagem a transição brusca e imediata da baixamar para a preiamar, numa amplitude que pode atingir dois metros ou mais.
Neste interior da Guiné, a mais de 100 quilómetros de Bissau, várias vezes me detive junto do grande Geba para ver passar o macaréu, poderoso e cheio de mistério, admirável e sempre benvindo. (...)


 Manuel Amante da Rosa (***)


(...) Caro Arsénio Puim, alegrou-me muito saber que fez uma viagem no "Bubaque" de Bambadinca para Bissau. Muito provavelmente, se a sua jornada foi num fim-de-semana eu deveria estar a bordo. Se assim foi, deveremos ter saído do sempre atulhado e improvisado cais de Bambadinca às 11 da manhã. Uma a duas horas antes da vazante. Factor regular (horário das marés) que muito nos preocupava para não ficarmos em seco no meio do Mato Cão. 

O Bubaque era do meu Pai que o adquirira à Marinha Portuguesa e o transformara em barco de passageiro com capacidade para 140 ou 180 passageiros, após ter sido abatido à carga. Teria sido antes uma trainera algarvia que foi transformada ainda em Portugal em Lancha Patrulha (o LP4) com uma pesada casamata blindada, em ferro, a meia nau e enviada para a Guiné em principios de 1960. 

Muito patrulhou os rios da Guiné tendo inclusivamente participado na batalha do Como. Com a chegada regular das LDM e LDP as 4 LP  tornaram absoletas e foram abatidas por Decreto do Ministro da Marinha. Eram robustas, aguentavam bem o mar e todas possuiam bons motores. 

O Bubaque era muito conhecido na região do Leste. Era a carreira mais regular entre Bissau e Bambadinca e exclusivamente destinada ao transporte de passageiros e suas cargas. Era também conhecido por “Djanta Kú cia” pela sua rapidez na jornada. Significava que se podia almoçar em casa e chegar ao seu destino ainda a tempo de jantar. 

Fiz muitas e muitas viagens nesse navio, mais de dia que de noite, algumas com acidentes e avarias graves no percurso mas, estando a bordo, nunca fomos vítimas de ataque. Meu Pai sim, numa madrugada em pleno Mato Cão, por erro de identificação. Não me parece que tivesse havido alguma vez um acordo ou pagamento de passagem. Era sabido que só transportavámos passageiros e muitos deles seriam familiares próximos de quem estava na luta quando não fossem mesmo guerrilheiros ou mensageiros a caminho de Bissau e vice-versa. Transportei muitas vezes militares que demandavam e/ou outro porto Sentiam-se seguros no "Bubaque". A viagem directa Bambadinca-Bissau demorava em média de 5 a 6 horas, duas das quais na “auto-estrada” do Mato Cão a parte que mais encanto me dava. A subir era sempre menos.

No Geba largo, no tempo das chuvas e tornados, a preocupação era evidente devido às vagas curtas, sempre de través e instabilidade da massa humana a fugir da chuva ou a agachar-se do vento a sotavento dele. Nessas ocasiões aproximavamo-nos da margem oposta passando por Jabadá e Enxudé até cortar directo para oeste de Cumeré, passar entre a ponte cais e o ilhéu do Rei e atracar no Pidjiguiti. No outro dia, a favor da mare, lá se iniciava uma outra jornada. Tenho ainda vivas as mesmas imagens que tão bem descreveu das margens do Geba apertado. (...) (*****)

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXX: Viagem, de regresso, do Gabu a Bissau, em 26/2/1968: no 'barco turra', a partir de Bambadinca (II)



(**) Vd.comentário ao poste  17 de março de  2015 > Guiné 63/74 - P14377: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (29): A Ilha das Galinhas que eu conheci e a nostalgia da "prisão" com que o Zé Carlos Schwarz ou Zé Cabalo (, no meu tempo de liceu), nos surpreende, na letra e música de "Djiu di Galinha" (Manuel Amante da Rosa)

(***) Vd. psote de 12 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba


(****) Vd. poste de 20 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17489: (De) Caras (85): o testemunho de Manuel Amante da Rosa, embaixador plenipotenciário de Cabo Verde em Itália, sobre o Fausto Teixeira: "era uma figura distinta, opositor ao regime de Salazar, vigiado pela PIDE/DGS, amigo do meu pai que lhe comprou, no início dos anos 70, o último navio que ele levou para a Guiné, um antigo cacilheiro que fazia carreiras regulares para o Xime e para os Bijagós ...Morreu depois do 25 de Abril em Portugal".

Vd. também postes de:

18 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13912: (Ex)citações (247): A embarcação "Bubaque", da carreira Bissau-Bambadinca-Bissau (Manuel Amante / Jorge Araújo / J. F. Santos Ribeiro)