sábado, 27 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22043: Os nossos seres, saberes e lazeres (443): Quando vi nascer a Avenida de Roma (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Os confinamentos remetem-nos para passeios pedestres, em horas avessas ao bulício. Assim como alguém escreveu uma viagem à volta do seu quarto, regressei a um significativo local da minha infância e da minha adolescência e vou usar e abusar do privilégio que me foi concedido de ver nascer um importante troço da Avenida de Roma que em tempo meteórico apontou até à Praça de Londres, tornou-se numa artéria de grande significado, acolheu estratos da média burguesia, e ficou na memória um certo comércio que ainda hoje goza de lenda, cinemas, cafés, livrarias, discoteca, papelaria, loja dos cafés, para já não falar da roupa janota e mais tarde um centro comercial. Gerou uma imagem de culto, com as linhas aerodinâmicas de certos arrojos arquitetónicos, basta pensar em Jorge Segurado e Cassiano Branco, os cafés eram diversificados, quem frequentava o café Londres não era a mesma clientela do Café Roma, quem ia ao Tique-Taque não era a mesma clientela de Luanda ou da Sul América. Havia a tertúlia da Livraria Barata e o ponto de encontro dos intelectuais mais jovens no café Vá-Vá.
Um mundo que se extinguiu, compreende-se, já lá vão quase 70 anos. E a gente vai continuar a rememorar.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (1)

Mário Beja Santos

Desta feita, procedo a uma incursão pelo passado, retomo a um livro meu autobiográfico, intitulado O Fedelho Exuberante, Uma crónica familiar pequeno-burguesa no pós-guerra, Âncora Editora, 2015. Para criar atmosfera às imagens e texto que se segue, levo o leitor aos diferentes locais onde decorre a narrativa, como tudo começou. Em 1952, quando fui viver na Rua António Patrício, no chamado Bairro Social de Alvalade, a rua tinha um aspeto insólito, um enfiamento de prédios que vinham da Avenida de Roma e terminavam na Rua Afonso Lopes Vieira. Ao cimo, junto da Avenida de Roma, havia um quarteirão de casas de bairro social que culminava numa construção já diferente, dois prédios de gaveto a olhar para os muros oitocentistas da Quinta do Visconde de Alvalade. Tínhamos uma rua alcatroada, prédios do lado esquerdo de fachada semelhante, e a velha quinta onde a miudagem se entretinha. Vestígios do passado não faltavam. Logo a velha esquadra, um dos nossos colegas, o Aniceto, filho de agente da dita esquadra, tinha autorização para levar amigos para andarmos a brincar nos calabouços, foi sorte de pouca dura, um dia fechámos o Zeca numa das celas vazias, coisa mais lúgubre não conhecíamos, com uma janela gradeada lá no alto e um estrado de pau e uma pia no canto, o Zeca berrou, veio o agente de serviço, acabou-se a brincadeira, mesmo em dia em que não havia presos. Mas o dado mais extraordinário que a memória reteve foi termos visto nascer a Avenida dos Estados Unidos da América, a partir da sua ligação com a Avenida de Roma. Talvez valha a pena reproduzir o que se escreveu no sobredito livro autobiográfico:
Ao princípio da tarde, o Hipólito, que tinha ido levar comida à avó, no Hospital do Rego, entrou esbaforido na sala de aula e gritou a informação: Malta, já chegaram as máquinas grandes, estão a deitar abaixo o olival! Dona Emília, a nossa professora, bem gesticulava a tentar pôr a ordem, dentro da sua folgada bata branca, o ponteiro que empunhava na mão direita sibilava na nossa direção, era o pandemónio fora das carteiras, a fazer perguntas ao Hipólito, Dona Emília berrava a plenos pulmões: Ordem! Todos sentados!
Aguentámos a custo até ao toque da campainha, tirando a malta de Telheiras que precisava de lanchar e encher a barriga, nós, os rapazes do Bairro das Caixas, fomos a correr para junto da Estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, do outro lado estava a Avenida 28 de Maio, nós na placa circular da Praça Mouzinho de Albuquerque, queríamos ver o grandioso espetáculo de baixo para cima. E o que estávamos a ver eram os caterpílares a remover a terra e a abrir o estradão da futura Avenida dos Estados Unidos da América. Diante dos nossos olhos, o olival da quinta estava a desaparecer, dentro de um ano teríamos ali uma avenida alcatroada, prédios altos, todos esverdeados, do lado esquerdo, prédios da arquitetura moderna, mais baixos, do lado direito, ali ficava o cinema Quarteto, saudosa memória. Por ali passarão, ao longo dos anos, o maestro Frederico de Freitas, o general Arnaldo Schulz, o marechal Costa Gomes, o compositor Joly Braga Santos a trautear as suas composições, pretéritas e futuras. Lá em cima teremos o café Vá-Vá, ali irão pontificar Eduardo Prado Coelho e Lauro António, à sombra de um painel de azulejos de Menez, que felizmente se conserva.
A malta perdeu um olival, baloiços, esconderijos, lugares de brincadeira. Desapareceram armazéns de toda a espécie de traquitana, um dia mais tarde será ali implantada a Clínica de São João de Deus. A Lisboa dos anos 1950 crescia, estendia tentáculos, uma forma de progresso arrancava aquele lugar chamado Alvalade, que confinava com as Avenidas Novas.
Estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, à esquerda o início do coberto florestal do Campo Grande, para cima a nascente Avenida dos Estados Unidos da América, no lado esquerdo o Bairro Social de Alvalade, a primeira rua é a António Patrício, tendo em frente a Quinta do Visconde de Alvalade, onde a petizada brincava alegremente, em meados da década de 1950 tudo se transformará. Foi este o mundo que eu vi nascer e o outro que eu encontrei quando aqui cheguei, em 8 de março de 1952.
A velha esquadra do Campo Grande, já fora escola, será demolida para dar lugar a um enfiamento de prédios novos.

Em 1952, erigia-se um arrojado projeto de Jorge Segurado, quatro prédios monumentais esquinando a Avenida dos Estados Unidos da América com a Avenida de Roma, a petizada saía da escola e deslumbrava-se com aqueles longos andaimes e um estilo arquitetónico totalmente diferente do que se praticava no nosso bairro. Passeávamos demoradamente no estaleiro que era a Avenida de Roma, íamos bisbilhotar o Bairro de São Miguel, também distinto do nosso, o nosso era conhecido por Bairro das Caixas, dele se falará mais adiante, também era conhecido por Bairro das Caixas de Previdência, o meu prédio pertencia à Caixa de Previdência dos Empregados da Assistência e estava ladeado por um prédio da Caixa de Previdência dos Médicos e Caixa de Previdência do Pessoal da CUF, quando se começara a construir os chamados prédios verdes entre a Rua António Patrícia e a Avenida dos Estados Unidos da América preponderão a Caixa de Previdência do Ministério da Educação e o Cofre de Previdência das Forças Armadas.
Com o passar dos anos, observámos que o comércio mais atrativo se implantara do cruzamento entre a Avenida dos Estados Unidos da América e a Avenida de Roma até à Praça de Londres, no sentido contrário, isto é, entre o cruzamento e a Avenida do Brasil, tendo ao alto o Hospital Júlio de Matos, havia pequenos cafés, caso do Jacaré Paguá (que ainda sobrevive) e o cinema Alvalade, de saudosa memória, recordo os ciclos de cinema que ali passavam no verão com filmes de culto. Demolido, deu lugar a uma outra construção, o que resta é um fresco da pintora Estrela Faria.
Havia a preocupação de incrustar motivos escultóricos nos novos edifícios, motivos algo mitológicos, desde sereias a centauros, quem por ali passava sentia que a nova classe residente gostava de viver com as paredes aprimoradas, um género de baixo-relevos introduzia um toque de classe.
Aproveita-se o espaço do lintel e neste caso a senhora deitada parece estar a convocar a Natureza úbere ou a fecundidade
Mulheres desnudadas não faltam pela Avenida de Roma, esta amazona leva os louros a triunfador qualquer, o cavalo olha-a com profunda admiração
As ruas laterais da Avenida de Roma abrem-se aos novos bairros que então surgiam, esta é a Rua Frei Amador Arrais, uma entrada para o Bairro de São Miguel, vai por aí fora até à Rua de Entrecampos, desemboca na Avenida de Roma, tem pracetas e a sua arquitetura, mesmo a uma escala mais baixa, tem o seu parentesco com a dos residentes da Avenida de Roma. Aqui na esquina funciona o Fruta Almeidas, procurado pelos sumos, frutas e legumes, pastelaria sobretudo os lendários pastéis de massa tenra
Um dos aspetos mais curiosos desta arquitetura é dado pela variedade de materiais usados nas portas de entrada para os residentes; a chamada porta de serviço, entrada das criadas, do leiteiro e do padeiro é de grande modéstia. Passadas todas estas décadas, continuo a parar regularmente frente a esta porta, tem a sua majestade mas também anuncia uma rutura com as linhas convencionais, felizmente que no restauro lhe conservaram as cores de origem, gera-se o sentimento que se entra num prédio de gente com as suas posses. A nova média burguesia tinha nestas entradas um belo cartão de visita. Vasco Pulido Valente dedicou um dia um artigo à Avenida de Roma, aos novos residentes, oficiais das Forças Armadas, chefias da administração, gente dos negócios. Décadas depois, a artéria deixara de ser uma referência, as crianças de outrora, agora gestores, quadros, professores, etc., mudavam-se para Miraflores ou para a linha do Estoril, ficaram os seniores, deu-se um notório envelhecimento dos residentes, pensionistas com um certo caráter de remediados.
Muitos dos edifícios da Avenida de Roma caprichavam com as suas portas em metal, era então uma novidade, com molduras em mármore e boa escadaria até ao elevador. Países como a Alemanha classificam hoje este tipo de ornamentos, são verdadeiramente símbolos de uma época, não se podem alterar
A Sinfonia, considerada hoje loja com história, vem dos tempos primitivos, o seu interior é impressionante, em madeiras da época, um belo design de interiores, tem conhecido dificuldades e a pandemia agravou a sobrevivência. Quando a pandemia passar e o leitor tiver oportunidade de deambular ali à porta não se escuse a entrar, tem um interior com largas décadas, foi uma livraria com grande prestígio, a sua rival, a Barata fica no outro lado da Avenida, umas escassas centenas de metros à frente, perto da Avenida João XXI, era ali que nós íamos à procura dos livros proibidos
Imagine o leitor o que era a petizada do bairro social de Alvalade sair da escola primária nº 151 e vir praticamente todos os dias assistir à construção deste troço da Avenida de Roma, olhávamos embasbacados as linhas aerodinâmicas das varandas, em frente a loja era a Pastelaria Suprema, infelizmente perdida, tinha mezanino e nos últimos anos era ali que iam comer os seniores da zona (ali ou no Café Luanda). Recordação desaparecida. Olho agora para a cave ali à direita, está ligada a um filme de culto.
O filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (saído em 1963) com Isabel Ruth e Rui Gomes, marca o início do Novo Cinema português, história dramática de um jovem que vem do campo para a capital, integra-se com enorme dificuldade num universo todo em construção, ainda marcado pela ruralidade ali bem perto, trabalha como sapateiro e namora com uma criada de servir nas chamadas Avenidas Novas. Tudo vai correr mal. A música de Carlos Paredes atinge níveis do sublime.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22020: Os nossos seres, saberes e lazeres (442): Convento de Jesus de Setúbal, com o restauro recente, ainda mais belo! (Mário Beja Santos)

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