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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Não querendo ser repetitivo quanto aos propósitos a que se associa este projeto, recordo que aqui se procuram mostrar documentos numa certa sequência cronológica das sucessivas viagens de exploração e instauração de portugueses na Costa Ocidental africana até chegarmos à Senegâmbia. Presença inequivocamente nas orlas dos rios e rias, nunca houve objetivo de ocupação, cedo houve entendimento de que se impunha fazer acordos e superar as atmosferas de hostilidade. Houve que fazer a fortaleza de Arguim por motivos de segurança, pelo adiante se irá falar de entrepostos. Neste texto faz-se uma síntese dos seis importantes capítulos enumerados por Magalhães Godinho, destaca-se a carta do genovês Usodimare aos seus credores, referindo o desastre na primeira viagem e esperançado no êxito da segunda. Como já nos habituámos, as notas de Magalhães Godinho são altamente explicativas, Usodimare e Cadamosto vinham ao mesmo, procuravam o ouro e a malagueta, o historiador mostra que há muitos elementos errados de Usodimare quanto às distâncias e dá-nos um apreciável quadro explicativo quanto aos mitos e mistificações à volta do lendário Preste João.

Um abraço do
Mário


Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7

Mário Beja Santos

Os dois primeiros volumes de Documentos sobre a Expansão Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, foram editados na década de 1940, este terceiro, que vamos hoje falar, foi dado à estampa em 1956, não pela Gleba, mas pelas Edições Cosmos. O seu conteúdo é de uma extrema variedade e riqueza.
O primeiro capítulo aborda a pirataria e o comércio, um vasto leque de assuntos desde a importação de cereais, a partilha de escravos, a guerra de Corso no Mediterrâneo, a viagem ao Rio do Ouro, os assaltos às Canárias para aprisionar escravos, o comércio com Marrocos e Guiné.
Segue-se um capítulo dedicado à primeira navegação de Usodimare e Cadamosto, em 1455, navegação que vai das Canárias a Porto Santo e Madeira, ao Cabo Branco e à ilha de Arguim, e, com destaque para o propósito que mantemos nestes comentários, a viagem em que eles analisam os Azenegues, o Reino do Senegal, no país de Budomel.
No terceiro capítulo o historiador analisa a navegação segunda de Cadamosto e Usodimare, o tão controverso descobrimento das ilhas de Cabo Verde, a viagem pelo Rio de Casamansa e já dentro do território da atual Guiné.
O capítulo quarto é dedicado à toma de Alcácer Ceguer.
No capítulo seguinte, faz-se a apreciação num conjunto de documentos como os de Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes e João de Barros.
No sexto e último capítulo, Magalhães Godinho disserta sobre a exploração do litoral africano desde o Rio Geba até à Mata de Santa Maria, aqui se fala da navegação de Pedro de Sintra, por exemplo.

Dada a riqueza deste acervo, entendi que se impunha uma escolha de vários textos que ajudem a compreender como se processou a presença portuguesa desde a segunda metade do século XV aos inícios do século XVI.

Começa-se com uma carta de Antoniotto Usodimare dirigida aos seus credores, tem a data de 12 de dezembro de 1455:
“Respeitáveis irmãos. Quanto de mim devem estar descontentes, posso-o bem calcular, visto que não basta ter o que é vosso, como ainda é necessário dar-vos notícias más acerca das vossas coisas. Quis esta minha sorte que eu me fizesse passar numa caravela às partes da Guiné. E cheguei aonde nunca qualquer cristão chegará; e encontrado o Rio de Gâmbia, que tem uma boca larguíssima, entrei nele sabendo que nesta região se colhe ouro e malagueta. Os pescadores da região atacaram-me com arcos e com setas envenenadas, julgando que fôssemos inimigos.

E eu, vendo que não nos queriam receber, vi-me obrigado a regressar, e a cerca de setenta léguas daí um nobre senhor negro deu-me quarenta escravos e alguns dentes de elefante, papagaios e um pouco de almíscar, em troca de alguns panos que lhe apresentámos. E conhecido o meu desejo, mandou comigo ao senhor Rei de Portugal um secretário seu com alguns escravos. Este secretário compromete-se a tratar paz com aquele Rei de Gâmbia.

E o senhor Rei, vendo o que se passava, queria excluir-me de tal empresa, mas graças aos rogos de tal secretário, concordou que eu vá a essas partes com esse secretário. Por isso, em nome de Deus, volto a fretar uma caravela, na qual seguirei, e levarei um carregamento dos servidores do Senhor Infante, e espero com o negócio equilibrar todo o meu futuro. E dentro de menos de dez dias enviarei este embaixador numa caravela a fim de que vá tratar a paz; entrega-me todos os seus haveres para que eu os leve na minha caravela. Por tal razão convém-me, senhores, ver por esta vez ainda o que fará esta minha sorte; se me não tivesse sido até aqui tão adversa, viver podia com grande esperança pelo que me narra este secretário, coisas que vos pareceriam vãs se vo-las escrevesse.

Na verdade, pela terra firme faltavam menos de trezentas léguas até o país do Preste João, não digo até à sua pessoa, mas sim até onde começa o seu território; e se me tivesse podido demorar, teria visto o Capitão do Rei de Melli, o qual se encontrava a seis jornadas de nós com cem homens, e com ele estavam cinco cristãos do Preste João, e falei com alguns do seu exército. Encontrei um da nossa nação, creio que das Galés Vivaldi, as quais se perderam há 170 anos, o qual me disse, e assim o confirma este secretário, que da sua estirpe só ele restava. E outro falou-me dos elefantes, unicórnios, gatos da algalia e outras coisas muito estranhas e de homens com cauda e que comem os filhos. E a razão por que não pude demorar foi porque me faltaram os víveres e dos seus [dos negros] mantimentos não podem os homens brancos de modo algum alimentar-se sem adoecer e morrer, só os podem comer os negros que lá nascem. O ar, porém, é ótimo, e a terra a mais bela que há sob o céu e está quase no equinócio; no mês de julho os dias têm doze horas e meia e as noites onze horas e meia.

Escrevo-vos todas estas coisas se bem que esteja certo de que vos seria mais grato receber o que é vosso e dos outros [credores] do que ouvir tais notícias. É necessário que tenham paciência durante seis meses, tanto mais que me inscrevo no seguro, o que certamente não seria necessário dado que aqueles mares são como as águas do porto daí.

A presente carta destina-se a todos os credores; estes devem convencer-se, e vós com eles, que se eu tivesse podido contentá-los pagando-lhes não me teria metido em tal aventura com uma só caravela. Talvez venha a acontecer pelo melhor; por isso tenham paciência, pelo amor de Deus. Vosso Antonius Ususmaris.”


Magalhães Godinho fala-nos da família de Usodimare, uma antiga família genovesa. Voltará a Génova desafogado graças aos lucros da segunda viagem à Guiné. Godinho estranha a referência que ele faz ao Rio Gâmbia, já fora descoberto pelos portugueses, considera que as distâncias que ele refere são erradas. O ouro e a malagueta eram também os objetivos do veneziano Cadamosto, o que comprova que o comércio italiano estava interessado no descobrimento desta nova rota. Cadamosto irá também referir na sua relação de viagem que quando estava para partir para o sul do Cabo Verde chegou Usodimare, seguiram viagem juntos, e confirma que foram hostilmente recebidos no Rio Gâmbia. A carta de Usodimare aos credores omite o encontro. De forma detalhada, Godinho debruça-se sobre o Preste João, quando começaram as referências a este, as lendas e mistificações. Recorde-se que durante os séculos XII e XIII os cristãos procuraram-no e localizaram-no na Ásia; Marco Polo identificou-o como um chefe turco. Os Mamelucos do Egito impediram durante as cruzadas a entrada na Abissínia aos cristãos, com o receio de uma coligação que os colocassem entre dois fogos. Oito dominicanos enviados por João XXII conseguiram em 1316 penetrar na Abissínia e realizar conversões ao catolicismo. Em 1402 Veneza recebia uma embaixada enviada pelo négus David I, a qual trazia leopardos e arómatas (bálsamos) para presentear os europeus.

Iremos seguidamente ver o relato da navegação primeira de Cadamosto.


(continua)
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Notas do editor

Vd. post da 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Não deixa de ser curioso observar que no exato momento em que o regime do Estado Novo alçaprema a figura do Infante D. Henrique como o supremo condutor da gesta dos Descobrimentos, Vitorino Magalhães Godinho irá publicar três volumes de documentos sobre a Expansão Portuguesa onde evidencia pelo rigor das fontes que o Infante D. Pedro era fortemente crítico das cruzadas no Norte de África e que estimulara as navegações pela costa ocidental africana. Rapidamente se desenvolveram as operações comerciais, e daí a escolha que procedi à viagem de Gonçalo Afonso de Sintra, desastrosa, pois antes do Cabo Branco foram atacados em terra e massacrados. Caberá a Nuno Tristão chegar à Terra dos Negros, terá chegado ao norte da Senegâmbia, na sua primeira viagem não chegou a atingir o Cabo Verde, posteriormente terá encontrado a morte no rio Gâmbia.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6

Mário Beja Santos

Os três volumes de documentos sobre a Expansão Portuguesa, da autoria de Vitorino Magalhães Godinho, publicado na década de 1940, fazem parte do momento de viragem da historiografia portuguesa dos Descobrimentos, constituem uma rotura com a hagiografia, a pura especulação, o aproveitamento idolátrico da figura do Infante D. Henrique, isto no exato momento em que o Estado Novo procurava fazer do Infante uma figura sublime, o maior missionário da civilização ocidental.

Aqui se apresentou nos textos anteriores uma seleção que se considera representativa do Volume I. Fez-se a escolha do Volume II de um texto do Zurara sobre a regência de D. Pedro e a exploração da Costa Africana e os respetivos comentários e a viagem de Gonçalo Afonso de Sintra, a chegada de Nuno Tristão à Terra dos Negros.

Diz Zurara que dos anos seguintes a 1436 não acha coisas notáveis dignas de ser contadas. Voltou-se ao Rio do Ouro por peles e azeite dos lobos marinhos, em 1437 o Infante D. Henrique passou-o em Tânger, no ano seguinte morreu o Rei D. Duarte, seguiram-se muitas discórdias, o futuro Rei D. Afonso V tinha então seis anos, o Infante D. Henrique trabalhou muito para haver sossego e paz, foram anos em que não se enviaram navios. Vale a pena ler atentamente os comentários do historiador. No seu testamento, o Rei D. Duarte deixava indicado que durante a menoridade do filho, a regência deveria ser exercida pela Rainha D. Leonor, muito ligada às Casas de Aragão e Castela, o seu Governo representava uma ameaça de intervenção de política portuguesa; a Rainha viúva era afeta a D. Henrique e desafeta a D. Pedro. Foi nestas circunstâncias que as cidades do país e a burguesia nacional impuseram primeiro a associação de D. Pedro ao Governo e posteriormente a passagem da regência para as suas mãos.

O triunfo da burguesia em 1440 abre um período de intensa exploração marítima que fecha em 1448 com o fim da regência e a vitória da nobreza. “Afigura-se-me que são as condições sociopolíticas da época da regência que explicam o impulso dado às navegações e o abandono da política marroquina. Não é de forma alguma à iniciativa de D. Henrique, mas à política de D. Pedro e à iniciativa dos burgueses que se deve fundamentalmente esta decisiva expansão comercial-marítima. O papel de D. Henrique nos conflitos que precederam e seguiam à regência de D. Pedro é muito equívoco. Sem dúvida ao lado da nobreza e contra as cidades, procurou firmar a sua situação apresentando-se como árbitro dos partidos, conseguiu do irmão importantes concessões para o acrescentamento da sua casa senhorial, e abandonou-o em Alfarrobeira quando o peso de uma intervenção enérgica o teria salvo muito provavelmente.”

O historiador elenca que dispomos para o estudo das navegações entre 1440 a 1448: a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara; Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas, de Diogo Gomes; o trabalho de Jerónimo Münzer, muito semelhante à Relação de Diogo Gomes; o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, de escassíssimas indicações; a Descrição da Costa de Ceuta à Guiné, de Valentim Fernandes, baseado em Zurara e Diogo Gomes; a Ásia, de João de Barros, resumo tardio de Zurara.

Vejamos agora a viagem de Gonçalo Afonso de Sintra. O historiador faz referência a João de Barros e Valentim Fernandes, o Infante mandou armar um navio em 1445, o seu capitão era Gonçalo de Sintra, levava consigo um mouro azenegue para lhe servir de intérprete, esperava ir à ilha de Arguim que está à frente do Cabo Branco. Sucede que antes de chegarem ao Cabo Branco numa angra fugiu o intérprete, Gonçalo de Sintra meteu-se num batel com doze homens, acabou num esteiro, o batel ficou imóvel, foram atacados pelos mouros, houve carnificina, salvaram-se três marinheiros, chegaram sãos e salvos a Portugal, façanha extraordinária.

Valentim Fernandes irá corroborar esta versão. Na sequência deste texto, o historiador alude à chegada de Nuno Tristão à Terra dos Negros. Fora enviado numa caravela, a mando do Infante, dirigiu-se à Terra dos Negros, antes passaram por terra areosa e maninha, sem árvores, e depois avistaram palmeiras, árvores verdes e formosas e campos de terra. Nuno Tristão segue num batel a terra, mas as vagas eram grandes e perigosas, foi forçado a regressar ao navio. Mais adiante chegou àquelas ilhas onde Lançarote antes tivera uma presa, chegado a terra um mouro já idoso disse-lhe onde estava uma povoação a cerca de duas léguas, Nuno Tristão temeu que seriam muitos os moradores daquela povoação, depois de evitar avançaram, apanharam moços e mulheres, não houve combate. Isto vem descrito na crónica de Guiné de Zurara. Magalhães Godinho tece comentários, vale a pena citá-los devido à sua grande importância.

A Terra dos Negros é, na toponímia quatrocentista e quinhentista, uma das grandes regiões em que se divide o continente africano. Do Mediterrâneo ao Golfo da Guiné, Leão o Africano enumera a Barbária, a Numídia, a Líbia e a Terra dos Negros. Esta região abrange essencialmente as grandes bacias do Senegal e do Níger, sobretudo nas zonas de floresta tropical.

O historiador deplora a escassez de informações prestadas por Zurara. Ignora-se se os navegadores seguiram à vista de terra, se reconheceram enseadas, promontórios, rios e baixos ou se velejaram ao largo durante algum tempo. Zurara não precisa que pontos da costa atingiu Nuno Tristão. Armando Cortesão depreendeu a descrição que se tratava do Cabo Verde. Damião Peres afirma que a viagem se alongou para além da foz do Senegal. Sem dúvida que o rio Senegal divide, segundo escreve Cadamosto, a terra seca e árida dos azenegues da terra fértil dos negros, o que também é corroborado pelo Esmeraldo e por João de Barros. A descrição não faz supor que tenham ultrapassado o Senegal, resulta de existirem arvoredos e negros ao norte do rio. Nuno Tristão deverá ter chegado a um lugar que está situado antes do rio Senegal.

Foram estes os textos fundamentais que selecionei do Volume II, vamos seguidamente para documentos constantes no Volume III.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 8 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27112: Notas de leitura (1828): "Histórias de Amor em Tempo de Guerra, Guiné 1963-1974", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2017 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
A importância da Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas é historicamente indiscutível, completa outra documentação fundamental, logo a Crónica de Zurara. Temos aqui o reportório das diferentes exposições e a chegada à Senegâmbia, com receções muito hostis; diz-se claramente que o Infante recebia um quarto de todo este comércio, de onde vinham ouro e escravos; põe-se ênfase nas exposições de Nuno Tristão e nas de Diogo Gomes e na sua viagem pelo rio Gâmbia; Diogo Gomes continuou nas navegações no reinado de D. Afonso V, refere que chegou às ilhas de Cabo Verde com António de Noli, assunto altamente controverso. Não se pode estudar o início da nossa presença na Senegâmbia sem dar a palavra a Diogo Gomes.

Um abraço do
Mário


Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5

Mário Beja Santos

Recapitulando o que aqui nos propomos fazer com a apresentação de alguns textos determinantes que nos trazem elucidação quanto ao modo como arrancou a nossa presença em meados do século XV e adiante numa região de contornos um tanto difusos entre o Cabo Verde continental e a Serra Leoa, pedimos auxílio àquele que terá sido o historiador melhor preparado sobre a expansão portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, retirámos um conjunto de parágrafos sobre este período quatrocentista, primeiro do seu livro A Expansão Quatrocentista Portuguesa, que está reeditado pelas publicações Dom Quixote, e estamos agora a selecionar outros parágrafos do conjunto de três volumes que o autor designou por Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, continuam a ser incontornáveis no estudo sobre os descobrimentos. Encetámos no texto anterior uma referência à Relação de Diogo Gomes, aborda-se o projeto Henriquino e a construção de uma fortaleza ou castelo em Arguim. Iniciava-se um trato comercial que se irá progressivamente estendendo pela costa ocidental africana. Vejamos o que o historiador escreve sobre estes acontecimentos:
“E a este castelo vinham os árabes da terra trazendo ouro puro em pó, e recebiam em troca trigo e mantas brancas e outras mercadorias que para ali mandou o Infante. E assim sempre até agora se faz o comércio, trazendo os negros o outro da terra de Tambucotu. E este castelo foi construído no ano de 1445.

De novo o Sr. Infante fez uma armada de quatro caravelas; capitães Gilianes de Villalobos cavaleiro, Lançarote, almoxarife de Lagos, e Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra e muitos outros de boas famílias. Os quais foram a Arguim e passaram além e tomaram ilhas.

E eu Diogo Gomes, almoxarife de Sintra, apoderei-me de 22 pessoas, que estavam escondidas e as trouxe ante mim como se fossem rezes, por meia légua, até aos navios. E tomámos nesse dia destes indígenas, homens de cor avermelhada, 600 e quase 50 e com estes voltámos a Portugal, a Lagos, onde estava o Sr. Infante que muito se alegrou connosco. Depois mandou o Sr. Infante, outra vez, Gonçalo Afonso de Sintra, voltou-se àquelas ilhas, batalhou-se com os Serracenos e as mulheres fugiam, e Gonçalo de Sintra perseguia-as pela água, e as mulheres tomaram lodo do mar e lançaram-lhe à cara, e o cegaram, de tal modo que ficou completamente cego. E voltaram os outros para a caravela, vindo para Portugal trazer as novas ao Sr. Infante, e trouxeram consigo mais de 60 nativos de um e outro sexo. E o Sr. Infante tinha sempre de todos os cativos que traziam uma quarta parte, e costumava dar-lhes tudo o que careciam. Foram mandadas novas caravelas. E navegando ainda mais viram uma terra cheia de árvores e palmeiras, e saltaram na terra firme. E toda aquela gente era preta. Mandaram os cristãos mercadorias que consigo haviam trazido para a terra firme, e ele receberam-nas e não quiseram falar.

E passando além acharam um rio grande que é chamado Cenega (Senegal) muito povoado e falaram os cristãos com essa gente pelos homens que consigo levavam, e trataram paz com eles, e fizeram comércio, e de aí traziam muitos pretos por compra. E assim desde então até agora, e cada dia mais, trazem pretos sem número daquele lugar.

E estas coisas, que aqui escrevemos se afirmam salvando o que diz o ilustríssimo Ptolomeu, que muita boa coisa escreveu sobre a divisão do mundo, que, porém, falhou nesta parte. Pois escreve e divide o mundo em três partes, uma povoada que era no meio do mundo, e a setentrional diz que não era povoada por causa do excessivo frio, e da parte equinocial do meio-dia também escreve não ser habitada pelo motivo do extremo calor. E tudo isto achámos no contrário, porque o polo ártico vimos habitado até além do prumo do polo, e a linha equinocial também habitada por pretos, onde é tanta a multidão de povos que custa acreditar. E aquela terra meridional está cheia de árvores e frutos; mas outras espécies de frutos, e as árvores são tão grossas e de tamanha altura que só vendo se pode crer.”

Descreve-se de seguidamente Diogo Gomes o filho adotivo do Infante D. Henrique, os privilégios recebidos do Papa e a continuação de novas expedições descendo a costa ocidental africana. Assim se descobriu um promontório a que se pôs o nome de Cabo Verde. “E neste lugar começa a linha equinocial, porque dias e noites aí sempre são iguais no inverno como no verão, e aquelas gentes são na maior parte negros. E as caravelas indo além de Cabo Verde, isto é, para o polo antártico, descobriram terra deserta.”

Os contactos não correram bem, morreram muitos cristãos envenenados por setas. Veio uma nova caravela armada, o capitão era Nuno Tristão, navegou diretamente a Cabo Verde, chegaram a uma terra de homens maus chamados Sereres, também muitos hostis. Continuaram a navegar até à terra dos Barbacins, de novo foram atacados com setas envenenadas. Diz Diogo Gomes que foi o primeiro cristão que fez a paz com eles.

Um certo nobre do reino da Suécia viera a Portugal e pediu ao Infante que o mandasse àquelas regiões. Deu-se um encontro muito feroz, só escaparam três rapazes que entraram no grande mar oceano e regressaram a Portugal, ajudados por um corsário que tripulou a caravela a partir do Cabo Espichel. É armada nova caravela e o capitão é Diogo Gomes, passaram o rio de S. Domingos, no Rio Grande de Geba viram Macareu, vieram os mouros da terra nas suas almadias e houve troca de mercadorias: panos de seda ou algodão, dentes de elefante, malagueta em grão. Regressaram a Cabo Verde, no caminho entraram no rio de Gâmbia, subiram o rio até Cantor, Diogo Gomes aproveitou para se informar sobre os povos da região. Temos aqui um precioso relato, tudo virá a ser descrito ao Sr. Infante. Diogo Gomes na sua Relação alude ao falecimento do Infante em 13 de novembro de 1460.

Dois anos depois, D. Afonso V armou uma grande caravela, Diogo Gomes foi nomeado capitão. Viajou até à terra dos Barbacins. “Com a ajuda de Deus, em doze dias cheguei a Barbacins e ali achei duas caravelas, a saber: uma, na qual ia Gonçalo Ferreira, familiar do Sr. Infante, que levava cavalos para ali. E na outra caravela era capitão e mercador o genovês António de Noli. Estes mercadores com as suas caravelas fizeram muito dano ao resgate dali: porque onde costumavam os mouros dar sete negros por um cavalo, a eles não davam mais de seis. Então eu convoquei os capitães, e da parte do Rei lhes dei sete negros por um cavalo, e dei depois um cavalo por catorze a quinze negros. E estando nós assim, veio uma caravela de Gâmbia com a nova de que um fuão (um sujeito qualquer) chamado de Prado, vinha com uma caravela cheia de riqueza. Armei logo a caravela de Gonçalo Ferreira e mandei-lhe da parte d’El Rei sob pena de perda da vida e de todos os seus bens para que fosse a Cabo Verde e ali esperasse aquela caravela. E assim fez, e nela encontrámos muito ouro.”

Na continuação do seu relato, Diogo Gomes refere que viajou para Portugal na companhia de António de Noli, viram ilhas do mar. “Chamámos Santiago à ilha, e até agora assim se chama. Havia ali grande pescaria. Em terra, porém, achámos muitas aves estranhas e rios de água doce. As aves esperavam-nos sem fugir, e assim as matávamos com paus.”

O relato subsequente não tem interesse quanto à nossa presença na Senegâmbia, centra-se nas ilhas Canárias, Porto Santo e Madeira, nos descobrimentos das ilhas dos Açores.

As notas de Vitorino Magalhães Godinho são de uma grande utilidade para a compreensão deste texto. O historiador refere a confusão de datas, mostra como claramente Diogo Gomes atribui ao Infante um pensamento económico; mostra igualmente as divergências entre o relato de Diogo Gomes e a crónica de Zurara; observa que entre 1448 e 1460 se explorou sistematicamente o litoral do Senegal à Serra Leoa, estabelecendo-se as bases de um comércio regular com a Guiné e da penetração civilizadora portuguesa; Godinho também recorda que as constantes referências a almadias de mouros e negros tornam muito plausível a hipótese posta por Jaime Cortesão da existência de um contínuo tráfego marítimo nas costas e rios da Guiné, o que explica a vigorosa resistência à concorrência comercial portuguesa.

Por último, levanta a questão do descobrimento do arquipélago de Cabo Verde, atribuído quer a Diogo Gomes, que a António de Noli, quer a Cadamosto. Na Relação a viagem de Diogo Gomes na companhia de de Noli é de 1462; ora a viagem no veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António de Noli, cuja viagem deve ser anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs erradamente ser o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica, e que Diogo Gomes acompanhasse António de Noli, não me parece de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o Rei não lhe concederia a capitania de Santiago.


(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 4 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27088: Notas de leitura (1826): "África No Feminino, As Mulheres Portuguesas e a A Guerra Colonial", por Margarida Calafate Ribeiro; Edições Afrontamento, 2007 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Creio que recordam o que o historiador Vitorino Magalhães Godinho referiu no prefácio desta edição de 1943, o rigor histórico exige que se inventariem as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII: fontes narrativas, diplomáticas, documentos diversos, obras técnicas e fontes cartográficas. Fontes para entender o início da presença portuguesa da Senegâmbia são, portanto, a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara, Ásia, década I, livros I e II, por João de Barros; quanto às fontes narrativas, são de crucial importância as Navegações de Cadamosto, o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira e esta Relação dos descobrimentos, redigida por Martinho da Boémia sobre a narrativa oral de Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) que fora navegador do Infante D. Henrique. É certamente posterior a 1482, observa Magalhães Godinho. Diogo Gomes fez o seu relato quando já atingira os 80 anos, devia ter a memória enfraquecida, não parecendo de confiança nas datas. E ignora-se o que Martinho da Boémia teria incluído da sua lavra ou que tinha esquecido. No entanto, esta fonte é primacial e para certos casos única.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4

Mário Beja Santos

Recordo ao leitor que a recolha documental de Vitorino Magalhães Godinho sobre documentos da expansão portuguesa, e no caso particular da Guiné, revela-se como obra de referência. Veja-se, a título de exemplo, A Relação dos Descobrimentos da Guiné e das Ilhas, de Diogo Gomes, autor largamente versado aqui no blogue, o que se publica é uma versão traduzida do latim e que foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia em 1900, é um extenso documento que aqui se dará a estampa em sucessivos trechos:
“De que modo foi achada a Etiópia Austral a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, a qual se chamava Agizimba, agora, porém, chamada Guiné pelos descobridores portugueses até ao dia de hoje, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho da Boémia.

Em 1416, mandou o Senhor Infante D. Henrique um cavaleiro nobre, de nome Gonçalo Velho, para além das ilhas Canárias, ao longo da beira-mar, desejando saber a causa de tão grande corrente. O qual navegou além e achou mar tranquilo e sereno junto da costa de África ou da Líbia, e chegou a um lugar que se chama agora Terra Alta. Na praia daquela terra havia apenas areia, não se achavam aí árvores nem ervas; a qual terra arenosa passa ao pé dos Montes Claros e vai até ao Monte Sinai, dividindo os homens brancos e pretos uns dos outros. Este mar arenoso, os cartagineses, agora chamados tunísios, em caravanas, levando às vezes até 700 camelos, atravessaram até ao lugar chamado Tambucatu, e a outro país, Cantor, em demanda do oiro arábico que aí se encontra em grande cópia, dos quais homens e animais muitas vezes apenas voltou a décima parte.

O que ouvido pelo Infante D. Henrique o moveu a inquirir daquelas terras pela água do mar, para ter comércio com elas e para sustentar os seus nobres. Este cavaleiro, chegando à presença do Senhor Infante lhe anunciou que achara o mar sereno, e sempre vento fresco do lado do norte, e grande cópia de pescaria em toda aquela costa. O Infante então mandou preparar um navio e dele fez capitão o vedor da sua Casa chamado Afonso Gonçalves Baldaia. E com ele mandou dois mancebos nobres com dois cavalos, os quais, como chegassem além da Terra Alta, foram enviados terra dentro, no lugar agora chamado Angra dos Cavalos.

E cavalgaram levando cada um consigo mantimentos para alguns dias; e o navio continuando a seguir aquela costa os esperava em lugar marcado. Os cavaleiros marcharam por nove dias, acharam 22 homens sarracenos, de cor avermelhada, usando azagaias e gomias, que pelejaram com estes dois. Os cavaleiros, porém, desejavam apanhar um para que deles soubessem o sítio onde estavam. Um destes nobres chama-se Heitor Homem, e o outro, Lopo de Almeida. E um dos sarracenos feriu o dito Lopo de Almeida em um pé, e Heitor Homem, furioso, matou o sarraceno.

Naquele dia, pela primeira vez, correu o sangue dos cristãos na terra da Guiné. Estes dois cavaleiros eram de 20 anos de idade. Por causa do escurecer da noite deixaram de lutar. No outro dia, porém, nenhum sarraceno apareceu.

Os dois cavaleiros, seguindo os vestígios da sua passagem na areia, voltaram para a costa chamada Rio do Ouro, onde acharam muitas redes feitas de cascas de árvores, porque naquele lugar há grande pescaria. Estes nobres, procurando o seu navio, percorreram doze léguas até encontrá-lo; os do navio já queriam voltar a Portugal, julgando que eles tivessem morrido.

Aí deixaram os cavalos, que estavam quase mortos, subiram para o navio, e vieram a Portugal, ao Senhor Infante, que ficou em extremo alegre, porque agora já sabia que a terra era habitada. Ele admirava as redes que trouxeram feitas pelos homens daquele país. Também eles contaram de como na barca entraram no rio agora chamado Rio do Ouro, e no meio deste rio acharam uma ilha de areia onde estava multidão de lobos marinhos. E à ilha tinham chamado Ilha de Lobos; e destes lobos marinhos trouxeram muitos a Portugal ao Senhor Infante, que muito se admirava.

Depois disto o Senhor Infante foi ocupado com outros negócios, durante alguns anos, nos quais não tratou de Guiné, porque o rei de Portugal, D. Duarte, seu irmão, com grande exército e armada passou a Tanja, cidade fortíssima; e na verdade nada fizeram de importância militar.

E depois de não pouco tempo o Senhor Infante mandou um navio pequeno ao Rio do Ouro, para ver se poderiam apanhar um destes habitantes locais que tinham encontrado, e mandou ao piloto ou capitão do navio que permanecesse aí na Ilha dos Lobos. E assim ficaram aí por uns três meses e mataram muitos lobos marinhos que trouxeram consigo.

Vendo que nada aproveitavam, voltaram a Portugal e de tudo deram nova ao Senhor Infante, que ficou contente porque tinham achado rasto de homens. Logo o Senhor Infante fez armar duas caravelas e mandou por capitão-mor um certo cavaleiro já idoso chamado Nuno Tristão, e na outra caravela foi por capitão António Gonçalves, muito moço, que depois teve castelo em Tomar, com outros moços da câmara do Senhor Infante, e mandou que fossem ao Rio do Ouro; de noite foram em batéis até perto da praia, e pela manhãzinha viram uns homens que vinham a um poço para tirar água. Alegres entraram em terra com as suas armas, e tomaram treze homens e mulheres; os outros, porém fugiram. Entre eles tomaram o homem velho e respeitável chamado Adavu, e alguns eram avermelhados e outros pretos. E assim contente o capitão-mor armou cavaleiro menor chamado Antão Gonçalves, que era parente do capitão da ilha da Madeira.

E voltaram a Portugal ao Senhor Infante que se alegrou com eles. E por estes teve começo o conhecimento daquele país, de como era povoado; e diziam que todos os habitantes próximos da costa marítima comiam peixe quase cru. E os que habitam na terra têm tendas ou barracas e se chamam Árabes, e vivem vida bestial, e comem carnes quase cruas e leite, porque naquela terra não há árvore alguma nem erva, e comem as carnes, quando as podem ter, aquecidas ao sol.

Ali têm muitas avestruzes e gazelas, são animais vulgarmente chamados gatos da Algalia.

E o Senhor Infante por estes soube do caminho para ir a Tambucotu, e disseram-lhe muitas falsidades. E disseram que os árabes indo de Adem para Tambucotu levam às vezes 400 a 500 cavalos, e acham no caminho um grande monte e disseram que aquela serra era povoada de gente admirável, como que os homens têm cabeça de cão e grande cauda, e são muito cabeludos, e as mulheres são lindas e de grande vergonha, etc. e muitas outras coisas que pareciam falsidade. E disseram que frequentemente 300 camelos voltavam de Tambucotu carregados de ouro.

E esta foi a primeira notícia que houve do ouro e de onde se encontraria a sua origem. Depois o Senhor Infante mandou caravelas, em uma delas foi um seu familiar chamado Gonçalo de Sintra e na outra um certo Dinis Dias, e que fossem além do lugar chamado Pedra da Galé mais longe, a ver se podiam apanhar ou achar mais habitantes. E navegando além acharam um lugar agora chamado Cabo Branco, e acharam gente naquele lugar que agora chamam Arguim. Arguim é uma ilha próxima de terra e muito povoada de árabes, que estavam avisados daquelas caravelas, de modo que muitos fugiram; muitos deles, porém, foram cativos e mortos.

E por isto o Senhor Infante depois mandou construir ali um castelo, e pôs aí gente sua cristã e um sacerdote da vila de Lagos, e este foi o primeiro que celebrou o ofício divino na Guiné. E a este castelo vinham os árabes da terra trazendo ouro puro em pó, e recebiam em troca trigo e mantas brancas e berneses e outras mercadorias que para ali mandou o Infante. E assim sempre até agora se fez o comércio, trazendo os negros o ouro da terra de Tambucotu. Este castelo foi construído no ano de 1445. E assim os sobreditos voltaram para o Infante.”


(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 25 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 28 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27062: Notas de leitura (1824): Do colonialismo e da descolonização: as memórias de António de Almeida Santos (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27053: Notas de leitura (1823): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Ciente que a investigação historiográfica carecia de bases científicas, Vitorino Magalhães Godinho irá definir que a heurística e a hermenêutica precisam de fontes, para pôr termo à história feita de alusões miraculosas ou de referência a documentos que ninguém põe em cima da mesa. Estas propostas de rigor já tinham sido avançadas por Alexandre Herculano, já estava denunciado a revelação de Cristo a D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, a existência das cortes de Lamego, a multiplicidade de disparates da historiografia de Alcobaça. 

E para mostrar o que é trabalhar com fontes, levou Magalhães Godinho a enunciar documentação e a fazer comentários dizendo que era verdadeiro e falso. Décadas depois deste levantamento documental, o historiador deixa bem claro quais foram as molas reais do empreendimento de todas as estas navegações, e por ordem de grandeza, e não é de estranhar que os corifeus ideológicos do Estado Novo o detestassem, procurando mesmo silenciá-lo, ou ignorando-o. A verdade histórica veio ao de cima.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3

Mário Beja Santos

Não é demais enfatizar que foi Vitorino Magalhães Godinho quem introduziu novos rumos científicos para a investigação histórica. Nesta obra intitulada Documentos sobre a Expansão Portuguesa, o historiados dirá claramente quais são as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII, estas constam de fontes narrativas (crónicas e relações), fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias), documentos diversos (vão desde instruções e correspondência oficiais a documentos particulares), obras técnicas (roteiros, regimentos náuticos e tratados cosmográficos e náuticos) e fontes cartográficas. Fará um desenvolvido comentário quanto à especificidade destas fontes e, em jeito de conclusão dirá algo que continua a ser importante reter:

“Os descobrimentos e a colonização são um vasto movimento social e cultural que suscita problemas históricos bem mais complexos do que a simples data de uma viagem, prioridade de uma descoberta, virtudes de um dirigente. Tem de ser focado da perspetiva universal, como obra de cooperação e concorrência, na multiplicidade das suas diretrizes, na diversidade das necessidades económicas e tendências ideológicas. A náutica dos séculos XV e XVI construiu-se sobre a navegação mediterrânea, a agulha, as cartas de marear, sobre os instrumentos e teorias que vinham dos gregos, sobre as tábuas elaboradas por judeus, sobre as aquisições de técnica naval, como por exemplo o leme, sobre a perícia no mar de genoveses e catalães. Esta amálgama foi utilizada segundo as necessidades sociais e as sugestões ideológicas de Portugal e da Europa, em ação e reação com a realidade dos outros continentes. É a fase do desabrochar do capitalismo comercial em conexão com as transformações do senhorio fundiário, e ambos integrados na estruturação de um Estado que nascera da economia urbana, mas ultrapassara a cidade como núcleo político.”

Os documentos recolhidos pelo historiador prendem-se com navegações do século XIV, a conquista Ceuta, a Relação de Diogo Gomes, a análise da atividade do Infante D. Henrique, o povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo, a questão político-diplomática posta pelas Canárias, o povoamento dos Açores, a navegação entre o Cabo Não até à Pedra da Galé. Tome-se agora em consideração as referências que Duarte Pacheco faz no capítulo XXII do Esmeraldo à obra do Infante D. Henrique:

“A razão não sofre que nós calemos aquelas coisas as quais, por serem verdade, o coração deseja dizer, como o virtuoso Infante D. Henrique sendo com El-Rei seu pai na tomada da grande cidade de Ceuta que por bravo combate contra os Mouros pela Porta de Almina foi a entrada, o Infante exercitou ali tão esforçadamente a fortaleza do seu coração; no qual lugar mereceu o excelente grau do estado militar que lhe então foi dado, que por tais feitos aos esforçados barões por obrigação é devido; e passados alguns anos depois de Ceuta ser tomada e El-Rei seu pai finado, ele fez no Cabo de São Vicente que por outro nome antigamente Sacro Promontório se chamava, a sua vila de Terça Naval situada sobre angra de Sagres, que hoje em dia ali está fundada; onde se apartou com sua casa das fadigas e maldades deste mundo e viveu sempre tão virtuosa e castamente; e com outras virtuosas obras, sendo então governador do mestrado de Cristo desses Reinos, sua vida ali passou em tal extremo de bondade.

Outras muitas coisas podemos dizer deste príncipe; somente é para escrever a causa que moveu a descobrir estas Etiópias de Guiné, de que principalmente tratamos; e como quer que os virtuosos barões amigos de Deus e de limpo coração, inimigos da cobiça, nunca são desamparados da graça do Espírito Santo, jazendo o Infante uma noite em sua cama lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; cuja cor e feição e modo de viver alguém poderia querer, senão os houvesse visto; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo batismo, sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto oiro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os Reis e povos destes Reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.

Bem-aventurado é o Infante D. Henrique e bem-aventurados são os Reis de Portugal que suas vezes sucederam. A qual navegação começou o Infante por serviço de Deus pelo Cabo Não para diante; e tanto que a estes Reinos foram trazidos os primeiros negros e por eles sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a todos os Reis cristãos que o ajudassem a este descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor; pelo qual o Infante mandou ao Santo Padre, o Papa Eugénio IV, Fernão Lopes de Azevedo fidalgo da sua casa e do Conselho de El-Rei D. Afonso V, comendador mor da ordem de Cristo; e assim como por Deus foi revelado e mostrado ao virtuoso Infante este maravilhoso mistério escondido a todas as outras gerações da Cristandade, assim quis que por mão do seu vigário, e assim por outros Padres Santos com suas bênçãos e letras a conquista e comércio destas regiões até ao fim de toda a India lhe fossem dadas e outorgadas; e com este fundamento deu princípio à obra, deixando este virtuoso Príncipe para sempre a dizima de todos os frutos e novidades que em cada um ano rendessem as ilhas da Madeira e dos Açores e de Santiago, e vintena de tudo o que se em Guiné resgatasse e a estes Reinos trouxesse ao dito mestrado de Cristo em satisfação e pagamento de algumas rendas que do dito mestrado houvessem, sendo ele governador, que no descobrimento destas terras e ilhas despendeu.”


Vitorino Magalhães Godinho ao comentar este texto distingue as razões apresentadas por Duarte Pacheco das de Zurara quanto às motivações do Infante para se lançar neste empreendimento das navegações. Recorda que não corresponde à verdade histórica a referência do apelo feito pelo Infante aos outros Príncipes Cristãos e promessa de partilha de vantagens. É verdade que a Ordem de Cristo recebeu a vintena dos extratos da Guiné; e deve-se reter que segundo Duarte Pacheco o termo inicial dos descobrimentos foi o Cabo Não.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 11 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27043: Notas de leitura (1822): 2ª edição do livro do nosso José Saúde, "Aldeia Nova de São Bento" (Lisboa, Edições Colibri, 2021, 299 pp.)

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27030: Notas de leitura (1820): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) - 3 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Ciente que a investigação historiográfica carecia de bases científicas, Vitorino Magalhães Godinho irá definir que a heurística e a hermenêutica precisam de fontes, para pôr termo à história feita de alusões miraculosas ou de referência a documentos que ninguém põe em cima da mesa. Estas propostas de rigor já tinham sido avançadas por Alexandre Herculano, já estava denunciado a revelação de Cristo a D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, a existência das cortes de Lamego, a multiplicidade de disparates da historiografia de Alcobaça. E para mostrar o que é trabalhar com fontes, levou Magalhães Godinho a enunciar documentação e a fazer comentários dizendo que era verdadeiro e falso. Décadas depois deste levantamento documental, o historiador deixa bem claro quais foram as molas reais do empreendimento de todas as estas navegações, e por ordem de grandeza, e não é de estranhar que os corifeus ideológicos do Estado Novo o detestassem, procurando mesmo silenciá-lo, ou ignorando-o. A verdade histórica veio ao de cima.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 3

Mário Beja Santos

Não é demais enfatizar que foi Vitorino Magalhães Godinho quem introduziu novos rumos científicos para a investigação histórica. Nesta obra intitulada "Documentos sobre a Expansão Portuguesa", o historiados dirá claramente quais são as fontes para o estudo da história da expansão nos séculos XIV a XVII, estas constam de fontes narrativas (crónicas e relações), fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias), documentos diversos (vão desde instruções e correspondência oficiais a documentos particulares), obras técnicas (roteiros, regimentos náuticos e tratados cosmográficos e náuticos) e fontes cartográficas. Fará um desenvolvido comentário quanto à especificidade destas fontes e, em jeito de conclusão dirá algo que continua a ser importante reter:
“Os descobrimentos e a colonização são um vasto movimento social e cultural que suscita problemas históricos bem mais complexos do que a simples data de uma viagem, prioridade de uma descoberta, virtudes de um dirigente. Tem de ser focado da perspetiva universal, como obra de cooperação e concorrência, na multiplicidade das suas diretrizes, na diversidade das necessidades económicas e tendências ideológicas. A náutica dos séculos XV e XVI construiu-se sobre a navegação mediterrânea, a agulha, as cartas de marear, sobre os instrumentos e teorias que vinham dos gregos, sobre as tábuas elaboradas por judeus, sobre as aquisições de técnica naval, como por exemplo o leme, sobre a perícia no mar de genoveses e catalães. Esta amalgama foi utilizada segundo as necessidades sociais e as sugestões ideológicas de Portugal e da Europa, em ação e reação com a realidade dos outros continentes. É a fase do desabrochar do capitalismo comercial em conexão com as transformações do senhorio fundiário, e ambos integrados na estruturação de um Estado que nascera da economia urbana, mas ultrapassara a cidade como núcleo político.”

Os documentos recolhidos pelo historiador prendem-se com navegações do século XIV, a conquista Ceuta, a Relação de Diogo Gomes, a análise da atividade do Infante D. Henrique, o povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo, a questão político-diplomática posta pelas Canárias, o povoamento dos Açores, a navegação entre o Cabo Não até à Pedra da Galé. Tome-se agora em consideração as referências que Duarte Pacheco faz no capítulo XXII do Esmeraldo à obra do Infante D. Henrique:
“A razão não sofre que nós calemos aquelas coisas as quais, por serem verdade, o coração deseja dizer, como o virtuoso Infante D. Henrique sendo com El-Rei seu pai na tomada da grande cidade de Ceuta que por bravo combate contra os Mouros pela Porta de Almina foi a entrada, o Infante exercitou ali tão esforçadamente a fortaleza do seu coração; no qual lugar mereceu o excelente grau do estado militar que lhe então foi dado, que por tais feitos aos esforçados barões por obrigação é devido; e passados alguns anos depois de Ceuta ser tomada e El-Rei seu pai finado, ele fez no Cabo de São Vicente que por outro nome antigamente Sacro Promontório se chamava, a sua vila de Terça Naval situada sobre angra de Sagres, que hoje em dia ali está fundada; onde se apartou com sua casa das fadigas e maldades deste mundo e viveu sempre tão virtuosa e castamente; e com outras virtuosas obras, sendo então governador do mestrado de Cristo desses Reinos, sua vida ali passou em tal extremo de bondade.

Outras muitas coisas podemos dizer deste príncipe; somente é para escrever a causa que moveu a descobrir estas Etiópias de Guiné, de que principalmente tratamos; e como quer que os virtuosos barões amigos de Deus e de limpo coração, inimigos da cobiça, nunca são desamparados da graça do Espírito Santo, jazendo o Infante uma noite em sua cama lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; cuja cor e feição e modo de viver alguém poderia querer, senão os houvesse visto; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo batismo, sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto oiro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os Reis e povos destes Reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.

Bem-aventurado é o Infante D. Henrique e bem-aventurados são os Reis de Portugal que suas vezes sucederam. A qual navegação começou o Infante por serviço de Deus pelo Cabo Não para diante; e tanto que a estes Reinos foram trazidos os primeiros negros e por eles sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a todos os Reis cristãos que o ajudassem a este descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor; pelo qual o Infante mandou ao Santo Padre, o Papa Eugénio IV, Fernão Lopes de Azevedo fidalgo da sua casa e do Conselho de El-Rei D. Afonso V, Comendador Mor da Ordem de Cristo; e assim como por Deus foi revelado e mostrado ao virtuoso Infante este maravilhoso mistério escondido a todas as outras gerações da Cristandade, assim quis que por mão do seu vigário, e assim por outros Padres Santos com suas bênçãos e letras a conquista e comércio destas regiões até ao fim de toda a India lhe fossem dadas e outorgadas; e com este fundamento deu princípio à obra, deixando este virtuoso Príncipe para sempre a dizima de todos os frutos e novidades que em cada um ano rendessem as ilhas da Madeira e dos Açores e de Santiago, e vintena de tudo o que se em Guiné resgatasse e a estes Reinos trouxesse ao dito mestrado de Cristo em satisfação e pagamento de algumas rendas que do dito mestrado houvessem, sendo ele governador, que no descobrimento destas terras e ilhas despendeu.”


Vitorino Magalhães Godinho ao comentar este texto distingue as razões apresentadas por Duarte Pacheco das de Zurara quanto às motivações do Infante para se lançar neste empreendimento das navegações. Recorda que não corresponde à verdade histórica a referência do apelo feito pelo Infante aos outros Príncipes Cristãos e promessa de partilha de vantagens. É verdade que a Ordem de Cristo recebeu a vintena dos extratos da Guiné; e deve-se reter que segundo Duarte Pacheco o termo inicial dos descobrimentos foi o Cabo Não.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 11 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 14 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27016: Notas de leitura (1819): "Guiné Destino Imposto", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27003: Notas de leitura (1818): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
No meu livro "Guiné, Bilhete de Identidade, A Presença Portuguesa na Senegâmbia", que se publicou em 2024, procurei no texto da contracapa resumir os primórdios da nossa presença na região, deste modo:
"Tudo começa por um conjunto de navegações: dobrado o Cabo Bojador, descoberta a Angra dos Ruivos, o Rio do Ouro, a Pedra da Galé, o Cabo Branco e Arguim, Nuno Tristão chega à Terra dos Negros, ultrapassa a Terra dos Pardos, reclama-se que chegámos à Etiópia Menor - não estávamos longe do Níger (pensava-se). Anos depois, talvez em 1446, Álvaro Fernandes chega à enseada de Varela (curiosamente uma praia na fronteira norte da Guiné-Bissau). Não se assentam arraiais, pois não há condições de ocupação. Vai começar o comércio e um conjunto de viagens que permitirão conhecer a complexidade daquele mosaico étnico, predominantemente entre o Cabo Verde (hoje Senegal) e a Serra Leoa, região que passará a ser designada por Senegâmbia. Os navegantes exploram rios, como o Gâmbia, o Senegal, o Geba, o Grande de Bolola. O comércio circunscreve-se às rias e rios, começa a surgir uma comunidade luso-africana que colaborará neste comércio de homens e mercadorias, comércio feito com as chefaturas africanas.".
Achei por bem pesquisar obras de incontestável valor historiográfico para melhor se entender o como da nossa presença na região, ninguém como Vitorino Magalhães Godinho podia servir para primeiro guia. Recomendo a quem se interessa por este estudo o seu livro que está atualmente a ser comercializado com o título "A Expansão Quatrocentista Portuguesa", Publicações Dom Quixote.

Abraços do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 2

Mário Beja Santos

Escrevi um dia que a Guiné foi a primeira colónia do mundo moderno. Pura mentira, prova do que eu ignorava quanto à natureza dos primórdios da nossa presença naquela região da Costa Ocidental Africana. Afinal, andámos pelas rias e rios, um tanto pela orla marítima, a ocupação de território era ficção, pagávamos tributo às chefaturas para ali fazer trato comercial. Foi Vitorino Magalhães Godinho quem, de modo claro e inequívoco, numa obra que teve a sua 1.ª edição em 1962, intitulada A Expansão Quatrocentista Portuguesa, e agora reeditada em Publicações Dom Quixote, revelou como fazíamos comércio, nesta região que dava pelo nome de Senegâmbia, desde o rio Senegal até ao rio Geba, como vimos no texto anterior.

Retiramos da mesma obra um texto subsequente (páginas 338, 339 e 340), denominado Os Resgates ao Sul do Geba e na Serra Leoa, transcrição integral:
“Passados os rios Nalus, dos Pescadores e Pichel onde parece que não houve tráfico de grande importância, para o Sul, chega-se ao rio de Nuno. Aqui e nesse mesmo período, carregavam os portugueses muito marfim; também adquiriam escravos, mas em pequeno número. Em todo o litoral desde o Geba ao Cabo da Verga os negros vendiam algum ouro, mas principalmente muitos escravos; ficavam, em paga, com alaquecas, contas, estanho, lenços, manilhas de latão, panos vermelhos, e bacias como as de barbeiro.

A costa desde o Cabo da Verga até à Serra Leoa era de pouco trato. O único local onde atingia certa importância era o rio de Case (atual Skarcies). Aqui havia ouro muito fino, embora em pequena soma, e os indígenas vendiam escravos e colares de marfim, resgatando estas mercadorias por bacias de latão, alaquecas, panos vermelhos e lenços, que os cristãos lhes levavam.

No reinado de D. João II tentou-se estabelecer o comércio no rio de Bintombo, junto ao extremo ocidental da Serra Leoa. Chegou a edificar-se uma fortaleza na margem do rio a cinco léguas da foz, mas depois foi mandada derribar.

Não temos informações sobre as datas do início do trato com a Costa da Guiné desde o Geba até o começo da Serra Leoa. Mas esta Costa não foi descoberta antes de 1486 – então o ponto mais meridional atingido era o Biguba (correspondente ao Rio Grande de Buba) precisamente – e é provável que o tenha sido em 1460, pois Duarte Pacheco que até à morte de D. Henrique se descobrira até à Serra Leoa. Antes de 1469 já este trecho do litoral era bem conhecido e já deviam efetuar-se transações com os indígenas; na verdade, nessa data é incluído na concessão a Fernão Gomes.

A costa da Serra Leoa, que começa no cabo Ledo e acaba na mata de Santa Maria, foi descoberta por Pedro de Sintra e Soeiro da Costa, nos anos de 1461 e 1462. Segundo o Conde de Ficalho, em cuja esteira seguiram Fontoura da Costa e Damião Peres, ainda em 1469 seria mal conhecida – e por isso não daria lugar, por maioria de razão, a relações mercantis regulares – porquanto no contrato com Fernão Gomes é marcada a Serra Leoa como o termo dos descobrimentos de Pedro de Sintra e Soeiro da Costa. Mas a ilação talvez não seja fundada: pode o diploma (que aliás só conhecemos pela exposição que dele fez João de Barros) referir-se ao extremo oriental da Serra e não ao de Oeste, ao ter deixado à concorrência privada o trecho da Serra Leoa precisamente.

Desde que se iniciou o trato com os Bolões da Serra, que habitavam ao longo do mar, os portugueses compravam-lhes ouro – assaz fino, pois de quase 23 quilates, talvez o melhor de toda a terra da Guiné. Os Bolões obtinham ouro do sertão a troco de sala, recebendo em paga, dos cristãos, manilhas de latão, bacias como as de barbeiro, lenços, panos vermelhos, alaquecas, panos de algodão, etc. Nesta região da Serra Leoa, também há muita algália e marfim, alguma malagueta – de esplêndida qualidade – e papagaios pardos. Vejamos agora alguns dos resgates que os portugueses estabeleceram.

Navios pequenos subiam o rio das Gamboas, que desagua na Furna de Sant’Ana, até à povoação Harhaorche; aqui resgatava-se algum ouro e escravos por alaquecas, manilhas de latão, panos vermelhos, lenços e bacias de latão. Mais importante era o tráfico no rio das Palmas; também aqui os navios subiam o rio, passando por sete aldeias, até à grande povoação de Quinamo. Com as mercadorias que já enumerámos, podiam os portugueses carregar por ano 1500 dobras e mais de ouro e alguns escravos; os indígenas compravam o estanho por bom preço. Em compensação no rio das Galinhas não se comerciava.

Os Cobales da região de Cóia, à qual se chega subindo o curso do rio dos Manos (repare-se que temos vindo ao longo do mar de Noroeste para Sudeste), é que eram os grandes produtores do metal amarelo nesta área da Serra Leoa. Vendiam-no contra sal e estanho principalmente, embora aceitassem também as mercadorias de que tanta vez temos falado.

O trato da Serra Leoa andou arrendado anteriormente a 1502: num ano teve-o Pêro de Évora por 600 000 reais; noutro ano o arrendatário foi António Fernandes; de outra vez arrematação fez-se por 640 000 reais. De 1510 a 1513 os rendeiros foram Joham de Lila e Joham de Castro, que pagavam anualmente 535 000 reais; da vintena do comércio de 513 quintais de pau vermelho nos três anos entregaram ainda à Coroa 25 quintais, 2 arrobas, 19 arráteis e quarta. Logo a seguir aparece-nos o trato da Serra Leoa arrendado a uma parçaria capitaneada por Cristóvão de Haram, a qual pagou 1 817 000 reais por três anos, ao que parece.

Da costa da Guiné desde o rio Senegal até o extremo oriental da Serra Leoa os portugueses importavam anualmente, durante o período de prosperidade deste comércio, o total de pelo menos 3500 escravos, consoante nos informa o Esmeraldo. Este número é bastante plausível, se nos lembrarmos de que havia pelo menos 14 resgates principais, e que só do Senegal provinham uns 400. Mas entre 1505 e 1520 já este tráfico não era tão volumoso, a aceitarmos a tendência para a diminuição indicada pela mesma fonte.

Não conhecemos a média anual do ouro proveniente da mesma totalidade da costa. Conquanto cada resgate de per si não fosse geralmente de grande volume, deviam totalizar soma considerável, pois só do Gâmbia vinham para Portugal por ano 5 a 6000 dobras; dos restantes pontos do trato devia vir bem mais de outro tanto.

Eram estas duas as principais mercadorias que os portugueses adquiriam do Senegal à mata de Santa Maria. Em segundo plano aparecem o marfim, a algália, o algodão. De menor importância, a malagueta (por ser em pequena quantidade) e os papagaios.”
.

Deixamos para próximo texto o regime do comércio da Terra dos Negros. No seguimento desta obra de Vitorino Magalhães Godinho iremos a outro livro deste grande historiador, que tem o título Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, editado em 1943 para transcrever um documento de Duarte Pacheco e outro de João de Barros.


Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(Continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 4 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26984: Notas de leitura (1816): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 7 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26992: Notas de leitura (1817): “Os Caminhos da Morte”, por Manuel da Costa; Nimba Edições, 2023 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26984: Notas de leitura (1816): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
Não há qualquer dificuldade em perceber, lendo este notável ensaio, daquele que é considerado a figura ímpar da historiografia portuguesa do século XX, a sua demissão de duas instituições universitárias, durante o Estado Novo. O seu nome impôs-se desde a década de 1940 como o mais completo investigador da economia dos Descobrimentos, tanto em Portugal como no mundo de então. Não podia haver maior incómodo para o regime do Estado Novo do que revelar a questão fulcral da expansão quatrocentista portuguesa, impunha-se, no discurso oficial que andávamos a dilatar a fé, a civilizar selvagens, a estabelecer pontes entre civilizações. Acontece que Vitorino Magalhães Godinho, no caso vertente desta obra data de 1962, procura fazer uma leitura integral de qual a origem da expansão na historiografia portuguesa, mostrando como esta estava completamente ao serviço dos ideais régios; enumera os complexos económicos da Europa e as raízes hispano-portuguesas medievais da expansão, as maneiras de sentir e de pensar e o comportamento económico e no final do seu portentoso estudo explica esmiuçadamente como se impôs a nossa presença na Senegâmbia. Eram conceitos intoleráveis para uma doutrina que impunha o Infante D. Henrique como figura providencial, um cruzado, isto quando a documentação aponta para outros objetivos. Vamos continuar com alguns outros textos de Vitorino Magalhães Godinho, tendo sempre a Senegâmbia por perto.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1

Mário Beja Santos

Entre 1409 e 1475 a expansão portuguesa não só deu um salto formidável como forjou um sistema socioeconómico inovador. Surgiu um tipo social novo, o cavaleiro-mercador, uma nova constelação social, o senhorio capitalista, restruturaram-se em profundidade os laços político-económicos, emergiu um Estado mercantilista-nobiliárquico. A historiografia portuguesa do século XX tem os seus máximos expoentes a figura de Vitorino Magalhães Godinho. Devemos-lhe a frescura das suas teses em que procurou compatibilizar os diferentes objetivos prosseguidos por essa expansão: uma política de conquistas territoriais pela cruzada contra o Islão no Magrebe, uma dimensão que se revelará trágica pela exaustão de recursos e meios, arrastando o fim da dinastia de Avis; a metódica devassa do oceano desconhecido para desenvolver ambicionados circuitos mercantis e povoar arquipélagos.

Como tudo isto foi impulsionado pode ser lido na obra A Expansão Quatrocentista Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, Publicações Dom Quixote, última edição em 2018. O historiador abalança-se a articular: crise financeira da nobreza e necessidades de mercados, novas janelas de oportunidade para a burguesia mercantil; o ouro do mundo negro como alvo dominante, mas também os escravos, as matérias tintoriais, o trigo e o açúcar. Enfim, um século com uma configuração geográfica bem desenhada, o noroeste africano, entre Marrocos e o Sudão Atlântico, Madeira, Açores, Canárias, o caminho da Senegâmbia, uma marcha contínua de expedições até se chegar ao Índico e depois ao Brasil.

É nesta abrangência da análise que o historiador faz desde a revolução intelectual do século XIII, a enumeração dos fatores do surto da expansão quatrocentista, as maneiras de sentir e pensar e as expetativas económicas de encontrar novos espaços, o plano henriquino, as condições culturais da navegação oceânica, o que eram ao tempo os impérios negros do ouro e, por fim, os resgates de Arguim e Guiné que se pretende dar ao leitor uma ideia de como esta expansão ultramarina se posicionou na Senegâmbia. Retiraremos desta obra doi capítulos fundamentais sobre o comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba e os resgates ao Sul do Geba e na Serra Leoa – era este o universo da Senegâmbia.

Extravasando estes marcos cronológicos, far-se-á adiante referência ao regime do comércio com a terra dos negros e a influência do comércio português na vida indígena.


O comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba (páginas 335 a 338)

De 1448 a 1460 descobriu-se a costa desde o Cabo Roxo (extremo setentrional da atual Guiné-Bissau) até à Serra Leoa e conseguiu-se entrar em relações pacíficas com os negros desde o princípio da Guiné (Palmas de Sanagá, ao Norte do Senegal) até aquele extremo meridional atingido à morte de D. Henrique. O primeiro trato foi o da região do Senegal e de Cabo Verde, anteriormente a 1455. Dos Jalofos (desde o Senegal ao Gâmbia) obtinham os portugueses escravos negros em abastança e algum ouro. No tempo de D. Henrique, ou seja, antes de 1460, compravam-se 25 a 30 escravos por um cavalo velho, consoante informa Münzer; posteriormente, o preço dos escravos subiu, pois por um cavalo os negros do Senegal já só davam 10 a 12 escravos; nos primeiros anos do século XVI o preço ainda era superior: mal se conseguiam 5 escravos por um cavalo.

O número de escravos anualmente importados para Portugal devia ser elevado: lê-se na Relação de Diogo Gomes que desde a descoberta do rio até à data em que foi redigida se têm trazido pretos sem número e cada vez mais; Valentim Fernandes também diz que se resgatam muitos escravos negros no rio Senegal; o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, é ainda mais preciso, pois declara que quando havia bom resgate neste rio se retiravam por ano 400 escravos e outras vezes menos a metade, mas mostra igualmente que o comércio estava decadente em 1505. Ouro, todos concordam em que se resgatava pouco; pagava-se com lenços, panos vermelhos e alaquecas (pedras semipreciosas); os portugueses também vendiam alquicés (capas mouriscas), bedéns (capa feita de esparto), panos azuis e compravam marfim, coiros de vacas e outros animais. Os barcos portugueses subiam o rio sessenta léguas até o reino interior dos Tucorores, onde compravam escravos – 6 e 7 por um cavalo.

Do Cabo Verde ao rio Gâmbia inclusive vivia “má gente” – Sereres e negros de Niumi -, os primeiros contactos foram mortíferos para os portugueses. Mas entre 1450 e 1456 estabeleceram-se transações com os Mandingas do Gâmbia. No porto de Andam, em terra de Sereres (seis léguas ao Sul de Cabo Verde) houve resgate de escravos, desde quando não o sabemos, talvez também desde esse período. O resgate chegou a ser florescente, dando os pretos dez escravos por um cavalo de pouca valia; mas no começo de Quinhentos já não existia. De igual modo existiu o resgate de escravos no Porto de Ale (duas léguas ao Sul do atual Red Cape) que conseguia 10 escravos por um cavalo; em 1505 ainda continuava este comércio, mas o preço dos escravos aumentara – agora só se recebiam 6 no máximo. A esta data os portugueses compravam aqui muita carne e milho, feijões, lenha e água para abastecer os navios, mas tudo caro.

Em 1460, já os portugueses traficavam nos rios dos Barbacins (Salum). Até esta data davam os pretos 7 escravos em troca de um cavalo; houve então uma alta de preços derivada de concorrência entre mercadores cristãos, gabando-se Diogo Gomes de ter conseguido fazê-los baixar para 14 ou 15 escravos. O certo é que no primeiro lustro do século XVI um cavalo só pagava novamente 6 ou 7 cabeças humanas, podendo, porém, ser de ruim qualidade.

De toda a terra dos Jalofos, os portugueses também importavam papagaios verdes, cujo negócio rendia bons lucros.

Com os Mandingas do rio Gâmbia, Diogo Gomes e Cadamosto firmaram paz e amizade em 1456, mas não é impossível que já um pouco antes se tivessem feito transações. Aquele navegador obteve 180 arráteis de ouro em troca de panos e manilhas, e subindo até o rio Cantor, estabeleceu aqui o comércio; Batimansa (mansa significa rei), mais perto da foz, recebeu escravos. O veneziano resgatou com o Batimansa escravos e algum ouro. Desde então o resgate manteve-se, estando florescente no período de 1490-1505. Também perto do litoral, os portugueses trocavam cavalos por escravos; em Cantor, onde se realizavam grandes feiras, vendiam panos vermelhos, azuis e verdes de pouca valia, lenços, seda, manilhas de latão, barretes, sombreiros, alaquecas, etc.; com estas mercadorias adquiriam muito ouro bom – cinco a seis mil dobras por ano no dealbar de Quinhentos. Diz Valentim Fernandes que o rio é frequentado por muitos navios, sinal de intenso comércio. De uma vez, antes de 1502, uma caravela trouxe de Cantor ouro no valor de 2 contos 62 830 reais. O comércio de Cantor e de todo o rio Gâmbia teve-o mestre Filipe de arrendamento desde o dia de S. João de 1510 a igual dia de 1513, pagando ao Estado pelo contrato 1 363 500 reais por ano. Em 1514 arrendou-o de novo o mesmo mestre Filipe, de parçaria com Diogo Lopes, exatamente pela mesma quantia.

Ignoramos quando abriu o trato com os Mandigas e Felupes do rio Casamansa. Na última década do século XV e primeiro lustro do XVI era zona de muito resgate. Os portugueses levavam para lá cavalos, lenços e panos vermelhos, com que adquiriam escravos e algodão indígena, bem como gatos-de-algália; de igual modo levavam para lá ferro, por ser de elevado preço neste mercado. Na Corte do Casamansa residiam mercadores portugueses.

Desconhecemos igualmente qual a data em que os portugueses principiaram a traficar com os Mandingas e os Banhuns do rio de S. Domingos (Cacheu); deve ter sido à volta de 1456. Segundo Münzer, encontraram aqui malagueta, algodão e marfim. Na transição do século XV para o XVI havia muito resgate, residindo aqui mercadores cristãos, junto do Farimbraço (régulo de Braço). É região de frequentes e concorridas feiras. No interior do regulado de Farimbraço, resgatavam-se cavalos contra escravos. Aqui e no litoral os portugueses adquiriam algália e algodão (são principalmente os colonos do arquipélago de Cabo Verde a vir comprá-lo). Também há muito mel e cera.

A algália era ainda mais abundante no estreito de Catarina, onde aliás se obtinham as mesmas mercadorias que no rio Cacheu.

Em 1456, Diogo Gomes conseguiu entabular comércio com os Gogolis e Biafares do rio Geba, trazendo consigo malagueta, algodão e marfim. Mas só relativamente ao período de 1490-1505 dispomos de informações pormenorizadas. Os portugueses trocavam um cavalo, ainda que não fosse bom, por seis ou sete escravos. Do coração do império de Mali chegava ao Geba ouro, de que os cristãos conseguiam pequena porção, contra panos vermelhos, lenços e alaquecas; para Portugal ainda vinha ouro, e para lá seguiam estanho, contas e manilhas. No rio Biguba o resgate era idêntico.

Francisco Martins arrematou o comércio dos rios de Guiné, com exclusão do Gâmbia (arrendado a outro) e do Senegal (objeto de contrato à parte), até à Serra Leoa, durante o período de três anos que vai de S. João de 1509 a igual dia de 1512, pela quantia de 2 753 240 reais (com 1%) quer dizer, 917 746 reais por ano.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 30 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)