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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um relato memorial de quem passou a sua comissão militar na região de Nova Lamego, conta os antecedentes, como se formou antes de ir para a guerra, desvela como aqueles pontos da região Leste passaram da acalmia à turbulência. É uma narrativa serena, não há para ali prosápias nem arroubos heroicos, o que o António Henriques de Matos desejava era preparar os seus soldados para terem a quarta classe, foi um sucesso completo. Manifesta um pleno orgulho em ter concluído em regime noturno o curso liceal e a licenciatura em economia, depois da vinda da Guiné, trabalhou num banco prestigiado mais de 40 anos, chegara a hora de pôr por escrito a sua vida militar e as suas recordações do Gabu.

Um abraço do
Mário



Memórias de um combatente na Guiné (1969-71), por Diogo Aloendro

Mário Beja Santos

Diogo Aloendro é pseudónimo de António Henriques de Matos, fez parte do BCAÇ 2893, pertenceu à CCAÇ  2618, e escreveu agora as suas memórias, 5livros.pt, 2021. Dá-nos conta da sua vida de furriel atirador desde a recruta nas Caldas da Rainha, a especialidade em Tavira, a passagem pela Amadora, a ida para Chaves formar batalhão, e depois toda a sua comissão na região de Nova Lamego. Deixa-nos belos parágrafos de profundo afeto por quem o tratou bem em Lisboa, para onde emigrou aos quinze anos, não esqueceu as vicissitudes da sua formação militar, as novas formas de camaradagem, largados na Serra do Caldeirão com alguns instrumentos de orientação e rações de combate, chuvas inclementes, e guardou memória de um episódio de terem andado por sítios inóspitos, ali estava todo encharcado e apareceu alguém a convidá-lo a entrar para secar a roupa e descansar um pouco, uma senhora convidou-o a ir ao quarto do filho e vestir um pijama. Observou que o quarto estava impecavelmente arrumado e com a cama feita, tinha numa das paredes uma moldura de um soldado, vestiu o pijama, entregou à dona de casa a farda encharcada, comeu um caldo à mesa com o casal. O filho tinha falecido havia dois anos, morto em combate na Guiné.

São parágrafos tocantes:
“O quarto mantinha-se tal qual ele o deixou na última noite que ele lá dormiu. Não estávamos preparados para tamanha desgraça. Levaram-nos o nosso filhinho que era tudo o que tínhamos Como poderemos suportar esta dor, sabe explicar-nos?
– Ninguém sabe explicar – desabafava a mulher – numa voz sofrida. Ninguém sabe, acrescentava, como que a pensar alto. Soletrava estas frases com os olhos tristes já sem lágrimas para verter, enquanto o seu homem a aconchegava no ombro pedindo-lhe, carinhosamente, força e ânimo para o ajudar também a ele, a suportar o desgosto.”


Ele não podia aceitar dormir na cama do filho, acabou por ir descansar num barracão onde havia palha no chão. E na manhã seguinte juntou-se aos seus camaradas para continuar a subir e descer na Serra do Caldeirão. Concluída a especialidade, foi enviado para Beja, depois para o Regimento da Infantaria 1, na Amadora, mobilizado para a Guiné foi formar batalhão em Chaves. Continuava a estudar, queria concluir o sétimo ano.

Em novembro de 1969 chega à Guiné. Descreve Nova Lamego, é ali que está a sede do batalhão:
“Era uma pequena cidade implantada ao longo de uma rua principal, que se confundia com uma estrada, à imagem do que aconteceu na formação das nossas aldeias e vilas. Aqui se encontravam algumas casas de betão, a sede da Administração, composta pelo Comando Administrativo. Para além deste edifício, havia uma casa comercial, um cineteatro e o quartel militar, um edifício colonial de dois pisos, que servia de instalação ao Comando do batalhão. Contíguo a este edifício na parte de trás, existia uma vasta área onde se localizavam as casernas e alguns espaços, como sendo um campo para jogar futebol de salão. Nestas casernas se instalaram duas companhias. Vivia-se então um estado de acalmia.
Não fossem as preocupantes notícias, trazidas pela tropa que aportava a Nova Lamego, onde se vinham abastecer, ou de passagem para os respetivos aquartelamentos, nada se passava naquele paraíso”.

Lê, escreve e estuda. Tendo ficado órfão de pai aos oito anos de idade, dedica-lhe uma elegia, uma conversa em voz alta no fulgor das recordações de quando era petiz, gostaria muito de um dia ir à Angola visitar-lhe a campa.

Cabe-lhe fazer patrulhamentos à volta de Nova Lamego, há um pelotão que está destacado em Canssissé, este a cerca de 40 km da sede do batalhão. Fazem-se patrulhamentos diários, o objetivo era impedir as movimentações dos guerrilheiros, recorda que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969, ficara uma grande área a descoberto para infiltrações. Surgem situações inesperadas, por vezes caricatas, barulhos dentro da mata, pensa-se inicialmente que vai haver confronto com grupo guerrilheiro, afinal é um grupo de javalis que passa a tropel. Descreve minuciosamente esses patrulhamentos, perto e longe de Nova Lamego, os contactos com o inimigo são esporádicos. O comandante do pelotão entra em depressão, foi hospitalizado depois de uma emboscada, é ele que assume interinamente as funções de comandante.

Decide dar aulas aos soldados que ainda não possuem a quarta classe, constituíam a maioria, é por essa altura que o pelotão do Matos é destacado para Cansissé, descreve a povoação e o sistema defensivo, as casernas dos soldados eram feitas de lona, a situação era um pouco melhor para furriéis e alferes. Não perde oportunidade de descrever as alegrias no recebimento do correio. E dá a compreensível importância às aulas para se chegar ao exame da quarta classe. “Achei mais apropriado ter apenas uma sessão diária de duas horas em simultâneo para ambos os alunos, logo após o pequeno-almoço, o rancho da manhã. Tinha inscrito catorze alunos para a quarta classe e dois cabos e um soldado propunham estudar para fazerem o primeiro ciclo, ou seja, o primeiro e o segundo ano, a fazer num só ano. Do nosso pelotão de trinta soldados, vinte e sete e três cabos, pelo menos, catorze, não tinham a quarta classe”. E dá-nos conta de como implantou o método mais adequado e obteve apoio do batalhão para adquirir livros. A vida em Canssissé podia não ser o paraíso, mas não havia flagelações, não se esquece de nos contar as desinteligências e até homicídios entre civis. Fizeram-se obras, apareceu o heliporto. E de Canssissé regressam a Nova Lamego. Continua a estudar e irá fazer exames no Liceu Honório Barreto.

A vida calma naquela região do Leste da Guiné vai conhecendo sobressaltos. Chegou a hora do pelotão do Matos provar uma mina anticarro, felizmente sem danos mortais. As coisas parecem complicadas em Pirada e Buruntuma. Foi o que aconteceu quando o pelotão do Matos foi até Cabuca, tudo parecia estar a correr bem, não picaram no regresso, uma mina anticarro rebentou no rodado da GMC.

Já se passou um pouco mais de um ano da sua comissão, como muitos outros autores ele vai acelerar a prosa, descreve sumariamente a ação psicológica nas tabancas à volta de Nova Lamego, os patrulhamentos, há depois o ataque a Nova Lamego, aparecem os mísseis, e o Matos vai dar instrução a pelotões de milícias em Contuboel, experiência que lhe agradou imenso. Ainda voltou a Cansissé, a comissão está praticamente no fim, já estão no Cumeré a aguardar embarque.

Concluída a viagem, frente ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, sente a diferença do que vivera dois anos antes:
“Não voltaram ao cais os familiares dos camaradas que lá perderam a vida. O desespero, os gritos e desânimo de quantos, há dois anos se vieram despedir, contrastava com a alegria incontida, em cada abraço que se multiplicavam no cais da nossa esperança”.

Igreja de Nova Lamego, Foto Serra, Bissau
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16306: (In)citações (97): Nova Lamego, 15 de novembro de 1970, uma das noites mais longas das nossas vidas... Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, mas eu sei que também se chora em silêncio e sem lágrimas.... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)

De: Adelaide Barata Carrêlo, 
membro nº 721 da nossa Tabanca Grande,
filha do tenente SGE Barata, 
CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71) (*)

Data: 13 de julho de 2016 às 17:19

Assunto: 15 Novembro 1970 (**)



15 de Novembro de 1970, 
uma das noites mais longas das nossas vidas.

O ambiente era de festa e no quartel 

tudo parecia desenrolar-se dentro  da normalidade.

Além de ser o dia em que se comemorava um ano de comissão, 

também os  meus pais celebravam aniversário do seu casamento.

Chegámos a casa já tarde.

Quando nos preparávamos para dormir, 

lembro-me de ouvir uma espécie de  assobio 
e, segundos depois.  uma explosão. 
Tenente SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893
(Nova Lamego, 1969/71).
Faleceu em 15/1/1979,
como capitão,
estava colocado na altura
no Ministério de Exército,
 na Praça do Comércio.,

A luz apagou-se 
e, tal como o  meu pai nos ensinou, 
corremos para o canto de sala, 
onde as paredes  eram mais fortes.

O zinco do telhado crepitava.

O meu pai decidiu 

que não podíamos ficar ali 
nem mais um minuto,  
segurou-nos ao colo como pôde 
e abriu a porta em silêncio.
Eu não queria acreditar, 
a rua estava cheia de chinelos,  "descalços"...
para onde teriam corrido os pés daquela gente ?

No trajecto para o quartel, 

três paraquedistas prontificaram-se a  ajudar os meus pais, 
levando-nos ao colo com passo apressado. 
Eles  traziam um cachorro que cheirava a after-shave.

À chegada, o meu pai soube 

que o seu amigo e camarada Cipriano Mendes  Pereira,
2º  sargento miliciano enfermeiro, 
tinha falecido, 
as marcas  estavam na parede da casa 
e na árvore junto à janela.

Também o soldado Seixas nos deixou nesse dia.  

(Lembro-me que era ele 
que enchia o bidão da água que tínhamos em casa).

Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, 

mas eu sei que  também se chora em silêncio 
e sem lágrimas.

Obrigada 

Adelaide Barata (***)



Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > 1970 > Emblema do BCAÇ 2893 (1969/71), unidade de que faziam parte as CCAÇ 2617 ("Magriços de Guileje", Pirada, Paunca, Guileje, 1969/71), CCAÇ 2618 (Nova Lamego, 1969/71)   e 2619 (Madina Mandinga, 1969/71), além da CCS, a que pertencia o nosso camarada Constantivo Neves, ex-1º Cabo Escriturário, mais conhecido por Tino Neves.

Foto: © Tino Neves (2006). Todos os direitos reservados.



Guiné > Região de Gabu> Nova Lamgo (Gabu Sara) > Carta  dos Serviços Cartográficos do Exercito (1961) > Escala 1/50 mil >  Detalhe

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)
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Notas do editor CV:

(*) Vd. postes de:

11 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16294: Tabanca Grande (490): Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)... Com sete anos apenas, sofreu a brutal flagelação do IN ao quartel e vila do Gabu, em 15/11/1970, que causou 3 mortos e 4 feridos graves entre as NT e 8 mortos e 80 feridos (graves e ligeiros) entre a população... Passou a ser a nossa grã-tabanqueira nº 721


(***) Último poste da série > 9 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16288: (In)citações (95): "Terra vermelha quente e de paz, / lugar onde tive medo, fui feliz e vivi, / amar-te-ei sempre, / minha Guiné menina velha encantada"... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do tenente Barata, que viveu em Nova Lamego, no início dos anos 70, durante a comissão do pai, e aonde regressou, maravilhada, quarenta e tal anos depois)

(...) Em 1970 aterrámos em Bissau onde o meu pai nos esperava ansiosamente, seguimos alguns dias depois para Nova Lamego onde ele estava colocado.

Eu tinha 7 anos, sou gémea com uma irmã e tenho um irmão mais velho 1 ano. Somos a família Barata. Quando chegou a hora dos meus pais decidirem juntar-se naquela terra, não conseguiram convencer-nos de que poderíamos separar-nos, não, fomos também. E até hoje agradeço por ter conhecido gente tão bonit, , tão pura.

As primeiras letras da cartilha, foram-me desenhadas pelo Prof. José Gomes, na Escola que hoje se chama Caetano Semedo.

Aquele cheiro, a natureza comandada pelo calor húmido que sufoca e a chuva que cai como uma cascata sobre a pele e o cabelo que teima em não se infiltrar...cheguei a pedir à minha mãe para me deixar correr como aqueles meninos que se ensaboavam no meio da rua e com um chuveiro gigante que deitava tanta água de pingos grossos e doces.

Também me lembro de quem lá ficou para sempre, não éramos muitos. (...) 

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10149: Memória dos lugares (187): Gabu, ontem e hoje (Tino Neves, ex- 1º cabo escrit, CCS / BCAÇ 2893, 1969/71)



Guiné > Região de Gabu >  Gabu (Nova Lamego) > Memorial aos mortos do BCAÇ 2893 (1969/71)... A mesma pedra, virada ao contrário, irá servir - depois da independência - para lavrar uma homenagem ao "pai da Pátria", Amílcar Cabral (fotos abaixo)... Os mortos do batalhão foram os seguintes: (i) Sold J. Rodrigues e Sold A. Seixas (CCS); (ii) Sold J.Cavalheiro e Sold J. Paiva (CCAÇ 2618); (iii) Sold J. Conde (CCAÇ 2617); e (iv) Sold S. Fernandes e Sold A. Dias (CCAÇ 2619).

Foto : © Tino Neves (2012). Todos os direitos reservados





Guiné-Bissau >  Região de Gabu >  Gabu >  Homenagem ao "pai da Pátria", Amílcar Cabral, lavrada na mesma pedra do memorial aos mortos do BCAÇ 2893...

Foto: © José Couto / Tino Neves (2006). Foto gentilmente cedida por José Couto (ex-furriel miliciano de transmissões, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71), camarada do Tino Neves.


1. Mensagem, com data de ontem,do nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves,  ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893  (Nova Lamego, 1969/71=, membro da nossa Tabanca Grande desde 2006: 

Olá Camaradas:

Aqui vos mando uma foto do  memorial aos Mortos do Batalhão de Caçadores 2893, esta com alguns retoques e limpeza.

É aquela mesma que está no mesmo quartel de Nova Lamego, agora ao serviço do PAIGC, mas foi aproveitada para,  no verso da mesma,  ser inscrito um memorial ao Amilcar Cabral.

Ainda bem que ainda está inteira...

Já agora envio também alguns roncos.

Abraços
Tino Neves












Guiné > Região de Gabu >  Gabu (Nova Lamego) >  Nas duas fotos de cima, duas bajudas (esculturais) do Gabu; em baixo, a figura de um feiticeiro...


Fotos: © Tino Neves (2012). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10022: Memória dos lugares (186): Ainda sobre a "célebre ponte, em betão, inacabada", na estrada Cachungo-Cacheu, ao km 6 (Jorge Picado)