1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2021:
Queridos amigos,
As férias da Páscoa já passaram, correram deliciosamente, retoma-se o trabalho e Paulo Guilherme discute com o seu grande amigo Gilles Jacquemain os desafios que se põem às medidas de política dos consumidores, a direção do movimento está dividida entre aqueles que preferem trabalhar confinados às medidas de política existentes e os outros que alertam para as incidências da globalização, a falta de regulamentos que permitam travar as acentuadas desigualdades sociais, o imperativo da sustentabilidade, as alterações profundissimas que a era digital está a impor em todas as sociedades, remexendo nos modos de trabalho, nas comunicações, nas vivências. A organização de que fazem parte reúne em Bruxelas, aproveitou-se aquele período festivo para uma reunião de trabalho, Paulo recebeu a incumbência de preparar um documento de orientação estratégica, precisa muito do apoio de Gilles Jacquemain, é isso que transparece nesta carta e fala-lhe igualmente de um convite bastante insólito que lhe foi feito para falar num clube dedicado a tertúlias sobre a presença de Portugal na Flandres e na Bélgica.
Paulo não sabe como nem porquê, aceitou mais esta incumbência.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (45): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon cher Gilles Jacquemain, escrevo-te um tanto à pressa para tecer alguns comentários em torno da reunião da Direção da nossa Associação Europeia de Consumidores e dar-te conta do insólito convite que me fizeram Noël Molisse, da Confederação Europeia das Famílias, Magda Van Gompel, da Liga das Mulheres Previdentes Socialistas da Bélgica e John Jacobs, do recém-criado Clube Europeu dos Direitos do Homem. Antes, porém, quero manifestar o meu regozijo pela tua boa companhia no jantar de Dia de Páscoa, em casa da Annette. Se o almoço foi um festim dos melhores petiscos belgas, se a companhia da família se revelou encantadora, não menos feliz me deixou a tua presença ao jantar, bem como da tua mulher. Acho a Françoise já bem restabelecida de toda aquela grave situação em que viveu depois das terapêuticas para combater o cancro da mama, e com tão bom sucesso.
Começo pelo menos importante, o convite. Imagina tu que a tertúlia Maurice Maeterlinck pretende animar um conjunto de conversas sobre as relações entre a Bélgica e os diferentes Estados-membros. Estes nossos amigos deram-me a saber que pretendiam não um estudioso como Eduardo Prado Coelho ou um escritor como Vasco da Graça Moura, querem que seja alguém ligado aos problemas da cidadania para falar da presença de Portugal na Bélgica, estão já aprazadas as conversas com os convidados da Irlanda, da Dinamarca e do Luxemburgo, eu entro a seguir, em data a agendar para julho, mesmo no limite antes das férias. Um tanto irresponsavelmente, aceitei, não posso negar que o conhecimento histórico não faz parte da minha formação universitária, mas sinto-me muito arredado desse Henrique da Borgonha que casou com uma filha natural de Afonso VI, D. Teresa, detiveram o Condado Portucalense, aí nasceu Portugal. É evidente que não ignoro as relações entre Portugal e o Ducado da Borgonha, vem nos nossos compêndios de História a participação dos Cruzados flamengos na formação de Portugal, a Flandres, como tu te recordas da belíssima exposição em Antuérpia intitulada
As Feitorias, terá um papel fulcral nas nossas relações económicas no povoamento açoriano, nos negócios do açúcar da ilha da Madeira, nas compras indispensáveis para a economia dos Descobrimentos Portugueses. Há casamentos importantes na Primeira Dinastia, temos depois a Feitoria Portuguesa de Bruges e a Feitoria Portuguesa em Antuérpia, não te esqueças que Carlos V, nascido em Gand, casou com Isabel de Portugal, desse casamento temos Filipe II de Espanha e I de Portugal. Isto são ideias soltas que me vêm à cabeça, não sei como é que vou arranjar tempo para ordenar todos estes dados cronológicos, tenho que estudar todo este comércio que fazíamos com a Flandres, ele está bem repertoriado do lado português, um dos nossos notáveis historiadores do século XX, Vitorino Magalhães Godinho, escreveu obras incontornáveis sobre esta economia. Um dia estava a visitar a Catedral de S. Miguel e Santa Gudula, olhei para um vitral e vi as armas de Portugal, procurei saber de que se tratava, o doador do vitral era o rei D. João III de Portugal, casado com a irmã de Carlos V. Um dos nossos mais influentes escritores românticos, Almeida Garrett, foi o primeiro encarregado de negócios de Portugal na Bélgica de Leopoldo I, entre 1834 e 1835. Do que tenho lido, não prestou grandes serviços, mas ficou conhecido pelas suas toilettes espampanantes e muitos amores de ocasião. Por ora basta, prepara-te para em julho compareceres na dita tertúlia, não falaremos dos consumidores, mas dos portugueses na Flandres e na Bélgica.
Vamos agora a assuntos mais sérios. Sinto que há uma nítida fratura entre nós para adotar uma estratégia adequada aos novos tempos. Espero que te recordes que comecei a minha intervenção falando da revisão no fim do século da Carta Mundial dos Direitos do Consumidor, em que se introduziu o direito ao consumo sustentável. Não teremos grande futuro se não apostarmos no princípio da sustentabilidade dos modos de produção, distribuição e consumo, seremos ultrapassados por aqueles que começam agora a falar no comércio justo, nos consumidores responsáveis, na responsabilidade social, etc. Gostes ou não, o ambiente, tal como o consumo, é uma problemática que atravessa a sociedade inteira. O cidadão que adquire bens e serviços é a mesma pessoa que não pode viver sem árvores nem água, as doenças do ambiente são igualmente doenças da economia, do mercado, das aspirações de vida. De um lado, temos os padecimentos ambientais, do outro lado a sofreguidão do consumo. Ultrapassámos as questões dos aerossóis, dos CFC, das vacas loucas, mas temos recursos hídricos envenenados, o espetro de acidentes com substâncias químicas, e prosseguem os duelos intermináveis a favor e contra os transportes coletivos e a restituição de ruas aos peões. Fui apoiado nesta discussão pelo Bengt Ingestarm, dos consumidores suecos, e pela Margaret Dampier, da Liga Britânica do Consumo e Ecologia. Os nossos colegas dos países do Sul parecem mais interessados em manter-se na coutada dos direitos do consumidor na esfera da proteção jurídica. Parece que lhes é indiferente que os consumidores e os ambientalistas têm trabalhado praticamente sempre de costas voltadas, e por isso têm visões fragmentadas do mercado. No documento que estou a preparar para a Direção, digo claramente que o ambientalista pretende valorizar em primeiro lugar o ambiente, ao passo que o defensor dos consumidores se mostra mais antropocêntrico e tecnocêntrico, isto é, tem a convicção de que os conhecimentos científicos podem servir tanto para regular o mercado como para resolver os problemas ambientais por meios tecnológicos. Isto faz parte de um paradigma em que não têm um papel relevante as formas de recuperação, redução ou reciclagem de todos os elementos da produção, que é um dado fundamental para a economia circular. E temos inclusivamente que produzir documentos de reflexão entre as nossas associações e depois enviá-los para a Comissão Europeia sobre a globalização em curso: de que modo é que o potencial da globalização encaixa com o desenvolvimento sustentável.
Gilles, meu inesquecível amigo, há também que ter em conta o que se passou na recente Cimeira de Joanesburgo, onde novamente se afirmou a importância dos modos de consumo ambiental e socialmente responsáveis, e parece-me que a Comissão Europeia ouviu bem o recado, o novo Programa Europeu para o Ambiente não deixa equívocos quanto ao princípio do poluidor-pagador, lembras-te com certeza, do papel que produzimos quando se pôs à discussão o VI Programa de Ação Comunitária em Matéria Ambiental (2001-2010), apoiámos as medidas de ajuda para que as organizações de consumidores apoiem os seus membros a fazer escolhas bem informadas. A dimensão ética da economia parece estar na ordem do dia, já demos apoio à legislação europeia sobre os cemitérios de automóveis, isto para dizer que a reciclagem passou a ser encarada como uma excelente oportunidade de negócio: resíduos urbanos, atividades de autorias ambientais e energéticas, bioarquiteturas, descontaminação de solos, ecodesign, gestão dos recursos hídricos, etc. E temos que estar do lado dos incentivos às empresas que insistem na reciclagem nos domínios do vidro, embalagem, sucata, indústrias gráficas e transformadoras. Detenho-me por aqui Gilles. Se a política dos consumidores faz parte da estratégia da União Europeia para melhorar a qualidade de vida, temos que nos declarar, na prática quotidiana a favor de uma agenda que não pense só nos direitos clássicos da proteção do consumidor, mas que os faça intervir na era digital, no desenvolvimento sustentável, nos novos desafios económicos, e igualmente devemos insistir em ter um papel mais representativo nas políticas de saúde, devemos ir muito mais longe do que dar opinião sobre os preços dos medicamentos ou a informação ou publicidade dos mesmos. É esse o documento que eu vou preparar, com os múltiplos afazeres do presente, tenho que fazer das tripas coração para obter papel que estimule a discussão. Conto com a tua fraternidade. Logo que esteja pronto, irás apreciá-lo, comentá-lo, beneficiá-lo. Faço-te encarecidamente este pedido.
As férias da Páscoa tiveram o condão de nos aproximar mais, já não sei o que seria a minha vida sem o ânimo que me dá Annette, a distância que nos separa já deixou de ser dolorosa, é um amor verdadeiro que nos traz imensa serenidade, cumplicidade, é um convívio sempre criativo. Há momentos em que olho para o meu passado recente e abençoo aquele encontro na Rue Froissart que tudo transformou, Annette e eu não temos dúvidas que nada será como dantes e batalhamos dia-a-dia pelo futuro radioso que o nosso amor semeia. Vê se me ajudas, também temos que encontrar o melhor azimute para o futuro das políticas da cidadania no consumo. Bien à toi, Paulo.
Henrique de Borgonha, conde de Portucale
Filipe o Bom e Isabel de Portugal
Retrato de António da Borgonha, de Rogier Van der Weyden, mas há quem diga que se trata do filho do Regente D. Pedro, irmão de D. João I, que era conhecido com o nome de Messire João de Coimbra
Fonte do Brabo, Antuérpia
Fachadas de belos edifícios na Grand-Place de Antuérpia
Almeida Garrett
Um momento de amizade luso-belga junto da imagem icónica do Manneken Pis, monumento de 1619, em Bruxelas
(continua)
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Nota do editor
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