sábado, 6 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21049: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (13): Pequenos caprichos - I : Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Ponta do Padrão S. Jorge na Foz do Rio Zaire


1. Em mensagem do dia 18 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, a segunda relembrando os seus bons tempos vividos em Angola


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 12

PEQUENOS CAPRICHOS - I

Todos os caprichos são pagos. Uns mais que outros.
Uns valem bem o que custam e outros nem por isso.
No entanto, é através deles que nos ultrapassamos, nos satisfazemos ou nos vangloriamos. Por outro lado, os caprichos são valorados conforme as suas circunstâncias e as suas possibilidades.
Adiante, que também não tenho a pretensão de filosofar.

Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Desde que cheguei a Cabinda, foquei logo a pesca como tempo de lazer. Sozinho ou acompanhado pela minha Mulher, acabei por me relacionar com outros que comungavam do mesmo prazer. O grupo foi-se alargando com a mobilização para convívios. Não levou muito tempo para organizarmos concursos.
O entusiasmo dos concursos de pesca acentuou-se e tornou-se notório, chegando a merecer transmissões em directo pela rádio. (Não havia televisão…)
De sucesso em sucesso e com a colaboração da Delegação da Direcção Geral dos Desportos, fomos experimentando as praias ao longo da costa Cabindense e, até, as lagoas no interior.

Um dia, querendo ir mais além:
- Porque não irmos a Santo António do Zaire, atravessar o rio e participar lá num concurso?

Partimos de madrugada, num rebocador da firma Montez & Newman, para fazermos aqueles 60 quilómetros de costa congolesa.

Os pescadores de Cabinda foram de rebocador a Santo António do Zaire, participar/colaborar num concurso

Tudo normal, até que nos apareceu aquela corrente monstruosa vinda da foz do Rio Zaire, com o maior caudal do Mundo. Indescritível, sentirmo-nos tão pequeninos naquela diminuta “casca de noz” de 35 metros, a subir e a descer aquelas montanhas de água em movimento. Quase toda a gente vomitava, mas eu não me distraía a olhar as águas. Sentadinho na borda e bem agarrado, olhava bem para longe, seguindo a experiência de anteriores navegações. Porém, o meu amigo Carlos Guerra veio ao meu encontro, cambaleando, mas bem agarrado, sentou-se na minha frente e, já esgotado de tanto sofrimento e a afagar a barriga, diz-me:
- Estou “fodidinho” de todo. Nunca me senti tão enjoado em toda a minha vida.
Aí “explodi e sulfatei” tudo o que havia à volta. Foi uma pena, porque já não faltava muito para chegarmos.

Havia uma equipa de repórteres da Rádio Clube de Cabinda que, perante a dúvida de conseguirem entrar em directo a partir de bordo, mas com a certeza do que iria acontecer, deixaram na sede uma gravação simulando o tal “directo”. E “em cima do acontecimento”, transmitiu: “ …neste momento, a viagem está a ser difícil para as mulheres, que estão todas enjoadas e em sofrimento. Por acaso nós, os homens, estamos a saborear bem este doce embalar…”.

Padrão de S. Jorge na Ponta Padrão da Foz do Rio Zaire, assinalando a chegada de Diogo Cão, no ano de 1482. A largura do Rio Zaire, na sua foz é tão grande que não se vislumbra a outra margem. Diogo Cão flectiu para o interior, convencido de ter atingido o ponto mais a sul de África (Cabo da Boa Esperança).

Os pescadores de Cabinda não faziam ideia do tamanho dos peixes que passam pela foz do Rio Zaire.
Colocadas as canas na praia, aguardámos a subida da maré e a consequente entrada dos peixes. E, quando isso aconteceu, foram vários os pescadores que ficaram sem fio e outros sem a cana. Nem dava para lutar com os peixes. Eles levavam tudo.
Valeu-me o facto de ter um fio grosso (especial 90), com tenso de aço. Eu estava bem seguro e com o alicate cortante à mão para não ficar sem cana. Sobravam poucos metros para além das ondas e da praia. E, por isso, não podia atirar para muito longe.
Os pescadores locais, foram tirando alguns peixes: corvinas, sapudos e raias. Tudo isso dava pouca pontuação. Todos se queixaram que fora um dia de pesca para esquecer.
Diziam: - Hoje não deu nada.
Fisguei um pargo e não o larguei mais. Era relativamente pequeno (14,2Kgs) mas tinha uma pontuação elevada. E foi por isso que venci o concurso.

No final, quando vínhamos pesar o peixe, já se sabia quem ia ganhar.
Oiço o repórter, no seu directo:
- Ganhou o do costume (eu já tinha ganho 2 concursos, na altura como atleta da Rádio Clube de Cabinda). Foi aquele atleta que nos trocou pelo Clube da Câmara Municipal. Mas isto não vai ficar assim, porque a RCC ainda não recebeu o dinheiro da transferência.

Primeiro triunfo na Pesca


Quando Campeão de Cabinda, fui felicitado pelo Governador Brigadeiro Themudo Barata.

Equipa da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos deu o 1.º lugar em Santo António do Zaire

No banquete organizado/oferecido pelo Governo Civil de Santo António do Zaire, recebemos os prémios e lindos discursos assinalando o evento inédito.
Já no regresso, noto algumas ausências. Entre elas, a dos repórteres da RCC.
Perguntei por eles e informaram-me: - Ficaram tão acagaçados que preferiram ficar cá até que haja avião para Cabinda.

(Continua)

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21024: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (12): Feliz em África - II (e sem filmes)

Guiné 61/74 - P21048: Os nossos seres, saberes e lazeres (396): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
É verdade que as palavras se gastam e que, tantas vezes, as imagens se sobrepõem e as substituem com mais clarividência. Aqui estamos a despedir-nos de Vila Rufolo, e com pesar. Quando se percorre a torre-museu percebe-se rapidamente como o milionário escocês que adquiriu um sítio completamente degradado o reconfigurou para o romantismo oitocentista, e com pleno sucesso.
Tornou-se visita obrigatória para gente de todas as posses, foi exaltada por artistas plásticos e escritores, e não é por acaso que se sobe a torre-museu com os acordes da ópera Parsifal de Wagner.
Daqui se vai partir para Villa Cimbrone, onde outro britânico recriou beleza sempre tendo como referências Villa Rufolo e a igreja de San Francesco, de origem gótica mas reconstruída no século XVIII. Às panorâmicas que estas duas vilas oferecem, o guia Michelin não hesitou: três estrelas, o máximo da grande beleza, do grande espetáculo, selo de que é sublime.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7)

Beja Santos

O Guia Michelin concede três estrelas a Ravello, esse local maravilhoso a escassos quilómetros de Amalfi, outrora a República Marítima de Amalfi, fundada no século IX, chegou a ter Doge. O guia dá três estrelas a esta vista espetacular, dizendo que todo este vastíssimo balcão está suspenso entre o céu e o mar e pelo que oferece é inesquecível. Tão aprazível para a contemplação, foi escolhido por artistas como D. H. Lawrence, Graham Greene, Gore Vidal, Hans Escher e Joan Miró. Notará o leitor que há uma espécie de manchas na imagem, o balcão está envidraçado, a queda será mortal.


Continuamos em Vila Rufolo, a vila erigida no século XIII pela família Rufolo de Ravello, chegou a ser a residência de verão de Papas e de Carlos d’Anjou. Já falámos do panorama de que se desfruta sob o Cabo Orso, a Baía de Maiori e o golfo de Salerno. O industrial escocês Francis Nevile Reid transformou um lugar arruinado num portentoso espaço romântico, aproveitou-se do edifício original, uma perfeita síntese da arquitetura árabe, siciliana e românica, fez conservar as ruínas, veja-se nesta imagem a Sala dos Cavaleiros dentro do jardim que é uma verdadeira exaltação do romantismo oitocentista.


Esta torre-museu foi muito bem adaptada para conservar a memória histórica de Vila Rufolo até à sua readaptação como casa romântica. É um prazer para os olhos e não menos para a vista e para o ouvido, acompanham-nos em permanência as sonoridades da ópera Parsifal, de Wagner, que se inspirou neste jardim, e no balcão mais alto o que se avista não é traduzível em palavras.



Era timbre do romantismo, basta que o leitor se lembre das transformações introduzidas pelo rei D. Fernando, marido da rainha D. Maria II, no Castelo dos Mouros, em Sintra. A região sofreu brutalmente com o terramoto de 1755, D. Fernando mandou aproveitar todas as ruínas e embelezou-as. Mas não foi só ele, se o leitor já visitou o Palácio de Monserrate, encontrou ruínas e excertos que faziam parte do mesmíssimo ideal romântico. O milionário escocês mandou conservar as ruínas dos balneários onde havia o banho turco e todo o complexo do andar inferior da casa, ao nível do jardim, tudo com ar misterioso, um tanto gótico, dá para ver o nível inferior do claustro e imaginar a construção medieval da família Rufolo.



Era também timbre do romantismo não deitar fora vestígios do passado remoto, por aqui se escreveram lápides em latim, era o inglês do mundo medieval e moderno, inserida entre ruínas esta lápide acentua esse mesmo passado remoto.



O viandante detém-se nesse ponto alto que é o jardim superior, atravessou o Belvedere onde no verão se realizam eventos do festival de música de Ravello, imagine-se o que é um palco nesta altura, ouvir bela música, olhar as montanhas e o mar sereno. Estão mais do que justificadas as três estrelas legadas pelo Guia Michelin a esta sumptuosidade visual.



E vai começar o passeio pela Villa Cimbrone, as outras três estrelas do Guia Michelin em Ravello. A Villa foi construída no início do século XIX por Lord William Bechett num estilo eclético que remete para Villa Rufolo. Ficamos hoje por aqui, percorreu-se uma álea encantadora que liga a Piazza Vescovado à Villa até se chegar ao balcão. É o mesmo esplendoroso panorama sobre Maiori, o Cabo Orzo e o Golfo de Salerno, um tanto a pique também se podem ver os terraços cultivados, mas é a extensão do Mar Tirreno e a mesma serenidade que já se sente em Villa Rufolo que nos lava a alma. E não apetece sair daqui.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21022: Os nossos seres, saberes e lazeres (395): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21047: Fotos à procura de... uma legenda (128): Mansoa, 9 de setembro de 1974: O PAIGC a fazer a continência à bandeira portuguesa


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9  de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...

É  uma foto histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, há mais de 15 anos, desde 1/11/2005 (*)...E de um lado e do outros,  os antigos inimigos fazem a continência à bandeira verde-rubra.

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P21028 (*):

Valdemar Queiroz:

Não sei se existem outras fotografias do último arriar a Bandeira na Guiné, mas nesta fotografia vemos algo de extraordinário: os militares do IN também fazem a continência ao último arriar da Bandeira Portuguesa.

Valdemar Queiroz
Cherno Baldé:

Caro Valdemar,

O que é mais "extraordinário" (desculpem a redundância) ??? (**)

O facto de o PAIGC (militares do IN, dizes tu) fazer a continência ao arriar da Bandeira Portuguesa ou o inverso. Isto aconteceu repetidamente nessa fase da entrega dos quartéis e do território. Eu, ainda criança de 13/14 testemunhei o acto na minha terra e, como se lembram, desabafei num dos meus escritos (memórias de infância) dizendo que "provavelmente, na historia dos conflitos armados, era a primeira vez que a parte derrotada estava contente com a sua derrota".

Quanto ao PAIGC, se lhes pedissem, nessa altura, que tirassem as cossadas calças da farda cubana que usavam para levar no c.... acediam de boa vontade, porque sabiam que, dentro de poucos dias, seriam os donos daquilo tudo, para abandalhar como so eles sabem fazer.

Por outro lado quero esclarecer que, o nome correcto do Comissário Político na imagem é Manuel Nandigna (não Ndinga), já falecido, filho de um controverso e poderoso Régulo ou Chefe Balanta do Sul do pais (Afuam Nandigna), que colaborava com o regime colonial e, nesta qualidade, tinha granjeado muita estima e consideração junto das autoridades do território. 

Teve muitos filhos/as que foram depois estudar na Europa, incluindo Portugal, antes e depois da independência. A fama dos seus actos e a impunidade de que gozava era tão gritante que depois quando alguém era apanhado em flagrante num delito de abuso de poder dizia simplesmente: Sim, é a Afuam Nandigna, e depois ???... E depois, nada acontecia.

Assim, pouco a pouco, a Guiné foi-se abandalhando a Afuam Nandigna ou melhor a Afuam PAIGC.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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Guiné 61/74 - P21046: Parabéns a você (1816): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/CTIG (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21041: Parabéns a você (1815): Manuel Traquina, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21045: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (73): Pesquisa documental para um filme sobre a Cesária Évora (Mindelo, 1941 - Mindelo, 2011)


Cabo Verde > Mindelo > Cesária Évora, na Rádio Barlavento,  20 de junho de 1971.
Foto: cortesia da página oficial de Cesária Évora


1. Mensagem da nossa leitora Rosa Silva:

Date: quinta, 14/05/2020 à(s) 17:58
Subject: Pesquisa documentário Cesária Évora

Olá, boa tarde a todos.

Em primeiro lugar espero que se encontrem bem de saúde.

Chamo-me Rosa Silva e estou a trabalhar na produção de um documentário sobre Cesária Évora. Trata-se de um filme,  de cariz cinematográfico, que propõe uma viagem ao universo de Cesária Évora.

Pensado para cinema, o filme pretende revelar a verdadeira história da mulher que, aos 50 anos, saltou da mais profunda miséria para o estrelato mundial, sendo uma das mais consagradas cantoras de um país de língua oficial portuguesa. 

Assim, temos levado a cabo uma vasta pesquisa de material de arquivo em diversos países. O filme conta com autoria e realização de Ana Sofia Fonseca, sendo produzido pela Carrossel Produções, em co-produção com a Até Ao Fim Do Mundo.

Encontrei este blog:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2009/09/guine-6374-p5021-meu-pai-meu-velho-meu.html

Estamos à procura de imagens do Mindelo anos 60/70 e também fotografias e vídeos que possam existir da Cesária Évora. Temos a informação que ela dava concertos nos barcos, bares. Por ventura têm imagens do que refiro ou têm conhecimento quem possa ter?

Ficaríamos muito gratas com a vossa preciosa ajuda.

Aguardo o vosso feedback. Obrigada,

Rosa Silva

rosasilva@ateaofimdomundo.com

Até ao Fim do Mundo - Imagens e Comunicação, Lda

Rua da Fraternidade Operária, nº4
2794-024 Carnaxide - Portugal
Tel: +351 21 425 47 77
Telm: +351 966 230 699
www.ateaofimdomundo.com

2. Resposta do nosso editor Luís Graça, em 24 de maio p.p.:

Rosa, olá. Obrigado pelo seu mail. Infelizmente, não sei se a poderei ajudar muito...Este blogue, coletivo, que eu fundei há 16 anos, administro e coedito, é sobre a(s) memória(s) da guerra colonial, em especial na Guiné, no período de 1961/74...

Alguns dos meus camaradas de armas (incluindo eu próprio) também tiveram os pais em Cabo Verde, como expedicionários na altura da II Guerra Mundial, em São Vicente, Santo Antão e Sal, mais exatamente entre 1941 e 1944... Na altura também lá esteve o futuro escritor Manuel Ferreira. Mas a nossa querida Cesária Évora estava então  a nascer (Mindelo, 27 de agosto de 1941)...

Há, no entanto, um espólio fotográfico, no nosso blogue, que a vossa equipa pode usar, com uma única condição: citação da fonte, o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Ver aqui descritores como:

Cabo Verde (335)
crioulo (72) 
Manuel Ferreira (12)
Meu pai meu velho... (85 referências)
Mindelo (39)
morna (14)
RI 23 (3)

E ainda:

Adriano Lima (15) (coronel, reformado, do exército português, oriundo do Mindelo...Acaba de publicar um livro sobre as tropas expedicionárias em Cabo Verde, na II Guerra Mundial)...

Disponha. Tem aqui o meu contacto: telem 931 415 277.

Boa saúde, bom trabalho, bom filme. Luís Graça

PS - Rosa, podemos publicar o seu apelo : temos vários camaradas que passaram por Cabo Verde durante a guerra colonial, 1961/74... Se autorizar, podemos publicar no blogue... Diga-me qualquer coisa...

3. Resposta da Rosa Silva, com data de 26 de maio p.p.:

Caro Luís,

Muito obrigada pela sua resposta e parabéns pelo seu trabalho. Guardar memórias, organizar o arquivo, é algo que considero muito valioso e dá sentido ao material recolhido

Quanto ao documentário sobre Cesária vamos continuar a pesquisar.

De qualquer modo, obrigado pelas suas  sugestões. Seria muito importante publicar no seu blogue e ficaria muito grata. Se quiser pode dar os meus contactos:

Mail rosasilva@ateaofimdomundo.com
Telem: 966230699


PS - Indicaram-me estes nomes de militares, mas mais do início dos anos 60,  que estiveram em S. Vicente. Dizem-lhe alguma coisa? Alguma sugestão para eu pesquisar e chegar até estas pessoas?

Coronel de Infantaria Fernando Gil Almeida Lobato de Faria
Coronel de Infantaria Domingos José Cravo
Coronel de Artilharia Humberto Rosa Neto
Tenente de Infantaria Joaquim Simões Duarte
Coronel António José Santiago Maia de Simas
Tenente Santiago Maia
Tenente Coronel, ao tempo, alferes, Manuel Augusto Gamboa de Matos, subalterno da Companhia de S. Vicente
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Guiné 61/74 - P21044: Escritos do António Lúcio Vieira (6): Rua da memória

António Lúcio Vieira (1943-2020)
António Lúcio Vieira (1943-2020), foi Fur Mil Cav na CCAV 788 / BCAV 790. 
Natural de Alcanena; viveu em Torres Novas. 
Jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; autor, entre outros, do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017. 
Faleceu ontem.

Deixamos este poema de sua autoria que nos foi enviado pelo seu amigo e nosso camarada Carlos Pinheiro.


"rua da memória"

não eram ainda os dias iluminados
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros

o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes

o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci

ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava

levada pela mão cruzava a sala grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto
na imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde

não havia outro local onde guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa

na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a festas

lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina

um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus

pequena quase envergonhada e discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos

subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras

ao fundo dos degraus junto à padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras letras
que não mais me dariam tréguas

numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à horta e à fazenda
para as bandas do Peral

nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar

era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a fogueira
onde se queimavam risos e alcachofras

noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite

espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas

já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre Louro

mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António

no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores

do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua

é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem

a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência

a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da Inocência
ou apenas Rua da Memória

António Lúcio Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20405: Escritos do António Lúcio Vieira (5): Alvorar

Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Romance é romance e nestas coisas de ter a faca e o queijo na mão, de poder aproveitar a experiência de conhecer uma cidade, e haver mesmo uma faísca de verosimilhança quanto àquele encontro que provocou outros encontros, e deu origem a um caderno cheio de garatujas que se relevou imprestável, pois toda a escrita ficou adiada até 2006, aí cantou outro galo, quando me comprometi com o Luís Graça a repor até ao mais ínfimo pormenor aqueles 26 meses de Guiné. E confesso que houve para ali uma alegria esfuziante, naquele fim de século, quando tudo levava a crer que a realidade superava a ficção e que daquele encontro frutificaria um romance encantado.
O que então não aconteceu passa a acontecer, o bordão da imaginação assegura certos devaneios para se voltar à Guiné e sentir o soar das nossas passadas, atravessando mares de capim, laterite que parece pó de talco que se entranha em todos os poros do corpo, é sempre bom momento para render homenagem a quem tão fielmente me acompanhou nas venturas e desventuras.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo Guilherme, estou encantada com o seu regresso previsto para daqui a uma semana, já me disse ter reservado bilhete, vem sexta-feira de manhã, ainda não sei se estou disponível nesse dia, provavelmente não, tenho na minha agenda marcação no Conselho Económico e Social Europeu, funciona na Rua Ravenstein, provavelmente só estarei disponível depois das 17 horas, vou esclarecer a situação, tenho muito gosto em que jante na Rua do Eclipse. Achei curioso, o relato que me fez da sua infância, ter escrito que a sua avó paterna era uma judia sefardita que se converteu. Até agora não veio a propósito, mas sou descendente de judeus. O meu apelido é Cantinaux porque os meus pais não tinham sido até perto da libertação de Bruxelas molestados, por uma razão muito simples. O meu pai, de nome Jacob, era membro da direção do Partido Comunista da Bélgica, fazia parte da resistência, saiu discretamente de Bruxelas no início de 1944. A minha mãe e os meus avós, pais dela, viviam na Avenida Georges Petre, imagine, com nomes falsos. Temendo uma denúncia de informadores leais ao Partido Rexista, quando eu nasci, em 16 de fevereiro, a minha mãe, não tinha eu ainda quinze dias, após uma conversa com uma amiga, aquela que vai ser a minha primeira mamã, Sara Poncelle, levou-me discretamente para o bairro típico de Marolles, o Paulo Guilherme conhece-o perfeitamente, sempre que cá está e não está mau tempo não perde a feira de velharias, que funciona todos os dias, mas é mais abundante aos sábados e domingos. Aí vivi, penso que vai ficar surpreendido, até ao fim da guerra, os comunistas belgas juntaram-se aos holandeses, o meu pai arriscou tudo. A minha mãe e os meus dois irmãos partiram para o fundo das Ardenas, a vida em Bruxelas era intolerável, um racionamento violento, houvera mau ano agrícola, em casa dos Cantinaux não me faltou nada.

Avenida Georges Petre, comuna de Saint-Josse, Bruxelas

Bairro de Marolles, Rua do Falcão, Bruxelas

Desfile alemão em frente ao Palácio Real, Bruxelas

Hitler cumprimentando Leon Degrelle, o seu aliado belga do Partido Rexista


Na verdade, só em 1948 é que voltei à vida familiar dos Altermann, não sei verdadeiramente explicar as razões que fundamentaram a decisão do meu pai de eu não ter o seu nome de família. Como sabe, a Bélgica depois da II Guerra Mundial viveu inúmeras tensões, Leopoldo III teve que abdicar no seu filho Balduíno, agudizaram-se as relações entre valões e flamengos. O antissemitismo não desapareceu, ficou atenuado, ainda pairava no ar o espetro das forças leais a Hitler e que comungavam das suas ideias raciais. O meu pai nunca desfaleceu com os seus princípios comunistas, mesmo quando o partido, tão prestigiado como força da resistência, se foi afundando eleitoralmente. Não sei se sabe que houve um abaixo-assinado, um pouco antes do Partido Comunista da Bélgica se dissolver, com o impressionante número de nomes relevantes de partidos de todos os quadrantes, intelectuais e artistas, e até empresários, que apelavam a que o Partido Comunista não desaparecesse da cena política devido aos serviços inultrapassáveis que prestara à Pátria. Jacob viveu amargamente todo este período, faleceu em 1984, vivendo sempre na maior das simplicidades, nunca assumindo qualquer jactância pelos seus atos de bravura.

Fiz o ensino liceal, frequentei depois a Universidade Livre de Bruxelas, atraída pela filologia germânica, o meu pai e os meus avós eram fluentes nesta língua, a minha mãe, de nome Juliette, nascida em Metz, comunicava comigo em francês e tinha primos que preferiam falar comigo em flamengo. É então que descubro esta faculdade para estudar línguas, juntei ao francês o flamengo e alemão, seguiu-se o inglês e depois atirei-me ao italiano, só muito mais tarde é que me apliquei no espanhol e no português.

Chega de o aborrecer com as minhas origens e a minha formação. Lembrei-me, já que me disse que gosta muito de passear na Floresta de Soignes, eu preferia sábado pela simples razão que domingo ao anoitecer parto para o Luxemburgo, tenho anotado um dia de trabalho de um comité farmacêutico qualquer todo o dia, depois regresso a Bruxelas. Podíamos ir a pé à comuna de Watermal-Boitsfort, arrumo aí o carro, entramos pelo parque Tournai-Solvay e passeamos até Rouge Cloître, há aí locais simpáticos para almoçar, aliás, contou-me que os seus amigos desta região lhe propõem estas caminhadas, fica tudo dependente do bom tempo, é uma simples proposta. Há outras sugestões, evidentemente, passear pelo Mercado do Midi é fascinante, ainda por cima já me disse que gosta muito de flores, é um espetáculo, passa pela carne, o peixe, os legumes e a fruta de todas as proveniências e depois temos o mundo floral, ouve-se o árabe, o espanhol e o português muitas vezes, há muitos estabelecimentos portugueses nesta região do Midi, não ignorará. Se preferir começar o dia assim, tenho aqui a lista de boas exposições, é só escolher. Se estiver mau tempo, terei muito gosto em o acompanhar a essas lojas de livros e discos em segunda mão e como me disse que ainda não visitou o Museu da Banda Desenhada, é outra hipótese.

Imagem antiga da Floresta de Soignes, o grande pulmão de Bruxelas

Loja de livros usados no Boulevard Lemonnier

Mercado do Midi, Bruxelas

Antes de me despedir, quero-lhe dizer que fiquei muito impressionada com a descrição da sua viagem no início de agosto de 1968, parece-me que num batelão, numa viagem de dez horas, como observou, correndo vários riscos de vida naquilo que chamou o Geba estreito, onde esses barcos podiam ser fortemente atacados. Li atentamente o que me mandou sobre a sua chegada a um local chamado Bambadinca, a missão que lhe deram, até o felicitaram, seria um local de férias desde que garantisse que naquele ponto do rio os barcos civis e militares nunca fossem atacados. Achei muito interessante a descrição que fez da viagem até ao destacamento de Finete, a sessão de cumprimentos com reverências, a sua aflição quando viu o estado miserável do que chamou sistema defensivo, tudo a cair e mantido num enorme desleixo; não esquecerei os pormenores da tal viagem desde que atravessou de canoa o rio e entrou por o estreito trilho onde a viatura não podia cometer nenhum deslize, senão caía dentro dos arrozais; e depois a chegada a Missirá onde o chefe local o recebeu de forma cerimoniosa e lhe entregou uma espada que o Paulo prontamente devolveu dizendo que os poderes dele eram invioláveis, a sua missão ali era defender aquele pequeno povo e impedir o avanço da guerrilha. Estamos em agosto de 1968. O Paulo arranca o seu romance com o nosso fortuito encontro. Há dias dei comigo a pensar num filme de que já vi duas versões, intitulado Breve Encontro, gostei mais da primeira versão, a de David Lean com Célia Johnson e Trevor Howard, ela recebeu Óscar, uma versão empolgante pelo arrebatamento emocional que nos provoca. A grande diferença entre eles e nós, permita-me o gracejo, eles eram casados e recuaram, foi uma separação dilacerante, lembrança que jamais se apagou; mas nós os dois somos livres de escrever o nosso livro aberto que aponta para o futuro, não devemos concessões a ninguém.
Continue de boa saúde, escreva mais coisas, é um prazer receber o seu correio, os seus telefonemas, gosto muito da companhia que me dá, e nunca deixe de pensar que tudo começou naquele fortuito encontro em que era preciso encontrar um ser de carne e osso para contar a sua experiência numa guerra, algures, num ponto diminuto dos trópicos. Bien à vous, Annette

Porto de Bambadinca por volta de 1914

O porto de Bambadinca nos tempos da guerra, imagem pertencente a Mourato de Oliveira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21019: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21042: In Memoriam (365): António Lúcio Vieira (1943-2020), ex-Fur Mil Cav da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67) (Carlos Pinheiro)

IN MEMORIAM

António Lúcio Coutinho Vieira (1943-2020)
ex-Fur Mil Cav da CCAV 788/BCAV 790 
Bula e Ingoré, 1965/67


1. Em mensagem de hoje, 5 de Junho de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), traz-nos a triste notícia do falecimento do António Lúcio Vieira, membro da Tabanca Grande desde 2 de Agosto de 2019. [Tem oito referências no nosso blogue.]

Faleceu ontem, 04 de Junho de 2020, o nosso Camarigo e Grã-Tabanqueiro António Lúcio Coutinho Vieira. 

Foi para mim um dia muito difícil e não tive condições para alinhavar umas palavras em sua homenagem. Tenho imensos trabalhos que ele ao longo dos anos foi partilhando comigo, sendo que muitos deles são inéditos e nunca publicados. Apesar do dia ser triste, até porque não se sabe ainda quando é o funeral e em que condições, vasculhando os seus trabalhos, encontrei o único que ele escreveu sobre a Guiné, mas em conto que um dia terá compilado para aliviar os fígados e as preocupações da vida de um combatente. 
É um conto, anedótico, mas é interessante até porque revela mais uma vez a sua forma correcta de escrever bem. 

Se o Miguel ou o Carlos Vinhal, ou os dois, entenderem por bem publicar este conto em homenagem à memória do nosso amigo, acho que fazem uma boa acção. Se entenderem de outra forma, também compreenderei. Mas se assim for, envio, em alternativa, um poema sobre a sua, e minha, terra Alcanena.

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António Lúcio Vieira, síntese curricular, por Américo Brito

António Lúcio Coutinho Vieira
Poeta, Dramaturgo, Encenador, Investigador e Jornalista

Após os estudos académicos concluiu, anos mais tarde, um curso intensivo no Centro de Estudos Psicotécnicos, em Lisboa e, posteriormente, um outro de Relações Públicas.
Foi responsável, ao longo de treze anos, pelo departamento de Comunicação e Relações Públicas do CEP 4 ( ex-Rodoviária Nacional ).

Em paralelo com as funções profissionais, das quais nunca se afastou, desenvolveu, ao longo dos anos, uma vasta actividade, nas áreas da cultura e da comunicação, principalmente nos sectores do Teatro, do Jornalismo, do Audiovisual e da Rádio.
Ocupou o cargo de Vice-Presidente do Cineclube de Torres Novas, o de director-encenador no Centro de Juventude e, posteriormente, na Casa de Cultura da cidade, ambos na área do Teatro.
Fundou e dirigiu o Grupo de Jograis da USTN, o Grupo Cénico Claras, o TET-Teatro Experimental Torrejano e o Teatro Estúdio, nos quais, ao longo de vários anos, encenou textos de autores portugueses e estrangeiros, em cuja lista se incluem, para além do próprio autor, entre outros os nomes de Gil Vicente, Miguel Torga, Luís-Francisco Rebello, Carlos Selvagem, Jaime Salazar Sampaio, Luís de Sttau-Monteiro, Sófocles, Molière, Marivaux.

Das várias montagens que assinou, algumas em obras de sua autoria, destacam-se a estreia universal da farsa de Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico (Séc. XVI), uma arrojada versão da Antígona, de Sófocles e a célebre farsa de Luís de Sttau Monteiro, "A Guerra Santa", que haveria de marcar politicamente, em Portugal, o Verão de 1977 e a farsa trágica, "Dulcinea ou a Última Aventura de D. Quixote", de Carlos Selvagem.
Adaptou obras teatrais, clássicas e contemporâneas e é autor de vários originais de teatro, alguns para o público infanto-juvenil.

Iniciou, na SPA-Sociedade Portuguesa de Autores, as 1ªs. Jornadas de Interpretação Teatral, onde pontuaram actores como Rogério Paulo e Canto e Castro, entre outros. A sua peça "Aldeiabrava" – 2.º lugar "exaequo", no concurso nacional promovido pela ATADT ( 1967 ) - viria a ser escolhida pela SPA, para representar o teatro português, numa mostra de livros portugueses em Moscovo.

Ao longo dos anos, vários títulos haviam de integrar a lista de obras dramatúrgicas do autor: "A Flor Mágica do Sábio Constelação" e "A Ilha das Maravilhas" – ambas destinadas ao público infanto-juvenil -, "O Vértice", "Aldeiabrava" (com prefácio de Luíz-Francisco Rebello). Ou a "Odisseia", "A 7.ª Guerra Mundial", "SOS - Sistema Optimizado de Saúde", ou o monólogo "Eu, Sofredor me Confesso", são alguns desses títulos.
Destinado a estudantes do ensino secundário surgiu, recentemente, uma colectânea de curtas peças, sob o título genérico de “Pequeno Teatro Académico”.
No prefácio à sua peça "Aldeiabrava", o então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, teatrólogo e dramaturgo, Luiz-Francisco Rebello, amigo pessoal do autor, compara essa sua obra, nos aspectos temático e de conteúdo, a "O Exército na Cidade", de Jules Romains, a "Numancia", de Cervantes e a "Fuenteovejuna", de Lope de Vega.

É autor de vasto número de letras de canções e fados, principalmente de parceria com Paco Bandeira e com o maestro António Gavino e de vários temas da banda sonora da telenovela "Filhos do Vento" (RTP-1997). Para além de Paco Bandeira, gravaram igualmente os seus poemas, António Mourão, Vasco Rafael, Margarida Bessa, Maria Amélia Proença, os solistas das Orquestras Típicas, Scalabitana e de Rio Maior, entre outros.

No prefácio que dedicou ao seu livro de poemas "Re Cantos", outro velho amigo do autor, Pedro Barroso, deixa escrito que, lendo-se a sua poesia “sentimos o fulgor de uma enorme explosão de beleza pessoal; passa por ali o génio dos grandes” (...) “este livro fica aí para ler-se toda a vida como consultor e conselheiro. Como terapeuta das horas e breviário dos sentidos (...)”.

Já o Prof. António Matias Coelho, presidente da Associação Casa-Memória de Camões, em Constância e membro do júri que elegeria como vencedora a obra “25 Poemas de Dores e Amores”, diria a propósito deste seu último livro: “(…) Senti que lia um grande poeta. Esta é da melhor poesia que já li (…)”

Foi redactor principal no semanário "O Almonda", publicou reportagens na revista "Domingo Magazine", do diário "Correio da Manhã" e colaborou, ao longo dos anos, com vários jornais regionais.

É autor do script e da realização de curtas-metragens de cinema de ficção para a Equipa Fotograma e de vários documentários em vídeo. Foi director de estação e director de programas, em diversas estações regionais de rádio.

Vencedor de alguns festivais de canção de âmbito regional, obteve o 2.º lugar no Festival Nacional da Canção de Leiria ( 1987 ), possui prémios de rádio (programa Auditório – RCL ) e de teatro: "Aldeiabrava" viria a obter o 2.º lugar, "ex-aequo", no Concurso Nacional da ATADT (Portugal) vencendo o Festival de Teatro Português de Toronto (Canadá) em 1990.

António Lúcio Vieira foi distinguido, em 1997, com os diplomas de Mérito e de Louvor, pela Casa do Ribatejo, em Lisboa.
Em 2015 o Município de Alcanena atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Cultural.

É Prémio de Poesia “Médio Tejo Edições” ( 2017) para “25 Poemas de Dores e Amores”. 
É membro da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.

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SUBMARINO À VISTA

Por António Lúcio Vieira

Esta é uma estória realmente surreal. Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela. 
Chega. 

Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960. 

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos. 

Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da Marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço. Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária. 

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores-bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário. Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento. 

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda. Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser - quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira. Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial. 

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente. Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso. Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. 

E tudo ali então se precipitou. De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!” Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. 

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação. “Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. 

O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante. Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte. Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito. O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do Palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando Chefe de Estado, uma qualquer Comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar. Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia! Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. 

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?” Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial. Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano. As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. 

As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida. Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias. 

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada. O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…” Perdão; tecia. 

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Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20879: In Memoriam (364): Dos sete militares chacinados pelo PAIGC no “Chão Manjaco”, mártires da sua fé na autodeterminação e na consagração do direito do Povo da Guiné- Bissau ao poder (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)