sábado, 19 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23797: Os nossos seres, saberes e lazeres (540): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (77): De Sines para Miróbriga, de Miróbriga para o Badoca Safari Park (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
A idade não perdoa, sou cada vez mais confrontado com o desaparecimento de papéis, notas de leituras, esqueço-me de certas viagens e subitamente abro a pasta das imagens e fico de boca aberta, como foi possível ter-me esquecido daqueles dias na região de Sines, um imperativo por vontade soberana da neta. E, pior do que tudo, deve estar afundado entre toneladas de papel, o amontoado de brochuras que, isso sim, não deixo de trazer em qualquer surtida, são textos e imagens que sempre ajudam, paciência, escarafuncha-se até aos escaninhos da memória. Confesso que tive imenso prazer em encontrar as imagens da visita ao Museu do Tesouro Real e ao Museu da Presidência, a seu tempo, e sempre com a maior satisfação, aqui se lavrará o relato.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (77):
De Sines para Miróbriga, de Miróbriga para o Badoca Safari Park

Mário Beja Santos

A região de Sines é paragem obrigatória na vilegiatura, decisão irrefragável da neta. Encontra-se pouso, a escassos quilómetros de Sines, no Paiol, assim que a neta vê que há uma piscina secreta que a água do mar é muito fria, é por ali que ela quer esvoaçar, como aconteceu, sai-se pouco, sobretudo para amesendar no inesquecível tasquinho da Anabela, sempre disponível para fazer tomatada, açorda, pratinhos especiosos com bacalhau. Pré-adolescente, a neta exige negociar qualquer saída, seja a Porto Covo seja a Sines. Condescende, aceita passear-se na cidade, aprecia o Centro de Artes e visitar o amigo Joaquim na livraria, como aconteceu.

Centro de Artes de Sines/Biblioteca Municipal de Sines, obra do Atelier Aires Mateus & Associados

É nessa atmosfera de negociação, a neta pôs ênfase em visitar o Badoca Safari Park, sugestão arrematada, foi a vez do avô pôr uma contraposição, visitar Miróbriga, há para ali uma estrada poeirenta que sai do Paiol até Santiago do Cacém, um salto até Miróbriga. Exigem-se explicações, lá estás tu a pores-me nesses enfiamentos de pedra, houve que explicar que Miróbriga não só é um dos sítios arqueológicos melhor preservados da região como guarda indícios da Idade do Ferro, o período romano está pujantemente marcado, e posteriormente há ali fortes indícios das chamadas invasões bárbaras. Fala-se do génio romano, um dos pilares da nossa cultura e da nossa civilização, vais ver, neta, a natureza dos pavimentos, a organização do espaço doméstico, o gosto pelas termas, os santuários, a região do fórum, um ponto de encontro. Bom, vamos lá dar esse passeio, depois quero lanchar. E aqui ficam as imagens destes caminhos, alguns parece que foram acabados ontem, obviamente que este arvoredo é decoração posterior, é impressionante este legado da zona termal, circunda-se todo este vasto património até se chegar à ponte romana, para minha surpresa a neta não se cala e faz perguntas sobre as águas quentes e frias, a vida social nas termas, a higiene como imperativo civilizacional romano. Parece que fica satisfeita com as respostas.
Temos agora uma subida até uma área habitacional e ao fórum, há vestígios de pintura numa casa, toca de os registar, temos depois registos de dedicatórias, os romanos caracterizaram-se pelas suas memórias deixadas em lápides, e aqui se mostra também o que fica do fórum. A neta põe perguntas intrigantes, porque é que se fixaram aqui?, havia minas?, donde vinham estes romanos?, disfarço a resposta lembrando-lhe que a cidadania romana se estendeu a povos fora da Península Itálica, que aquela Itálica que ela viu escrita no registo ao cidadão Gaio Ágrio Rufo tinha a ver com a Itálica que é junto a Sevilha, que houve imperadores nascidos no que é hoje a Croácia, também na Hispânia ou na Líbia, lembro-lhe Troia, a que fica perto de Setúbal, donde saía muito peixe em salmoura para todas as regiões do império. Terá ficado satisfeita com a resposta. E depois de visitarmos Santiago do Cacém, a neta apresenta a fatura, quer ir ao circo e ao Badoca Safari Park. Como aconteceu.
(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 12 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23778: Os nossos seres, saberes e lazeres (538): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (76): Do Luso para o Bussaco (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23786: Os nossos seres, saberes e lazeres (539): Pêro Alvito e Pedro Alvito, ou, Pêro Alvito é Pedro Alvito? (José Martins)

Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

 


Angola > CIC - Centro de Instrução de Comandos > 1963  > O alferes mil Maurício Saraiva em Angola, em 1963, aquando da frequência do curso de Cmds; . N CTIG  será depois promoviodo, por mérito, a tenente e a capitão.. (*)





Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil 'Comando' Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez,  foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964  (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > c- 1964 > Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  'mil comando ' Saraiva.  


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > SEctor L1 ( Bambadinc) > Xime > Porto fluvial

Foto cedida por Torcato Mendonça


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou, há 7 anos,  em 2015, ainda antes de completar os 75 de idade.  Os seus filhos, por sua vez, vivem (ou viviam até há uns anos) no Reino Unido.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Temos vindo a introduzir pequenas correcções,  toponímicas e outras, ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição.  Mantemos a ortografia original.

Recorde-se, aqui o último poste: o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano. Frequentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. 

 Deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. Deste curso sairam ainda  os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras

O Amadu passou a pertencer ao Grupo Fantasmas, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de Outubro e 4 de Novembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A história do puto "turra" do Buruntoni, Xime, de nome Malan Nanque

(pp. 90-94)

por Amadu Bailo Djaló



Dias depois, nova saída, para Buruntoni, no Xime. Saímos de Bissau, de barco, para o Xime.

Logo que chegámos, instalámo-nos no quartel, até ao fim do jantar. Forneceram-nos um guia e marchámos directos a Burontoni.

Nesta operação [1], eu ia integrado na 3ª equipa, a meio do grupo. Toda a noite a andar, a corta-mato. Perdermo-nos já era uma sina, andámos, sempre com o guia à frente, sem darmos com o caminho que nos levava para o acampamento. Quando chegámos à zona, o sol ia alto, eram para aí 7h00 [2].

Encontrámos um rapazito de 8 ou 9 anos. Interrogado disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos[3], disse que ficava na outra margem do rio Burontoni. Seguimos até à margem. O alferes ia falando com ele, fazendo-lhe perguntas. Se o acampamento tinha pessoal, respondeu que nessa manhã, o Suleimane Djaló tinha avisado a população para abandonar o acampamento, porque tinha andado uma avioneta a sobrevoar e isso não era bom sinal, que podia acontecer qualquer coisa a todo o momento. 

Sobre o local, onde costumava ficar a sentinela, o rapazito disse que ficava atrás de nós. Então, o alferes deu instruções para voltarmos atrás, para ver se conseguíamos apanhar a sentinela.

O alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgámos que ela estava. Estava numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo. 

Com a arma do sentinela nas nossas mãos, continuámos a marcha para o Xime, até que demos com uma tabanca abandonada, que se chamava Gundagué Beafada

Perto deste local encontrámos a tropa de Bambadinca que estava com a missão de nos recolher. Encontrei alguns companheiros da minha incorporação e, quando estava a abraçá-los vi o alferes, de arma ao ombro, e o menino com a mão na nuca, de olhar fixo no alferes. Cheguei-me para junto do alferes e ele disse-me:

– Amadu, que vamos fazer ao puto?

– Levá-lo, meu alferes?

– Ele é turra, Amadu!

– O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.

– Então, por que vivia no mato, Amadu?

– Porque os pais vivem no mato, meu alferes!

– E tu, o que queres fazer com ele, Amadu?

– Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.

O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:

– Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.

– Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele?

– A minha irmã toma conta!

– Tens a certeza, Amadu? Fica à tua responsabilidade!

– Inteiramente, meu alferes.

Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca.

Em Bambadinca, eram para aí 18h00, estava um barco no cais, a preparar-se para partir para Bissau. Aproveitámos o transporte no barco que ia carregado com laranjas, limões, ananás, bananas, muita fruta. Mas não era o que nós precisávamos, o que nos fazia falta era uma refeição quente.

O barco levava também batata-doce e abóboras. O furriel Artur tinha só 5 escudos e o alferes, que tinha uma nota de 500 escudos, pediu para lhe venderem batata-doce e abóboras, ao preço que se vendiam em Bissau. A batata-doce era vendida ao quilo, a abóbora era conforme o tamanho. Começámos a pesar as batatas e ninguém no barco tinha troco. Então, nós dissemos que, logo que chegássemos a Bissau, no dia seguinte um de nós ia ao mercado pagar. Mas não aceitaram.

Então pedimos uma panela grande, descemos ao porão e pusemo-nos a cozinhar a abóbora que tínhamos comprado. Mas uma abóbora não dava para o grupo todo. Enquanto o cabo Cruz, sentado em cima de um saco, cantava fados, íamos roubando batatas, uma a uma. Quando o Cruz assobiava parávamos de tirar batatas e assim fomos enchendo a panela. Quando o cozido ficou pronto, chamámos o grupo todo para comer.

Eram para aí 21h00 quando acabámos. Quando chegámos a Brá, já depois da meia-noite, ainda comemos uma refeição quente, de peixe cozido e depois retirei-me para a minha casa.

Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque [4], um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com quatro cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito. 

Quando chegámos a Bissau, levei-o ao alfaiate, e os cortes de tecido deram para fazer 3 calções e 2 camisas. Ainda lhe comprei um par de sapatos e uns chinelos.

Agora, que estou a escrever e a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele. (**)

(Continua)

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Notas do autor Amadu Djaló e/ou do "copydesk" Virgínio Briote:


[1] Nota do editor: “Vai à Toca”

[2] Nota do editor: 11 de Novembro de 1964

[3] Em Darsalame Baio

[4] O rapazito, Malan Nanque, biafada, mudou de apelido, para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém da nossa família soube que o Malan Djaló era o miúdo que tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964.

Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempo depois no hospital de Bafatá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tempo. Morreu, ainda não tinha dois anos.

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Notas do editor:

(*) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, Vd.

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11457: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (66): Cap Cmd Maurício Saraiva, aqui evocado pela sua sobrinha Luciana Saraiva Guerra (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil) e pelo nosso coeditor Virgínio Briote

27 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló

Ver o que escreveu, sobre o Maurício Saraiva,  o Luis Rainha,  em poste de 31 de marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966 (que deixou de estar dospinível na Net, não está sequer no Arquivo.pt, o que é pena:  http://comandos-guine-1964a1966.blogspot.pt/ ):


(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando Centurião, quero aqui afirmar que o Grupo  Fantasmas foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de  homens, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.

Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)

Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses (até Maio de 1965), e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar. 

Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande... 

Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).

Guiné 61/74 - P23795: Parabéns a você (2116): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf da CCS/QG/CTIG, BART 2917 e CCAÇ 2701 (Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23782: Parabéns a você (2115): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546/BCAÇ 3883 (Piche e Camajabá, 1972/74) e Enfermeira Maria Arminda Santos, ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Temos agora o repositório das aeronaves que a FAP foi adquirindo (ou procurou adquirir) para as três frentes da guerra de África. Recordo que me limito à recensão de factos que reputo de relevantes, julgo não ter aqui cabimento entrar em detalhes técnicos, em que os autores são competentes e rigorosos. Temos aqui o histórico das compras, uma boa parte delas bem-sucedidas, recusas e tentativas de aquisições a vendedores privados.Com o andar da guerra, foram crescendo as dificuldades, noto como curiosidade que perto do 25 de Abril o ministro Rui Patrício parecia estar a ter sucesso na compra de aviões Mirage, nessa altura já estava adquirido um sistema de defesa antiaérea para Bissalanca, o Crotale, admitia-se a probabilidade de ataques aéreos, o Crotale fora o sistema aprovado. Com o 25 de Abril, foi revendido.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Começou a luta armada na Guiné, já se verificou que a NATO se recusou em ceder meios, considerou que as guerras de África excediam a defesa atlântica; o que obrigou a uma reviravolta substancial das prioridades do regime na área da defesa. Referiu-se que em 1957, Kaúlza de Arriaga, então Subsecretário de Estado da Aeronáutica, ordenou à Força Aérea que se preparasse para a sua implantação em África. Em conformidade, a FAP iniciou em 1958 um conjunto de missões para determinar quais os requisitos organizacionais nos territórios africanos. Em 1960, o Conselho Superior de Defesa Nacional decidiu as prioridades no planeamento num contexto exterior ao da NATO. No que respeita à Guiné portuguesa, a missão fundamental das Forças Armadas tinha dois objetivos: manter a ordem e a paz no território e garantir, a todo o custo, a manutenção da nossa soberania. Articularam-se três prioridades imediatas: formação de uma eficaz vigilância interna e das fronteiras, deu-se o reforço da presença da PIDE; disseminação das forças de segurança ao longo das fronteiras e em pontos estratégicos; estreitamento da cooperação civil-militar.

Peixoto Correia, governador, assumiu o comando das duas companhias de infantaria e tinha o apoio de uma bateria de artilharia, meios manifestamente insuficientes para a nova realidade; o Estado-Maior recomendou o reforço imediato e foram despachados contingentes militares, entre eles um pequeno quadro de aviadores, paraquedistas e pessoal de apoio – eles irão travar a campanha aérea mais intensa da história de Portugal.

Entramos agora no segundo capítulo “Aviões com a Cruz de Cristo”. Os autores recordam que a FAP foi formalmente constituída em 1 de julho de 1952, tinha dois serviços, o Serviço Aeronáutico Militar e o Serviço de Aviação da Armada. Foram adquiridas aeronaves atribuídas a cinco aeródromos operacionais, perto de trezentos aviões, é explicada a natureza e a utilização de tais aeronaves, detalha-se a sua fixação em aeródromos e composição orgânica. A FAP foi afetada por lhe ter sido alocada um equipamento obsoleto, manifestamente inadequado para uma guerra aérea moderna, mesmo para padrões da década de 1950.

Como membro fundador da NATO, Portugal obteve acesso a novas fontes de material e a formação compatível. Chegaram em 1952 dois aviões britânicos de treino Havilland Vampire T.55; no ano seguinte, os EUA enviaram cem novos caças-bombardeiros F-84G, a FAP entrava na era do jato, criaram-se dois esquadrões, era na Ota e em Tancos que se dava instrução complementar. Em 1954, a FAP recebeu o seu primeiro helicóptero, um Sikorsky YH-19 Chickasaw e 65 aviões Sabre F-86F. Estas aquisições custaram cerca de 348 milhões de dólares, qualquer coisa com um quarto dos gastos da defesa de Portugal nesse período.

A FAP está nesta altura sob a tutela do Subsecretário de Estado da Aeronáutica Kaúlza de Arriaga, que também criou o Batalhão de Caçadores de Pára-quedistas. Apesar destas novas aquisições, era manifesto o atraso da FAP face aos seus homólogos da NATO, isto no final da década de 1950. Na verdade, a maioria das forças aéreas aliadas já voavam em aviões de combate supersónicos, Portugal tinha acabado de receber o F-86F que tinha sido o avião de caça mais usado na Guerra da Coreia. Estes F-86F chegaram a servir em África, bem como os F-84G. Eram estes os aviões que estavam na linha da frente em Portugal e na Turquia. Com a eclosão da guerra em Angola, em fevereiro de 1961, a FAP levou para Luanda os F-84G. Este contingente F-84G representou o primeiro destacamento operacional de aviões militares portugueses para a África, desde o período imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial.

Com a guerra de África em três frentes, a FAP adaptou as aeronaves de que dispunha às necessidades operacionais. O PV-2 Harpoon foi despachado para África para combater a guerrilha. Vários modelos da família T-6 foram adaptados para transportar armamento ofensivo. À medida que a década de 1960 avançava, a FAP procurou melhorar as suas capacidades adquirindo novas aeronaves, mas manteve uma frota largamente obsoleta na guerra de África. O F-86 era um avião de sucesso, mesmo na era pós-1945. Os pilotos gostavam deste avião de caça pela sua agilidade. Foi muito importante na guerra da Coreia e mostrou-se superior ao MiG-15 soviético e mesmo sobre o MiG-17. Teve uma apreciável carreira, até se “aposentar” ao serviço da Força Aérea Boliviana, em 1994. Portugal adquiriu 65 aviões em segunda mão aos Estados Unidos e à Noruega, deu origem aos “Falcões”, sediados na base aérea de Monte Real, foram entregues como parte do rearmamento da NATO e destinados ao uso na “Área da NATO”, o que os excluía dos territórios africanos.

Centenas de milhares de aviadores norte-americanos e aliados aprenderam a voar em T-6 norte-americanos, chamados SNJ na Marinha dos EUA e Harvard no Reino Unido, no decurso da Segunda Guerra Mundial. Com licença dos EUA, estiveram ao serviço nas forças armadas de 55 nações, participaram em 40 guerras, conflitos e revoltas. A FAP recebeu um total de 251 T-6.

O Fiat G.91 entrou em funções na NATO para apoio terrestre e reconhecimento de ataque. Só a Itália e a Alemanha Federal aceitaram o G.91. EM 1966, quando Portugal se apercebeu da inviabilidade em adquirir novos aviões de combate nos EUA e Reino Unido, recorreu à Alemanha Federal para obter o Fiat G-91. Portugal adquiriu 12 aviões para patrulha marítima Neptune construídos nos EUA, foram comprados em segunda mão através da Holanda, em 1960. Era originalmente destinado à vigilância marítima e à guerra submarina, foi depois adaptado para missões ar-terra, mas detetou-se a falta de um sistema de precisão que limitava a sua utilidade em ataque terrestre; podia transportar até 6 toneladas de bombas, rockets, torpedos ou cargas de profundidade. O último Neptune foi retirado do serviço de Portugal no ano de 1977.

O Douglas B-26 Invader fez uma breve aparição na Guiné. Era capaz de transportar grandes cargas, entrou em combate em 1944, fez a guerra do Pacífico e a da Coreia, destruindo dezenas de milhares de estradas e ferrovias inimigas, esteve presente na crise do Congo, na invasão da Baía dos Porcos e na guerra do Biafra. Portugal começou por pedir para comprar 24 B-26, mas foi-lhe recusado, tentou-se a sua compra através de um fornecedor privado norte-americano, apenas 7 foram entregues antes dos restantes terem sido apreendidos pelas autoridades norte-americanas. Dois B-26 foram enviados para a Guiné em 1971 para uma avaliação operacional antes de seguirem para a Angola. Na Guiné realizaram 55 missões de combate, incluindo três dúzias de bombardeamentos.

Vamos seguidamente falar do Alouette II.


Salazar conversa com Dirk Stikker, Secretário-Geral da NATO, 1961, os dois primeiros à direita são Gomes de Araújo e Franco Nogueira
Kaúlza de Arriaga, Subsecretário de Estado da Aeronáutica
A Base das Lajes nos Açores, em meados de 1950, veem-se aviões da FAP e da Força Aérea dos Estados Unidos
As bases da Força Aérea em 1952-1959
Um dos aviões de treino Havilland Vampire T-55 entregues a Portugal

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 11 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23776: Notas de leitura (1515): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 2924 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

1. Estamos a ler, para os leitores do nosso blogue, o livro de João Céu e Silva (ribatejano de Alpiarça, nascido em 1959, escritor e jornalista), "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.) (*).
 

A obra resulta de uma maratona de 42 sessões de  conversas, realizada ao longo de  2 anos, quase até ao fim da vida do entrevistado (ao todo,  representando 100 horas de gravações)...  É um trabalho de grande mérito, já aqui o dissemos anteriormente (*). 

O protagonista desta "longa viagem" é o historiador, ensaísta, cronista, jornalista e analista político Vasco Pulido Valente (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes, nasceu em  Lisboa em  1941 e morreu na mesma cidade, Lisboa, em 2020,  aos 78 anos. 

Pelo lado paterno, VPV era neto do médico e professor de ciências médicas, Francisco Pulido Valente (Lisboa, 1884 - Lisboa, 1963).  Em sua homenagem, por volta dos 16/17 anos, o Vasco passou a adotar o apelido desse ilustre avô.

Recorde-se aqui que a  brilhante carreira académica  do prof catedrático Francisco Pulido Valente foi  brutal e arbitrariamente interrompida em 14 Junho de 1947, por decisão do Conselho de Ministros (Diário do Governo, 1ª série, nº  138, de 18 de Junho de 1947).  Afastado compulsivamente do ensino juntamente com outros professores universitários, além de vários militares, todos considerados como "antissituacionistas" (e, como tal, "incapazes de se integrar na ordem política estabelcida", ou seja, no regime do Estado Novo),  é obrigado a aposentar-se nove meses mais tarde. 

Grancisco Pulido Valente manteve a prática clínica, privada,  até 1954,  e continuou a animar, no seu consultório,  uma tertúlia cívica, intelectual e literária no Chiado,  que já vinha dos anos 30 e era frequentada por vultos brilhantes da cultura portuguesa de então, Em 1958  fez parte da comissão de honra da candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República. 

Era um cidadão politicamemet empenhado, sem qualquer filiação partidária, contrariamemte ao neto que ambicionava ter feito uma carreira política, "cortada ao meio" com o acidente aéreo que vitimou Fancisco Sá Careneiro, o seu "princípe",  de que foi conselheiro. (Mas a sua maior alegria foi ver Mário Soares  chegar a Belém.)

2. Voltando ao VPV,  e ao livro do João Céu e Silva, reproduz-se aqui mais alguns excertos  das suas declarações, relativas ao período do Estado Novo, da II Guerra Mundial até à Guerra Colonial. 

Um dos problemas que são abordados logo no início  do livro é a "falta de memória" dos portugueses. E, portanto, o desconhevimento da sua prórpia História. Ou um conhcimento, se quisermos,  enviesado, parcelar, acrítico... 

O que tem uma explicação: não há ainda uma produção e divulgação da nossa História, em quantidade e qualidade. Isso tem a ver com diversos factores,  incluindo o enquadramento do historiador   na Academia (tem de fazer investigação e dar aulas), a escassez de  financiamento, as  dificuldades de acesso às fontes documentais, a dimensão mercado livreiro português, etc.

Investigador-coordenador do ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa (tem uma dívida de gratidão ao Sedaa Nunes que o levou para lá), foi também deputado e exerceu funções governativas. Como Secretário de Estado da Cultura,  em 1980, há dois factos que abonam a seu favor, embora o seu mandato tenha sido alvo de muitas críticas e não é isento de polémicas: 

(i) obteve o terreno e o financiamento para a construção da Torre do Tombo, "o guardião da nossa memória"; 

 e (ii) nomeou João Bérnard da Costa (1935-2018), seu amigo do grupo dos católicos progressistas, da revista "O Tempo e o Modo", para a Direcção da Cinemateca Portuguesa, o que parece ter sido uma boa escolha (na nossa opinião, LG - sou fã dos seus "Escritos sobre cinema").

É bom lembrar, por outro lado,  que as  declarações feitas por VPV a João Céu e Silva foram feitas no decurso de extensas e, por vezes penosas, entrevistas, ou seja. num contexto em que pode, por vezes, falhar o rigor factual. Embora com uma vasta cultura histórica e política, o entrevistador estava ali a falar sem rede, e sofendo de uma doença crónica degenerativa.  Nem teve tempo de, em vida, rever o manuscrito: o livro foi publicado em março de 2021, VPV morreria em 21 de fevereiro de 2020... E , se não erramos,  a última entrevista foi ainda feita um mês antes de morrer.

Em matéria de imprecisões, é o caso, por exemplo,   da referência ao número total de efectivos militares nos 3 teatros de operações no final da guerra colonail, e às circunstâncias da morte, na Guiné,  do seu amigo, o deputado da Ala Liberal José Pedro Pinto Leite (vítima, com mais outros 3 deputados  da Assembelia Nacional,  de  acidente de helicóptero, o qual  está bastante bem  documentado no nosso blogue). 

Esses excertos vão a negrito.  

História, memória e historiadores


(...) Nós não temos uma História, não há produção histórica em quantidade e com a regularidade suficiente para os portugueses poderem criar um interesse na sua própria História. Existem, no entanto, historiadores e alguns deles bons. (pág. 37).

(…) O mercado para o livro inglês é enorme (…) Em Inglaterra,  há muita gente que vive só de escrever História (…) (pág. 37). 

(…) Um estudo a sério  sobre o Salazar, feito por um historiador, deve levar quinze anos. 

É muito difícil arranjar condições de trabalho desse tipo  numa instituição universitária (…). São tarefas para vidas inteiras! (…) (pág. 38).


Portugal, Salazar e a(s) guerra(s)


Salazar tinha a seu favor, em termos de imagem, interna e externa, duas coisas. 

(i) o saneamento financeiro do Estado português: não se gastava mais do que o que se tinha; o que não era difícil de conseguir, tendo uma polícia política em cima dos trabalahdaores e das suas organizações; 

(ii) a neutralidade de Portugal no âmbito  do terrível conflito militar que foi a II Guerra Mundial (1939-1945); não terá sido assim tão difícil manter essa neutralidade, até  por que toda a estratégia de Hitler estava virada leste (conquista de espaço vital à custa dos russos e dos poços de petróleo do Cáucaso, onde nunca cosnegiu chegar); nunca quis conquistar o Mediterrâneo e bater.se contra a maior armada do mundo, que era a britânica; logo, nunca faria sentido invadir a península ibérica para conquistar Gibraltar.

VPV defende a tese de que o regime político a que chamamos Estado Novo não era um regime fascista, muito menos copiado da Itália de Mussolini; por outro lado, Salazar era antinazi, embora também não gostasse dos americanos nem da democracia representativa ou parlamentar... Também era crítico do capitalisno e da modernização da sociedade.  

Por outro lado, como ele disse, no famoso discruso de Braga, em 1936, por casião dos 10 anos do golpe de Estado do 28 de maio de 1926, ele, Salaar, devia "à providência a graça de ser pobre"...Ainda hoje estamos a pagar os bloqueios do Estado Novo à modernaização da economia e da sociedade portguesas,


(...) P (JCS) – Como é que os portugueses se mantiveram assustados durante tantos anos  ? (pág. 134)

R (VPV) – A guerra [a II Guerra Mundial]  impressionava toda a gente e todos queriam saber como estava a situação. E dividiam.se: uns eram a favor dos alemães, outros dos ingleses. Aqui em Portugal  mudavam de posição de acordo com a progressão das campanhas militares. 

Era uma espécie de jogo: estou a favor dos americanos, dos ingleses. Não implicava convicções políticas, apenas se interessavam pela guerra, que era aqui ao pé, em França, depois em Inglaterra e na Rússia (…).

Era preciso ligar essa curiosidade à rádio, porque começava a ser um instrumento de comunicação muito forte, mesmo sendo poucos os que tinham telefonia. (…) (pág. 134)

P – Foi a guerra que começou a destruir a “paz” nacional ?

R – A estabilidade do regime é perturbada  pela primeira vez e irremediavelmente pela guerra. 

As guerras têm uma função democrática arrasadora para quem entra nelas,  porque obriga a fazer com que as pessoas passem a viver uma vida coletiva. Se morrem cem mil de um lado e duzentos mil do outro, isto pode suceder-nos… Amanhã vestem-lhe uma farda  e mandam-nos marchar , e isso faz com que o cidadão, mesmo de um país que não está em guerra, como Portugal, esteja mais atento ao que se passa no mundo. (….) (pág. 135)

Guerra de Angola ou guerra colonial


(,,,) A guerra colonial  [ou "guerra de Angola", como o VPV estava habituado a chamar-lhe]   não foi nada de parecido [com o trauma que foi para a República e para o país a participação do Exército português na Flandres, na I Grande Guerra], porque foi crescendo pouco  a pouco e exigindo gradualmente mais homens e armas. 

Quando a guerra acabou, tínhamos um total de tropas  em África maior do que durante todo o tempo da guerra.  [Negritos nossos, LG] 

Começou com poucas tropas em Angola, alastrou para a Guiné e Moçambique, além de que era preciso guardar as províncias que ainda não se tinham revoltado com algumas guarnições. 

Naquela altura as coisas foram correndo e, quanto mais avançavam, mais Salazar tinha que fazer concessões à modernidade. Tinha de entrar na Europa  de qualquer maneira e começou pela EFTA [Associação Europeia de Comércio Livre, de que Portugal é cofundador em 1960]. 

Portugal progrediu,  foi um salto no nosso desenvolvimento económico, mesmo que funcionasse contra Salazar, porque, à medida que conseguíamos  exportar para os países  da organização, o custo do trabalho ia sendo cada vez menos barato e proporcionava vivências muito diferentes de mugir as vacas. (pág. 158)

A propósito da guerra na Guiné, o VPV dá provas de estar mal  informado, pelo menos a nível de certos detalhes. Nem ele é um historiador ou historiógrafo da guerra colonial. 

Julgamos, inclusive, que ele nem sequer deve ter feito o serviço militar obrigatório:  participou nas lutas estudantis de 1962 com Jorge Sampaio, aproximou-se depois dos católicos progressistas da revista  "O Tempo e o Modo" e,  acabado o curso de filosofia, foi para Oxford em finais de 1969 fazer o doutoramento em História com uma bolsa da Gulbenkian. Defendeu em maio de 1974 a sua tese de doutoramento,  orientada por Raymond Carr:  "O Poder e o Povo: a revolução de 1910".

Leia-se este excerto das suas declarações:

  (…) O José Pedro Pinto Leite (1932-1970), que foi “espiritual e materialmente” o fundador do PPD e que era deputado da Ala Liberal, com o Sá Carneiro e Balsemão (…) morreu numa viagem de inspeção à Guiné porque o helicóptero em que ia,  foi abatido  pelo PAIGC. (pág. 162).




Guiné > Região do Biombo > Estuário do Rio Mansoa >  Recuperação dos restos do Heli AL III, caído por acidente na foz do rio Baboquem, afluente do rio Mansoa, em 25 de julho de 1970, e que transportava quatro deputados da Assembleia Nacional, em visita à província (além da tripulação).

Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior > 17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23792: Efemérides (376): Inauguração de um Monumento aos Combatentes do Ultramar de Vitorino das Donas (Ponte de Lima), realizada no dia 12 de Novembro (António Mário Leitão, ex-Fur Mil)

1. Mensagem do nosso camarada António Mário Leitão, (ex-Fur Mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973), com data de 14 de Novembro de 2022:

Caro Luís, um grande abraço!
Envio-te uma nota de imprensa da inauguração de um Monumento aos Combatentes de Vitorino das Donas (P.Lima), realizada no dia 12.
Envio também fotografias, para difundires como entenderes.
Foi um feito memorável, ao qual estive ligado até à medula. Começou a ser pensado em Junho, sem quaisquer garantias de financiamento. Propusemos a ideia à população, que se quotizou admiravelmente. Esteve cá o Gen. Chito Rodrigues, o Sec. Estado da Defesa, a Câmara Municipal, uma força militar de Cavalaria 6, autoridades militares do distrito, vários oficiais superiores portugueses e galegos, e muita gente. Foi uma experiência magnífica.

Obrigado e outro abraço!
Mário

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23767: Efemérides (375): Faria hoje 78 anos, se fosse vivo, o nosso querido "alfero Cabral", de seu nome completo Jorge Pedro Almeida Cabral (1944-2021)...

Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I: As colónias não valiam o preço...

1. Confesso que li o livro de um fôlego... E reli-o seguir com mais atenção crítica, pensando fazer uma nota de leitura para o blogue.

A obra resulta de uma maratona de conversas semanais (42 ao todo, representando 100 horas de entrevistas) com o historiador, ensaísta, cronista, jornalista e analista político Vasco Pulido Valente, (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes (Lisboa, 1941 - Lisboa, 2020).

"Na realidade, trata-se de uma longa viagem de dois séculos, que teve por razão uma tentativa de se compreender Portugal à luz do seu passado mais recente de dois séculos" (João Céu e Silva, pág. 9).

Uma viagem temerária, a que meteu ombros João Céu e Silva (n. Alpiarça, 1959). Escritor, licencido em História, viveu no Rio de Janeiro, é jtambém jornalista e colaborador do "Diário de Notícias" (desde 1989).

"Uma longa viagem com Puliudo Valente" é o sexto volume da série "Uma longa viagem com...", que conta com autores como José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre.

O sonho confesso (e megalómano) de VPV era ter escrito a história de Portugal desde as invasões napoleónicas e a fuga da família real para o Brasil (1807) até à instauração do Estado Novo (1933). No final da sua vida, e já doente, penalizou-se, de algum modo, por ter desperdiçado o seu enorme talento no jornalismo mas também como "conselheiro do prímcipe"...

Foi, por exemplo, polémico secretário de estado da cultura, no VI Governo Constitucional, presidido por Francisco Sá Carneiro, um dos (poucos) políticos que ele admirava, a seguir a Mário Soares. Foi militante do PS e do PPD, alegadamente para combater, com Mário Soares, o comunismo, e com Sá Carneiro, os militares e o Conselho da Revolução.

Com a vitória da Aliança Democrática, nas eleições legislativas de 1979, foi chamado a integrar o executivo como Secretário de Estado da Cultura. Em 1986 foi apoiante de Mário Soares na sua primeira candidatura presidencial.

Aquele que foi talvez a figura mais polémica do jornalisno português das últimas 3 ou 4 décadas, tendo coleccionado ódios de estimação todos os quadrantes políticos e ideológicos mas também na academia e na cultura (menorizava escritores como José Saramago, António Lobo Antunes ou Agustina Bessa Luís, mas não deixava de  arrasar o inquisidor-mor,  o então Subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, que imiseravelmente  vetara  o livro do Saramago,   "Evangelho Segundo Jesus Cristo", de 1991, da lista de romances portugueses candidatos ao Prémio Aristeion em 1992).

Considerava-se um especialista na história do séc. XIX e tem uma visão sinóptica sobre todo o nosso séc. XX, não escapando ao seu balanço crítico, muitos vezes implacável, cruel e demolidor, os principais atores da cena política, do último representante da Casa de Bragança ao Salazar, de Afonso Costa a Soares, sem esquecer Spínol,  os capitães de Abril, e por aí fora. 

"Estrangeirado" (vindo da filosofia, fez o doutoramento em História pela Universidade de Oxford), olhava para os "indígenas" deste país com um misto de sarcasmo e comiseração, zurzindo na sua "saloiice" e "!chico-espertice"... Eça de  Queiroz e Oliveira Martins eram duas das suas referência literárias e intelectuais.  Na secretária tinha, por sua ve4z. duas fotos, uma de  Mário Soares  e  outra de Sá  Carneiro (a este não perdoavá  ter-se deixado matar, cortando a sua, dele, VPV, "carreira política": sonhava, com Sá Carneiro, fundamentar, ideologicamente, a direita portuguesa). 

O índice da obra permite perceber melhor a organização temática e cronológica que o entrevstador e autor fez do material recolhido durante 2 anos, até quase ao fim da vida de VPV (entre parêntese, o ínicio da página):  

  • a vida cortada ao meio (11)
  • rato de biblioteca (33)
  • o século maravilhoso (51)
  •  como Salazar se senta na cadeira (71),
  • dúvidas logo no 1º de Maio (187)
  •  restaurantes e corrupção (221)
  •  sedução numa pasta de recortes (245)
  •  fora dos tempos (269)
  • nota final (293). 

O capítulo de maior fôlego é aquele que é dedicado a Salazar e ao Estado Novo (c. 115 pp.), seguido, à distância,  pelo que é centrado  nas peripécias  do 25 de Abril,  a que chama um clássico "golpe militar": os capitães do QP pura e simplesmente sentiram-se ultrapassados e humilhados pelos "mercenários" (os milicianos) e  decidiram a acabar com a guerra... e liquidar o império (c. 50 pp.) . 

Aos nossos leitores poderá interessar, deste livro,  sobretudo o que diz respeito, direta ou indiretamemente à guerra colonial e às forças armadas. Vamos citar e analisar alguns excertos, reproduzidos aqui com a devida vénia. O trabalho do João Céu e Silva é meritório e intelectualmente honesto: o autor não se esquce também de fornecer ao leitor o "contraditório" (vinte e tal páginas de recortes com críticas ao VPV e pontos controversos do seu CV).

Salazar e as colónias

“Para Salazar, as colónias eram um peso financeiro muito grande no Orçamento" (VPV, pág. 108)

O problema não era novo, remontando ao tempo da República:

(...) "Já fora um problema nos primeiros Orçamentos porque havia na República uma direita integracionista liderada por Cunha Leal que queria que ficassem na Constituição como território nacional e não como colónias, como depois se fez integrando-as no todo económico nacional. Algo que depois Salazar aceitou, mas que até certa altura não queria" (...).

Cunha Leal (Penamacor, 1888 - Lisboa, 1970) era um politico da direita republicana, foi membro do Partido Republicano Nacionalista, e fundador da União Liberal Republicana (em 1923). Foi apoiante do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 (que instaurou a Ditadura Militar e depois o Estado NIvo). Irá, contudo, incomptabilizar-se com Salazar, tornando-se então um dos mais acérrimos opositores da primeira fase do regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo, foi dos primeiros a defender um solução política de autodeterminação para as colónias. É autor, entre outras obras, de "O Colonialismo dos Anticolonialistas" e "A Gadanha da Morte: reflexões sobre os problemas euro-africanos" (ambas edição de autor, Lisboa, 1961)

Diz Vasco Pulido Valente, citado por João Céu e Silva:

(...) "Além de Cunha Leal, estava à frente desse movimento nacionalista Norton de Matos, com quem Salazar teve umas fricções a esse respeito" (…). Queriam chamar-lhe províncias ultramarinas, situação que Salazar só aceitou muitos anos depois; efetivamentente não eram províncias ultramarinas, mas colónias, com os orçamentos feitos em Lisboa para ele controlar” (pág. 108).

Norton de Matos (Ponte de Lima, 1867 - Ponte de Lima, 1955) foi sempre um opositor ao Estado Novo., vindo da maçonaria e da República, e que manteve com Angola uma relação especial:

Continua VPV:

(…) "As colónias mantiveram-se sem investimento nenhum, ou muito pouco, sendo que Salazar deixava umas companhias estrangeiras investirem em caminhos de ferro e coisas assim. (…) Não havia investimento do Estado português, que apenas pagava aos funcionários e aos destacamentos mínimos de polícia e do Exército." (...)

O que é Salazar pensava das colónias (onde nunca pôs os pés) ?

(...) "Ele sempre teve a ideia que (…) as colónias não valiam o preço. O que se percebe, pois não existia grande mercado nas colónias: exportava-se alguma coisa, como sapatos, têxteis e vinhos, mas toda a gente sabia que isso se fazia para os poucos brancos, já que os negros não compravam pela simples razão de que não tinham dinheiro (…).

"Angola ainda era a colónia que podia pagar, mesmo que o custo do transporte anulasse muito do lucro. São Tomé também importava, porque era o único sítio onde havia brancos por causa das roças de cacau, mas muito poucos. Ninguém via futuro na expansão colonial, porque a existência de riquezas num território não faz um país". (VPV, pág. 109).


Contrariamente a Norton de Matos, Salazar nunca foi um entusiástico partidário da política de colonizar e povoar...

(Contimua)

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