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terça-feira, 30 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19731: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (4): "Os Roncos de Farim: 1966-1972", uma nota de leitura da brochura compilada pelo Carlos Silva




Notas de leitura > História do Pelotão “Os Roncos de Farim, 1966/1972",  compilação de Carlos Silva 

por Beja Santos
 (*)


Foi graças à Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes [, foto a seguir, à direita], que tive acesso a este documento surpreendente, uma obra desvelada do nosso confrade Carlos Silva. 

Desconhecia inteiramente a existência de “Os Roncos” e os experientes e valorosos militares que estiveram na sua constituição.
Teresa Almeida

 Formalmente, este grupo foi-se constituindo adstrito à CCAÇ 1585, e desde a primeira hora nele participaram ativamente o 1º cabo Marcelino da Mata, a comandar uma secção de milícias, e o 1º cabo Cherno Sissé, a comandar uma outra secção.

Tal foi o seu desempenho, e havendo a proposta apresentada pelo 1º cabo Marcelino da Mata para comandar um grupo especial, acertou-se na constituição de um pelotão ficando como seu primeiro comandante o alferes miliciano Filipe José Ribeiro. 

O grupo entrou em funções em Dezembro de 1966 [, ainda em vida do capitão inf José Jerónimo da Silva Cravidão, que iria morrer em combate em seis meses depois] (**), após ter participado numa operação com dois grupos de combate da CCAÇ 1585. No decurso de um assalto a uma casa de mato, Ribeiro, Marcelino e Cherno, e mais quatro valorosos elementos entraram determinados no objetivo, com sangue frio impressionante. 

Marcelino da Mata
Marcelino da Mata [, foto à esquerda, Tabanca da Linha, 2015] terá dito mais tarde ao comandante do BCAÇ 1887:

 “Encontrei o alferes para comandar o grupo, é maluco, até apanha os turras à mão…”. 

Assim se constituía um pelotão lendário. Juntaram-se as secções de Marcelino da Mata e de Cherno Sissé e foram selecionados outros soldados milícias. “Os Roncos” surgem como um grupo especial de tropa de choque que abriria o caminho às restantes. 

Os seus feitos, até à sua extinção (os seus elementos irão ser integrados mais tarde em companhias africanas e companhias de Comandos Africanos) foram extraordinários, em qualquer operação sabia-se de antemão que se podia contar com um naipe excecional de gente valorosa. 

Escrito à mão, no exemplar que consultei, aparece anotado pelo então alferes Filipe Ribeiro: 

“O grupo era constituído por 24 elementos, assim distribuídos: secção de Marcelino com 11 elementos, secção de Cherno Sissé com 11 elementos, o meu guarda-costas e eu, no total éramos 24. Acontece que em muitas operações o grupo não tinha mais que 15 ou 16 elementos. Éramos poucos mas eficazes”. 

É impressionante ver-se o nome destes homens e ler-se depois nas observações o rol de feridos e mortos.


A CCAÇ 1585 tinha a responsabilidade do subsector de Farim, fazia operações em locais como Sambuiá, Bricama, Biribão, Sano e Sulucó, entre outras. A partir de Dezembro de 1966, “Os Roncos” vão a todas, capturam armamento, entram em casas de mato, criam a lenda. Por exemplo, em Janeiro de 1967, na operação Cajado,  Ribeiro e a secção do Cherno confrontam-se com um grupo inimigo
cinco a seis vezes superior. E Carlos Silva [, foto a seguir, à direita,] retira a seguinte nota: 

Carlos Silva
“6 granadas de morteiro que não chegaram a explodir ficaram espetadas no lodo da bolanha, em volta do alferes Ribeiro, porque, entretanto, teve de sair do abrigo junto a uma árvore e deslocar-se para as proximidades da bolanha. Tudo isto devido a ter de pedir via rádio à companhia de Cuntima uma maca para evacuar o ferido e munições. Pois ficaram lá quase duas horas debaixo de fogo intenso, sob um autêntico inferno. Não podiam retirar do local na medida em que aguardavam pelo regresso da secção do Marcelino, que entretanto já vinha no gosse-gosse para também dar apoio. Quando os reforços de Cuntima chegaram ao local de combate, disseram-lhe para se levantar com cuidado, agarrando-lhe pelos braços, pois tinha à sua volta seis granadas de morteiro 82…”.

Carlos Silva colige o historial mês a mês, sucesso a sucesso, vão-se averbando os louvores, de oficial a soldados, Ribeiro e os seus homens aparecem associados a outras forças. Em Outubro de 1967, depois da operação Caju, em que participaram “Os Roncos”, escreveu-se: 

“Foram três dias e três noites consecutivas em que as tropas estiveram constantemente em ação, batendo uma extensa zona, com a chuva a cair ininterruptamente, cumpriu-se a missão, apesar do sacrifício ter sido enorme”. 

Cherno Sissé e Malã Indjai foram agraciados com a Cruz de Guerra de 4ª Classe. Os louvores não param. Em Outubro desse ano,  a CCAÇ 1585 foi transferida para Quinhamel, o alferes Ribeiro deixou “Os Roncos”, foi rendido pelo alferes Morais Sarmento,  da CART 1691, que passou a comandar o pelotão. 

Em Dezembro, irá ter lugar a batalha de Cumbamori, tratou-se da operação Chibata, havia notícias da presença de Luís Cabral nesta localidade e base inimiga. Deslocaram-se três destacamentos. Assaltou-se Cumbamori, Luís Cabral teve tempo de fugir, infligiram-se muitas baixas, fizeram-se 5 prisioneiros e capturou-se material, caíram no dever 4 soldados dos “Roncos” e houve 17 feridos. 

Sobre esses acontecimentos Luís Cabral irá escrever o que viveu em “Crónica da Libertação”, págs. 315 a 330, fora a primeira vez em que ele estava presente num encontro entre as forças do PAIGC e as tropas portuguesas.

Em Junho de 1969, a Marcelino da Mata era-lhe conferido o grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre Espada, tinha sido já agraciado com duas cruzes de guerra, foi promovido por distinção a 1º sargento e graduado em alferes. Em Junho de 1970, igual honraria será conferida a Cherno Sissé.

Em Agosto de 1969, “Os Roncos” participaram numa operação em Faquina, onde será capturada uma elevada tonelagem de material. Cherno Sissé aguentou a pé-firme uma tempestade de fogo. José Pais, em “Histórias de Guerra – Índia, Angola e Guiné, Anos 1960”, editora Prefácio, 2002, refere-se ao malogrado Cherno Sissé, residente num bairro da lata da Cruz Vermelha, depois de ter sido espancado e de lhe terem vazado o único olho que lhe restava: 

Capa da brochura


“Lá fui à Boa-Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional na Guiné durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal face à vida. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio. Visitei-o com o filho no hospital prisão de Caxias. Cherno Sissé, 1º sargento do Exército de Portugal na reforma, duas Cruzes de Guerra, duas vezes promovido por distinção, Cavaleiro da Torre Espada, passados dois anos de cadeia, saiu em liberdade condicional. Voltou para casa, de onde agora quase nunca sai. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria portuguesa usou e deitou fora”.

A história de “Os Roncos” deve a Carlos Silva ter sido passada a escrito. Em meu entender, entidades como a Liga dos Combatentes deviam propiciar um estudo aprofundado sobre estes vultos grandiosos que correm o risco de desaparecer e dar-se forma a este grupo excecional que praticamente caiu no esquecimento. Os valorosos soldados guineenses mereciam ver esmaltada a sua história coroada de valor, dedicação e lealdade. Para os portugueses lhes reconhecerem o mérito prodigioso e a dívida impagável.(**)


Mário Beja Santos

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