1. Estamos a ler, para os leitores do nosso blogue, o livro de João Céu e Silva (ribatejano de Alpiarça, nascido em 1959, escritor e jornalista), "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.) (*).
A obra resulta de uma maratona de 42 sessões de conversas, realizada ao longo de 2 anos, quase até ao fim da vida do entrevistado (ao todo, representando 100 horas de gravações)... É um trabalho de grande mérito, já aqui o dissemos anteriormente (*).
O protagonista desta "longa viagem" é o historiador, ensaísta, cronista, jornalista e analista político Vasco Pulido Valente (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes, nasceu em Lisboa em 1941 e morreu na mesma cidade, Lisboa, em 2020, aos 78 anos.
Pelo lado paterno, VPV era neto do médico e professor de ciências médicas, Francisco Pulido Valente (Lisboa, 1884 - Lisboa, 1963). Em sua homenagem, por volta dos 16/17 anos, o Vasco passou a adotar o apelido desse ilustre avô.
Recorde-se aqui que a brilhante carreira académica do prof catedrático Francisco Pulido Valente foi brutal e arbitrariamente interrompida em 14 Junho de 1947, por decisão do Conselho de Ministros (Diário do Governo, 1ª série, nº 138, de 18 de Junho de 1947). Afastado compulsivamente do ensino juntamente com outros professores universitários, além de vários militares, todos considerados como "antissituacionistas" (e, como tal, "incapazes de se integrar na ordem política estabelcida", ou seja, no regime do Estado Novo), é obrigado a aposentar-se nove meses mais tarde.
Grancisco Pulido Valente manteve a prática clínica, privada, até 1954, e continuou a animar, no seu consultório, uma tertúlia cívica, intelectual e literária no Chiado, que já vinha dos anos 30 e era frequentada por vultos brilhantes da cultura portuguesa de então, Em 1958 fez parte da comissão de honra da candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República.
Era um cidadão politicamemet empenhado, sem qualquer filiação partidária, contrariamemte ao neto que ambicionava ter feito uma carreira política, "cortada ao meio" com o acidente aéreo que vitimou Fancisco Sá Careneiro, o seu "princípe", de que foi conselheiro. (Mas a sua maior alegria foi ver Mário Soares chegar a Belém.)
2. Voltando ao VPV, e ao livro do João Céu e Silva, reproduz-se aqui mais alguns excertos das suas declarações, relativas ao período do Estado Novo, da II Guerra Mundial até à Guerra Colonial.
Um dos problemas que são abordados logo no início do livro é a "falta de memória" dos portugueses. E, portanto, o desconhevimento da sua prórpia História. Ou um conhcimento, se quisermos, enviesado, parcelar, acrítico...
O que tem uma explicação: não há ainda uma produção e divulgação da nossa História, em quantidade e qualidade. Isso tem a ver com diversos factores, incluindo o enquadramento do historiador na Academia (tem de fazer investigação e dar aulas), a escassez de financiamento, as dificuldades de acesso às fontes documentais, a dimensão mercado livreiro português, etc.
Investigador-coordenador do ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa (tem uma dívida de gratidão ao Sedaa Nunes que o levou para lá), foi também deputado e exerceu funções governativas. Como Secretário de Estado da Cultura, em 1980, há dois factos que abonam a seu favor, embora o seu mandato tenha sido alvo de muitas críticas e não é isento de polémicas:
(i) obteve o terreno e o financiamento para a construção da Torre do Tombo, "o guardião da nossa memória";
e (ii) nomeou João Bérnard da Costa (1935-2018), seu amigo do grupo dos católicos progressistas, da revista "O Tempo e o Modo", para a Direcção da Cinemateca Portuguesa, o que parece ter sido uma boa escolha (na nossa opinião, LG - sou fã dos seus "Escritos sobre cinema").
É bom lembrar, por outro lado, que as declarações feitas por VPV a João Céu e Silva foram feitas no decurso de extensas e, por vezes penosas, entrevistas, ou seja. num contexto em que pode, por vezes, falhar o rigor factual. Embora com uma vasta cultura histórica e política, o entrevistador estava ali a falar sem rede, e sofendo de uma doença crónica degenerativa. Nem teve tempo de, em vida, rever o manuscrito: o livro foi publicado em março de 2021, VPV morreria em 21 de fevereiro de 2020... E , se não erramos, a última entrevista foi ainda feita um mês antes de morrer.
Em matéria de imprecisões, é o caso, por exemplo, da referência ao número total de efectivos militares nos 3 teatros de operações no final da guerra colonail, e às circunstâncias da morte, na Guiné, do seu amigo, o deputado da Ala Liberal José Pedro Pinto Leite (vítima, com mais outros 3 deputados da Assembelia Nacional, de acidente de helicóptero, o qual está bastante bem documentado no nosso blogue).
Esses excertos vão a negrito.
História, memória e historiadores
(...) Nós não temos uma História, não há
produção histórica em quantidade e com a regularidade suficiente para os
portugueses poderem criar um interesse na sua própria História. Existem, no
entanto, historiadores e alguns deles bons. (pág. 37).
(…) O mercado para o livro inglês é
enorme (…) Em Inglaterra, há muita gente
que vive só de escrever História (…) (pág. 37).
(…) Um estudo a sério sobre o Salazar, feito por um historiador,
deve levar quinze anos.
É muito difícil arranjar condições de trabalho desse
tipo numa instituição universitária (…).
São tarefas para vidas inteiras! (…) (pág. 38).
Portugal, Salazar e a(s) guerra(s)
Salazar tinha a seu favor, em termos de imagem, interna e externa, duas coisas.
(i) o saneamento financeiro do Estado português: não se gastava mais do que o que se tinha; o que não era difícil de conseguir, tendo uma polícia política em cima dos trabalahdaores e das suas organizações;
(ii) a neutralidade de Portugal no âmbito do terrível conflito militar que foi a II Guerra Mundial (1939-1945); não terá sido assim tão difícil manter essa neutralidade, até por que toda a estratégia de Hitler estava virada leste (conquista de espaço vital à custa dos russos e dos poços de petróleo do Cáucaso, onde nunca cosnegiu chegar); nunca quis conquistar o Mediterrâneo e bater.se contra a maior armada do mundo, que era a britânica; logo, nunca faria sentido invadir a península ibérica para conquistar Gibraltar.
VPV defende a tese de que o regime político a que chamamos Estado Novo não era um regime fascista, muito menos copiado da Itália de Mussolini; por outro lado, Salazar era antinazi, embora também não gostasse dos americanos nem da democracia representativa ou parlamentar... Também era crítico do capitalisno e da modernização da sociedade.
Por outro lado, como ele disse, no famoso discruso de Braga, em 1936, por casião dos 10 anos do golpe de Estado do 28 de maio de 1926, ele, Salaar, devia "à providência a graça de ser pobre"...Ainda hoje estamos a pagar os bloqueios do Estado Novo à modernaização da economia e da sociedade portguesas,
(...) P (JCS) – Como é que os portugueses se
mantiveram assustados durante tantos anos ? (pág. 134)
R (VPV) – A guerra [a II Guerra Mundial] impressionava toda a
gente e todos queriam saber como estava a situação. E dividiam.se: uns eram a
favor dos alemães, outros dos ingleses. Aqui em Portugal mudavam de posição de acordo com a progressão
das campanhas militares.
Era uma espécie de jogo: estou a favor dos americanos,
dos ingleses. Não implicava convicções políticas, apenas se interessavam pela
guerra, que era aqui ao pé, em França, depois em Inglaterra e na Rússia (…).
Era preciso ligar essa curiosidade à
rádio, porque começava a ser um instrumento de comunicação muito forte, mesmo
sendo poucos os que tinham telefonia. (…) (pág. 134)
P – Foi a guerra que começou a destruir
a “paz” nacional ?
R – A estabilidade do regime é
perturbada pela primeira vez e irremediavelmente
pela guerra.
As guerras têm uma função democrática arrasadora para quem entra nelas, porque obriga a fazer com que as pessoas
passem a viver uma vida coletiva. Se morrem cem mil de um lado e duzentos mil
do outro, isto pode suceder-nos… Amanhã vestem-lhe uma farda e mandam-nos marchar , e isso faz com que o
cidadão, mesmo de um país que não está em guerra, como Portugal, esteja mais
atento ao que se passa no mundo. (….) (pág. 135)
Guerra de Angola ou guerra colonial
(,,,) A guerra colonial [ou "guerra de Angola", como o VPV estava habituado a chamar-lhe] não foi nada de
parecido [com o trauma que foi para a República e para o país a participação do
Exército português na Flandres, na I Grande Guerra], porque foi crescendo
pouco a pouco e exigindo gradualmente
mais homens e armas.
Quando a guerra acabou, tínhamos um total de tropas em África maior do que durante todo o tempo
da guerra. [Negritos nossos, LG]
Começou com poucas tropas em Angola, alastrou para a Guiné e Moçambique,
além de que era preciso guardar as províncias que ainda não se tinham revoltado
com algumas guarnições.
Naquela altura as coisas foram correndo e, quanto mais
avançavam, mais Salazar tinha que fazer concessões à modernidade. Tinha de
entrar na Europa de qualquer maneira e
começou pela EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre, de que Portugal é
cofundador em 1960].
Portugal progrediu,
foi um salto no nosso desenvolvimento económico, mesmo que funcionasse
contra Salazar, porque, à medida que conseguíamos exportar para os países da organização, o custo do trabalho ia sendo
cada vez menos barato e proporcionava vivências muito diferentes de mugir as
vacas. (pág. 158)
A propósito da guerra na Guiné, o VPV dá provas de estar mal informado, pelo menos a nível de certos detalhes. Nem ele é um historiador ou historiógrafo da guerra colonial.
Julgamos, inclusive, que ele nem sequer deve ter feito o serviço militar obrigatório: participou nas lutas estudantis de 1962 com Jorge Sampaio, aproximou-se depois dos católicos progressistas da revista "O Tempo e o Modo" e, acabado o curso de filosofia, foi para Oxford em finais de 1969 fazer o doutoramento em História com uma bolsa da Gulbenkian. Defendeu em maio de 1974 a sua tese de doutoramento, orientada por Raymond Carr: "O Poder e o Povo: a revolução de 1910".
Leia-se este excerto das suas declarações:
(…) O José Pedro Pinto Leite (1932-1970),
que foi “espiritual e materialmente” o fundador do PPD e que era deputado da
Ala Liberal, com o Sá Carneiro e Balsemão (…) morreu numa viagem de inspeção à Guiné porque o helicóptero em que ia, foi abatido pelo PAIGC. (pág. 162).
Guiné > Região do Biombo > Estuário do Rio Mansoa > Recuperação dos restos do Heli AL III, caído por acidente na foz do rio Baboquem, afluente do rio Mansoa, em 25 de julho de 1970, e que transportava quatro deputados da Assembleia Nacional, em visita à província (além da tripulação).
Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ____________
Nota do editor:
(*) Vd. poste anterior > 17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...