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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23985: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVIII: (i) o galo que traiu Pansau Na Isna em Catunco Nalu; (ii) a primeira operação helitransportada no CTIG, em Jabadá, setor de Tite


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1966 > Equipa de um grupo de comandos momentos antes de serem largados de helicóptero.


Guiné > Brá > c. 1965/66 > Comandos do CTIG > Aquartelamento 


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1966 > O soldado Augusto de Sá, que pertenceu ao Gr Cmds  “Os Centuriões”. 

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015) (*). Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) começou a recruta,  como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965,  fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;  

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão);

(vii) descreve-se a seguir as duas primeiras operações que fez, integrado no Gr Cmds "Os Centuriões".


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVIII



(i) O Gr Cmds "Os Centuriões" em Catunco  
Nalu, com o galo a servir de guia 
(pp. 133/136)


Chegados a Brá, fomos directamente à arrecadação, levantar o material e o equipamento necessário. 

Dois dias depois, surgiu uma missão [1] para cumprir, no sul. Apanhámos outra vez o barco para Cacine. O objectivo era Catunco Nalu o local da última acção dos “Fantasmas”, a tal operação “Ciao”, onde tivemos um morto e nove feridos, em maio [2] de 1965. E agora, em fevereiro [3] de 1966, íamos voltar ao mesmo local para a operação com o código “Cleópatra”.

Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões”.

O grupo já tinha feito algumas [4] operações e, como alguns companheiros já tinham terminado a comissão e regressado às respectivas unidades, precisavam de pessoal experiente e foi por isso que fomos requisitados pelo alferes Rainha.

Saímos de Cacine depois do jantar em direcção a Cameconde, para executar o golpe de mão. Fomos andando até que, por volta da uma da madrugada, atingimos Catunco, que estava abandonada. A meio da tabanca, deixámos a picada que a atravessava e que ia para Camissorã e metemos à direita, onde em maio do ano passado nos tínhamos confrontado com o PAIGC.

A partir daqui o guia, tal como da outra vez, começou a recusar-se. Deitou-se no chão e, como da outra vez, perdemos muito tempo neste local. Fomos aguentando, com muita paciência, a resistência do guia. Eram para aí 03h00, ouvimos um galo a cantar. Prestámos muita atenção, porque era sinal de que vivia gente por perto. O galo continuou a cantar, não havia a menor dúvida que um acampamento estava por ali.

O alferes mandou o guia para a retaguarda e o galo passou para a frente, passámos a ser conduzidos pelo cantar dele. De cinco em cinco ou de dez em dez minutos, o galo cantava e, assim, fomo-nos aproximando. Atingimos um monte de baga-baga e a seguir vimos um cruzamento.

O cantar do galo vinha do caminho do lado direito do cruzamento. Metemos por ele e, sem sabermos, estávamos a pouco mais de 20 metros das barracas dos combatentes do PAIGC.

O alferes veio ter comigo e estivemos a estudar o que devíamos fazer. Vimos as barracas e nem deu tempo para reunir o grupo todo. O sentinela que estava perto do baga-baga, a dormir o sono da madrugada, deve ter acordado com algum barulho, mexeu-se e o Tomás Camará disparou uma rajada curta. Quebrado o silêncio, assaltámos as barracas. Ninguém teve tempo de se defender, deixaram tudo a fugir.

Nós pegámos no que pudemos. Carregados com tanta quantidade de material [5], 
não ficámos à espera, nova corrida em direcção ao cruzamento da picada que vai para Cacine, onde tínhamos deixado um grupo [6] para nos recolher e ajudar no que fosse preciso. Atingimos o cruzamento, sem problemas, ao encontro da tropa. Depois, a coluna pôs-se em movimento para Cacine.

Descansámos o dia seguinte e à noite fomos até à tabanca de Cacine, divertir-nos 
um pouco com as raparigas. Tínhamos levado um pequeno gira-discos, que o Augusto de Sá [7] levava e eu e o Tomás Camará pusemo-lo a tocar música.

No outro dia [8], apanhámos outra vez o barco para Bissau.

Tinha corrido tudo bem. O silêncio e o cuidado que tivemos na progressão fez com que o sentinela, que não estava a mais de dois metros do baga-baga, não tivesse dado por nada.


(ii) "Centuriões" e "Diabólicos", na estreia dos helis em Jabadá, setor de Tite (pp. 136/138)



Estávamos no aeroporto desde o meio-dia, à espera que acabasse a reunião dos nossos oficiais com os pilotos. Nesse espaço de tempo houve uma cena entre dois companheiros dos “Diabólicos”[Gr Cmds comandado pelo alf mil Virgínio Briote]  , o Silva e o Adulai Djaló, um europeu e um africano. O Silva disse ao Djaló:

 Djaló, tu vais morrer nesta operação!

 Filho da mãe, tu é que vais morrer! – respondeu o Adulai.

Estávamos todos a rir, com grande gozo e alarido, quando chegaram os oficiais.

Era nesse dia, 6 de março, que se ia realizar pela primeira vez na Guiné uma heliportagem de assalto e o local escolhido foi Jabadá Beafada [9]. Dois grupos, os “Centuriões” e os “Diabólicos”, quinze homens de cada, em seis helicópteros. Ia também o comandante da companhia de Comandos, o capitão Garcia Leandro.

Embarcámos por volta das 13h00, sobrevoámos Bissau, cortámos para a esquerda e começámos a subir o Geba. Poucos minutos depois, curvámos para a mata a ver os T-6 bombardeá-la.

De um momento para o outro ficámos cara a cara com os T-6, eles a tomarem altura e nós a baixarmos para o assalto. Saímos a disparar para a tabanca, as primeiras imagens que vi foi uma máquina de costura e o corpo de um homem balanta.

No meio dos tiros e dos rebentamentos, ouvimos pelo rádio os “Diabólicos” pedirem uma evacuação. O tiroteio foi intenso, mas não demorou muito tempo. Estava muita gente, guerrilheiros e população, todos misturados, houve muitas baixas. Eu estava preocupado com a informação que tínhamos ouvido no rádio, o pedido de uma evacuação de um “M”, ou seja de um morto. Se o Silva disse que tinha sonhado que o Djaló ia morrer no assalto…

Estava ansioso que os grupos se encontrassem para sabermos quem morreu. Quando acabaram os disparos e começámos a retirar em direcção a uma clareira, avistámos ao longe o grupo “Diabólicos” a caminhar na nossa direcção. Não, Djaló não tinha morrido, vinha ali ao fundo.

Quando os dois grupos se uniram, perguntei ao Djaló quem tinha morrido e ele disse: 

– Foi o Silva!  [10] (**)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas /Subtítulos: LG]



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Gr Cmds "Os Diabólicos" >  Soldado 'comando' António Alves Maria da Silva, o segundo a contar da direita. O alf mil 'cmd' Virgínio Briote,  à esquerda.

(...) "Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se." (...) (vd. poste P15044 ***)

______________

Notas do autor ou do editor literário (VB);

[1] Nota do editor: operação “Cleópatra”.

[2] Nota do editor: 7 maio 1965.

[3] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.

[4] Nota do editor: sete.

[5] Entre o material apreendido, para além de documentação importante, trouxemos o barrete chinês, uma agenda com apontamentos e uma bonita pistola do Pansau Na Isna, comandante do PAIGC.

[6] Nota do editor: Grupo de Combate da CCaç 799

[7] Augusto de Sá, já depois da Independência da Guiné-Bissau, contraiu tuberculose. Veio tratar-se para Lisboa e, ainda doente e contra o conselho dos médicos, regressou à Guiné onde acabou por morrer.

[8] Nota do editor: 26 de fevereiro de 1966.

[9] Op Hermínia. A informação que nos deram era que havia dois núcleos de moranças, uma a norte com população e outra, cerca de 300 metros a sul, com pessoal armado. Por volta das 13h20, as três equipas dos “Diabólicos” foram largadas no núcleo norte e as nossas no núcleo sul. Havia pessoal do PAIGC armado nos dois lados. Do núcleo norte, enquanto retirava, o PAIGC disparou armas automáticas, atingindo mortalmente o António Silva. Vimos vários mortos no local e aprisionámos oito pessoas. No regresso a Jabadá, junto à orla da mata, avistámos mais casas. Os T-6 atacaram com rockets, nós entrámos depois. Enquanto retirávamos o PAIGC fez várias vezes fogo de morteiro, mas sem pontaria. Entrámos no aquartelamento de Jabadá por volta das 16 horas e os helis transportaram-nos de regresso a Bissau. (***)

[10] O soldado 'cmd' António Alves Maria da Silva, oriundo da CCaç 674, era natural de Erada, Covilhã; ficou sepultado na campa 247, no Talhão Militar do Cemitério de Bissau.
________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"

(**) Vd. poste de 9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2820: Aqueles que nem no caixão regressaram (1): O Sold António Alves Maria da Silva, campa nº 247, Bissau (Virgínio Briote)

(***) Vd. postes de:

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"


Guiné > Bissau > 15 de Maio de 1966 > A ponte-cais de Bissau > 1º dia das chuvas.


Guiné > Bolama > Câmara Municipal. Postal da época.

Fotos do álbum de Virgínio Briote (2006)


Guiné > Comandos do CTIG > 1965 > Crachá do Gr Cmds "Os Centuriões". Imagem da coleção do 
Júlio Costa Abreu  (2008)


Lisboa > 2009 > O Amadu Djaló no Cais do Sodré

Foto (e legenda): © Virgínio Briote  (2009). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (1940-2015) (*). Recorde-se aqui o seu passado militar:

(i) recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, foi alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii9 depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de condutor auto-rodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3);

(iv) regressou entretnanto  à  CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

 (v) voltou a Bissau, em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966; (Já  em meados de 1965 tinha passadp a ganhar mais 150 escudos, o equivalente a 64 euros, a preços de hoje.)

 (vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão).


 
Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII:  De volta à CCS do QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"   (pp. 130/133)


por AmaduDjaló

Em junho de 1965, com as guias de marcha na mão, dirigimo-nos ao QG, onde nos apresentámos. E depois, como de costume, fui logo até ao parque das viaturas, onde os condutores passavam o dia todo.

Para já, uma boa novidade. Ia passar a receber mais 150 escudos por mês, o que, na altura, dava para algumas coisas. Foi-me distribuída uma GMC, uma camioneta com 10 rodas.

Em Agosto, entrei na secretaria e encontrei o 1º sargento a lançar uns números num papel.

 Meu primeiro, para que são esses números?

–  Por que é que perguntas?

–  Porque estou a ver o meu número aí, é o segundo dessa relação!

–  Este? Ah, então vais para Bolama, frequentar a escola de cabos e podes avisar os camaradas que tu conheces.

Assim fiz, voltei com a notícia para o parque.

Chegado o dia da partida, encontrámo-nos no cais para embarcarmos às 09h00, rumo a Bolama. Quando acabámos de nos concentrar,  éramos cerca de cinquenta e tal soldados, vindos de todas as partes da Guiné, alguns meus conhecidos.

Mal chegámos a Bolama fomos fazer a apresentação ao 1º sargento que nos levou à arrecadação e nos distribuiu lençóis e cobertores. Ficámos numa caserna com 60 e tal camas e essa tarde foi para fazermos as camas, as limpezas e para arrumarmos tudo o que havia para arrumar.

No dia seguinte começou a escola. Decorreu tudo bem, desde o primeiro ao último dia. Tivemos um teste de trinta e três perguntas para dar a resposta em 60 minutos. À frente de cada pergunta havia três respostas escritas, duas eram falsas e uma era verdadeira. Bastava fazer uma cruz onde achava que era a certa. Começámos às nove para acabarmos às dez.

O alferes instrutor, no fim do teste, disse-nos:

–  Agora vocês vão-se preparar para regressar ainda hoje. Os resultados vão para as vossas companhias.

Uns colegas não queriam regressar sem saber os resultados. Eu era contra, mas a maioria queria mesmo saber. Então o alferes convocou os sargentos para o ajudarem a corrigir.

Eu fui arrumar as minhas coisas e disse aos companheiros que nos encontrávamos no cais. Estava na caserna a arrumar tudo, quando entrou o Alberto, a correr, a chamar-me:

–  Amadu, Amadu, o alferes está a chamar pelo teu nome.

E eu:

–  Qual alferes?

–  O instrutor, Amadu!

Saí a correr com a bagagem na mão e, quando cheguei à porta, entreguei-a a um companheiro e pedi licença para entrar.

Todos se levantaram, apertaram-me a mão e o alferes comunicou-me que eu tinha sido o primeiro classificado e que, se houvesse CSM - Curso de Sargentos Milicanios eu passava para este curso.

Agradeci, e quando saí alguns perguntaram a razão de me terem chamado.

–  Todos passaram, ninguém chumbou!

Eu a acabar de dizer isto e o alferes apareceu com uma carta na mão a chamar pelos nomes com a respectiva classificação.

–  Amadu, vinte!

Todos me abraçaram, estavam vários rapazes de Bafatá, a minha cidade, todo o pessoal estava contente. Fomos logo a correr direitos ao cais para tomarmos o barco para Bissau.

No dia seguinte, depois da nossa apresentação na CCS do QG, recomeçámos o nosso serviço diário, até ao dia 1 de Janeiro de 1966. Fomos promovidos a 1º cabos e no dia 2 de Janeiro apresentei-me como 1º cabo condutor.

Num dia dos finais de Fevereiro [1], eu estava no parque com alguns colegas, quando o Tomás Camará me disse:

–  Tio[2], vamos outra vez para os Comandos!

–  Quem te disse isso?

–  Está ali o alferes Rainha a falar com o nosso comandante. Entregou-lhe uma autorização da 4ª Rep.!

–  Mas vamos já hoje?

–  Sim, porque o comandante mandou-me tirar o braçal. 

O Tomás estava de cabo de dia. Estávamos com esta conversa quando ouvimos o alferes Rainha perguntar pelo Mamadu Bari. Chamaram-no e embarcámos os três, outra vez para Brá, para os Comandos.

Chegados a Brá, fomos directamente à arrecadação, levantar o material e o equipamento necessário.

Dois dias depois, surgiu uma missão
[3]  para cumprir, no sul. Apanhámos outra vez o barco para Cacine. O objectivo era Catunco Nalú, o local da última acção dos “Fantasmas” , a tal operação “Ciao”, onde tivemos um morto e nove feridos, em maio [4] de 1965. E agora, em fevereiro [5] de 1966, íamos voltar ao mesmo local para a operação com o código “Cleópatra”.

Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões” 
[comandada pelo alf mil 'cmd' Luís Raínha] 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas /Títulos: LG]
__________

Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: 20 fevereiro 1966.

[2] O Tomás Camará chamava-me sempre tio, até quando fomos feridos em Cameconde, no meio do tiroteio, chamou-me tio.

[3] Nota do editor: operação “Cleópatra”.

[4] Nota do editor: 7 maio 1965.

[5] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.
__________

Nota do editor:

domingo, 8 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23960: (De) Caras (191): A morte do fur mil 'comando' Joaquim Carlos Ferreira Morais, no assalto a uma base IN, em Catunco, Cacine, em 7 de maio de 1965 (João Parreira, ex-fur mil op esp, 'comando', CART 730 / BART 733 e Gr Cmds “Os Fantasmas” e "Os Camaleões", Bissorã e Brá, 1964/66)



João Parreira, ex-fur mil op esp, 'comando',
CART 730 / BART 733
e Grupo de Comandos “Os Fantasmas” e "Os Camaleões",
Bissorã e Brá, 1964/66, membro da Tabanca Grande
desde 3/12/2005


1. Em complemento da versão do Amadu Djaló sobre a última operação realizada pelo Gr Cmds "Os Fantasmas (6 e 7 de maio de 1965) (*), publicamos aqui alguns excertos de postes do João Parreira (**), que trazem informações adicionais sobre a Op Ciao, em que ambos foram feridos, e em que morreu o fur mil comando' Joaquim Carlos Ferreira Morais,

(i) Julgo que vale a pena deixar escrito alguns eventos, durante o período de 6 de Maio a 11 de Junho 1965, alguns deles relacionados com a operação Ciao na mata de Catungo, em [6 e 7 de ] maio de 1965.

Na carreira de tiro dos paraquedistas, alguns dias antes tinha perdido uma aposta com o  Morais, pelo que me competia em qualquer altura pagar-lhe um almoço no Grande Hotel.

Como alvo, daquela vez, foram escolhidas 3 garrafas distanciadas umas das outras (também havia quem preferisse latas e até granadas). A aposta consistia em, virados de costas para cada uma delas, e por 3 vezes consecutivas, dar um salto, enfrentá-las e, instintivamente com a G-3 em patilha automática, dar apenas uma rajada de 3 tiros e, por sequência, acertar nas que ainda se encontrassem intactas.

Como não me foi dito que havia saída para o mato nesse dia, resolvi então convidá-lo para ir almoçar uma vez que faltavam poucos dias para ele regressar à Metróple.

Depois do almoço num ambiente calmo e agradável encontravámo-nos a beber whisky, a observar o que nos rodeava e a falar de coisas triviais, quando vimos o yenente Saraiva dirigir-se para nós pelo que pensámos que se ia sentar connosco.

Desde o meu primeiro dia que senti que iria ter boas relações com o ten [mil 'comamdo']  Saraiva [comandante do Gr Cmds "Os Fantasmas"]  e assim aconteceu quer em Brá quer nas nossas deambulações por Bissau ou em operações. No mato admirava o seu empenhamento, a sua descontração e o seu à-vontade.

Afinal tinha acabado de chegar do Gabinete do Governador e Comandante-Chefe, onde tinha ido receber informações sobre uma operação e sabendo por alguém que me encontrava com o Morais no Grande Hotel, foi ter connosco e disse-me para regressar a Brá o mais depressa possível a fim de me equipar para dentro de poucas horas partir para uma operação no Sul da Província, tendo o Morais, que já tinha acabado a comissão de serviço, dito que também ia.

Então, foi-nos comunicado nessa altura que, dado o pouco tempo disponível, nos daria pormenores durante o trajecto. Já em Brá vários camaradas dos outros dois grupos ["Os Camaleões" e "Os Panteras".] , ao saberem que o nosso grupo ía sair, insistiram com o Morais para não ir mas ele foi peremptório e disse:

– Já fiz tantas operações com o grupo,  que uma a mais não me faz qualquer diferença.

Progredindo silenciosamente por aqueles trilhos do mato naquela noite, escura como breu, em que à distância de um braço já não se via o camarada da frente, G-3 na mão e dedo no gatilho, 4 carregadores à cintura e nenhuma granada...     [E aqui abro um parêntese, para confessar que fiquei com uma certa aversão ao lançamento de granadas, que aliás todos nós as sabemos lançar, alguns porém só em teoria, desde que,  durante um tiroteio, numa das operação da CART 730 em que, para não largar a arma, resolvi utilizar só uma mão, pegando assim na granada com a mão esquerda e, sem pensar, uma vez que quer em treinos no CIOE (em Lamego), quer num dos combates já as tinha utilizado, daquela vez não sei o que é que me passou pela cabeça, o certo é que tentei imitar, talvez em desespero, o que via fazer em filmes de guerra, pelo que tentei puxar a argola com os dentes e o resultado foi óbvio, não só não consegui como fiquei com a ponta de um dente partido, tendo depois, como é natural, achado prudente ficar caladinho.]

 Continuando a progressão, e com todos os sentidos em alerta para aquela operação que se afigurava espinhosa e,  tentando não perder o camarada da frente, dois pensamentos iam-me constantemente martelando a cabeça: "o que é que eu ando para aqui a fazer no meio do mato nesta noite tão escura, sujeito a perder-me, levar com um balázio que me pode deixar incapacitado para toda a vida ou matar-me, quando ainda não há muito tempo me encontrava bem instalado e livre de perigo ?"...

E o outro: "Anda para aqui um gajo a dar o corpo ao manifesto enquanto muita malta nova na Metrópole anda neste momento a divertir-se em bares e em boites, e outros mais expeditos piraram-se do país, quando..."

Já estávamos tão perto do acampamento que,  quase de repente,  esbarrámos com um sentinela que foi mais lesto a detectar-nos, pelo que começou a fazer fogo, seguindo-se logo fogo cerrado dos seus camaradas.

Reagimos ao fogo até conseguirmos calar as armas do IN tendo depois entrado no acampamento que, segundo as informações que nos tinham sido dadas, era ocupado por cerca de 80 homens comandados por Pansau Na Isna.

Excitados com o êxito do golpe de mão em que não sofremos feridos e em que foram causadas baixas que não foi possível estimar, depois da debandada e a subsquente destruição do acampamento, seguimos carregados com todo o material abandonado pelo IN para junto de um  Pelotão que nos aguardava a alguns quilóemtros de distância.

Ao alvorecer foi possível olharmos com mais atenção para esse material, que a seguir descrevo  [e que o Amadu Djaló omite no seu relato]:
  • Pist met PPSH >3 ;
  • Carregadores p/ pist met PPSH > 10;
  • Bolsas lona p/ carregadores PPSH > 8;
  • Espingarda semiautomática M-52 > 1;
  • Esp Mosin-Nagant > 1;
  • Pistola CESKA > 2;
  • Carregador p/ pist. Ceska > 1;
  • Aparelho pontaria p/ Mort. 60 > 1;
  • Granada mort. 60 > 4 ;
  • Capas lona p/ mort. > 3;
  • Mina A/P PMD-7 > 3;
  • Granada de mão defensiva DEF F-1 > 7;
  • Granada de mão ofensiva RG-4 > 4;
  • Cunhetos p/ Gr Mão Of RG-4 > 1;
  • Sabre p/esp. Mauser > 1;
  • Carr. p/  metr lig  RPD > 4;
  • Carr. p/ PM 25 > 2;
  • Cunhetos metálicos p/mun. > 2;
  • Lâminas carregadores p/ esp. Simonov > 23;
  • Estojo limpeza p/ esp. Simonov > 1;
  • Cartuchos cal. 7,62 > 1.262;
  • Cartuchos cal. 7,65 > 39;
  • Cartuchos cal. 7,9 > 773;
  • Cartucheiras diversas > 13;
  • Detonadores pirotécnicos > 27;
  • Disparadores p/ minas > 11;
  • Disparadores tipo MUV > 10;
  • Petardos > 4;
  • Cordão neutro > 4 mts.;
  • Bornais lona > 15;
  • Suspensórios lona > 23;
  • Bolsas lona p/ carr. Degtyarev > 3;
  • Bolsas lona p/ acessórios > 3;
  • Almotolias > 3;
  • Capecetes de aço > 1;
  • Calças de caqui > 8;
  • Camisas de caqui > 7
  • Outro material > Vários livros e documentos. Material sanitário diverso: pensos individuais; ligaduras; algodão; comprimidos de sulfamidas; embalagens de penicilina; frascos de Sanergina; pinças; tesouras; tesouras de laquear; seringas; agulhas para injecções e ligaduras elásticas.

Pela razão já anteriormente descrita, foi dito ao Morais e ao Amadú para, a título voluntário, regressarem ao acampamento juntamente com outros que os quisessem acompanhar.

Andávamos descontraídos dentro do acampamento à procura de mais material, tendo por isso subestimado a estratégia do IN, pelo que, passado não muito tempo,  fomos todos nós (eramos 10) repentinamente atingidos por aquela bem orientada e por isso maldita granada de LGFog, ao que se seguiram durante algum tempo rajadas de várias armas.

(Em suma: O grupo que devido às circunstâncias foi muito sacrificado, era composto no início por 30 homens. Em 28 de novembro de 1964 uma explosão no regresso de uma operação causou 8 mortos e 2 feridos que foram evacuados para o HMP, em Lisboa. Tendo sido interveniente em mais operações, só no início de fevereiro de 1965 foi recompletado com um furriel (!!!). Em 20 de abril de 1965, na região do Inscassol ficámos 4 feridos com estilhaços de granada.)

Não sei como, mas o certo é que, apesar de feridos em Catungo,  ripostámos e aguentámo-nos como pudemos até que com alívio vimos a chegada dos restantes elementos do Grupo que, ouvindo o tiroteio e pensando que estávamos em apuros, foram em nosso socorro e assim afastaram o perigo.

Depois de se certificarem que o IN tinha desaparecido ajudaram-nos a chegar até junto do Pelotão que nos aguardava, onde foram então feitos tratamentos sumários aos feridos, tendo o Grupo regressado a Cacine e daí para Bissau, com excepção de dois que de Cacine foram directamente de heli para o Hospital.

(ii)  N[esta ] operação, a 6 de maio, efectuada a um acampamento situado na mata a SW de Catungo (Cacine), em que foi capturado grande quantidade de material de guerra e sanitário, o Grupo (reduzido a 22 homens) teve 10 feridos, entre eles o capitão de artilharia Nuno José Varela Rubim que mais tarde ficou a comandar a Companhia de Comandos.

Em virtude de ter sido ferido com alguma gravidade fui evacuado de heli para o Hospital Militar em Bissau, bem assim como um grande amigo e camarada, o furriel Joaquim Carlos Ferreira Morais, que, infelizmente, faleceu a meu lado e do qual ouvi a última palavra.

Como era amparo de mãe, e não tinha meios financeiros, teve que ser feita uma subscrição a fim de se angariar fundos para que o corpo pudesse regressar a Portugal.

Com a extinção do meu Grupo, que estava reduzido a pouco mais do que meia dúzia de homens,  fui integrado num dos dois restantes, "Os Camaleões", os quais também acabaram por desaparecer, tal como o outro, "Os Panteras", devido a muitos dos seus elementos terem terminado a comissão e estarem a aguardar o embarque. Deste modo deixaram de existir os três primeiros Grupos de Comandos formados no 1º Curso e tornou-se necessário criar o 2º. Curso, no qual participei" 

(iii) Não consegui resistir à tentação de escrever estas linhas quando vi um Alouette que aparece no blogue (poste P924), pois trouxe-me velhas recordações.

Isto, porque quando fui ferido nas costas em 7 de maio de 1965, em Cacine, durante o trajecto de madrugada para Bissau, e em zonas diferentes, tentaram alvejar o heli por 2 ou 3 vezes, não posso precisar.

Tinham-me injectado morfina e colocado de barriga para baixo numa maca de lona colocada no lado exterior direito do heli. Quando dos primeiros tiros e no meio da minha sonolência pensava: "Oxalá que nenhuma das balas acerte na maca pois fico furado!"...  E naquela altura nem me passou pela cabeça que podiam acertar no heli. Mais à frente novos tiros, mesmo pensamento mas já desejoso que o heli chegasse ao Hospital. No lado esquerdo do heli colocaram o corpo do camarada   [o fur mil 'comando' Morais] que faleceu a meu lado .

(iv) No Hospital durante uma visita da D. Beatriz Sá Carneiro, ela perguntou-me o que é que eu precisava e lembrei-me então de lhe pedir um Monopólio para a caserna dos nossos praças, tendo ela satisfeito o solicitado.

Por ironia do destino, em 22 do mesmo mês de maio o ten Maurício Saraiva, deslocou-se a Lisboa a fim de no dia 10 de Junho, no Terreiro do Paço, ser promovido a Capitão por distinção e condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma.

No dia em que o ten Saraiva estava a ser agraciado  [em Lisboa, no 10 de junho de 1965] fomos para terrenos perto da Base Aérea fazer treinos de saltos de helicópteros e um dos instruendos que ia no meu atrapalhou-se de tal maneira que,  ao saltar bateu,  com toda a força com a G-3 num dos vidros que o partiu.

Passados vários meses, o alf Rainha para se vingar dos danos infligidos aos seus camaradas do Grupo extinto , ["Os Fantamas" ] foi, estoicamente, com o seu recém-formado grupo "Os Centuriões", no qual tinham sido integrados dois ou três dos feridos da Op Ciao,  atacar o mesmo acampamento.

No jornal "Os Centuriões", oferecido em 21 de agosto de 1965 pela Centuria em Brá
ao Centro de Instrução de Comandos cuja abertura foi dedicada aos velhos "Fantasmas",  pode ler-se.

"Nós,  os Centuriões, sucessores dos famosos Fantasmas, dedicamos-lhes este terceiro número do jornal como prova de admiração pelos seus feitos e faremos o possível para os igualar e superar se a isso, como diz Camões, 'não nos faltar engenho e arte' (ser comando é uma arte).

"Queremos aqui deixar também a nossa homenagem aos nobres soldados de 'Os Fantasmas«, caídos no campo da luta em defesa do torrão Pátria e garantir aos vivos que faremos todo o possível para vingar as suas mortes" (...) (***)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (Out 64 / Jul 66) > O pessoal em operações militares: na foto, acima, transporte às costas de um ferido, evacuado para o HM 241, em Bissau, por um helicóptero Alouette II (versão anterior do Alouette III, que nos era mais familiar, sobretudo para aqueles que chegaram à Guiné a partir de 1968). Foto do Alberto Pires, editada pelo Jorge Félix.

Fotos: © Alberto Pires (Teco) / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Jorge Félix (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965

(**) Vd. postes de:

3 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74- P312: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros (Virgínio Briote)

30 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P929: Felizmente falharam os tiros no heli (João Parreira)

sábado, 19 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

 


Angola > CIC - Centro de Instrução de Comandos > 1963  > O alferes mil Maurício Saraiva em Angola, em 1963, aquando da frequência do curso de Cmds; No CTIG  será depois promoviodo, por mérito, a tenente e a capitão.. (*)





Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil 'Comando' Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez,  foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964  (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > c- 1964 > Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  'mil comando ' Saraiva.  


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 ( Bambadinc) > Xime > Porto fluvial

Foto cedida por Torcato Mendonça


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou, há 7 anos,  em 2015, ainda antes de completar os 75 de idade.  Os seus filhos, por sua vez, vivem (ou viviam até há uns anos) no Reino Unido.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Temos vindo a introduzir pequenas correcções,  toponímicas e outras, ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição.  Mantemos a ortografia original.

Recorde-se, aqui o último poste: o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite do alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano. Frequentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. 

 Deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. Deste curso sairam ainda  os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras

O Amadu passou a pertencer ao Grupo Fantasmas, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de Outubro e 4 de Novembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A história do puto "turra" do Buruntoni, Xime, de nome Malan Nanque

(pp. 90-94)

por Amadu Bailo Djaló



Dias depois, nova saída, para Buruntoni, no Xime. Saímos de Bissau, de barco, para o Xime.

Logo que chegámos, instalámo-nos no quartel, até ao fim do jantar. Forneceram-nos um guia e marchámos directos a Burontoni.

Nesta operação [1], eu ia integrado na 3ª equipa, a meio do grupo. Toda a noite a andar, a corta-mato. Perdermo-nos já era uma sina, andámos, sempre com o guia à frente, sem darmos com o caminho que nos levava para o acampamento. Quando chegámos à zona, o sol ia alto, eram para aí 7h00 [2].

Encontrámos um rapazito de 8 ou 9 anos. Interrogado disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos[3], disse que ficava na outra margem do rio Burontoni. Seguimos até à margem. O alferes ia falando com ele, fazendo-lhe perguntas. Se o acampamento tinha pessoal, respondeu que nessa manhã, o Suleimane Djaló tinha avisado a população para abandonar o acampamento, porque tinha andado uma avioneta a sobrevoar e isso não era bom sinal, que podia acontecer qualquer coisa a todo o momento. 

Sobre o local, onde costumava ficar a sentinela, o rapazito disse que ficava atrás de nós. Então, o alferes deu instruções para voltarmos atrás, para ver se conseguíamos apanhar a sentinela.

O alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgámos que ela estava. Estava numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo. 

Com a arma do sentinela nas nossas mãos, continuámos a marcha para o Xime, até que demos com uma tabanca abandonada, que se chamava Gundagué Beafada

Perto deste local encontrámos a tropa de Bambadinca que estava com a missão de nos recolher. Encontrei alguns companheiros da minha incorporação e, quando estava a abraçá-los vi o alferes, de arma ao ombro, e o menino com a mão na nuca, de olhar fixo no alferes. Cheguei-me para junto do alferes e ele disse-me:

– Amadu, que vamos fazer ao puto?

– Levá-lo, meu alferes?

– Ele é turra, Amadu!

– O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.

– Então, por que vivia no mato, Amadu?

– Porque os pais vivem no mato, meu alferes!

– E tu, o que queres fazer com ele, Amadu?

– Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.

O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:

– Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.

– Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele?

– A minha irmã toma conta!

– Tens a certeza, Amadu? Fica à tua responsabilidade!

– Inteiramente, meu alferes.

Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca.

Em Bambadinca, eram para aí 18h00, estava um barco no cais, a preparar-se para partir para Bissau. Aproveitámos o transporte no barco que ia carregado com laranjas, limões, ananás, bananas, muita fruta. Mas não era o que nós precisávamos, o que nos fazia falta era uma refeição quente.

O barco levava também batata-doce e abóboras. O furriel Artur tinha só 5 escudos e o alferes, que tinha uma nota de 500 escudos, pediu para lhe venderem batata-doce e abóboras, ao preço que se vendiam em Bissau. A batata-doce era vendida ao quilo, a abóbora era conforme o tamanho. Começámos a pesar as batatas e ninguém no barco tinha troco. Então, nós dissemos que, logo que chegássemos a Bissau, no dia seguinte um de nós ia ao mercado pagar. Mas não aceitaram.

Então pedimos uma panela grande, descemos ao porão e pusemo-nos a cozinhar a abóbora que tínhamos comprado. Mas uma abóbora não dava para o grupo todo. Enquanto o cabo Cruz, sentado em cima de um saco, cantava fados, íamos roubando batatas, uma a uma. Quando o Cruz assobiava parávamos de tirar batatas e assim fomos enchendo a panela. Quando o cozido ficou pronto, chamámos o grupo todo para comer.

Eram para aí 21h00 quando acabámos. Quando chegámos a Brá, já depois da meia-noite, ainda comemos uma refeição quente, de peixe cozido e depois retirei-me para a minha casa.

Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque [4], um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com quatro cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito. 

Quando chegámos a Bissau, levei-o ao alfaiate, e os cortes de tecido deram para fazer 3 calções e 2 camisas. Ainda lhe comprei um par de sapatos e uns chinelos.

Agora, que estou a escrever e a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele. (**)

(Continua)

__________

Notas do autor Amadu Djaló e/ou do "copydesk" Virgínio Briote:


[1] Nota do editor: “Vai à Toca”

[2] Nota do editor: 11 de Novembro de 1964

[3] Em Darsalame Baio

[4] O rapazito, Malan Nanque, biafada, mudou de apelido, para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém da nossa família soube que o Malan Djaló era o miúdo que tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964.

Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempo depois no hospital de Bafatá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tempo. Morreu, ainda não tinha dois anos.

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Notas do editor:

(*) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, Vd.

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11457: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (66): Cap Cmd Maurício Saraiva, aqui evocado pela sua sobrinha Luciana Saraiva Guerra (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil) e pelo nosso coeditor Virgínio Briote

27 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló

Ver o que escreveu, sobre o Maurício Saraiva,  o Luis Rainha,  em poste de 31 de marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966 (que deixou de estar dospinível na Net, não está sequer no Arquivo.pt, o que é pena:  http://comandos-guine-1964a1966.blogspot.pt/ ):


(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando Centurião, quero aqui afirmar que o Grupo  Fantasmas foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de  homens, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.

Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)

Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses (até Maio de 1965), e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar. 

Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande... 

Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

1. Parte XI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 17 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XI

Mornas

Tinha-a conhecido em casa da Dora. Uma cabo-verdiana linda, a pele morena clara, lábios um pouco salientes, desenhada sobre o magro, à volta dos 20.
Trocaram as palavras do costume quando a Dora os mostrou um ao outro.
Teresa.
Teresa quê?
Teresa!
Olhos grandes, claros, esverdeados, ficavam bem com aquela pele. Voz doce, ar curioso. Esquiva e desinteressada, virou-lhe logo as costas, cada um foi para seu lado.
Esteve ali, conversou com este e aquele até se fazerem horas. Quando descia as escadas, ela chamou-o, ar atrevido, pareceu-lhe até demais. Mas já vai, não se despede da gente?
É, voltamo-nos a encontrar um dia, atirou ela, vemo-nos por aí, não? Bissau não é assim tão grande!
Se é meu desejo? Saiu a desconversar, meio desconsolado.

Dias depois, sentado no Bento, viu-a passar. Os olhares dos outros chamaram-lhe a atenção. Todos se viraram, não era fácil passar despercebida. Parecia-lhe mais alta. Os olhos com um verde mais magnífico ainda, levemente sombreados, cabelo liso preto, a pousar nos ombros, elegante num vestido sem mangas, azul-escuro pintalgado de bolinhas brancas, a balançar um pouco acima dos joelhos, sandália de meio tacão. Como se tivessem combinado, dirigiram-se um para o outro, mãos estendidas, cumprimentaram-se com alguma timidez. Os olhares dos outros não os largavam.
Ai, não, não me sento aí no café!
Vamos então andar um pouco, por aí?
Meteram-se no carro1, uma volta pelas ruas, por aí não, é a minha casa. Então para onde quer ir? Saíram da cidade, para os lados da Sacor, estacionaram de frente para o Sol, a desaparecer no Geba. O rádio a passar Capri, c’est fini, ela a cantarolar baixo, até começar a falar.


Quem sou eu? Sou este que está aqui, Teresa!
Mas quem és tu, porque estás aqui?
Aqui, como?
Porque estás aqui comigo? Sabes lá, que resposta!
A conversa assim, até encontrar o fio. Esta guerra, os desencontros, as pessoas para um lado e para outro, muita gente deslocada das suas casas, todos a virem para Bissau, muita tropa também, onde é que isto vai parar. Assim, de um momento para o outro, de rajada.
Depois mais suave, as origens, as famílias, os amigos, os interesses. Frequentava o 7.º no liceu de Bissau, os pais eram de Cabo Verde, tencionava fazer Medicina em Lisboa, estava com "As vinhas da Ira" nas mãos, acabara um livro de Hervé Bazin. “Só ódio”, conheces? Queres que to empreste?
Para quê, se é só ódio?
Pode ser interessante para ti, como sabes que não gostas sem o ler?
O que estava ali a fazer, perguntou-se. Como se tivesse adivinhado ela adiantou que gostava de estar ali, de olhar o Geba, de o conhecer, de olhá-lo nos olhos. Mas quem és tu, ainda não falaste de ti!
O dia a cair como cai em África, noite num momento. Temos que ir, não é?
Deixou-a à porta da Sé, junto à rua dela. Até amanhã, Teresa. O grupo dele saía na madrugada seguinte, para o norte.

No regresso procurou-a. Os olhos, grandes na mesma, pareciam de cor diferente, o rosto mais fechado, algum problema?
Uma semana à espera este tempo todo, começou ela, porque não apareceste? Olha-me de frente, assim não, olha-me nos olhos, assim! O que sou para ti, ora diz? Porque me foges com os olhos?
Séria, os olhos a entrarem por ele dentro, porque andas atrás de mim? Não falas? Responde! Porque não falas? Gosto que me contes tudo! Mais calma, encostada a ele, tão baixo que mal a ouviu, vamos sentar-nos no jardim? Estamos mais à vontade, a mamã não está, se ela aparecer apresento-ta, qual é o mal?
Que gostava, mas agora não. Então logo? Os papás ficam no varandim a aproveitar o fresco, até às 11, depois vão-se deitar.
Que é que te deu, não falas? Tens namorada na metrópole? Todos vocês têm, sei muito bem, como é ela? A boniteza não é só na cara, sabias? Não gostas de mim? Então que estás aqui a fazer?
Estás a olhar assim para mim porquê? Achas que não temos cabeça para pensar, que só somos corpo para vocês gozarem?
Vens logo à noite? Quando os papás se vão deitar fico sempre um bocado à janela.
Atordoado, saiu dali, sem saber o que fazer, nem para onde ir até. Uma mulher diferente!
Depois o tempo passou, o entusiasmo teve altos e baixos, até esfriara, há quase um mês que não se viam.

Do portão viu a Dora ao cimo das escadas. Ambiente animado, pessoal a dançar cá fora, meia dúzia de pares, tudo gente cabo-verdiana, colados uns aos outros, aquele jeito deles, os corpos no ritmo das mornas e coladeras.
Então, bem aparecido, zangado comigo?
Que não, nada de que se lembre, os olhos dele pelo baile, a Teresa a dançar, a um metro bem medido do par, a saia do vestido acima dos joelhos, o decote a mostrar. Mal os olhos se cruzaram, ela encostou-se ao parceiro, a cara para o outro lado.
Passa-se alguma coisa que eu não saiba? Que não, não havia problema nenhum, andava ocupado, aos fins dos dias não tinha vontade de sair, só isso, mais nada.

Despediram-se da Dora, isso agora vai, olhar maroto para as mãos deles. Tinham dançado uma e outra vez, quase só os dois no fim, tão colados que os outros até repararam.
Meteram pela rua de Santa Luzia, de mãos dadas, a brincarem um com o outro, a rirem-se por ali abaixo.
À porta dos pais dela, os rebentamentos que ouviam há já algum tempo soavam mais fortes. Agora é todas as noites isto! Estes tiros onde são?
Jabadadas2, menina, chega-te para cá, para onde vais, Teresa?
Tenho medo, não posso, encosta-te então, não te sentes mais abrigada assim, não é das explosões que tenho medo, então de que é?
Uma mão na perna, a subir, ai, aí não! Respirações atrapalhadas, afastados, um momento que não acabava, a olharem um para o outro, uma sirene bem perto, os lábios a rasparem-se, o gosto da boca dela, a mão dele nos seios, aqui não, anda, não podemos ficar aqui, mãos amarradas, que malucos, que é que estamos a fazer?
Na espreguiçadeira onde se recostava a ler e a sonhar nas tardes quentes de Bissau, ansiosa, não sabia o que queria, a mão dele fazia-lhe comichão no joelho, riso abafado das cócegas e do nervoso. A mão em cima da dele, parecia-lhe que a acalmava. As duas mãos juntas, a subirem por ela acima, não posso, tem cuidado, miminhos só, não me faças mais nada!

Não ando a fazer nada com ela, nem pretendo nada da Teresa, só passar uns momentos entretido. Não sei é se me vou aguentar assim!
Esta história com a Teresa pode dar chatices, pode trazer-te problemas!
No 14-04 com o pára-brisas no capô, vento na cara, a falar com ele, a caminho de Brá.
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Notas
1 - Volkswagen alugado
2 - Flagelações quase diárias a Jabadá, do outro lado do Geba

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O 2.º Encontro com o RDM num mês

‘Nunca louvarei capitão que diga não cuidei’

Tal há-de ser quem quer, com o dom de Marte,
Imitar os ilustres e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos, e evitá-los,
Com militar engenho e subtil arte,
Entender os inimigos, e enganá-los,
Crer tudo, enfim, que nunca louvarei
O Capitão que diga: "Não cuidei".

Lusíadas
Luís de Camões
Canto VIII, 89

Uma história que não gostava nada de recordar e que se esforçava por esquecer, passara-se em Jolmete, na zona de Teixeira Pinto, no noroeste, ainda não há muito tempo.
Uma zona calma, de um momento para o outro transformou-se num barril de pólvora seca.
O grupo “Centuriões” tinha regressado de lá com três feridos, um dos quais logo evacuado para o Hospital da Estrela. A única acção de fogo em que estiveram metidos consistiu na reacção ao primeiro ataque ao aquartelamento de Jolmete, com o grupo acidentalmente lá.
Era a primeira vez que a companhia lá estacionada via fogo a sério. Sabe-se qual é a reacção da grande maioria de quem é atacado. Primeiro, procura-se abrigo, depois se vê.
Só que naquela noite, o vê-se ficou-se no grande celeiro que os abrigava, a ver se o IN se chateava e ia embora. O que não aconteceu, claro. Se não fosse o grupo do Rainha estar cá fora, por não caber mais ninguém no armazém, abrigar-se e responder, muito provavelmente os atacantes podiam ter feito mais estragos.
Ficaram bem impressionados com a resposta do grupo e o capitão das operações do batalhão estacionado em Teixeira Pinto pediu que, ou continuassem ou fossem outros deles para lá. E foi assim que outro grupo apareceu em Teixeira Pinto e nesta história.

Quando chegou, viu uma povoação agradável, para as proporções locais. Arrumada, uma rua larga fazia de centro e de passagem para tudo à volta.
Foi recebido por um tenente-coronel, voz esganiçada, pequena estatura, careca, franzino, pouco mais de 50, talvez, uma caricatura de militar, pareceu-lhe.
Na sala de operações, um quarto com um mapa grande da zona pregado com pioneses na parede, o Tenente Coronel explicou a situação militar da zona do batalhão sob o seu comando. Para além do alferes do grupo de comandos estava presente também o capitão das operações, um homem diferente como veio a comprovar mais tarde.
Estava tudo em ordem, insistia o comandante do batalhão, a pacificação era um acontecimento, só umas pequenas borbulhas lá para os lados do tal Jolmete. Pingalim para o mapa, quero que você e o seu grupo vão aqui, depois ali, para aí a 10 centímetros para norte do primeiro local e depois venham para aqui, Jolmete no pingalim, outros 10 centímetros para leste. Não deixou de esboçar um sorriso, lá no íntimo e não está mesmo seguro que o sorriso não tenha sido visto pelo estratega. No mapa, aquelas voltas todas dava para aí meio metro. Depende da escala, claro, mas meio metro para um dia, mesmo naquele mapa, pareceu muito. Mesmo assim, se houvesse motivos suficientes, iam a isso que era para isso que ali estavam.
É de notar que o tenente-coronel, soube-se depois, ficara algo incomodado com o relatório que o alferes Rainha fizera e que lhe chegara do QG uns dias antes com um pedido de esclarecimento do chefe da 3.ª Rep. indagando as razões que tinham levado o comando do batalhão a permitir que o nativo de nome Antigas, capturado pelo IN e solto dias depois de ter estado num acampamento IN na área de Bugula, quando se apresentou na sede do batalhão, em vez de ter explorado imediatamente o sucesso o deixou abandonar o quartel e andar pela povoação a contar a história.
Nada de processos de intenções, mas é um aspecto que se deve considerar, tendo em conta os acontecimentos que se seguiram.

Para quantos dias, meu tenente-coronel?
Tudo de seguida! Depois de regressarem logo se vê, peremptório.
O alferes olhou-o e viu que tinha pela frente um guerrilheiro com uma larga experiência em secretarias e departamentos similares, sem imaginar que a especialidade que tirara ainda fora mais apurada.
Tribunais Militares, RDMs e secretarias, veio a saber depois, tinham sido os principais campos de batalha que praticara até à data.
O alferes com um ar, diga-se, nada adequado para um caso daqueles, ora bem, meu tenente-coronel, então V. Ex.ª quer que o grupo vá aqui, depois para aqui e depois para aqui, não é? Tudo de seguida?
Porquê um esforço destes, tantos quilómetros de mata, rios e tarrafos, bolanhas, em plena época das chuvas, sem qualquer conhecimento da localização de acampamentos INs que não seja o que se diz aí pelas ruas? Porque não fazer uma saída de cada vez, com objectivos bem definidos, em vez de andar a passear pelo mato?
Os comandos são grupos reduzidos, meu tenente-coronel e até aqui têm sido empregues em golpes de mão, com objectivos bem localizados e com guias de confiança. Outras missões são para outro tipo de tropas!
Não lhe compete dizer o que se deve fazer, aqui quem manda sou eu e o nosso alferes executa.

Uma miséria de abandono, Jolmete era um barraco enorme, onde estavam lá metidos nas piores condições cerca de 100 homens, arame farpado à volta, logo junto ao barracão. O capitão Corte-Real, comandante da companhia, o que não queria era chatices, e verdade seja dita, só deixou de as ter quando, meses mais tarde, foi estraçalhado por uma mina entre Farim e o K3.
O grupo saiu naquela noite como estava combinado, chuva em cima, trilhos e trilhos, tarrafo intransponível, poderiam andar lá dias se não tivesse decidido ir por outro lado. À hora marcada lá estava o PCV3 no ar, o tenente- coronel então onde estão?
Aqui em baixo, onde havia de ser? Assinalar com uma granada de fumos para saber onde estamos? Uma granada de fumos não lanço. Estamos aqui junto a esta bolanha, para norte do seu PCV.
Aí? Mas não foi isso que eu determinei! Volte já para lá, para o local combinado!
A conversa assim toda animada, indique então a posição para onde quer que a gente vá.
Viemos desses lados, vamos voltar aí para quê, está a ver aí de cima alguma posição IN? Nós é que temos que ver aqui em baixo? Olha Álvaro, o soldado do rádio, desliga mas é essa merda!
E o Álvaro cumpriu a ordem.
E andaram por aqueles trilhos dentro de água, o dia todo até à noite quando chegaram mais mortos que vivos a Jolmete.
Espaço para dormirem no barracão não havia, para comer havia umas excelentes bolachas, daquelas que só vão para baixo com meio litro de água.
Abrigaram-se debaixo das árvores que havia por ali, a tentar dormitar, com pingas de água a cair-lhes em cima.
De madrugada, tocaram-lhe no ombro, o comando do batalhão estava a enviar-lhe uma mensagem.
Explique com urgência os motivos do não cumprimento da missão. Que a missão estava em marcha, voltaria a sair, para o outro ponto indicado, às 5. Não! Vai sair mas é para outro lado, para aqui, para Teixeira Pinto, debaixo de prisão, vou mandar uma coluna buscá-lo.
Foi assim que o alferes foi transportado, numa viatura, por um compreensivo capitão com os elementos do grupo a fazerem o caminho a pé.
No quarto de operações, o tenente-coronel aguardava-o, com o capitão das operações. Que não tinha cumprido a missão e ainda fora mal educado para um oficial superior.
Um auto de averiguações, duas horas para responder por escrito a 34 quesitos.
Um criminoso de guerra, um desertor, ou quê?
Veja lá como fala, sou seu superior, sou tenente-coronel, sou o comandante deste Batalhão! E o nosso alferes está aqui às minhas ordens, com todas as consequências, não se esqueça!

Tinha na frente um bravo militar, esqueceu-se e não devia. Está-se a ver o que aconteceu. Um auto de averiguações transformou-se num auto corpo de delito, numa hora ou menos, uma rapidez que nem no tribunal militar territorial de Tomar!
E 5 dias de prisão disciplinar, o máximo da competência do tenente-coronel.
Tinha acabado de ouvir as razões do castigo, os oficiais, todos em sentido no tal quarto. Sim, que ouvira o que fora lido, que ouvia bem. E que ia reclamar da redacção da punição por, no seu ponto de vista, a redacção não corresponder aos factos. Aguente aí, alferes, o capitão das operações a murmurar baixo, a mexer-se.
Tem que pedir licença para reclamar! De qualquer maneira, concedo-lha.
Cá fora, em conversa com alguns alferes que assistiram à cerimónia ficou a saber que o tenente-coronel era muito disciplinador.

Depois foi o regresso a Bissau. Mal chegou não descansou enquanto não contactou com um dos ajudantes de campo de Governador-Geral, um alferes conhecido de outros gabinetes. Dias depois foi chamado ao Palácio, apresentou-se no gabinete do General Schulz. O General veio até cá fora, ao jardim, e foi aí que teve conhecimento, pela sua boca, dos factos.
Se acha que está a ser injustiçado, recorra, senhor alferes, foi a primeira resposta que ouviu.
Agradeceu ao general o conselho. Mas a principal razão que o levara a pedir que o recebesse tinha a ver com o crachá que o General lhe tinha entregado em mão no final do curso. E que estava ali para o devolver se o general, a partir deste caso de Jolmete, não o considerasse apto a chefiar uma unidade de comandos.
O General mudou o charuto para a outra mão, deu dois passos e olhou-o.
Continue o seu trabalho e faça tudo para que não voltem a ocorrer situações dessas, rematou o Governador-Geral de mão estendida.

Um caso que se arrastou meses e meses. Mudou o capitão dos comandos, mudou o Brigadeiro Comandante Militar, o tenente-coronel de Teixeira Pinto foi transferido para o sul, Catió mais precisamente, muita coisa andou, nada de resposta à reclamação que apresentara. Nem ninguém, desde a 1.ª à 4.ª Rep. sabia onde parava a folha de papel de 25 linhas.

Em meados de Fevereiro do ano seguinte, o novo comandante da Companhia de Comandos disse-lhe que o Comandante Militar, o Brigadeiro Reymão Nogueira, queria pôr ponto final naquela questão, que era melhor ir lá falar com ele.
Alferes, estas questões não adiantam nada ao andamento da guerra, só atrapalham. Claro que são importantes, especialmente quando, como parece ser o caso, não houve motivos assim tão sérios para uma tão severa punição. O que aconteceu foi que o alferes demorou a cumprir uma ordem de um oficial superior. Facto grave! Por outro lado, há que ver as atenuantes que eu acho que não validam a sua atitude, ajudam a compreendê-la.
É do seu conhecimento que a sua punição não sofreu até agora qualquer agravamento. Nem eu nem o nosso Governador-Geral a agravaram. Bom, o que tenho a dizer é o seguinte. O alferes retira a queixa contra o nosso tenente-coronel e eu, não lhe agravo a punição. E é de regra, o Ministro não mexer em penas que não tenham sido agravadas pelos Comandantes Militares.
Finalmente, e isto é muito importante, a sua punição, já publicada em Ordem de Serviço, está registada, não há nada a fazer. Não ocorrendo mais nenhum problema disciplinar, ainda temos de pensar como vamos encerrar o assunto, ok? Entendido?
Cansado, aquele processo há meses a moê-lo, muitas outras coisas na cabeça, optou pela retirada. Dá licença que me retire, meu Brigadeiro?
Enquanto descia as escadas o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi pirar-se dali para fora, desertar!
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Nota
3 - Posto de comando volante ou de comando aéreo, normalmente a bordo de um Dornier.

(Continua)

Texto e foto: © Virgínio Briote
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (II Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (II Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro
e
13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro