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sábado, 23 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11299: Do Ninho D'Águia até África (60): O regresso a Portugal (Tony Borié)


1. Sexagésimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 60



Era manhã, a maré estava a encher, cheirava um pouco a maresia e os barcos baloiçavam no cais de embarque. A ordem era todo o pessoal estar preparado, pois iam começar a embarcar, mas seguindo uma certa ordem, e como os do Comando do Cifra eram poucos, foi dos primeiros a embarcar. Quando o Cifra, com o saco ao ombro e a malita nas mãos, passava por algumas unidades, ao passar pela unidade onde estava o Curvas, alto e refilão, logo ouviu este dizer, alto e bom som:
- Os malandros são sempre os primeiros, tinha que ser!


No barco, o Cifra bebeu cerveja com o Setúbal e na primeira noite dormiu no convés, e só se lembra de acordar e ver umas luzes ao longe, pois já se encontrava no alto mar, de regresso a Portugal. De ver o Trinta e Seis a querer segurar o Curvas, alto e refilão, pois este agarrava pela camisa o empregado que estava encarregue do local onde vendiam cerveja e outros licores no barco, dizendo:
- Quero mais cerveja, filho da p...! Não vês esta medalha cruz guerra? Vou enfiá-la onde tu sabes e vou atirar-te ao mar, lá isso vou!


E mais tarde, o Trinta e Seis contou ao Cifra, rindo-se, um episódio que também fazia os outros rirem-se, que era o momento em que determinado coronel entregou as insígnias da campanha da Guiné ao Curvas, alto e refilão, e vendo-lhe a medalha cruz de guerra no peito, colocou-se na posição de sentido e fez-lhe a respectiva continência. E o Curvas, alto e refilão, dizia:
- Aqui até os coronéis me “batem a pala”, e lá em Portugal, vou carregar a caixa de engraxar sapatos, cheio de fome, sem ter onde dormir, desprezado por todos, eu até podia continuar, sendo um militar ou um polícia, mas não sei receber ordens, está dentro de mim, é mais forte do que eu!


No barco “Uíge”, o Cifra, dormia no terceiro piso, no porão, com camas improvisadas em madeira, parecidas com as que se usavam no aquartelamento de chão vermelho e arame farpado. Para usar o quarto de banho, tinham que subir as escadas, quase até ao convés. Muitos não o faziam e urinavam pelos cantos. Passados uns dias de alto mar, com o calor, era impossível descer uma dúzia de degraus para o porão. O cheiro pestilento era insuportável, por mais que lavassem e desinfectassem. Quase todos os militares dormiam no convés, a céu aberto.


No último dia de viagem, o Cifra despediu-se de todos os seus amigos, deu-lhes o seu endereço em Portugal, daquele grupo de amigos mais íntimos, no qual se incluía o Curvas, alto e refilão, o Setúbal, o Mister Hóstia, o Marafado, o Trinta e Seis e o furriel miliciano, porque o Pastilhas, o Arroz com Pão, e o sargento da messe vieram mais cedo umas semanas, talvez um mês, o Cifra não se recorda, todos queriam levar o Curvas, alto e refilão, para junto de si, para as suas aldeias, mas ele não queria ir com ninguém, excepto com o Trinta e Seis, e disse abraçado ao Cifra:
- Eu não tenho endereço em Portugal, para já vou com o Trinta e Seis, para a sua aldeia, que ele não me deixa ir para mais nenhum lado, e como sabes só recebo ordens dele. Veremos o que ele me arranja, depois, andarei por aí, tal como fazia antes, qualquer dia bato-te à porta.

Pela manhã, com quase todos os militares no convés do barco, começaram a ver umas nuvens ao longe. Passado um tempo, já não eram nuvens, mas sim terra. Era Portugal.


Entraram no rio Tejo, viram de perto o Forte do Bugio, foto em baixo, Cascais, Estoril, a ponte sobre o Tejo, já em fase de acabamento, e começaram a atracar no cais da Alfândega. Todos gritavam, faziam sinais, mostravam cartazes, tais como, “estou aqui, mãe”, “sou eu, o Zé”, “olá Évora, o Manel chegou”, “Isabel, anda pró meu colo”, “Pai, já cheguei”, e um que o Cifra se recorda, e era um pouco arrojado para a época, dizia assim: “P’ras Caldas, vou já, e em força”!


Todos queriam um lugar na borda do barco. O Cifra, empoleirado numa escada de corda e madeira, viu os primos de Lisboa, lá ao fundo, ela de lenço preto, amarrado à cabeça e ele com uns grandes óculos escuros e de bigode.

Sim eram eles.

Acenou, gesticulou com os braços, chamou por eles, com toda a força dos seus pulmões, fez tudo o que lhe era possível, mas nada, não o viam. Só em terra, já com o saco do exército às costas e a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, é que o Cifra correu para os primos de Lisboa, que estavam lá, banhados em lágrimas, pensando que o To d’Agar não tinha regressado a Portugal.

Ainda no cais da Alfândega, o comandante veio cumprimentar e despedir-se de todos os militares que faziam parte da sua unidade militar. Ao cumprimentar o Cifra, parou, olhou-o nos olhos e disse:
- És um bom homem, gostava de continuar a ter-te sobre o meu comando, desejo-te as maiores felicidades pela tua vida fora. Enquanto for vivo e necessitares de mim para alguma coisa, que entendas que posso ser útil, por favor contacta-me. Adeus, oh Cifra.

Depois de ouvir estas palavras, o Cifra abraçou-o e não pode conter uma lágrima.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 19 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11277: Do Ninho D'Águia até África (59): A saída de Mansoa com destino ao cais de embarque (Tony Borié)

terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11277: Do Ninho D'Águia até África (59): A saída de Mansoa com destino ao cais de embarque (Tony Borié)

1. Quinquagésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 59



O Cifra tinha feito pelo menos quatro vezes a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, pois as dobradiças e fechadura, há muito que se tinham partido e desfeito com a ferrugem, pois naquela altura sempre havia falsas notícias de regresso, mas um dia, o comandante reúne todo o comando, que está na foto em baixo com o Cifra a dizer se será desta que regressa, que foi tirada pouco antes de deixarem o aquartelamento de Mansoa, como podem ver era um comando sem armas, mas que infelizmente directa ou indirectamente dava ordens para matar, junto do carro da psico-social, e emocionado, diz entre outras coisas:
- Obrigado a todos, e vamos regressar na próxima semana. O comando que nos vai substituir, já saiu de Portugal e regressaremos no mesmo barco.

Dois dias depois volta a reunir o comando e diz, ainda mais emocionado:
- Já não iremos para a semana que vem, pois o comando que vem a caminho foi destacado para outra zona, onde a guerra se está a desenvolver cada vez com mais intensidade, mas prometo-vos que iremos na próxima viagem que o navio “Uige” fizer, têm a minha palavra.


Todos ficaram desolados, menos o Curvas, alto e refilão, quando o Cifra lhe contou, que murmurou:
- Aqui, estou na guerra, mas tenho a vossa companhia, são a família que nunca tive, mas agora que nos vamos separar, é que dou o valor ao que é uma família. Lá, sem vocês, vou ser um desgraçado, sem amigos nem ninguém.

Mas continuando, agora essa mala estava feita, feita de vez.
Estava ao lado da cama e só usava o saco de lona do exército. Ai colocava o resto dos trapos, que era a sua farda do dia-a-dia, tinha uns calções com algumas nódoas, que não eram visíveis a olho nu, pois eram nódoas do medo que o Cifra sentiu algumas vezes, quando eram atacados durante a noite por granadas de morteiro e rajadas de metralhadora, uma camisa e um par de meias rotas na frente, assim como as botas melhores, no fundo do saco, tudo para o tão desejado dia. O resto por cima, era só trapos, e alguns sujos.

Neste momento, tal como os seus companheiros, só pensava em Portugal, na sua aldeia, no seu lugar, era melhor que não se metesse com ele, ou o provocasse, era melhor assim, pois de contrário, iria haver um desastre, pois a sua mente já estava cansada do aquartelamento, do arroz com peixe da bolanha, dos tiros, dos rebentamentos, dos estilhaços, dos abrigos cheios de lama e água suja, da farda camuflada e rota, das ordens, da obediência, onde não podia haver um simples não, em caso de uma provocação, não sabiam como ia responder, pois ainda vivia num cenário onde havia armas e granadas por tudo o que era lugar, que usadas, podiam matar pessoas, e o Cifra, às vezes pensava só para si: Estou com um fraco carácter, estou muito pior que o Curvas, alto e refilão.

No meio de todo este desespero, o tão esperado e desejado dia chegou finalmente e foi ele próprio quem decifrou a mensagem. Não ficou contente nem triste, uma onda de nostalgia percorreu-lhe todo o corpo, fechou os olhos, ergueu as mãos para cima e exclamou emocionado: OBRIGADO!


No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, a coluna militar estava pronta a seguir para a capital, houve alguns abraços de despedida, deu algumas moedas a alguns africanos, que foram seus companheiros, e um último olhar pelo que ajudou a construir, e que nunca lhe pareceu tão selvagem, tal qual um campo de concentração, como na hora da despedida. Os nossos companheiros combatentes têm mostrado fotografias do aquartelamento, mas na altura em que o Cifra o deixou, tinha só cinco pavilhões, ou seja três e mais dois, todos na direcção de Este/Oeste, todo cercado de arame farpado, só com uma porta pequena onde circulavam militares a pé, e uma abertura maior, sem qualquer protecção, virada para a vila, onde entravam ou saíam viaturas militares.

A coluna militar, foto em baixo, antes da ponte de Mansoa, percorreu os setenta quilómetros até à capital, largando o grupo do Cifra no cais. Aí permaneceu dois dias, tempo que durou o desembarque das tropas novas e o embarque das velhas, que era feito em lanchas pequenas do cais para o barco.


O comando a que o Cifra pertencia não chegava a trinta militares, sendo mais de dois terços os militares graduados. Enquanto esperavam pelo embarque, alguns dormiram na fortaleza de S. José da Amura, onde estava a polícia militar estacionada e onde o Governador da província se deslocou, com todo o seu aparato militar, para dar a todos umas insígnias com as cores da bandeira portuguesa, dizendo que representavam a medalha da campanha militar da Guiné, pois não havia medalhas para todos, o Cifra ainda hoje guarda essas insígnias como um “amuleto de boa sorte”.

Todos os haveres dos militares do seu comando estavam num grande monte, quase à entrada do cais de embarque e eram guardados por militares que faziam a sua guarda por turnos, pois iam regressando do interior outras unidades para embarcar, que faziam o mesmo, e deste modo, antes do embarque, quase todo o cais estava ocupado por diversos montes de malas e sacos, era um pandemónio, mas era um pandemónio feliz, pois avistava-se o barco ao longe, que os havia de levar de regresso a Portugal.

Chegou o grupo do Furriel Miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, onde vinha o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Marafado, o Mister Hóstia e outros, e a partir daí, o pandemónio, passou a ser maior, estavam vestidos e rodeados de equipamento militar, mas já se sentiam pessoas civis, e andavam pela cidade, bebendo, passeando, e fazendo algumas compras, onde o Cifra comprou uma boina nova, e uns sapatos à sua medida, o Curvas, alto e refilão, caminhando sempre na frente, procurando ser o chefe, dizia:
- É tudo muito lindo, para vocês, mas eu vou perder a minha família, que são todos vocês!.

E num momento em que devia de haver alguma alegria, chorava, e fazia chorar o Cifra e os seus companheiros.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)

sábado, 16 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)

1. Quinquagésimo oitavo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




Estava a ser difícil, mesmo muito difícil, quase penoso, o Cifra tinha momentos de completo descontrolo, não sabia quem era, nem onde estava, nada lhe importava, não tirava o cigarro da boca, acendia uns aos outros, a sua companheira de quase todos os momentos, que era a tal garrafita da coca-cola, cheia de tudo, menos coca-cola, essa, andava sempre consigo, tinha um aspecto um pouco desleixado, mas quando chegava o momento de entrar de serviço e executar as suas tarefas, apresentava-se limpo, usando a camisa comunitária, que era a que sempre estava pendurada no centro cripto, e que todos usavam para ir entregar as mensagens no comando, especialmente quando havia contacto com o comandante.


Quando estava de serviço, executava as suas tarefas com toda a precisão, fazia-lhe bem, pois andava ocupado, mas quando fora delas, tinha um problema na sua mente, era uma espécie de triângulo, era uma “tripeça”, como a que havia na casa de sua avó materna, já velha e com uma perna quase a partir, ele, também tinha uma “tripeça” na sua mente, e a velha “tripeça”, também tinha uma, ou mesmo duas pernas a partir, pois neste momento tinha três famílias, eram três queridas famílias.


A primeira família eram as pessoas amigas que viviam na tabanca com casas cobertas de colmo, um pouco ao norte do aquartelamento, onde passava quase todos os dias, que, debaixo da maior miséria que um ser humano pode viver, palhotas com chão térreo, com uma simples panela, que às vezes nem era panela, era uma lata de qualquer coisa, dormiam em cima de um lastro feito de ervas secas, coberto com um simples pano, o pouco com que se alimentavam, repartiam com os animais, que também famintos e cobertos de insectos, com o rabo entre as pernas, procuravam aproximar-se deles, e essas pessoas, vivendo miseravelmente, davam tudo ao Cifra, tudo que era possível dar, sem nunca pedirem nada em troca, sempre com um sorriso, olhando o Cifra nos olhos, sinceras e humildes, com uma maneira própria, que o Cifra, nunca tinha visto em toda a sua vida, e agora estava quase a abandoná-los, e com toda a certeza para sempre. Só de pensar ficava com lágrimas, que limpava nas costas das mãos, dizendo às vezes baixinho, só para si:
- Desejava ansiosamente o dia do meu regresso e agora quero ficar aqui para sempre.

A segunda família eram os seus companheiros, em especial o seu grupo com quem conviveu dois anos, o Curvas, alto e refilão, o Marafado, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Furriel Miliciano, conheciam-se como tivessem vivido toda a vida juntos, sabiam os costumes uns dos outros, zangavam-se e estavam amigos, bebiam, fumavam, roubavam pão, vinho e álcool, quando um tinha fartura de alguma coisa, todos tinham fartura e quando não havia para um, também ninguém tinha nada, era uma família com todos aqueles problemas, que ficavam resolvidos quando se deitavam, quase sempre sobre influência, pois no dia seguinte ninguém sabia se estava vivo.

E a terceira família era a que o esperava em Portugal, que lhe mandava os aerogramas e as cartas, algumas com fotos, essa família andava sempre junto de si, no seu pensamento. Ficava por momentos a imaginar como seriam as suas caras quando os visse de novo, alguns aparentavam ser mais velhos, outros talvez não, alguns tinham nascido depois de vir embora, outros já não estavam vivos, enfim iria ser com toda a certeza uma grande surpresa, mas uma agradável surpresa, mas estas três famílias traziam a mente do Cifra confusa e um pouco angustiada.


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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 12 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11243: Do Ninho D'Águia até África (57): Andava desesperado (Tony Borié)

terça-feira, 12 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11243: Do Ninho D'Águia até África (57): Andava desesperado (Tony Borié)





1. Quinquagésimo sétimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 57


Aos vinte e três meses de estadia no aquartelamento em Mansoa, o Cifra andava num desespero quase fora de controle, continuava a fazer as suas tarefas militares, mas o seu tempo livre era passado em actividades que lhe fizessem esquecer um pouco o local onde se encontrava.

O seu grupo de amigos estava nas mesmas condições, andava revoltado, pouco se comia, bebia-se muito, fumavam-se cigarros feitos à mão e  falava-se pouco. Quando falavam, as palavras saíam da boca mal pronunciadas e com alguma agressividade, parecendo mais que discutiam, não tinham cuidado com a sua higiene pessoal, tinham todos um aspecto de militares quase abandonados, o rádio portátil era um seus melhores companheiros, mas também motivo de algumas zangas, pois alguns queriam sossego e outros só para contrariarem colocavam a música, ou notícias, o mais alto possível, aumentando a poluição sonora, já deveras alta no dormitório, estava a ser difícil viver em comunidade, estavam fartos de se verem uns aos outros.

Agora o procedimento era ao contrário, antes, quando os militares de acção, chegavam das patrulhas e operações, o Cifra perguntava como tinha corrido, agora, quando o Cifra entra no dormitório, logo lhe perguntam se tinha recebido alguma mensagem, ou se sabia quando embarcariam de regresso, até já havia boatos de que o Cifra “tinha dito”, ou os radiotelegrafistas diziam que tinham recebido uma mensagem do comando da capital da província, que era enviada ao comando do Agrupamento, com informação a todas as unidades que tinham quase dois anos de estadia e estavam estacionadas na zona do Oio, portanto o Cifra sabia, mas era um “traidor”, pois não dizia nada.


A mais pequena notícia de que “tinham ouvido”, ou o “furriel falou”, ou o Cifra estava sobre influência e disse “isto” ao Trinta e Seis, era logo alterada e já sabiam a data e tudo, alguns corriam logo direitos à zona da sua cama e começavam logo a fazer e refazer os embrulhos, sacos e malas, tudo na ânsia de saírem dali, alguns colocavam-se na posição de joelhos, com as mãos juntas viradas para cima, e numa linguagem que mais parecia um choro, com uma cara transfigurada, mostrando alguma angústia, cantavam:

Avé, Avé, Avé Maria!,
Vou sair daqui,
E Deus me alumia,
Está quase a chegar
O bendito dia,
Vai tudo correr,
Tal como eu queria,
Obrigado Mãe,
Minha Virgem Maria!.

Depois, como não era verdade, voltavam à nostalgia, ao desânimo e atiravam mesmo com os embrulhos, sacos e malas para o chão, dizendo mal dos comandantes, dos tiros, das granadas, das bolanhas, dos calções rotos, do café, do arroz com peixe da bolanha, do calor, do governo que os mandou para ali e gritavam alto:
- Isto é um inferno! Quero ir embora daqui! Filhos da puta!

O Cifra começava a evitar ir para a tabanca, onde tinha algum carinho, pois já sofria a ausência das pessoas, que embora vivendo numa profunda miséria, tinham alegria, tinham muito bons sentimentos, eram sinceras e talvez derivado ao ambiente natural onde viviam, eram puras, e como o Cifra já disse por diversas vezes, eram um pouco parecidas com gazelas, pois só depois de verem os sentimentos de outra pessoa estranha, cheirarem o seu corpo e sentirem o sabor da pele, é que se dedicavam, mas quando isso acontecia, não mais largavam essa pessoa, pois já a consideravam parte da sua família.

O Cifra sofria, andava desesperado, andava confundido, não sabia se estava contente por regressar a Portugal ou triste por abandonar as pessoas que já considerava família.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11221: Do Ninho D'Águia até África (56): ...tudo parecia redondo (Tony Borié)

sábado, 9 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11221: Do Ninho D'Águia até África (56): ...tudo parecia redondo (Tony Borié)





1. Quinquagésimo sexto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56


O mês era Abril, e alguns diziam:
- A Páscoa, está à porta!.

Para o Cifra, tanto fazia ser Páscoa como Natal, os dias eram iguais, andava por ali, fumava os seus cigarros, umas vezes normais, outras vezes “especiais”, quase sempre trazia nas mãos uma garrafita de “coca-cola”, cheia de álcool, alguma água e um pouco de vinho ou café para lhe dar a cor, parecendo coca-cola, não aparecia à hora do comer e depois roubava pão e vinho, e quando havia oportunidade, álcool ao Pastilhas, metia conversa com este e com aquele, mas o final da conversa era sempre, “tirem-me daqui”. O Curvas, alto e refilão, já não se podia aturar, tinha sempre razão, os outros é que estavam todos errados, mas nesse dia reparou numa coisa diferente.


O Curvas, alto e refilão, andava em cima de uma bicicleta, muito velha, mesmo velha, sem pneus, com os aros tortos a fazer barulho no chão, de vez em quando desiquilibrava-se, quase que caía, colocava os pés no chão e gritava palavras obscenas, bicicleta esta, que possivelmente roubou a algum miúdo natural da aldeia com as tais casas cobertas de colmo, que ficava próximo do aquartelamento, trazia vestido uns calções rotos, em que o forro dos bolsos já tinha desaparecido há muito tempo, nos pés trazia os restos de umas botas de pano e borracha que tinham sido novas há vinte e dois meses atrás, amarradas com um fio, a servir de atacadores, somente nos dois últimos buracos do resto das referidas botas.
A medalha cruz de guerra andava pendurada na frente do resto da camisa suja, que tinha sido amarela quando as botas que trazia nos pés eram novas, medalha esta que balançava com o movimento do seu corpo. Guiava só com uma mão, pois a outra trazia o maço de cigarros “três vintes” e o isqueiro que o Movimento Nacional Feminino lhe tinha oferecido, por indicação do Cifra, não que ele o tivesse pedido, isqueiro esse que funcionava a gasolina ou a álcool, que ele roubava da enfermaria quando apanhava o “Pastilhas” desprevenido, pois o “Pastilhas” quando o via próximo, escondia o frasco do álcool. Quando isso acontecia, usava gasolina e deitava um cheiro que alguns diziam:
- Cheira a gasolina, anda por aí o Curvas, alto e refilão.

Andava na bicicleta, não conseguia rolar pois mais que uns escassos metros, voltava a desiquilibrar-se, quase que caía de novo, e então dizia com a voz um pouco alta e algo excitado:
- Fujam, fujam caral..! Que esta merda, ainda vai cair!

O Cifra olhou para ele e sentou-se em cima de uns restos de um barril de vinho vazio, que por ali andava a já não sabia há quanto tempo, tapou a cara com a mão, em sinal de desespero, pois estava nesse momento a pensar na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, passado uns momentos, tira a mão da cara, e olhou para o tampão, que também era redondo, e pensou para si:
- Isto é muita coincidência.

Olhou para o seu relógio de pulso, que também é redondo, e rondava por volta das seis horas da tarde, o Curvas, alto e refilão, rodava na bicicleta velha, com as rodas tortas, a pequena bolanha, ou seja pântano, que existe ao fundo do aquartelamento, também é redonda na sua superfície, pássaros de diversas cores, voavam e rodavam em redor uns dos outros, na tal pequena árvore florida, de que já se falou, no princípio desta série de textos e que existe junto da bolanha.

Verificando melhor, lá ao fundo, vem um bando de patos rodeando a bolanha, o furriel miliciano vai a passar por ali, com um cigarro feito à mão na boca, leva a sua G-3 ao ombro, que acabou de limpar, no cabanal, era assim que se chamava ao local onde os militares de acção limpavam e oleavam as armas, que era um lugar que alguém se lembrou de fazer, com quatro estacas de troncos redondos de palmeiras, cobertas com três folhas de zinco, já com alguma ferrugem que andavam por ali, depois alguém para lá levou uns barris de vinho vazios, também redondos, que serviam de mesas, e lá começaram a limpar as armas, passando a chamar-se, “o cabanal da limpeza de armas”. O dito furriel, com uma habilidade espantosa, talvez sobre influência do cigarro feito à mão, dá um tiro certeiro num dos patos, talvez para experimentar a arma, que rodou sobre si, morto por uma redonda bala, saída de um redondo cano, o resto do bando dos patos continuou a rodear a bolanha, mas fugindo, na procura de novos rumos. O Cifra, pensou para si:
- Estou a ficar maluco, é tudo redondo, por favor tirem-me daqui!


Olhou melhor para o barril vazio, e os aros também eram redondos, o buraco no meio, também era redondo, assim como a rolha, e ficou a pensar que o pato que o furriel miliciano matou, sem tirar o cigarro, feito à mão, da boca, cigarro esse que apesar de encurrilhado, na mente do Cifra também lhe parecia redondo, e pensou que o pato morto com o tiro certeiro, não rodará mais, mas fará rodar os membros de quem o comer, e de repente, põe de novo a mão na cara, fica por segundos a pensar e lhe volta à ideia a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia e quando era criança também formavam uma roda em redor uns dos outros, esperando que o futuro os rodeasse com os seus caprichos, e quem sabe se foi graças à roda que se inventou a bola de futebol, e por falar em bola, lá ao fundo vem o Trinta e Seis, que é baixo e forte na estatura, e que no pensamento do Cifra, não vem a caminhar, vem a rebolar, pois também parece redondo como uma bola.

Era demais, tinha que ir ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, pois já estava a ficar tonto, e por cima não tinha fumado nenhum “especial”, e a pensar em tudo isto, levantou a cabeça e reparou lá ao longe que o sol, também redondo, se estava a querer esconder para dar lugar à lua, que nesta altura, também é redonda.

Levantou-se, sacudiu a cabeça e começou a correr ao lado do Curvas, alto refilão, tentando também empurrar a bicicleta, ao que ele resistiu, com os seus insultos habituais, dizendo:
- Fora daqui, caral..!. Isto é a minha bicicleta!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)

terça-feira, 5 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11197: Do Ninho D'Águia até África (56): Contava os dias e ia sobrevivendo (Tony Borié)




1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:





DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56



Nos últimos dois meses de comissão, o Cifra era uma pessoa diferente, e algumas vezes complicativa. Mas o seu trabalho foi sempre feito rigorosamente e com honestidade.

O aquartelamento estava práticamente acabado, todo rodeado de arame farpado, com os postes em cimento, pintados de branco, um branco que não era branco, pois por baixo tinha todas as cores, mais as cores do sangue, da amargura e do medo que o Cifra sentiu em muitos momentos, mas que ajudou a pintar.


Uns meses antes de acabar a comissão, o Comandante, um dia, chama-o ao seu gabinete, manda-o sentar, e numa conversa bastante franca, entre outras coisas, diz-lhe:
- Ouve com atenção, fizeste um grande trabalho neste aquartelamento que muito contribuiu para o sucesso de muitas operações, vou dar-te um louvor e propor outros para uma possível promoção, para que continues no exército de Portugal.

Ao que o Cifra lhe respondeu, também com sinceridade:
- Meu comandante, meta os elogios onde quiser, deixe-me ir embora, e em paz, pois quando me vir livre desta, não me vou meter em outra. Sinceramente, não tenho vocação para a guerra.

O comandante deu-lhe um louvor, do qual está uma cópia em cima, dizendo entre outras coisas que “revelava excepcionais qualidades de trabalho, ajudava os seus companheiros, era muito educado, aprumado, metódico e inteligente, e depressa se tornou digno da confiança, consideração e amizade dos seus camaradas e superiores”, e onde também, entre outras coisas menciona que o seus amigos Tchena Imbalá, Ionna Indegame e Canjura Turé, tinham trocado de número. Mas não menciona que andava quase sempre com a garrafita de coca-cola nas mãos, que continha tudo, menos coca-cola, que fumava cigarros feitos à mão, que roubava vinho e pão ao cabo rancho, que era o bom do “Arroz com pão”, às vezes roubava álcool ao Pastilhas, fugia desenfiado para a capital da província, no carro dos doentes, andava quase sempre na tabanca, para onde levava comida, umas vezes restos, que pedia ao sargento da messe, ou ao cabo do rancho, outra vezes roubada, para as pessoas suas amigas, andava sujo e a barba crescida, durante os dias de folga das suas tarefas. Que ele e o seu grupo de amigos, bebiam, fumavam e faziam toda a espécie de poluição sonora, atormentando os restantes companheiros, e andavam sempre metidos em problemas no dormitório. Tinham má fama e qualquer coisa que de mal acontecesse, era o grupo do Cifra, tudo isto entre outras coisas, que o Cifra não vai dizer, porque senão ainda vão chamar o D. Afonso Henriques e questioná-lo porque é que andou à guerra com a mãe e fundou o Estado Portucalense!

Também não menciona que nos últimos meses de estadia em cenário de guerra, o seu estado normal, fora dos dias em que estava de serviço, pois nessa altura executava as suas tarefas com toda a precisão e honestidade, era de uma pessoa, quase sempre sobre influência, para não se lembrar do cenário de guerra em que estava metido, para esquecer toda a sua angústia, medo e desespero, que chorava compulsivamente vários minutos, sem poder controlar, quando se lembrava que ia abandonar as pessoas amigas da tabanca e o seu grupo de companheiros, que já considerava família, mas não podia esquecer a sua verdadeira família, que tinha deixado em Portugal.


Mas o comandante deu-lhe este louvor, porque foi seu amigo desde o dia em que se encontraram, quando o Cifra o cumprimentou, no tal acampamento junto ao rio, perto do cais de desembarque na capital da província, com as botas e a farda amarela cobertas de lama, e o Cifra, todo picado dos mosquitos e já com manchas vermelhas na pele do seu corpo. Este mesmo comandante auxiliou-o passado uns anos, já na vida civil, pois o governo de então não lhe dava a caderneta militar, nem o passaporte, e o Cifra queria sair de Portugal, na companhia da sua esposa e companheira.


Era discriminado no País que defendeu, por ser de família pobre, de agricultores honrados, mas na vila a que pertencia, a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, diziam que era uma família “do contra”, e por tal motivo não tinha acesso a emprego decente, a crédito para ter uma casa, criar uma família e dar educação aos seus filhos, como era sua intenção assim como da sua companheira.

Emigrou. Eram outros tempos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)

sábado, 2 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)





1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 55


O mosquiteiro, que se usava sobre a cama, já estava roto e cheio de marcas de sangue seco dos mosquitos mortos, que quando vivos, faziam uma zoeira na área das orelhas, e acordavam o Cifra, as picadelas, não produziam qualquer efeito. As botas estavam rotas e gastas, tinha um par delas melhor, que estava a guardar para o embarque, pois queria aparecer aos primos de Lisboa, limpo e com alguma dignidade.

O Cifra estava a passar por uma fase difícil, tinha pensamentos arrepiantes, algumas vezes quando ao final do dia vinha até à ponte, olhava a água, principalmente na maré cheia, parece que ouvia uma voz a chamá-lo, a convidá-lo a mergulhar nessa mesma água, turva e cheia de lama, nesse momento, tirava o cigarro da boca, atiráva-o para a água e via-o desaparecer, num turvilhão sujo, com espuma e alguns pedaços de ervas secas, que iam com destino ao mar do oceano Atlântico, talvez indicando-lhe o caminho da Europa, onde estava a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, nessa altura, uma força interior, fazia-o olhar em outra direcção e fugia, correndo para longe da ponte, em direcção ao aquartelamento, onde aparecia angustiado, e sem falar a ninguém ia deitarse, encolhido dentro do mosquiteiro e olhava os buracos desse mesmo mosquiteiro, com medo que alguém lá entrasse e o fosse levar para junto daquele turvilhão de água suja, com ervas secas, que iam com direcção ao oceano Atlântico.

Esta era uma fase da sua estadia em cenário de guerra, em que andava muito desmoralizado, já não podia ver à sua frente o café preto sem açúcar, que todas as manhãs o “Arroz com pão”, o tal cabo do rancho, lhe dava, e ele bebia. Ao decifrar uma mensagem, denunciando a morte de militares em combate, ficava nervoso, tremia, saía fora do centro cripto, olhava o horizonte, para onde pensava ser o lado de Portugal, e começava a chorar, deprimido.

Falava pouco, e só quando era preciso. Passava muito tempo com o seu macaco, foto em cima, para quem já tinha arranjado novo dono, e que já o tratava algumas vezes. Por vezes irritava-se com o animal, que logo ficava com um ar triste, e vinha lamber-lhe as mãos, e olhava para os olhos do Cifra, de diferente ângulos, como se fosse um ser humano, e percebesse a angústia do Cifra.


Escrevia algumas frases de revolta, numa folha de papel no centro cripto, lia essas frases, e rasgava o papel, atirando esse papel para uma caixa de cartão que estava num canto, onde se colocava algumas fitas do código de mensagens decifradas e que se queimavam ao final do dia, ao lado do cabanal onde se fazia a limpeza das armas, depois vinha a essa caixa, e ia rasgar outra vez, tudo em pedacinhos mais pequenos.

Não podia manter conversação com ninguém, pois se o contrariassem, argumentava, e não procurava quem tinha razão.

Ele é que estava sempre certo.

Os colegas com o mesmo tempo de província, como era o caso do Setubal, ou do Curvas, alto e refilão, pouca diferença faziam do novo carácter e maneira de proceder do Cifra, fumavam, bebiam, falavam pouco e nada lhes interessava.

O Curvas, alto e refilão, a maior parte das vezes, andava nú, ou então só com uns restos de calcões, mesmo rotos, e a medalha, cruz de guerra, pendurada neles, a caminhar pelo dormitório, e quando o questionavam dizia:
- Vai chatear a tua avó!. E cala-te senão és capaz de levar com uma granada no focinho!.

Andava tão “despassarado”, que uma vez, até deixou ir a medalha cruz de guerra, agarrada aos restos dos calções para a lavadeira, e chamava filho da p... a toda a gente, pois tinhamlhe roubado a medalha, e qual foi o seu espanto, quando a lavadeira, no final da semana, lhe vem entregar a roupa, e com a medalha na mão, lhe diz mais ou menos isto:
- Isto parece patacão, mas não é, deve ser patacão do Portugal, tem uma fita agarrada, se tú não queres, eu coloca na orelha, tem manga de ronco!.

E exemplificava, com a medalha encostada na orelha, gravura em cima, e como tinha umas argolas no pescoço, até nem lhe ficava nada mal!.

Por vezes, quando com eles falavam, tinham que repetir as palavras, pois o seu pensamento estava longe. Tirando o comandante, não lhes interessava que fosse oficial, sargento ou qualquer outra pessoa, eles não falavam, nem saudavam.
Era melhor assim, pois no contrário, havia conflito.

Era muito tempo dentro do arame farpado, andavam desesperados.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11156: Do Ninho D'Águia até África (54): Ano e meio já lá vai (Tony Borié)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11156: Do Ninho D'Águia até África (54): Ano e meio já lá vai (Tony Borié)

1. Quinquagésimo quarto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 54


Os últimos meses de presença em cenário de guerra foram passados quase como todos os combatentes que cumpriram vinte e quatro meses de estadia na então província da Guiné, mais ou menos naqueles anos, portanto é quase um reviver de acontecimentos, as porporções do conflito estavam a aumentar de dia para dia, já era difícil viajar de uma povoação para outra sem haver contacto com os guerrilheiros ou com qualquer das suas armadilhas, colocavam minas e fornilhos nas principais vias de comunicação, utilizavam os seus corredores de abastecimento durante a noite, tinham as suas “casas mato”, na verdade os guerrilheiros já tinham alguma experiência em guerrilha e sabiam o terreno que pisavam.
O Cifra ia sobrevivendo, já tinha o seu calendário em papel quadriculado, onde todos os dias colocava uma cruzinha, a caminho de se completar. Já não eram tantos assim os dias que lhe faltavam para um possível abandono do mesmo cenário e regresso a Portugal.


Todos os dias pela manhã, ao colocar uma cruzinha no referido quadrado, considerava uma conquista. Não era bem uma conquista, era uma reconquista, era uma satisfação interior que não cabia dentro dele. Passavam dias, semanas e meses, e lá ia sobrevivendo, preenchendo os referidos quadrados do seu calendário. Não sai do aquartelamento, a não ser por motivos de ordem maior, tirando claro, as suas idas quase todos os dias, à vila e à tabanca com casas cobertas de colmo, que existia próximo do aquartelamento, onde estavam pessoas que já considerava família. Tirando isso, procura todas as desculpas possíveis para não se deslocar na distribuição do tal material classificado que era o novo código de cifra, que era renovado todos os meses, e tinha que ser distribuido por mão própria a todas as unidades que se encontravam em diferentes zonas de combate, a palavra “sobrevivência”, agora sim, era muito importante para o Cifra.


O movimento de militares aumentou na área, quase que triplicou em alguns dias, são centenas de militares em constante movimento, com as viaturas ocupando todos os espaços. É uma barafunda. Com a chegada de novos militares já ninguém se conhece. No dormitório colocaram mais do dobro das camas, neste momento existe dois andares de camas, muito chegadas umas às outras, com roupa camuflada, alguma molhada, a secar, colocada em cima dos mosquiteiros e em outros locais, dos militares que vão chegando das patrulhas. Os militares caminham por um labirinto de camas, como andassem dentro de um submarino, logo à entrada do dormitório está sempre uma caixa com uns resto de munições, que não auxiliam nada a quem quer passar, mas ninguém se importa com isso, e sempre que passa por lá um militar, dá-lhe um empurrão com a perna, mas alguém volta a colocá-la no lugar inicial, pois o militar que dorme na cama ao lado quer mais espaço. Em alguns dias de calor infernal, o cheiro a suor e outras coisas é insuportável, e alguns vêm dormir na rua, encostados ao dormitório, onde alguns dias por mês, alguém, muitas vezes até é o Cifra, vai buscar um balde, onde com um pouco de criolina e água, pincelam, com uma vassoura feita de ramos de alguns arbustos, em volta do dormitório. Na área ao fundo do aquartelamento, onde existem os tais furos de água quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, é um pandemónio. As couves e alfaces, que o Cifra tinha plantado, desapareceram. A área agora, está cheia de bidons, uns com água, outros vazios e amolgados, ao sol quente, abafado e húmido.


O Cifra ia escrevendo o seu diário, mas as palavras que completavam as frases eram sempre as mesmas, ataques ao aquartelamento, emboscadas, feridos, mortes, só mudava as datas, às vezes ficava desesperado e gritava:
- Merda, tirem-me daqui, pois estou a ficar doido.

Alguns diziam:
- O Cifra, ou está sobre influência, ou já está “apanhado”!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 23 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11141: Do Ninho D'Águia até África (53): Comando de Agrupamento 16 (Tony Borié)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11141: Do Ninho D'Águia até África (53): Comando de Agrupamento 16 (Tony Borié)

1. Quinquagésimo terceiro episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 53


O Cifra já falou do comando a que pertencia em diversos textos, mas agora que se aproxima da fase final da primeira parte das suas memórias, vai apresentar uma foto desse comando, não em muito boas condições, pois toda a documentação da sua estadia no conflito, resumia-se a alguns apontamentos num diário, onde um pouco mais tarde de lá estar, e vendo o volume que o conflito tomava, com todas aqueles companheiros que regressavam feridos, alguns nem regressavam, iam mortos, embrulhados no camuflado sujo com o seu próprio sangue, para a capital da província, então aí, começou a apontar algumas datas de casos que o Cifra pensava que tinham alguma importância. Escrevia, escrevia, depois riscava, fazendo sobressair algumas partes, mas numa linguagem rude, própria do local e dos amigos que compunham o seu grupo inseparável, eram quase sempre relatos escritos em cima do joelho, a quente e à pressa, tendo sempre receio que ao outro dia se esquecesse, tudo isto junto com a sua memória, que passado quase cinquenta anos, com um pouco de paz, vai lembrando. Umas memórias trazem outras, e como alguém já disse, normalmente um COMBATENTE, tem “memória de elefante”, porque passou por momentos diferentes da normal vida de um ser humano.



Naquela idade ninguém esquece uma explosão, um amigo ferido por estilhaços, um amigo que morreu com balas no corpo, a terra vermelha do chão da Guiné, a água turva de lama dos canais, bolanhas e rios, o calor húmido e abafado, meses e meses seguidos comendo peixe e arroz da bolanha, a amizade de companheiros que sofriam juntos, as agruras de uma guerra horrorosa, dois anos vestidos com a mesma roupa e da mesma cor, enfim, todas aquelas pequenas, e às vezes grandes coisas, que por lá passavam no dia a dia.

O Cifra quando deixou o serviço militar emigrou e algumas fotos ficaram no seu querido e nunca esquecido Portugal, quando muitos anos depois foi por elas, que até eram muitas, já não existiam, algumas, os seus familiares da segunda geração tinham-nas em suas casas, em muito fraco estado, mas o Cifra recuperou o melhor que pôde, e são essas que vai mostrando aos seus amigos companheiros combatentes, e hoje vai tentar mostrar o Agrupamento 16, do qual, com bastante mágoa, ainda nenhum companheiro apareceu até hoje, a dizer alô.


O Agrupamento 16, o Cifra acredita que derivado ao desenvolvimento do conflito, foi o primeiro comando a sair da capital da província e a instalar-se no interior, numa zona onde esse mesmo conflito aumentava, pois a zona do Oio, e quase toda a zona norte, era onde os guerrilheiros começaram por instalar-se, construindo as suas “casas mato”, criando os seus corredores de abastecimento, fazendo o recrutamento do seu pessoal, e como tal aparece no interior, portanto fora da capital, em pleno cenário de guerra, um comando que não tinha armas, composto quase por militares graduados, mas que infelizmente dava ordens para matar.

Construiu-se um aquartelamento, criaram-se diferentes gabinetes, as forças de acção foram chegando e o comando do Agrupamento distribuía essas forças pelos diferentes cenários de guerra, de acordo com a acção dos guerrilheiros, sendo que a maior parte das ordens vinha do centro de operações da capital, mas o Agrupamento 16, além de fazer o esquema, com todos os detalhes e organização de todas as operações na sua zona de acção, é que determinava quem ia combater na zona tal ou era destacado para a zona onde ainda havia alguma paz.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 19 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11120: Do Ninho D'Águia até África (52): A máquina fotográfica (Tony Borié)