Guiné > Ilha de Bolama > Carta de Bolama (1952) > Escala 1/50 mil > Bolame, detalhe
1. Continuamos a reproduzido, aqui no blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp.). O livro está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações.
É um documento autobiográfico, único, sem paralelo (entre os militares guineenses do recrutamento local) , indispensável para quem quiser conhecer a guerra e a Guiné dos anos de 1961/74, sob o olhar de um grande combatente luso-guineense, que teve de fugir da Guiné depois da independência e que em Portugal se sentiu tratado como um português de 2ª classe, cmo outros combatentes. e nomeadamente os que serviram no Batalhão de Comandos da Guiné.
Membro da Tabanca Grande,. tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue (onde foi sempre muito estimado e acarinhado em vida).
Em homenagem à memória do nosso camarada Amadu Djaló (nascido em Bafatá, em 1940 e falecido em Lisboa, no Hospital Militar, em 2015, com 74 anos), e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Comandos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou o seu livro de memórias, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que, na qualidade de "copydesk" (editor literário) e grande amigo do autor e coeditor jubilado do nosso blogue, nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf), vamos reproduzir aqui mais umas páginas do seu livro.
Ao atracar, o cobrador do barco, reconhecendo que era recruta, disse-me:
– Olha, vem ali o capitão.
Já no cais, dirigi-me ao capitão e entreguei a guia de marcha.
– Por que é que só vens agora?
Como fiquei calado, voltou a fazer a mesma pergunta. Mantive-me calado, não tinha nada para dizer.
– Apresenta-te no quartel – ordenou.
Fiquei tão receoso que nem perguntei para onde ficava o quartel. Foi uma mulher, com um filho ao colo, que me disse para cortar à esquerda, que logo o veria. Aproximei-me do portão e cumprimentei a sentinela.
– O que queres?
Que vinha para a tropa, respondi.
Chamou o cabo da guarda, que me fez idêntica pergunta:
– Que queres?
Dei a mesma resposta, que vinha para a tropa.
– Entra!
Fui atrás, apontou-me um banco comprido e mandou-me aguardar. Estava a pensar na minha Bafatá e nos meus pais quando ouvi um toque de uma corneta e o reboliço enorme de duzentos e cinquenta recrutas a saírem das casernas.
Entretanto, chegou junto de mim um sargento, que mais tarde vim a saber que era o 1º sargento Perdigão, que me mandou acompanhá-lo a uma arrecadação, onde estavam centenas de fardas empilhadas. Mandou tirar um fardo e levá-lo para a caserna, para me fardar. O peso era tanto que fui ajudado por um cabo, o 1º cabo José Maria. Na caserna, enquanto me fardava, chorava lágrimas de desespero, de tristeza e de saudade dos meus pais. E também, por pensar que ia estar fora de casa três anos, que era o tempo de serviço militar obrigatório.
Acabei de me fardar e fui à procura de um pelotão onde houvesse gente de Bafatá. Só encontrei duas pessoas conhecidas, o Molo Baldé, meu conhecido desde a infância, e outro rapaz de Bafatá. Não me deixaram ficar nesse pelotão, encaminharam-me para outro, o 5º, que era comandado por um 1º sargento, já com uma certa idade. No dia seguinte, destinaram-me outro pelotão, comandado pelo alferes Mendes.
Não jantei na minha primeira noite no quartel. A comida não cheirava bem, não tinha boa apresentação, com muitas moscas em cima dos pratos. O meu colega do lado segredou-me:
– Tens que aguentar. É assim, pouco a pouco a gente habitua-se.
Não conseguia tragar aquela comida com a facilidade que via nos outros. Comia para não passar fome.
Vinte e seis dias depois, chegaram de Bissau o capitão Bispo e o sargento Cruz para nos fazerem exames psicotécnicos.nNo fim dos testes, o capitão e o sargento regressaram a Bissau, e passados alguns dias, soubemos os resultados.
Dos sessenta e tal recrutas tínhamos sido aprovados vinte e cinco. Recebemos as guias de marcha com destino a Bissau, para frequentar a escola de condução. Foi uma viagem agradável, chegámos à tarde e apresentámo-nos no CICA [2] / BAC.
Os acontecimentos passavam a correr. Ainda há pouco tempo andava pelo Senegal com o meu primo e agora, um ano depois, já tinha feito a recruta e preparava-me para tirar a especialidade de condutor auto. A instrução na escola de condução iniciou-se no dia seguinte.
Depois de iniciarmos, em março de 1962, as aulas de código e de condução, chegou a altura dos exames, que duraram dois meses, agosto e setembro.
No primeiro exame, a 20 de agosto, éramos três, eu e mais um fomos aprovados, o outro ficou inapto. Durante este período fomos prestando serviços de guarda ao Palácio, polícia, faxinas, reforços e capinagens.
Estes trabalhos não eram de carácter definitivo, mas estávamos a ver o tempo passar, sempre a fazermos estes serviços, enquanto os colegas da BAC, também da mesma escola, já estavam a exercer as funções de condutores.
Porque estes serviços se estavam a prolongar e não víamos forma de exercermos a nossa função, em princípios de novembro de 1962, falei com os meus colegas que estavam nesse dia de faxina ao refeitório, e combinámos falar com o capitão Simões, da 4ª repartição do Quartel General. Abordámo-lo e coloquei-lhe o assunto:
– Meu capitão, nós somos condutores da 1º incorporação de 1962. Já fizemos exames em agosto e setembro. Estamos em princípios de novembro e só estamos a fazer serviços de guarda ao palácio, guarda à porta de armas, reforços, faxinas e capinagens. Viemos pedir ao meu capitão para nos colocar nas respectivas companhias.
– Já acabaram a instrução e já fizeram exame?
– Acabámos os exames em 20 de Setembro – respondi..
Na nossa frente, o capitão telefonou para o CICA., a fim de falar com o capitão Bispo, comandante deste destacamento, que na altura, não se encontrava no gabinete, mas já que estava a ligação feita, falou com o 1º sargento Cruz, a quem perguntou:
– Os homens da 1ª incorporação ainda não fizeram os exames?
– Não, meu capitão, ainda não, respondeu o sargento.
– Mas estão aqui a dizer que já acabaram os exames!
O 1º sargento disse que ia procurar saber o que se passava e, momentos depois, connosco ainda no gabinete, voltou a ligar.
– Meu capitão, só falta fazerem a adaptação a viaturas pesadas.
– Bom, podem retirar-se, que eu amanhã vou mandar viaturas para o CICA para se adaptarem.
Retirámo-nos mais satisfeitos.
No dia seguinte, a promessa estava cumprida, foram recebidas três viaturas pesadas, para nos adaptarmos durante uma semana, e no fim estacionámo-las no parque, depois de lavadas e arranjadas.
Os serviços é que continuaram, não tinha havido nenhuma alteração, tudo continuou na mesma até aos princípios de dezembro.
Lisboa > Museu Militar > 15/4/2010 > Amadu Bailo Djalo, feliz, no lançamento do seu livro. Foto: Luís Graça (2010) |
Quando estávamos no CICA/BAC, como adidos, com o exame já feito e à espera de colocação, aconteceu um episódio que nunca mais esqueci.
Nessa altura, estávamos a fazer serviços, sem direito a folgas: sentinela à porta de armas, guarda ao Palácio do Governador-Geral, reforços, faxinas ao refeitório, plantão à caserna. Em cada semana alinhávamos quatros dias e folgávamos três. Mas, nestes dias de folga chamavam-nos para fazer capinagens. Este serviço não tinha escala, quando acabavam de fazer a chamada para os outros serviços, os que não tinham sido chamados iam para a capinagem.
Num dia em que fiquei de folga, o 1º sargento ordenou-nos que fossemos atrás dele. Dirigimo-nos para a arrecadação, levantámos as catanas e, então o 1º sargento deu ordem para irmos capinar á volta da messe de oficiais de Santa Luzia. Mas que, antes de irmos capinar, devíamos ir ter com um capitão da CART 240, que queria falar connosco. [3]
Fomos levados pelo 1º sargento ao gabinete do capitão. Quando a porta do gabinete se abriu, o capitão perguntou se algum de nós percebia português. Alguém apontou para mim e eu passei para a frente dos meus colegas com a função de traduzir as palavras do capitão. Não fui com muita vontade, mas não me podia esquivar. O capitão disse-me para ouvir bem para depois transmitir tudo aos nossos colegas que não entendessem.
– Vocês vão capinar para a messe de oficiais. Mas é para capinar, não é para brincar, ouviram? Vou passar de jipe várias vezes no local. Se vir algum de vocês de pé, leva um castigo a sério, ouviram bem?
E continuou:
– Eu vim de Angola e sei muito bem o que é o preto! Vocês sabem o que é o preto?
Com todos calados, o capitão continuou:
– O preto é como a tartaruga. Só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira a cabeça! Ouviram bem? Perceberam tudo?
– Sim, senhor, meu capitão..
Despachou-nos e saímos logo a correr para o local indicado, sem ser preciso traduzir a conversa. Todos tinham percebido, ninguém abriu a boca até perto da messe. Só quando lá chegámos, um colega disse:
– Este capitão é mesmo mau!
Depois desta frase do colega, cada um de nós deu um nome diferente ao capitão. Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria tratar deste modo os subordinados.
A gente não levou esta história muito a mal. Era apenas um capitão com menos competência, com uma consciência fraca. Conhecíamos outros oficiais e sargentos, falávamos todos os dias com militares europeus, e nunca ouvi nenhum a utilizar esta linguagem para uma pessoa com cor de pele diferente.
– Meu capitão, desculpe, voltar a incomodá-lo novamente, mas a nossa situação está na mesma, continuámos a fazer guardas, reforços, faxinas e capinagens, condução é que não.
– Já acabaram a adaptação?
– Há um mês e tal que terminou, meu capitão!
O capitão voltou a pegar no telefone e ligou para o CICA, para falar com o agora major Bispo, mas não o encontrou no gabinete. Falou com o 1º sargento Cruz a quem perguntou:
– Os condutores ainda não acabaram a adaptação?
– Não, meu capitão, ainda não acabaram!
– Mas, como é isso? Estão aqui à minha frente cinco soldados e – interrompendo, virou-se para mim – que números são os vossos?
- Somos o 25[1]/A, 13/A, 11/A, 15/A e 18/A.
Tomados os números de cada um de nós, o capitão retomou a conversa com o 1º sargento, e deu-lhe os nossos números.
– Meu capitão, vou já contactar com os instrutores – respondeu o sargento.
Ficamos a aguardar no gabinete. O 1º sargento, momentos depois ligou para o capitão.
– É verdade, meu capitão, esses soldados já acabaram a instrução.
– Bom, então, mande-me o relatório com os nomes e respectivos números para eu os colocar – respondeu o capitão.
– Podem ir embora e, muito brevemente, vocês vão ser colocados nas respectivas companhias.
Ficámos com receio de alguma reacção contra nós, pelo facto de termos voltado a contactar o capitão Simões e lembrei-me de dizer aos colegas que, ao sairmos do QG, o fizéssemos a correr para o refeitório, para não sermos identificados por alguém que estivesse à porta a espiar-nos. O que veio a acontecer. Quando cheguei ao refeitório, logo à primeira ordem de chamada ouvi:
– Amadu, o nosso 1º sargento Cruz mandou-te chamar!
– Não posso sair, estou a trabalhar respondi.
Estávamos atrasados no serviço. Veio outro soldado a quem dei a mesma resposta, que estava a trabalhar, que não podia sair daqui, ainda não tínhamos posto as mesas, que estávamos a lavar mais de duzentos pratos, centenas de colheres, facas, garfos, copos.
Quando estávamos a pôr as mesas voltou outro soldado, para eu ir falar ao 1º sargento.
– É pá, estou a trabalhar, não posso sair daqui agora, ainda nem acabamos de pôr as mesas!
– Amadu, o nosso 1º sargento está ali à porta, à tua espera – replicou.
Olhei, os olhares encontraram-se e vi o 1º sargento fazer-me sinal. Não tive outro remédio, dirigi-me ao seu encontro.
– Vocês é que foram ao capitão Simões?
– Sim, meu 1º..
– Aonde é que queres ser colocado?
– Em qualquer lado, meu 1º!
– Parece que terás pedido colocação em Bafatá ou Gabu, ou não?
– Não é bem assim. O tenente Carrasquinha é que tinha pedido para eu ser lá colocado, mas para mim tanto faz.
– Entendi – replicou o 1º sargento, e despediu-se.
Voltei para o refeitório, praticamente com a certeza de que não iria ser colocado em Gabu. O tenente Carrasquinha tinha escrito uma carta, de que eu próprio fui portador, ao tenente António Silva, seu cunhado, em que pedia que me arranjasse colocação no Gabu.
Dez dias depois, salvo erro, estava de plantão na guarita sul, pelas 15h00, quando chegou junto de mim, um soldado que me disse que me vinha substituir. A hora a que eu terminava o serviço era às 18, e a razão de me vir substituir era que ia haver a concentração de todos os adidos na parada da guarda, frente ao gabinete do 2º comandante da BAC.
Aí, o tenente Trindade comunicou-nos as novas colocações. Eu, como os outros nove condutores, fui colocado na 4ª Companhia de Caçadores, em Bedanda, no sul. Uma surpresa que não foi muito grande para mim.
Terminada a leitura do comunicado, feitas as colocações nas respectivas companhias e dada ordem para dispersar, dirigi-me ao QG para saber das razões de ter sido colocado em Bedanda, quando havia um pedido para eu ser colocado no Gabu-
– Amadu, onde vais ? – interrompeu-me, o 1º sargento Cruz.
Que me queria despedir dos colegas, foi a minha resposta.
– Não vais – interferiu o tenente Trindade.
– Porquê?
– Porque não vais! E para aqui, imediatamente – salientando bem com um gesto.
Obedeci e calei-me. Entretanto, o tenente foi-se aproximando de mim. Fiquei tão atarantado que até me esqueci de me pôr em sentido. Deu-me um soco, com força, na barriga, que me obrigou a dobrar. Um alferes, de nome Garcia, que estava ali, quando eu me estava a dirigir para a caserna, chamou-me e aconselhou-me a ir para Bedanda e, dois ou três meses depois, que requeresse a transferência para onde quisesse. E que não ligasse ao que aconteceu. Mas eu estava incomodado, fui-me sentar na parada, junto às árvores, num canto.
Ao longe vi o tnente Trindade dirigir-se a mim. Quando se aproximou levantei-me e pus-me em sentido. Então ele perguntou-me:
– Então já sabes para onde vais?
– Sim, meu tenente!
– Para onde?
– Para Bedanda, meu tenente!
– Pois, é tropa!
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Notas do autor ou do editor ("copydesk")_
[1] Na recruta foi-me atribuído o nº 251. 25/A, i.e. 25 de Adidos.
[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão
Vd. também postes de:
19 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23627: (In)citações (220): Homenageando os bravos do Batalhão de Comandos da Guiné (Raul Folques, em 15/4/2010, na sessão de lançamento do livro do Amadu Djaló, "Comando, Guineense, Português")
18 de setembro de 2022 > Guné 61/74 - P23625: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (12): A Op Ametista Real: o batalhão de comandos em Cumbamori, no Senegal, 19 de maio de 1973 (Amadu Bailo Djaló, alf graduado 'comando', 1940-2015)
14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963