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terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26090: Timor Leste: Passado e presente (27): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo VI: um herói esqucido e injustilado, o tenente António PIres

O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires, na série "Abandonados" (realização de FranciscomManso, produção RTP, 2022). Imagem: cortesia de RTP e
 


1. No livro de José dos Santos Carvalho, que temos vindo a seguir (*), reproduzindo excertos e notas de leitura, há uma adenda, no final (pp. 195/204), que merece também destaque: nela o autor reproduz  informações complementares de dois sobreviventes, tal como ele, da tragédia que foi a ocupação japonesa de Timor  (fevereiro de 1942 / setembro de 1945). 

A adenda foi escrita em dezembro de 1970, quando o livro já estava no prelo. Por um feliz acaso encontrou em Lisboa Joaquim Luís Carrapito, antigo deportado, padeiro   (em Díli e depois em Baucau). Este, por sua vez, apresentou-lhe um segundo sobrevivente, César de Castro, também ele antigo deportado, serralheiro, a viver na Cova da Piedade, Almada. 

Na adenda tomamos conhecimentos de factos novos, ocorridos durante a ocupação nipónica. Mas, mais importante do que a revelação das circunstâncias e pormenores de mais uma série de crimes bárbaros, importa sublinhar o papel do tenente Manuel António Pires, um verdadeiro herói que arriscou a sua vida  para salvar compatriotas seus (e em especial mulheres e crianças, talvez cerca de uma centena, repatriados para a Austrália) e que foi um grande patriota (acabaria por morrer em 1944 na prisão,  às mãos dos japoneses).  
 
2. Sobre esse doloroso período (fevereiro de 1942 / setembro de 1945) (em que morreram 90 portugueses e c. 40 mil timorenses), o médico José dos Santos Carvalho publicou, 30 anos depois, um livro de memórias, "Vida e morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (imagem da capa, a seguir) . 



Capa do livro de José dos Santos
Carvalho:"Vida e Morte em
Timor Durante a Segunda
Guerra Mundial",
Lisboa: Livraria Portugal,
1972, 208 pp. , il


 
 O livro (disponível em formato digital na Internet Archive) e o autor merecem ser aqui lembrados. Recorde-se que a obra foi digitalizada e carregada, em 2010, no Archive.org, por um sobrinho do autor ("Fernando in Lisbon"). Na dedicatória lê-se: "Ao Fernando, com um abraço, muito amigo, do tio, José. Lisboa, 2/v/72" (**)
 
Recorde-se, entretanto, que dos 28 louvores atribuídos formalmente, pelo Governador aquando da cessação das suas funções, com datas de 10 de outubro e 21 de novembro de 1945, apenas se contempla um profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho). Os restantes são militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10), pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10), deportados (=6), além de 1 missionário e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho...

Há um silêncio incómodo em relação à figura do tenente Manuel de Jesus Pires, administrador de Bacau.

Mais tarde, já em junho de 1947, no relatório que fez para o Governo sobre os "acontecimentos de Timor", o antigo Governador (alvo de suspeições de "colaboracionismo", de que acabou por ser ilibado)  alargou a lista dos portugueses e inclui uma mão cheia de timorenses, vivos e mortos, merecedores do reconhecimento da Pátria portuguesa: são mais de 60 os liurais, chefes de suco, "moradores" (milícias), e outros "indígenas" expressamente citados. 

Mais uma vez o tenente Manuel de Jesus Pires aparece como "persona non grata" aos olhos do regime de então, sendo completamente esquecido (para não dizer banido).  O Governador que esteve a desgraça de estar em Timor neste período trágico da sua (e nossa) história, não lhe terá perdoado a sua colaboração com os Aliados (australianos e americanos), desrespeitando assim a orientação superior (de Salazar) que era de manter, a todo o custo, a estrita neutralidade...face aos invasores estrangeiros do território (os australianos e depois os japoneses).

Mas este português (tal como outros que optaram por resistir aos japoneses, como o deportado político, o dr. Carlos Cal-Brandão) merece, oportunamente, um poste sobre a sua história. (Sobre ele, de resto, já aqui falámos no blogue em vários postes desta série e dissemos que, se ele fosse vivo, em 1945, no regresso a Portugal, seria seguramente preso e condenado por deserção e traição.)

 Recorde-se apenas, "en passant", que a sua história inspirou uma recente série televisisa, cujo guião teve por base o livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires (editado pelo ISCTE,  da autoria do historiador António Monteiro Cardosoentretanto falecido em 2016).


(...) "Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título 'Abandonados' " (....)
 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)


Anexo VI:  Adenda: o papel do tenente Pires (pp. 195-204) (Excertos)

 


(...) Estando já no prelo o presente livro, um acaso providencial fez-me deparar numa das ruas de Lisboa com o sr. Joaquim Luís Carraquico que eu conhecera em Díli exercendo a profissão de industrial de padaria.

A sua amabilidade permitiu-me obter o esclarecimento de circunstâncias de acontecimentos de que eu tinha imperfeita noção e a notícia de outras que eu desconhecia e que é forçoso transmitir ao leitor para sua mais completa elucidação.

No dia 14 de novembro de 1942 encontrava-se o sr. Carraquico em Baucau onde residia após a evacuação de Díli ordenada pelo Governador.

Constando-lhe o assassinato de europeus em Manatuto por uma coluna [negra], que se dirigia a Baucau, afastou-se desta vila e seguiu para o interior na direcção de Quelicai.

Reuniram-se os foragidos de Baucau, e outras terras, cerca de 300 europeus e timorenses, nas faldas do monte Mate-Bían, no suco de Lai-Súru-Lau, sendo naturalmente guiados pelo tenente Pires e dedicadamente auxiliados por timorenses que lhes traziam alimentos e permanentemente os informavam dos movimentos dos japoneses.

Assim, chegou ao seu conhecimento que, após o assassinato do administrador de Manatuto [dr. João Mendes de Almeida, em 13 de novembro de 1942],e do secretário [Augusto Pereira] Padinha, haviam os japoneses passado em Vemasse, a caminho de Baucau, e, aquando ou depois da sua passagem, se tinha dado o assassinato do deportado sr. António Dias que vivia numa casa que possuía à beira da estrada de Manatuto a Baucau, num suco de Vemasse.

No dia seguinte ao da chegada dos japoneses a Baucau, uma coluna atingira Lautém onde então foram assassinados [em 17 de novembro de 1942] o administrador Manuel [Arroio E.] de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros], e dois deportados, os srs. António Teixeira e Mário Gonçalves [no dia seguinte].

O grupo de foragidos, de que faziam parte muitas mulheres e crianças, estava sob a permanente ameaça das colunas negras e, por isso, o tenente Pires contactando com um oficial australiano que se encontrava então por aqueles lados [1], conseguiu a sua evacuação para a Austrália num destroyer que veio ancorar na praia da Aliambata na noite de 18 de dezembro [de 1942].

Pressurosamente se apresentaram no local do embarque todos os foragidos, porém só foram autorizados a embarcar os constantes duma lista elaborada pelo tenente Pires, entre os quais todas as mulheres e crianças.

O sargento Martins, de metralhadora em punho, impediu, então a salvação de muitos dos homens, os quais teriam de ficar em Timor "para manter a soberania portuguesa naquela área e para auxiliarem as forças australianas que haveriam de vir a desembarcar na ilha".

Assim, o sr. Carraquico, o dr. [José Aníbal Torres] Correia Teles [médico] , o condutor de obras públicas, [Orlando] Vale do Rio Paiva, e vários outros, assistiram à partida das suas famílias e eles ficaram para ali, abandonados, fracionados em pequenos grupos para evitar as colunas negras que os perseguiam, mas amigável e caridosamente ajudados pelos timorenses da região.

Em breve os foragidos se sentiram cercados pelos japoneses que se instalaram em Ossú, Viqueque, Báguia e Quelicai, lançando colunas negras pelo interior.

Impôs-se-lhes, assim, a retirada para a zona litoral de Luca e Barique onde ainda não dominavam os nipónicos e havia locais propícios à ancoragem de embarcações que os viessem salvar, transportando-os para a Austrália.

Como a tropa japonesa patrulhasse incessantemente a estrada de Viqueque a Ossú, os foragidos só conseguiram atravessá-la divididos em pequenos grupos, altas horas da noite e guiados por dedicados amigos timorenses.

O grupo a que pertencia o sr. Carraquico foi acampar em Nátar-Bora, na região de Luca, e outros grupos ficaram por ali perto. Dois missionários [Padre António Manuel Serra e padre Júlio Augusto Ferreira], o secretário 
[de circunscrição José Luís] Howell de Mendonça e o chefe de posto Eugénio de Oliveira, juntaram-se ao deportado sr. Américo de Sousa [surrador, de profissão] e foram acolher-se à protecção de um chefe de um suco [2] ao qual pertencia a companheira do sr. Sousa e que também vinha com eles.

Em Nátar-Bora, o dr. Correia Teles que estava muito doente e extremamente debilitado, afastou-se momentaneamente dos seus companheiros e suicidou-se descalçando a bota alta e premindo o gatilho da caçadeira que trazia, com o dedo grande do pé, depois de ter apoiado os canos da espingarda contra o maxilar inferior.

Em janeiro de 1943 receberam os foragidos uma comunicação do dr. Cal Brandão (que se encontrava com militares australianos para os lados de Fátu-Berliu) , de que no dia 9 viria um navio à praia de Kirás, junto à foz da ribeira Sáhe, ao sul da povoação da Soibada, para evacuar para a Austrália os australianos e, também, os portugueses que por ali andavam.

Assim, na tarde do dia aprazado encontraram-se em Kirás algumas dezenas de portugueses com o dr. Cal Brandão e a tropa australiana comandada pelo major [Bernard] Callinan. Pelo dr. Cal Brandão foi então referido que o comandante australiano havia proibido o embarque ao aspirante [administrativo José] Armelim Mendonça, assim, como a toda a sua família, não lhes permitindo, sequer, a deslocação a Kirás! [3]

Por grande infelicidade, as duas primeiras baleeiras que chegaram à praia e eram as destinadas ao transporte dos portugueses, voltaram-se devido ao mar bravo, pelo que somente puderam embarcar muito poucos, juntamente com os militares australianos.

Lembra-se o sr. Carraquico de terem conseguido embarcar:

  • a esposa e filhas do tenente reformado Sequeira;
  • os cabos Rente chefe do posto do Remexio] e Robalo;
  • os enfermeiros Alfredo Borges e Marcelo Nunes;
  • o aspirante administrativo Artur Oliveira;
  • e os deportados Arsénio José Filipe, José Maria e Rodrigo Rodrigues.

Ficou em Timor uma secção australiana (16 militares), que, segundo o dr. Cal Brandão, se foi esconder nas montanhas de Fátu-Berliu com a incumbência de observar o movimento das tropas inimigas e dar informação pela TSF para a Austrália.

A situação dos portugueses foragidos era agora mais que nunca desesperada, pois as colunas negras continuamente os perseguiam. Forçados a esconder-se nos matagais pantanosos da planície de Barique onde os mosquitos que transmitem o paludismo constituem legião mortífera, estavam condenados a privarem-se de alimentos provenientes de plantas cultivadas pois esta zona é completamente despovoada devido aos timorenses evitarem nela residir por ser doentia.

Seguiram-se tempos dos mais desgraçados e miseráveis para aqueles infelizes que, minados pela fome e doença e sugados pelos mosquitos erravam pela floresta do litoral de Barique, colhendo frutos e raízes silvestres e apanhando a furto uma espiga em horta de há muito abandonada e, sempre, sob o terror das colunas negras que tanto os incomodavam.

Fracionados em pequenos grupos para mais facilmente poderem subsistir viam, pouco a pouco, cair em mortos de inanição ou de doença ou apanhados pelas colunas negras vários companheiros.

O enfermeiro Alcino Madeira, um seu irmão e o cunhado, tenente reformado Sequeira, resolveram afastar-se da costa sul e procurar abrigo entre timorenses seus amigos na terra da família Madeira, a Ermera. Puseram-se a caminho, mas todos cairam assassinados, não se sabendo, porém, onde nem como.

Também o cabo Acácio de Oliveira, o deportado sr. Severino Faria Coelho, o deportado sr. Manuel Simões Miranda e um enteado deste último, garoto de cerca de oito anos, se afastaram do grupo em que andavam para procurarem comida. Apanhados por uma coluna negra, todos foram assassinados com exceção do sr. Miranda que conseguiu escapar-se na ocasião mas que sucumbiu, depois, à fome.

O enfermeiro Fernando [José Maria] Senanes, ferido numa perna por uma bala disparada por uma coluna negra atacante, foi apanhado e assassinado à catana, sendo-lhe decepadas as mãos para se exporem como troféu no alto de uma azagaia! [na região de Luca, antes de 28 de fevereiro de 1943].

O velho sr. Delfim, que era nos tempos de paz o encarregado das oficinas dos Serviços de Obras Públicas em Díli, já não podia andar e, por isso ficara numa povoação timorense, ao cuidado de um chefe de suco, onde durante algum tempo foi muito bem tratado. Morreu intoxicado, porém, por lhe terem dado numa refeição mandioca brava, talvez no intuito de se apoderarem das patacas mexicanas que ele guardava numa faixa que lhe envolvia o abdómen e cujo volume se distinguia perfeitamente sob a camisa.

Em meados de fevereiro veio um submarino americano à praia da «alfândega» de Barique
 [4]  para evacuar para a Austrália todos os militares dessa nacionalidade e os timorenses de Ossuroa que os tinham auxiliado.

Neste mesmo navio embarcou também o tenente Pires; que só o fez depois de muito lho pedirem os seus companheiros e com o fim de instar na Austrália por socorro urgente aos portugueses.

Conta o dr. Cal Brandão que os australianos deixaram aos portugueses de Timor dois aparelhos transmissores e recetores de TSF e uma cifra para que pudessem continuar a comunicar com a estação de Port Darwin ficando a cargo do sargento-telegrafista da Armada, Luís de Sousa, adido à Missão Geográfica, no tempo de paz.

No grupo a que pertencia o sr. Carraquico andavam o cabo reformado Alexandre [B. Gomes] (por alcunha o «cabo Macau») e o enfermeiro Manuel Turquel dos Santos, os quais sofriam de enormes úlceras, nas pernas, instaladas em ferimentos devidos aos espinhos do mato que lhes rasgaram a carne durante as precipitadas correrias.

Num dado dia, foi o grupo atacado por uma coluna negra chefiada por japoneses e todos se puseram em fuga, sendo forçados a atravessarem uma ribeira de águas quase paradas mas funda. 

Passado o perigo e reunido de novo o grupo deram pela falta daqueles dois companheiros. Timorenses amigos lhes vieram depois comunicar terem encontrado os dois cadáveres boiando na ribeira. Deduziram que o afogamento teria sido motivado pela debilidade dos membros inferiores que não permitiu o aguentarem-se de pé nem a nado.

Deste mesmo grupo fazia também parte o soldado Mendes [ou António Mendes, cabo de infantaria ?] que andava transtornado mentalmente, parece que por ter explodido uma bomba muito perto de si. Veio a morrer, de fome e paludismo, pouco depois.

O sr. [Orlando] Vale do Rio Paiva, condutor de obras públicas, foi atingido por uma intoxicação geral que se manifestava por bolhas que se rompiam e ulceravam e em breve faleceu. 

O sr. Soares que no tempo de paz estava empregado na plantação do sr. Sebastião da Costa, no posto da Hera, fazia parte de um grupo de foragidos que foi atacado por uma coluna negra. Enervado, em vez de fugir, enfrentou a turba, de pistola em punho. Lançaram, então, contra ele uma granada de mão que o vitimou.

O Pe. Francisco Madeira andava num grupo de que fazia parte, além de outros, o deportado sr. Jacinto Estreia, e recebeu de um amigo timorense o presente de um cacho de bananas num momento em que se encontrava com desesperada fome. A abundante e não habitual refeição provocou-lhe, porém, uma indigestão que o vitimou.

Lembra-se, ainda, o sr. Carraquico de três portugueses europeus que morreram à fome, «só com pele e osso», na costa sul. Foram eles, o sr. Venceslau Pereira (escrivão do tribunal de Díli) , o deportado sr. Mário Vitorino Enguiça e outro deportado conhecido pelo apelido de «Silvinha» , o qual nos seus últimos tempos ficou cego devido às privações.

Em princípios de julho 
[de 1943] o tenente Pires voltou da Austrália num submarino americano dando a notícia de que em breve viria um navio evacuar os portugueses foragidos. Pela TSF combinaram estes com os autralianos que o local do embarque fosse a já referida «alfândega» de Barique [4] e o dia escolhido, o de 3 de agosto.

Com efeito, pelas 5 horas da tarde desse dia, ancoraram duas «vedetas» australianas onde embarcaram as seguintes pessoas de que o sr. Carraquico se recorda:

(i) Deportados: 

  • dr. Carlos Cal Brandão, 
  • Joaquim Carraquico, 
  • Jacinto Estrela,
  • Domingos Paiva,
  •  Paulo Soares, 
  • Hilário Gonçalves, 
  • Álvaro Damas, 
  • Francisco Horta, 
  • José Luís de Abreu, 
  • Bernardino Dias, 
  • Hermenegildo Granadeiro, 
  • António Pereira (e esposa), 
  • Pedro de Jesus (e família), 
  • Francisco Albuquerque (e esposa)

(ii) Sargentos: 

  • Lourenço Martins, 
  •  José Arranhado, 
  •  Luís de Sousa

(iii) Cabos: 

  • José Pires (chefe do posto de Lacluta) e família, 
  • Ilídio dos Santos
  •  José Rebelo

(iv) Outros: 

  • Eduardo Gamboa (Chefe de posto), 
  • António Sebastião da Costa, 
  • Henrique Pereira, 
  • Fernando Pereira, 
  • Joaquim Campos (Funcionário das Obras Públicas), 
  • Abel Cidrais (Funcionário das Obras Públicas),
  • 0 Sr. Sousa (natural da Índia Portuguesa),
  • duas filhas do falecido sr. Manuel Simões Miranda,
  • dois chineses,
  • vários timorenses dos dois sexos

Em Timor ficou um grupo de voluntários, em missão, de observação, de que faziam parte os seguintes portugueses: 

  • Tenente Pires, 
  • Chefe de posto Matos e Silva, 
  • Chefe de posto  José  [Plínio dos Santos] Tinoco   [morto na cadeia de Díli, em 8 de abril de 1944] 
  • Enfermeiro Serafim  [JOaquim] Pinto  [morto na cadeia de Díli, antes  de 29 de abril de 1944] 
  • Radiotelegrafista Patrício Luz ,
  • Soldado  [ou cabo de infantaria ?]  João Vieira. 

Julga-se que todos eles morreram na prisão japonesa   [em 1944]  com exceção do sr. Patrício Luz que se escondeu entre timorenses amigos da sua família. 

Dos portugueses que conseguiram passar para a Austrália, aí faleceram os seguintes: 

  • Coronel Jorge Castilho  [5],
  • Sargento Gastão Ornelas de Vasconcelos,
  • Joaquim Campos,
  • António Sebastião da Costa,
  • Sr. Cachaço (empregado do sr. Sebastião da Costa),
  • Sr. Santos (olheiro das Obras Públicas),
  • Um menino timorense.

Teve o sr. Carraquico conhecimento de alguns pormenores de assassinatos de portugueses, os quais amavelmente me referiu. Pelo cabo Rente, que era o chefe do posto do Remexio, soube dos assassinatos dos deportados srs. Ramos Graça e Fernando Martins.

O cadáver do primeiro foi encontrado retalhado à catana japonesa de tal modo que estava irreconhecível. Os japoneses haviam-no abandonado numa ravina não longe da casa em que o sr. Ramos Graça habitava.

Quanto ao sr. Fernando Martins (que era coxo por ter um joelho anquilosado e com a perna fletida) , havia-se juntado a uma guerrilha australiana que actuava na área do Remexio. Passando o grupo por um acampamento japonês instalado num local situado entre o Remexio e Díli, notaram que as sentinelas estavam a dormir, o que aproveitaram para se aproximarem e lançarem uma granada de mão para o meio do acampamento.

Então, os japoneses perseguiram-nos e alcançaram o sr. Martins ao qual prenderam com uma corda pelo pescoço a um cavalo e assim o arrastaram até Díli e o abandonaram na praia, onde o sargento Vicente, chefe da polícia, somente pôde reconhecer o cadáver pelo aleijão do joelho.

Soube também o sr. Carraquico como foi assassinado o alferes reformado Alípio Ferreira que vivia em Cribas com a sua esposa timorense, um filho adulto e uma filha muito gentil e elegante. Quando por sua casa passou a coluna do tenente Ramalho que havia combatido os rebeldes de Maubisse, o alferes Ferreira, profundo amigo dos timorenses, pediu ao comandante que lhe deixasse ficar à sua protecção um rapazinho timorense que ele tinha recolhido por já não ter pai nem mãe.

Após o assassinato de europeus em Manatuto, o alferes Ferreira refugiou-se numa palhota bem escondida no mato, protegido pelo sigilo dos seus amigos timorenses. Porém, era necessário sair dela e ir a uma certa distância para trazer a água essencial para a vida da família e disso era encarregado o garotito de Maubisse.

Ora, num dado dia, deu-se a fatal coincidência de este ter encontrado no seu caminho uma coluna negra em que vinham timorenses da sua terra, que logo o reconheceram. Inocentemente, indicou-lhes o abrigo do seu protetor que logo foi assassinado juntamente com o filho [Alberto Ferreira], escapando incólumes a esposa e a filha.

Sobre os assassinatos de portugueses na circunscrição de Lautém após a chegada de japoneses, referiu-me o sr. Carraquico ter-Ihe constado, dias depois, que em Lautém haviam sido mortos o administrador Manuel [Arroio E. ]de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros] e os deportados Mário Gonçalves e António Teixeira e, em Iliómar, o chefe do posto, cabo [João ] Brás e o deportado Raul Dias Monteiro.

Acrescentou, então, que eu poderia ser devidamente esclarecido sobre esses bárbaros acontecimentos pelo sr. César de Castro [serralheiro ] que eu conhecera deportado em Timor e agora reside na Cova da Piedade. Com a melhor vontade se prontificou o sr. Castro a rememorar a tragédia de que foi figurante e da qual é o único europeu sobrevivente.

Aproveitando as qualidades do sr. César de Castro, hábil serralheiro, o Estado havia-o contratado 
[6 ] para exercer as funções de encarregado da fábrica de serração de madeira instalada em Loré (na área do posto de Iliómar e na costa sul) , junto à principal e mais rica floresta de Timor . Raras vezes ele se poderia deslocar a Lautém pois que, além do percurso a cavalo demorar cerca de dois dias, ele era o único responsável por todos os serviços da fábrica, competindo-lhe a direcção, administração, contabilidade, etc.

Porém, em novembro de 1942, apresentou-se em Loré o deportado sr. José Filipe, recomendado pelo administrador Barros para trabalhar junto do sr. Castro, o que permitiu a este deixá-lo a vigiar os trabalhos na fábrica e seguir para Lautem para apresentar contas ao administrador, receber os salários, etc, e tratar de assuntos da sua vida particular.

Chegado à vila na manhã do dia 15 foi instalar-se em casa do deportado Luís Maria Félix que exercia as funções de olheiro da circunscrição. Por este seu amigo foi então informado de que não havia comunicações telefónicas para oeste de Lautem, nada se sabendo pois do que se passava no resto de Timor [7].

Apresentou-se, em seguida, na secretaria da circunscrição tendo-o o administrador convidado para almoçar em sua casa, o que não pôde aceitar por estar comprometido a ir tomar a refeição com um comerciante chinês, juntamente com o sr. Luís Félix.

À tarde, quando os dois amigos conversavam na varanda da residência do sr. Félix, ouviram um tiro, sendo em breve informados por timorenses que passavam espavoridos que os japoneses haviam chegado e morto a tiro o sr. Mário Gonçalves [deportado] . Imediatamente a família do sr. Félix (companheira timorense e dois filhos) se pôs em fuga para os arredores e logo apareceram militares japoneses que se instalaram na casa, destinando um quarto para os dois europeus e dando-lhes ordem de não se afastarem do local.

Assim se passaram oito dias em que eles se mantiveram isolados, eles próprios cozinhando a sua comida. Passado este tempo, os japoneses avisaram-nos que seguiriam para Baucau no dia seguinte.

Assim, o sr. Félix conseguiu disso avisar a família que logo voltou do mato e com os europeus foi metida numa camioneta. Em Baucau embarcaram numa lancha de desembarque que os levou a Díli.

Seguiram depois para a zona de concentração de Liquiçá onde o sr. Félix veio a morrer de beribéri [em 10 de junho de 1945] e o sr. Castro se manteve até ao fim da guerra.

Segundo timorenses contaram à companheira do sr. Félix, o deportado Mário Gonçalves havia, por acaso, saído a cavalo para os arredores da vila quando a tropa japonesa que chegava o encontrou. Mandaram-no desmontar e meteram-no numa camioneta, levando-o para Lautém onde o encerraram na casa de um comerciante chinês. Tendo ele pedido licença para ir tomar banho à praia, esta foi-lhe concedida, o que não obstou ser abatido a tiro no trajeto!

Das circunstâncias em que se deram as mortes do administrador Barros e da esposa e do deportado António Teixeira [8] nada soube o sr. Castro, nem na ocasião nem depois.

Segundo na época dos acontecimentos constou ao sr. Carraquico, o administrador foi assassinado após a chegada dos japoneses à vila, seguindo-se-lhe na mesma sorte a sua esposa, mas por ela o ter insistentemente requerido aos algozes de seu marido, pois queria morrer com ele.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, título: LG)

___________


Notas do autor (complementadas pelo editor):

(1) Segundo o dr. Cal Brandão (Funo, Porto, 1946,  p. 115), tratava-se do capitão Brothers, inglês, chefe de um grupo da Inteligência Militar Australiana, que se havia instalado junto da habitação do liurai D. Paulo, de Ossuroa, na área do posto administrativo de Ossú.

(2) Segundo um louvor conferido pelo Governador, tratava-se do chefe do suco de Umuai de Baixo, área do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares. 
 ["Conservou  escondidos em sua casa, com grave risco de vida, os padres Serra e Ferreira, o secretário Mendonça e o aspirante  Eigénio de Oliveira durante dois meses, mostrabdo-se sempre leal e dedicado português. Tendo-lhe sido  confiado dinheiro (180  libras) pelo secretário Mendonça, no fim da guerra entregiu  integralmente a quantia que havia recebido"... Fonte:   antigo Governador Ferreira de Carvalho, "Relatório dos Acontecimentos de Timor", Lisboa,  junho de 1947] 

(3) O aspirante administrativo José Armelim Mendonça prestava serviço na sede da circunscrição de Manatuto. Deve ter-se refugiado com a sua família no interior dessa circunscrição, depois, segundo conta o dr. Cal Brandão, apresentou-se aos australianos na área de Fátu-Berliu, pedindo ajuda económica.

(4) O local era assim designado pelos timorenses por ai existirem uns barracões onde aguardavam transporte para Dili, os géneros que embarcações lá vinham carregar.

(5)  O coronel da aeronáutica Jorge de Castilho, descendente de António Feliciano de Castilho, foi o ilustre capitão encarregado da navegação aérea no hidroavião «Argus» comandado por Sarmento de Beires. Colaborador e íntimo amigo do almirante Gago Coutinho, era uma personagem de excepcional valor, brilhando sempre pela sua cultura e agudez do seu espírito.

(6) Em1927 chegaram a Timor 80 deportados, acusados de pertencerem a uma organização "bombista", a "Legião Vermelha", muitos deles operários e artesãos. O governador Teófilo Duarte (1928-1929) aproveitou, habilmente, as suas competências profissionais e deu-lhes emprego na ilha. Havia ainda um pequeno grupo de presos, oriundos de Macau. Estes deportados eram chamados "socais", para os distinguir dos "políticos", como dr.Carlos Cal-Brandão, envolvidos em ações contra a Ditadura Militar,em 1931. Ao todo deveriam ser quase uma centena, os deportados em Timor. (LG).

(7) A linha telefónica havia sido cortada pelos japoneses em Baucau, após a sua chegada à vila. Porém os de Lautém estavam longe de imaginar o que sucedera.

(8) O sr. António Teixeira, natural da Ilha da Madeira, exercia em Lautém atividades de pesca. Era geralmente conhecido pelo «António Ilhéu».



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a eufemisticamente chamada zona de proteção,  , imposta aos portugueses pelo exército nipónico (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25909: Timor: passado e presente (20): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XI: 1945, o ano da libertação ! (pp. 87-101)


Assistência â cerimónua de homenagem aos mortos da guerra em Timor (23 de setembro de 1945) (pág. 99)... "Ao centro, vê-se o governador Ferreira de Carvalho, fardado de capitão do exército português, lendo o seu discurso perante o brigadeiro Dyke, que está de costas para o observador, assim como dois oficiais australianos colocados mais atrás dele. 


O Mastro da Bandeira da Soberania na Praia de Díli, em 23 de setembro de 1945  (pág. 96)



Restos do destruído edifício destruído da Cãmara Municipald e Timor (Setembro de 1945) (pág.  103)


Fonte: José  dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa: Livraria Portugal, 1972)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.





Capa do livro de Carlos Vieira da Rocha,
" Timor: ocupação japonesa dirante a Segunda Guerra Mundial,
2ª ed rev e aum, Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1996 309 pp.





Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive. Recorremos também a outras fontes,nomeadamennte, Rocha (1996).


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte XI:    1945, o ano da libertação (pp. 87-101)

 

(i) 1945 vai ser um ano de grandes emoções para a população de Timor, e não só: a tão almejada paz chega ao território, 
com o fim da guerra  e a rendição dos japoneses aos Aliados...

A soberania da colónia volta a estar em mãos portuguesas. Nesses três anos e meio de ocupação do território pelas tropas do Império do Sol Nascente, morreram perto de um centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a *Portugal), mortos em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato.  Sem falar das muitas  dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos.



(...) Entrou o novo ano com o fornecimento pelos japoneses de algum arroz, com casca, tal como era produzido pelos timorenses que o designam com a palavra «néli», em tétum. 

 Se, por um lado, foi motivo de satisfação o vermos géneros frescos que poderíamos consumir, parando com a ingestão do arroz e mandioca podres que nos meses anteriores nos tinham fornecido, por outro tínhamos mais um motivo de preocupação. Para despojar os grãos de arroz da sua casca só havia o primitivo meio de o bater, à maneira timorense, com um pilão. Ora, se já estávamos enfraquecidos pela prolongada privação de alimentos suficientes, mais certamente o ficaríamos com o esforço a que a preparação do "néli" nos obrigaria. Mas não houve que hesitar e muitos tiveram de dar a sua quota-parte a esse trabalho que nunca, por certo, haveriam sonhado ter de executar. 

 Os bombardeamentos aliados a Lahane esmoreceram, felizmente, neste mês de janeiro, registando-se unicamente dois, e já mais longe do hospital e do palácio. 

 Somente no fim da guerra soubemos que o Engenheiro Canto havia falecido no dia 23 de fevereiro.  Preso, com o gerente Duarte em 10 de julho anterior, encontrara no quartel da Kempy, em Díli, o tenente Liberato e o aspirante administrativo José Santa, tendo todos sido embarcados, em seguida, num pequeno vapor que os levou à ilha holandesa de Alor, onde ficaram encurralados num armazém da sua capital, a vila de Kalabai, vedado a arame farpado. 

 Aí passaram «vida de inenarrável sofrimento e miséria», pois, pouco a pouco os «quiseram matar à fome» (1). 

  • «Outro não podia ser o propósito de quem os tratava com tamanha crueldade»;
  • «Davam-lhes tigelas com três ou quatro colheres de arroz cobrindo o fundo estreito e afunilado da pequena vasilha» e «so isto»!; 
  • "Esperavam que, passados três meses de cativeiro, os japoneses os restituíssem à liberdade, Mas em lugar de libertação, os algozes presentearam-nos com o agravamento do regime alimentar»;
  • «A fome era insuportável. Aquilo não podia continuar assim» . 


Artur do Canto
 Resende
(1897-1945)

(...) Minados pelo paludismo, avitaminoses e miséria, sucumbiram o Engenheiro, com evidentes sintomas de escorbuto e beribéri, e o Gerente, um mês depois, 
a 25 de março [de 1945] .

 Em meados de março fui visitado pelo vice-cônsul, senhor Ycshitaro Susúki que me pediu o favor de ir examinar o cônsul Sotaro Hossokawa que se encontrava gravemente doente na casa do consulado, antiga propriedade do capitão-farmacêutico Oliveira situada perto do hospital de Lahane, do outro lado da ribeira. 

Pedida telefonicamente a necessária autorização para este ato humanitário, ao Governador, que imediatamente a concedeu, acompanhei o vice-cônsul e encontrei o seu superior hierárquico prostrado no leito, diagnosticando-lhe uma tuberculose pulmonar aguda para a qual, nesse tempo, não havia possibilidade de cura. Faleceu no dia 21 de junho, conforme me informou o senhor Suzuki que daí em diante o substituiu no consulado. (...)

(ii) Começa a haveralguns  indícios de abrandamento da desumabnidade do regime de detenção 
imposto aos portugueses, 
concentrados na zona de Liquição-Maubara,
 e completamente isolados do mundo desde meados de 1943.


 (...) Subitamente, no mês de agosto [de 1945]  , os japoneses pareceram ínteressar-se pela melhoria da situação alimentar dos portugueses concentrados, comunicando ao capitão Vieira que tinham preparado acomodações para eles, na plantação de Lebomeu da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, não longe de Fátu Béssi, onde obteriam facilmente os géneros alimentícios necessários à sua subsistência produzidos pelos agricultores daquela Sociedade. 

 Desta vez, expuseram sinceramente os seus desígnios e cumpriram a sua palavra. Partiram os portugueses de Liquiçá, em transporte fornecido pelos nipónicos, no dia 15, para Lebomeu, onde encontraram habitações suficientes, recentemente construídas. Foi, então, pelo Governador nomeado chefe do reeém-criado posto de Lebomeu o sargento António Joaquim Vicente que se encontrava a viver no hospital de Lahane. 

 Situada a média altitude, com clima agradabilíssimo e fresca e límpida água de nascente, a povoação teria condições quase ideais para a vida de europeus se não fora um inconveniente que logo se revelou mas que, por certo, era imprevisível para não-timorenses. Haviam as habitações sido construídas à maneira e com materiais locais, com telhados de folhas de palmeira, tabiques de madeira da palmeira chamada em Timor «palapeira» e forro de tiras de bambu. 

 Ora, as casas timorenses reeém-construídas não podem ser habitadas, sem que nelas sejam previamente acesas grandes fogueiras durante muitas horas, isto para secar as suas madeiras que, deste modo, não são atacadas pelo caruncho, o qual imediatamente as corrói, quando cortadas verdes. 

 Assim, ao instalarem-se os portugueses nas suas novíssimas residências, encontraram o pavimento coberto de pó da madeira roída pelo caruncho, o qual caía do teto durante o dia e sobretudo os incomodava à noite, quando deitados, penetrando pelas narinas e irritando-lhes as mucosas das vias respiratórias.  (...)

 
(iii) Em 28 de agosto o tenente Liberato e o aspirante José Santa são libertados, depois do cativeiro na ilha de Alor, na parte holandesa. 
A sua sobrevpvência , após 17 meses cativeiro,  surpreendeu tudo e todos.


(...) Em Lahane eontinuava-se como anteriormente, embora sentíssemos que a situação em Lebomeu parecia ser razoável, comparada com os tempos passados. Desconhecendo, por completo, o que se passava no Mundo, em especial na zona de guerra, tínhamos, agora, mais esperança que ela não se prolongasse indefinidamente e de que pudéssemos, ainda, sobreviver, pois os japoneses pareciam estar a tratar-nos com uns lampejos de humanidade. 

No dia 28 de agosto tivemos o primeiro sinal de possível acabamento do nosso martírio. Pelas cinco horas da tarde, chegou ao hospital o capitão Vieira trazendo no seu carro dois homens que, depois duns momentos de dúvida e estupefacção, reconhecemos como o tenente Liberato e o senhor José Santa, apesar de estarem completamente desfigurados. 

Magríssimos, mas com edemas beribéricos na face e nas mãos, sem cor, olhar apático, mal se sustendo nas fragilíssimas pernas, satisfizeram-nos a ansiada curiosidade contando-nos, em primeiro lugar as mortes do engenheiro Canto e do gerente Duarte e a sua odisseia em Kalabai. Depois, haviam sido obrigados a caminhar, durante muitos dias, por serem transferidos para Macuada onde passaram «dois meses de fome e miséria, sessenta dias de amargura, iguais aos já vividos naquela infindável peregrinação de desterrados». (1)  

E assim foi passando o tempo, seu estado era deplorável. Corroídos pelo paludismo, minados pelo beribéri, definhados pela fome, sem esperanças de sair daquele inferno, caíram num estado de abatimento extremo. Só um milagre poderia salvá-los E o milagre deu-se. (1) . No dia 22 de agosto, comunicaram-lhes que iriam regressar a Timor e deram-lhes géneros para eles próprios cozinharem. 

 Na manhã seguinte, quatro indígenas trouxeram uma padiola para transportar o tenente Liberato, Depois duma marcha de cinco dias chegaram à praia, à qual os veio buscar uma lancha que os desembarcou em Díli, no dia 28. Levaram-nos para o quartel da Kempy [a polícia política] onde o sargento Nerita lhes deu de almoçar e uns calções ao senhor Santa, para substituir os andrajos que em parte o cobriam, nada tendo encontrado que servisse ao tenente Liberato (1).

 De tarde, conduziram-nos ao consulado nipónico. Ali jantaram e pernoitaram e ali os foi encontrar o capitão Vieira que, por acaso, aparecera a tratar da qualquer assunto (1) . 

No dia 29, apareceu o Governador, que exigiu a sua libertação, sendo entregues pelo vice-cônsul, senhor Suzuki. Seguiram de automóvel para o palácio onde almoçaram e foram cumulados de atenções pela família do Governador, o qual dera ao tenente Liberato um par de calças e uma camisa, ficando em condições de se apresentar (1) . 

De tarde, o capitão Vieira foi levá-los ao hospital onde a todos nos encontraram, «magros, macilentos, quase irreconhecíveis, sinais evidentes do muito que tínhamos passado, durante aqueles inolvidáveis anos sob o domínio japonês» (1). 

 Descreve com todo o realismo, o tenente Liberato, num dos seus livros (1),  as impressões que nos causou a aparição daqueles dois fantasmas no hospital. 

«A nossa chegada surpreendeu-os. Não nos julgavam vivos. Todos conheciam a crueldade dos nipónicos, adivinhavam a vida horrível, de fome e de torturas imposta àqueles que tinham a desdita de caírem nas suas masmorras. Por lá tinham passado dois ou três portugueses. Por lá os tinham conservado um mês, mês e meio, o máximo. E em que estado eles tinham voltado ao convívio dos seus compatriotas, santo Deus! Não! Era impossível resistir dezassete meses àquela vida de inferno. Só forças sobrehumanas poderiam vencer tamanho martírio!». (...)

(iv) Em 1 de setembro, perante a incredulidade de todos (completamenmte isolados do mundo desde julho de 1943), 
sabe-se a notícia do armistício. 

(...) No dia 1 de setembro, ao anoitecer, surgiu no hospital o automóvel do Governador, que o guiava, e era acompanhado pelo capitão Vieira e tenente Alves.  Imediatamente reunidos numa sala ouvimos, estupefactos, a quase inacreditável, mas sempre ansiada notícia, de que a guerra havia terminado. O coronel Yoshioka, comandante das tropas japonesas, havia-se dirigido ao palácio e comunicado oficialmente que tinha sido assinado um armistício entre os beligerantes, cessando assim as hostilidades no Oriente. 

 A nossa primeira reação foi de dúvida e até de incredulidade, para alguns, pois, completamente isolados do mundo, desde meados de julho de 1943 e habituados às falsidades dos nipónicos, fundadamente pensávamos poder tratar-se de mais uma mentira por eles forjada para atingirem malévolos fins. 

 Era, porém, verdade, como depois soubemos, faltando-lhe, somente, o essencial pormenor de que o Japão se havia rendido aos aliados, sem condições, no dia 15 de agosto, segundo declaração do imperador Hiro-Hito. 

Destruída a cidade de Hiroshima por uma bomba, de novo tipo, de efeitos terrivelmente desencorajantes, o governo japonês não pedira a paz e, por isso, fora lançada outra sobre Nagasaki, no seguinte dia 9, o que motivou a decisão do Imperador. 

 A rendição incondicional das forças nopónicas foi assinada em Manilla, no dia 2 de setembro, a bordo do couraçado americano «Missouri», onde o general Mac Arthur a recebeu de uma deputação do governo japonês constituída por dezasseis membros que aí se dirigiram para o efeito. 

 Manhã cedo do dia 3 de setembro, o Governador partiu para Lebomeu, a comunicar a maravilhosa notícia aos concentrados. Em todo o seu percurso, à ida e à volta, recebeu vibrantes aclamações dos compatriotas timorenses e, em Lebomeu, a cena revestiu-se de indescritível emoção e ardor patriótico, segundo o dr. Tarroso Gomes me referiu (2). 

 «Não é fácil descrever o entusiasmo que se apoderou daquela gente tão profundamente atingida pela carência de tudo, com os ossos a desenharem-se por debaixo da pele, ao ouvir da boca do governador que o seu martírio terminara. 

 «Reunidos todos na barraca que servia de Administração, o governador dirigiu-lhes a palavra, começando por evocar a memória dos que tinham caído pelo caminho, vítimas da sua dedicação e do seu patriotismo e com uma referência especial ao engenheiro Artur do Canto Resende, o qual, em circunstâncias bem difíceis, oferecera o seu concurso desinteressado e de cuja morte se tivera conhecimento momentos antes. 

"Terminando as suas palavras, entrecortadas por vezes de soluços de comoção, o governador levantou um viva a Pátria, correspondido por todos com o maior entusiasmo e logo seguido, sem se explicar como, pelo hino nacional, cantado em coro por todos, hmens e mulheres, crianças e velhos, no meio da mais profunda emoção e cem lágrimas a correrem pelas faces de todos

 «Passados os instantes de júbilo, tratou-se logo de traçar as bases para reocupar rapidamente todo o território da província. E aqueles que, pouco antes, pareciam incapazes de qualquer esforço, levantaram-se como um só homem e ofereceram-se para cumprir essa missão. Todos queriam ser úteis e só houve dificuldades na escolha. Quando o governador peeguntou: «E agora podemos reocupar todo o nosso território?», a resposta saiu nítida, firme, numa manifestação de energia e de anseio de cooperar na missão desejada: «Vamos todos, cada um para o seu lugar. Para isso ainda chegamos». 

 (v) O Governador rapidamente decide a reocupação da ilha, 
de modo a garantir no terreno a soberania de Portugal.


(...) De regresso da sua feliz viagem, aguardavam o Governador, acompanhados das suas gentes, os liurais [régulos] .
de Díli, de Laulara e de Aileu, que sentidamente o aclamaram e saudaram. Nos dias imediatos não pararam de chegar,  à residência do governador, chefes timorenses de regiões mais distantes, à frente da sua gente e radiantes de felicidade por poderem manifestar a sua dedicação. 

 Segundo o Governador me referiu, «todos vinham contentes, de uma alegria que não engana, e todos manifestaram o desejo do nosso rápido regresso aos postos do interior, onde as populações nos aguardavam ansiosas». 

Não perdeu tempo o Governador em organizar a reocupação, declarando a Colónia em regime de administração militar e dividida no concelho de Díli e nas circunscrições do Suro (Aileu), Manatuto, S. Domingos (Baucau), Lautem e Fronteira (Bobonaro). 

Todos os reocupantes, funcionários ou voluntários, ficariam subordinados, em cada zona administrativa, ao intendente militar, oficial do exército do activo ou reformado. 

 Encarregou-me o Governador de tomar as providências para uma reocupação sanitária eficiente. Rapidamente elaborei um plano que por ele foi aprovado sem restrições. Todos os enfermeiros disponíveis seguiriam com os intendentes militares e prestariam serviço da sua especialidade em ambulâncias que instalariam nos locais predeterminados por mim, servindo-se dos medicamentos e material de penso e de pequena cirurgia que a todos foram entregues, na mesma qualidade e quantidade. 

 Aos dois únicos médicos sobreviventes, que também se ofereceram para participar da reocupação, ordenou o Governador a permanência nas ambulâncias de Lahane e de Liquiçá, prontos a actuar em qualquer emergência, deslocando-se aos locais onde a sua presença se mostrasse conveniente. 

 As principais dificuldades da obra da reocupação consistiram na ausência de pessoal especializado e do necessário material para o transporte das gentes. A segunda, desapareceu com a entrega pelos japoneses, no dia 6 de setembro, de razoável quantidade de gasolina e óleo e de três automóveis, nove camionetas de dois mil quilos e de um carro-oficina.

A primeira, também foi facilmente eliminada, pois logo surgiram voluntários, em especial deportados, com que se improvisaram motoristas e mecânicos que se mostraram completamente à altura das suas tarefas. 

 (...) Por fim, os japoneses começam a evacuar a ilha, a partir de 6 de setembro... A reocupação dos postos-chave da adminitração do território faz-se em tempo recorde (catorze dias) 
por um escasso número de duas centenas de homens, funcionários e voluntários, incluindo deportados.

Neste mesmo dia, 6 de setembro,  começaram os japoneses a evacuar a ilha, seguindo em barcaças de desembarque para a ilha de Alor e outros, por terra, para a parte holandesa de Timor. 

 Para poder oficializar as suas determinações, lançou o Governador mão do recurso de me nomear vogal oficial do Conselho do Governo e da sua secção permanente, podendo assim, esta última, passar a funcionar novamente. 

 Assim, foi colocado nas várias circunscrições e postos o pessoal necessário para se fazer a reocupação. Para preencher os cargos indispensáveis houve que lançar mão de funcionários do activo, reformados militares, funcionários aposentados e até de particulares, porque não havia outros. 

 Em 9 de setembro chegou a Lahane o primeiro pessoal de Lebomeu, ficando em 10 aí reunidas as equipas de reocupação dos postos administrativos do concelho de Dili e da circunscrição do Suro. 

 Neste mesmo dia 10 chegou a Díli uma estação-rádio que os japoneses haviam mandado vir de Koepang, a pedido do Governador,  e que em seguida nos entregaram. Dela imediatamente se encarregou o único radiotelegrafista de que dispúnhamos, Alarico Guterres Fernandes, que o Governador tinha mandado vir, dias antes, do território de Oecússi. 

 Concluído todo o trabalho de organização da reocupação no dia 11 à noite, iniciou-se esse serviço na manhã de 12, pelos postos de Liquiçá e Maubara, com a partida para esses locais das equipas respetivas. 

Nesta mesma manhã o Governador voltou a Liquiçá e a Maubara. Nesta última localidade agradeceu e louvou ao liurai, coronel José Nunes a sua extrema lealdade, convidando-o a içar no mastro do posto a bandeira nacional, como justo prémio da sua dedicação. 

 Ao fim da tarde do dia 12 sentimos em Lahane o estampido de várias explosões, elevando-se uma enorme nuvem de fumo para os lados de Tai-Béssi. Soubemos depois que os japoneses haviam lançado fogo ao seu parque automóvel, constituído por mais de trezentas viaturas. Na noite de 13 conseguiu o radiotelegrafista Alarico comunicar com a estação de Macau, o que permitiu a expedição de telegramas para Lisboa e a receção de comunicações do Governo.

 Nesse mesmo dia ficou completada a reocupação dos postos administrativos do concelho de Díli, cujo intendente militar era o capitão Vieira, pela instalação em Laulara do chefe de posto Torresão com o pessoal respectivo. 

 Em 14, o tenente reformado José Augusto Gomes, intendente militar do Suro, participou ao Governador a completa reocupação desta circunscrição. 

 Na manhã do dia 15 partiu para Bobonaro a equipa de reocupação da circunscrição da Fronteira, chefiada pelo intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes, a qual aí chegou à noite. 

Somente em 17 à tarde se conseguiu reunir em Lahane as três equipas destinadas às circunscrições de leste que partiram, simultaneamente, a 18. 

 Ao meio dia, chegaram a Manatuto, onde ficou a equipa chefiada pelo tenente reformado José Afonso Ribeiro. A equipa de reocupação da circunscrição de S. Domingos, chefiada pelo tenente António de Oliveira Liberato,  alcançou Baucau às 17 horas. 

A equipa de Lautem, chefiada pelo tenente Jaime Hermínio Ramalho dos Santos, ficou em Baucau nessa noite e, às 11 horas e quarenta minutos do dia 19 de setembro, alcançava a sede da circunscrição. 

 Ficou assim concluída a reocupação total da colónia, levada a efeito sem armas, por um grupo de:
  •  163 portugueses não-timorenses;
  • 19 funcionários timorenses;
  • e 14 assalariados permanentes timorenses, 

que tantos foram os que permaneciam em Timor e se apresentaram ao serviço até ao final da reocupação, no período exacto de catorze dias contados da data em que foi comunicada a libertação completa da colónia. 

 Dos não-timorenses (n=163):

  • 81 foram ocupar os vários postos administrativos, fazendo a sua reocupação administrativa, missionária e sanitária; 
  • 37 ficaram em Lahane trabalhando nos vários serviços da colónia; 
  • 19 reocuparam as suas propriedades agrícolas em Maubara e Fátu-Béssi;
  •  e 26 não puderam, pelo seu precário estado de saúde, ser utilizados, de momento, em qualquer serviço. 

 «Isto só foi possível mercê do extraordinário patriotismo desse punhado de portugueses que, apesar de doentes na sua quase totalidade e de todos estarem fortemente depauperados e num estado de magreza que quase os tornava irreconhecíveis, souberam encontrar na sua excecional vontade de bem-servir a energia suficiente para produzirem um esforço que seria muito grande mesmo para quem estivesse em condições normais. 

"A reocupação de Timor, feita nas condições em que o foi, e justo título de orgulho para quem nela interveio, e foi, sem dúvida, uma alta afirmação perante o Mundo da excelência dos nossos meios de colonização» (3) . 

 Em todos os locais da colónia foram recebidos os reocpantes com as mais sinceras e profundas demonstrações de amizade e carinho pelos povos timorenses, não se tendo registado qualquer incidente que perturbasse o ambiente de euforia do reencontro, todos irmanados por um puro ideal de fraternidade e paz. 


(v)  O dr. Cal Brandão regressa da Austrália e conta-nos, no seu livro de memórias, como foram os emocioantes últimos dias de setembro de 1945: a homenagem, conjunta, por portugueses, timorenses e australianos de homenagem aos mortos; o hastear da bandeira portuguesa; a notícia,  a 25, de que dois dias depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco,
vindos de Lourenço Marques. 


 (...) Na manhã do dia 22 de setembro, amarou na baía de Díli um grande hidroavião australiano, depois de ter circumnavegado em saudação, por três vezes, a cidade onde se erguia altaneiro mastro com a bandeira nacional hasteada, construído e levantado sob a direcção do deportado, senhor Serafim Martins (4).

 Passou o hidroavião, também, pelo hospital de Lahane, inclinando-se lateralmente em saudação à bandeira de Portugal, que nele sempre tremulara durante a guerra, correspondendo aos acenos amigos que todos nós lhe dirigíamos.

 Passadas duas horas, chegou ao hospital um automóvel do Governador, do qual desceram dois soldados australianos, desarmados, e o dr. Cal Brandão, com o qual eu sempre tivera relações de simpática cortesia, após apresentação recíproca do nosso comum amigo dr. Correia Teles. 

 De pouco tempo dispunha para estar connosco nesta visita que fazia ao hospital para poder abraçar os seus cunhados, senhores José Santa e Vítor Santa. Assim, foi de fugida que nos referiu alguns acontecimentos que se tinham passado e dos quais não poderíamos ter tido qualquer notícia. 

 O coronel Castilho havia falecido na Austrália,  vitimado por tuberculose pulmonar,  e o padre Jaime Garcia Goulart era, agora, o bispo de Timor, por nomeação pontifícia. Os Aliados haviam derrotado e esmagado todos os seus inimigos. Do livro do Dr. Cal Brandão (4) extraio alguns elementos sobre a sua vinda da Austrália, no fim da guerra. 

 Um representante do Ministério dos Estrangeiros australiano, mr. Forsyth, convidara-o a acompanhá-lo a Timor, como seu intérprete, fazendo também parte do grupo mr. Manderson, um australiano que, anos antes, vivera nessa nossa província e falava português. 

 Viajaram em avião de Sidney para Port Darwin e daqui, embarcados num hidroavião «Catalina» seguiram para Koepang, ao encontro do brigadeiro Dyke que nesta cidade recebera a rendição do general-comandante das tropas japonesas, em todo o Timor (5) , no dia 11 de setembro. 

 O brigadeiro comunicou-lhes que havia ordenado a concentração do grande número de nipónicos que se entregavam, em Atambua, próximo da nossa fronteira, para onde seguiriam.
 
(,,,) Também, os contingentes que guarneciam o Timor português, com exceção dum grupo de 170 homens que ficara encarregado de guardar o material até à sua verificação e entrega.

 «O brigadeiro necessitava ir a Díli para esse fim e, ainda, para proceder à pesquisa das sepulturas dos guerrilheiros que ali tinham tombado». 

 «O governo australiano, em atenção à neutralidade portuguesa, não quis que a visita do brigadeiro tomasse o aspeto duma operação militar, pelo que enviava um agente diplomático para, com a sua presença, marcar o carácter amigo da obrigação que impendia sobre o exército». 

 «De Koepang, por intermédio do general japonês que transmitia as instruções dos vencedores ao oficial-comandante em Díli, o brigadeiro informou o governador português da chegada, no dia seguinte, dum seu representante». 

 «Na manhã do dia 22, a bordo dum "Catilina", seguia um major acompanhado dum oficial da RAAF (6), intérprete de japonês, e o grupo enviado pelo Ministério dos Estrangeiros». 

 «Quando o aparelho, depois de deslisar nas águas do canal, foi parar à entrada do porto,  vimos aproximar-se uma pequena embarcação a remos, arvorando a bandeira portuguesa, na qual se destacava a figura branca dum homem esquelético, que só muito ao perto reconheci como sendo o capitão-dos-portos.» (7) 

 «Disse-lhe ao que íamos, pedindo-lhe que solicitasse do Governador a fineza de receber aquela missão. Mas não era necessário, pois estava já autorizado a levar-nos para a praia onde nos esperava o capitão-ajudante» (8). 

 No hospital o dr. Cal Brandão distribuiu abraços ao reduzido número de conhecidos e amigos que ali se encontravam. :

 «Era uma meia dúzia apenas, entre os quais o velho Brian, mas esqueléticos, quase irreconhecíveis à primeira vista, deixando ver as canelas descarnadas a fugir daqueles calções que, outrora, haviam sido calças». 

 «Tinham lágrimas de comoção ao apertar nos ósseos braços o primeiro português que chegava junto a eles, depois de tão longo sofrimento, de tanta humilhação e fome».

 «Gaguejavam no atropelo de perguntas, querendo saber de amigos ou de pessoas de família que tinham faltado à concentração de Liquiçá, e supunham na Austrália. Queriam notícias do mundo, da guerra, das coisas de Portugal. À pressa, porque me esperavam, fui respondendo, distribuindo os poucos jornais e cigarros que levava comigo». 

«No Palácio que estava pouco danificado, mas sem um único vidro, encontrámos o Governador e os funcionários de que se rodeara para a receção. Todos impressionantemente magros, mas bem vestidos.». 

 «Disse o major (9) ao que ia, do desejo que o brigadeiro tinha em vir a Díli, e dos objetivos em vista». 

 «Bebidas, com as costumadas saudações, os uísques que o Governador gentilmente oferecera, partimos a levar ao brigadeiro a certeza do seu bom acolhimento». 

 «Na manhã de 23, cerca das nove horas, estávamos de volta, a bordo duma esquadrilha de 5 corvetas, uma das quais, a 'Gladstone', arvorava as insígnias do brigadeiro comandante militar». 

 «Uma vez chegados à residência do Governador, e após os cumprimentos, realizou-se a conferência solicitada. O brigadeiro expôs o seu objetivo: inutilização do material de guerra; repatriação dos prisioneiros de guerra dos japoneses, uma centena de indianos e indonésios; localização das sepulturas dos guerrilheiros australianos mortos no Timor português; investigações das atrocidades cometidas pelos nipónicos». 

 «O Governador concedia todas as facilidades aos trabalhos que se pretendia realizar, exceção feita à matéria de investigações, a qual não podia autorizar sem prévia consulta ao Governo central». 

 «Por sua sugestão, assentou-se que só os oficiais australilanos desembarcariam armados, devendo os soldados que os acompanhassem apresentar-se sem qualquer arma». 

 «O Governador ofereceu, em seguida um bem servido almoço, para o qual o australiano concorreu com o pão, aquele pão alvo e delicioso que os portugueses não provavam desde há muitos e longos meses». 

 «Na tarde do dia 23 realizou-se uma homenagem aos mortos da guerra, em Timor». 

 «Na base do mastro, erguido junto às ruínas da alfândega, foi preparado um recinto ornamentado com folhas de palmeira e buganvílias, a entrada do qual se fazia por duas ruas dispostas em V, o sinal da vitória, traçadas no atapetado da relva guarnecidas a flores tropicais». 

 «O brigadeiro, num discurso breve, manifestou a alegria que o povo australiano comungava com os portugueses pela libertação de Timor e, num agradecimento, referiu-se à cooperação e simpatia que os portugueses lhe dispensaram para poder levar a cabo uma das suas missões, a de encontrar os vinte e três túmulos dos seus soldados. 

 «O Governador português, prestando a sua homenagem a todos os mortos, terminou: «Esta cerimónia é o fim de anos de paciente sofrer. As relações entre as forças australianas em Timor e o meu governo, têm decorrido sempre numa base da melhor amizade, e continuará a ser assim'.». 

 «O brigadeiro colocou junto do mastro uma coroa de belas rosas da Ermera, dedicada aos portugueses mortos e o Governador depôs uma coroa igual, aos mortos australianos». 

«A guarda de honra foi feita por trinta soldados australianos, que eram todos os que tinham acompanhado o brigadeiro, e pelos oficiais do exército e marinha, desarmados e em continência, enquanto a sirene da corveta-chefe apitava em lúgubre despedida, e o clarim executava o 'último toque' ". 

 A emocionante cerimónia terminou com o tradicional 'minuto de silêncio'  (10) e a ela assistiram uma multidão de timorenses e os poucos funcionários e pessoas da sua família que então se encontravam em Díli. Numa preciosa fotografia que possuo, identificam-se quase todos os não-timorenses presentes.  (...) 

 (...) Conta-nos o Dr. Cal Brandão (4) que na noite do dia 23, o brigadeiro Dyke ofereceu uma jantar íntimo ao Governador, que teve lugar a bordo da corveta «Moresby». 

 No dia seguinte regressaram à Austrália os cinco navios, tendo ficado em Timor dois oficiais, com a missão de procurarem as campas dos australianos mortos durante a guerra, o que fora autorizado pelo Governador, com a condição de seguirem desarmados, responsabilizando-se ele, inteiramente, pela sua segurança em qualquer parte da colónia. 

 No dia 25 soube-se, oficialmente a notícia de que dois dias depois chegariam a Díli os avisos Bartolomeu, Dias e Gonçalves Zarco, vindos de Lourenço Marques. (...)
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Notas do autor (JSC):

 
(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(2)  Vide jornal "Novidades",  de 3 de setembro de 1970, artigo de Tarrroso Gomes, «A Libertação de Timor».

 (3) São estas palavras do governador de Timor, capitão Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

(4) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

 (5) O general-comandante das forças japonesas em todo o Timor, era o major-general Tchiòda, cujo nome ouvi ao vice-cônsul, senhor Suzuki. 

(6)  Royal Australian Air Force.

(7) O capitão-dos-portos de Timor era o cabo verdeano, capitão-tenente César Gomes Barbosa.

(8) O capitão-ajudante do Governador era o capitão de infantria, Manuel do Nascimento Vieira.

(9) O major australiano, representante do brigadeiro Dyke.

 (10) O texto integral dos discursos do Governador e do brigadeiro Dyke, pode ser lido no artigo do Dr. Tarroso Gomes, «A Libertação de Timor» inserto no jornal «Novidades» de 24 de Setembro de 1970. 

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, parênteses retos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)