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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26399: Notas de leitura (1765): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Se pretendermos sintetizar os acontecimentos deste período, é imperioso lançar um olhar sobre a política da I República que é pautada por movimentos revolucionários, uma sucessão de ministérios, enfim, instabilidade, que se repercute com as nomeações para Bolama; a nomeação de Andrade Sequeira é coincidente com o rol de queixas quanto a Teixeira Pinto e Abdul Indjai, sobretudo este é acusado de barbaridades, roubos, raptos e intimidações em série; Andrade Sequeira informa o Ministério de que Teixeira Pinto tinha como braço direito este torcionário; irão suceder-se os governadores, haverá mesmo um inquérito a Andrade Sequeira, cresce a instabilidade nos Bijagós, houvera um grave incidente em Bor, Portugal já está em guerra com a Alemanha, irão não só acentuar-se as dificuldades económicas e financeiras , os negociantes alemães têm os seus bens apresados, vem aí um tempo de grandes dificuldades.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto (10)

Mário Beja Santos

1915, o ano que é dado como o da pacificação da Guiné continental, conhece a polvorosa em Portugal. O general Pimenta de Castro é encarregado de organizar um Ministério, entretanto redobra a agitação republicana, há um movimento revolucionário que provoca largas centenas de mortos, o presidente Manuel de Arriaga é obrigado a demitir-se; virá João Chagas, que era embaixador em Paris, convidado para formar Governo, mal entra em Portugal sofre um atentado, fica gravemente ferido; em junho, Norton de Matos é o novo ministro das Colónias, irá nomear Andrade Sequeira para governador da Guiné (como o leitor estará recordado a sua primeira nomeação fora recusada pelo Senado).

Chega a Bolama numa altura em que já tinham terminado as operações de Bissau, é no rescaldo destas que se irão viver na Guiné conturbados e complexos tempos. Ao considerar que estavam detidos vários Grumetes sem razão fundada, Andrade Sequeira não via razão para eles serem julgados em tribunal de guerra, e os acusados foram enviados para Bolama, medida que deu contestação; os Grumetes, segundo uma petição que chegou ao governador, dizendo que este queria amnistiar gente que se juntara aos Papéis para atacar os europeus e os seus haveres. O protesto era subscrito também por vários funcionários da colónia; o governador irá demiti-los ou suspendê-los. Mas, entretanto, houve uma chacina de Papéis em Bor, praticada por Abdul Indjai e a sua gente, o régulo de Intim terá sido barbaramente assassinado, bem como membros da sua comitiva. Os comerciantes de Bissau pediam ao governador que tomasse providências para salvar os Papéis que eram barbaramente assassinados por estes auxiliares de Abdul. Em novembro, o governador informa o ministro da situação na província, resultante das operações que tinham sido realizadas em Bissau, sob o comando de Teixeira Pinto. Os comerciantes e residentes em Bissau tinham pedido a manutenção deste capitão e escrito ao ministro nesse sentido.

Andrade Sequeira escreve que “a designação de Grumete é dada na Guiné a todos os indígenas cristãos que são, na sua grande maioria, oriundos da raça Papel. São os Grumetes os indígenas que mais têm assimilado a nossa civilização, e são eles também que exercem todas as artes e ofícios, e ocupam vários empregos públicos. Muitos dedicam-se ao pequeno comércio, e pequena cabotagem, e alguns há que são abastados de proprietários, importantes e acreditados comerciantes”. E o governador informa o ministro que era público e notório, terminada a guerra de Bissau, que os auxiliares de Abdul continuavam a praticar toda a casta de violências, extorsões, roubos, assassinatos, saqueavam tudo. Os Grumetes estavam impedidos de se deslocar a Bissau. E mais informava o governador que iria fazer a ocupação militar do território, dá instruções rigorosas aos auxiliares que só poderiam afastar-se dos postos com ordem do comandante, os Papéis poderiam construir as suas tabancas.

Na mesma carta ao ministro dava-lhe conta do que tinha pretendido fazer na ilha de Bissau em 1914; que os Grumetes, representados pela Liga Guineense, haviam pedido insistentemente que não houvesse guerra, considerava que tinha sido péssimo e desastroso esta guerra de 1915, ainda por cima com uma composição de três oficiais, dos quais um era médico, seis praças europeias e 35 soldados indígenas, apoiados por 2 mil irregulares de Abdul Indjai, considerava que com esta proporção de irregulares era materialmente impossível disciplinar e fazer obedecer os auxiliares. “Foi o Abdul que bateu Bissau e que nós fomos, apenas, os seus modestos auxiliares. O governador lamentava ter sido um francês de nascimento e bandido de profissão a prestar serviços à província ‘por seu próprio interesse’”. E juntava documentos que atestavam as irregularidades e as arbitrariedades que Abdul praticara ao longo do tempo. Nesta mesma carta ao ministro, Andrade Sequeira está ciente das dificuldades em apear Abdul, ele ainda goza de popularidade e escreve: “É indispensável tolerá-lo, mas é forçoso desarmá-lo, restringir-lhe a supremacia e não lhe permitir que, impunemente, pratique toda a série de crimes, barbaridades e vandalismos.”
Seguiria esta política desde que obtivesse a anuência do ministro.

Armando Tavares da Silva cita uma informação do administrador de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, enviada a Andrade Sequeira, em síntese: Abdul era oriundo do Senegal, antigo negociante ambulante, tinha exercido comércio de permuta com os indígenas da Costa de Baixo, tinha sido preso pelo régulo dos Manjacos por abusos cometidos, dele se vingou em 1914; um dia desgostou-se das suas ocupações e armou-se em guerreiro, veio viver para a região de Geba, onde cometeu abusos, coadjuvado pela gente que o acompanhava, o que obrigou o comandante militar de Geba a prendê-lo e depois enviado para S. Tomé, de onde regressou em 1908 amnistiado pelo príncipe Luís Filipe, o governador Muzanty não o queria deixar entrar, cedeu ao pedido do régulo Abdulai do Xime; Abdul esteve ao lado de Oliveira Muzanty na guerra com Badora e Cuor, continuaram os abusos, chegou a apresentar-se em Bafatá com mais de oitenta homens armados; trata-se de um esclarecimento longo, cheio de referências a roubos e humilhações de toda a ordem, Calvet Magalhães confessa mesmo que tinha reprovado a decisão do governador Oliveira Duque para a nomeação de Abdul como régulo do Oio, a carta também refere a escravatura que Abdul exercia sobre os desgraçados que apanhava nas guerras.

Vão seguir-se audições de Teixeira Pinto, inumeradas as acusações e é o próprio Andrade Sequeira que incrimina o capitão; há uma participação judicial sobre Teixeira Pinto e Abdul Indjai, Andrade Sequeira manda abrir inquérito sobre o desaparecimento de um processo que implicava Teixeira Pinto, segue-se nova inquirição, Teixeira Pinto vai respondendo aos quesitos, quem coordena o processo é o vice-almirante Brito Capello que concluirá não haver nenhum facto concreto que determinasse procedimento contra o capitão.

Em 1916, temos novo ministro das Colónia, António José de Almeida, Andrade Sequeira abandona a Guiné, em 10 de março Portugal está em guerra com a Alemanha. Surgem problemas nos Bijagós relacionados com a cobrança de impostos, reconheceu-se a impossibilidade de cobrar imposto. Regressado a Lisboa, Andrade Sequeira pede ao ministro um rigoroso inquérito a fim de se averiguarem vários abusos praticados na colónia e que ele documentara nos seus relatórios. O inquérito é entregue a Manuel Maria Coelho, um oficial que foi o primeiro governador-geral de Angola no regime republicano. O relatório deste é absolutamente demolidor quanto ao comportamento do governador Andrade Sequeira, e conclui mesmo que a obra do capitão Teixeira Pinto na Guiné tinha sido tão fecunda em benefícios para a colónia e em glória para Portugal como nefasta foi a obra do governador Andrade Sequeira.

Iremos ver agora o período de 1917 a 1919 marcada por desacatos em Canhabaque, a governação interina de Manuel Maria Coelho, haverá novo governador interino, Ivo Ferreira, e a segunda presença de Josué de Oliveira Duque à frente dos destinos da Guiné, e, no tropel dos acontecimentos, Sousa Guerra também será nomeado governador da Guiné.


Armando Tavares da Silva
Régulo Mamadu Sissé, colaborador de Teixeira Pinto nas operações de Bissau, fotografia de Domingos Alvão, tirada durante a I Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934
Aldeia Mancanha, 1910
Terra Ardente (1960, documentário realizado por Augusto Fraga, pertence à Cinemateca Portuguesa, com a devida vénia

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 10 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26373: Notas de leitura (1763): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (9) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26385: Notas de leitura (1764): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer



Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer


por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 e tal,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o  teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário). 

Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele  a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente. 

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um  anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.

Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas.  Só lhe sussurraste, ao ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada  de raiva, revolta e impotência!

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra  certa, humana,  de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde,  desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti,  que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista,  datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis  anos.

Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas  críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa,  nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará ele mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Vim sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte... − Quem vai à guerra, está sujeito a lerpar!... É um jogo de sorte e azar.

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e a malta do teatro lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador (e também dramaturgo: escreveu, pelo menos, uma peça para o grupo).  Em boa verdade, tu nunca o viras representar, no palco do teatro (nem no palco da vida). 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas da terra, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastante mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana a menina prendada, a Cinderela, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; acabaste por perder-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus verdes anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental", falava-se de loucura e de manicómios. E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca tinham sido boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto, feio e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter arremessado ao  chão  a toalha com a louça posta na mesa  para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho, não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu Velho…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade,  mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia rosnando, entre dentes, que a viagem de regresso no "barco negreiro" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic). Em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de quase quatro horas de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro. Na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes de teatro e cinema... Estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado,  impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da polícia militar. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos  alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major,  que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...

Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante  de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor,  que o Doc interpretei como sendo grosseiros,  descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, branco como a cal da parede,  estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... 

Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para "se recolher de imediato ao seus aposentos".

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, "desproporcionado",  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).

A mãe não conteve o espanto e as lágrimas de alegria quando ele, o Doc,  espavorido, lhe entrou,  de rompante, pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, almoças connosco, vou fazer um carilada de camarão com leite de coco, que eu sei que ele gosta e tu também. Pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo…
 
Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legal e politicamente  pelo poder  central e socialmente  pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado,  demitiu-se das suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam, alegremente,  o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a  Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam  ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,  

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado,  revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a  Dona Domitília,  para quem Moçambique era "o paraíso na terra"... 

Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem uma esmola ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais  e nas fábricas, na frota pesqueira,  nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".

Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-te a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação à tropa… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?!... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca toleraria essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.

Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão,  na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto,  mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que, na "Lusa Atenas",  publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar  as suas esporádicas conversas na redação do jornal, depois de descobrires que 
 o “teu patrão” se tinha tornado,  rapidamente, um entusiástico defensor do marcelismo...

Mas, voltando ao teu amigo Doc, que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez... A malta do liceu e do teatro sempre o tratara por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tua vida...  Começavas a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola em 1961 e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.  

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura acabavas de chegar à  Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula". 

Depois tu e o Doc perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida... Soubeste, por outras vias, que ele se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda dera ao pai do Doc algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique... 

Mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o "velho republicano e maçónico, admirador do Norton de Matos"; morreu em finais da década de 1970, sem nunca ter podido  realizar o sonho de voltar às terras do Índico, que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e depois numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimento para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Tinha esse gesto bonito para contigo. Gostava, contudo,  de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de aventura e liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão. Sem uma palavra.  Sem um gesto de compaixão. Sem um adeus. 

© Luís Graça (2020). Revisto: 6 de novembro de 2024.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Jamais em tempo algum tinha ouvido falar deste boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dois investigadores brasileiros dão porquês para o seu aparecimento e falam da vida acidentada que a publicação teve, a maior colónia portuguesa no mundo ainda recebia afavelmente gente republicana, como Norton de Matos, e acresce que naqueles anos de 1930 os próceres do Estado Novo desconfiavam das doutrinas de Gilberto Freyre no que toca ao luso-tropicalismo. Tudo teve o seu tempo, mas acho que vale a pena dar uma vista de olhos ao que o escritor e jornalista Hugo Rocha publicou sobre a presença guineense na primeira exposição colonial portuguesa e é bom deixar no nosso arquivo as duas páginas com imagens de Bolama daquele tempo que era capital da colónia.

Um abraço do
Mário



A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro

Mário Beja Santos

Com a preocupação de vasculhar quanto a referências da Guiné portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alertaram-me para o Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicação que vingou entre 1932 e 1939, primeiro com o título de África Portuguesa e depois referenciada como Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Que pretendiam? No n.º 1 de África Portuguesa, janeiro de 1932, com o título a que vimos, faz-se a seguinte apresentação:
“A que vem África Portuguesa? Sentar praça nas hostes dos paladinos do Novo Renascimento Colonial Português. Este Novo Renascimento da expressão política devia-se a várias sacudidelas: a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa e às epopeias de Silva Porto, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. E à ocupação efetiva: Mouzinho, Alves Roçadas, João de Almeida, António Enes, Norton de Matos. África Portuguesa vem contribuir com a sua quota parte, cá deste lado do Atlântico, para essa obra de ressurgimento colonial, proporcionando aos nossos patrícios e a todos quantos se interessam pelas coisas coloniais uma resenha dos principais acontecimentos e factos mais notáveis da vida das colónias. Enfim, pôr em relevo a obra colonizadora dos portugueses.”

Mas pode-se apurar mais quanto aos intentos deste projeto, veja-se um artigo de Mateus Silva Ikolaude e Marçal de Menezes Paredes sobre as questões da lusofonia no n.º 48 da Revista Portuguesa de História, Coimbra, 2017.
Escrevem os autores:
“Na década de 1930, Portugal e Brasil constituíram na esfera diplomática importantes espaços de aproximação política. Se, por um lado, em Portugal existia um colonialismo com pretensões nacionalistas e que pensava o exemplo brasileiro como referências às colónias africanas, por outro, no Brasil havia nacionalismo que mobilizava componentes internacionais para com África e para com Portugal. O Rio de Janeiro constituía-se no principal centro de emigração portuguesa do mundo e a colónia lusitana organizada buscava afirmar e recriar a sua identidade a partir de duas estratégias principais: o associativismo e a imprensa. A visão do Brasil enquanto obra máxima da ação colonizadora portuguesa refletia-se na representação assumida pelos emigrantes residentes na antiga colónia, ao passo que a constituição da maior comunidade portuguesa fora de Portugal, em pleno século XX, reforçava simbolicamente os laços estabelecidos historicamente de uma predestinação lusitana. No dia 22 de maio de 1930 foi fundada a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Em 1934, a tiragem da revista era de dois mil exemplares que eram gratuitamente distribuídos para intelectuais, políticos, além de escolas, centros culturais e prefeituras.”

Haverá inúmeras tensões com o Estado Novo, basta pensar que uma das figuras mais admiradas na colónia era Norton de Matos, opositor do novo regime, curiosamente na década os próceres dos Estado Novo olhavam de viés as doutrinas de Gilberto Freire sobre o luso-tropicalismo, a doutrina será recuperada com a questão colonial posta nos anos 1950 e 1960.

No número dedicado à primeira exposição colonial portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, o escritor e jornalista Hugo Rocha prendeu-se de amores com a Guiné e redigiu um apontamento digno de reflexão:
“Ontem, a meio da tarde, para matar saudades, fui ao Palácio ver os pretos e buscar assunto para esta reportagem à margem do noticiário quotidiano. E a primeira impressão, forte, dominadora, absoluta, foi a de que entrara em pleno território colonial. Desde há poucos dias, 63 pretos e pretas da Guiné fazem vida africana em pleno recinto da Exposição Colonial Portuguesa. Fulas, Bijagós, Mandingas, Balantas. A melhor, a mais completa representação etnográfica que a Guiné, guarda avançada de Portugal na África, podia enviar à metrópole.
Pronta para receber tão imensa embaixada, a aldeia da Guiné, que é a mais típica do certame, porque é lacustre como grande parte das aldeias da Guiné e porque se situa entre uma paisagem admirável, não chegou, todavia, para acomodar todos os indígenas. Houve que dividir, como soe dizer-se, o mal pelas aldeias. E, assim, no bosque, em sítio escuso, de aspeto tropical, novas cubatas houve que erguer. E fez-se nova sanzala. E 20 negros – 18 homens e 2 mulheres – de raça Fula, passaram a habitar, ali, dando-se, também, a ilusão de que não estão no Porto, de que estão na Guiné…”


Interrompo aqui a citação para referir que há uma conversa entre Hugo Rocha e um guineense a quem ele chama Mony, fala-se do tempo em Portugal e na Guiné, e há para ali uma alusão maliciosa, Mony era casado com aquelas duas mulheres, uma delas estava a pentear um dos homens, para o observador havia para ali uma cena de sedução e perguntou-se a Mony se ele não tinha ciúme, a resposta foi portentosa, Mony não sabia o significado da palavra ciúme… E vamos continuar com o texto de Hugo Rocha:
“Henrique Galvão, com admirável sentido prático pelo que deve ser a preparação do certame, não quer que os indígenas da Guiné estejam ociosos. Sendo, alguns deles, trabalhadores excelentes, o melhor sistema de os tornar úteis ao certame, enquanto as portas não se abrirem ao público, era, evidentemente, empregá-los nas obras.
E assim, mal chegados, os negros começaram a faina, auxiliando os trabalhadores brancos que labutam, ali. Acarretam. Limpam. Auxiliam. Elas, enquanto os homens não perdem o seu tempo, estabelecem o ménage. Transportam lenha para as fogueiras, águas para a cozinha. Ao fim da tarde, quando eles estão disponíveis, a ilha oferece o quadro mais completo da Guiné que possa conceber-se. Quase todos vestindo – despindo será melhor dito… - à boa usança do sertão, eles estendem-se pelo chão, sobre as esteiras ou na terra dura. E elas, com uma paciência de Job, penteiam-nos, engorduram-nos, fazem das suas carapinhas baças um emaranhado inextrincável de fios embebidos de tacula, que parecem, pronto o toucado, barretes avermelhados e um tudo nojentos…

Depois, o batuque. Horas seguidas, enquanto a multidão de empregados e operários forma barreira compacta no continente, defesa como é a entrada na ilha, o tantã soa entre as árvores, a que uma ou outra palmeira, refletindo-se no lago, dá o ar tropical…
E a algazarra do dialeto, que ninguém entende, e as risadas sonoras, e o cheiro pronunciado a sertão, e aqueles corpos negros, nus e besuntados, que se agitam como se aquele fosse o seu verdadeiro meio, dão, a quem olhar a cena e a considerar, atentamente, a sugestão completa, farta, dominadora, de África…”


Foi o único artigo sobre a Guiné que encontrei. No entanto, dei com imagens de Bolama e seis imagens do interior da primeira exposição colonial portuguesa que aqui vos mostro.

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25138: Notas de leitura (1664): "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
No âmbito das comemorações do Centenário da República, a Assembleia da República editou um dicionário de história da I República onde se inclui um artigo sobre a vida da Guiné em tal período, assinado por Célia Reis. A investigadora recorda a alvorada tumultuosa do republicanismo na colónia, os conflitos em que se envolveu o primeiro governador republicano, Carlos Pereira, os conflitos entre Teixeira Pinto e a Liga Guineense, a nova organização administrativa, a importância do comércio alemão até à Primeira Guerra Mundial, a que se seguiu a crescente influência portuguesa, logo dada por António da Silva Gouveia, que terá funções políticas nos órgãos de soberania em Lisboa; mais refere a autora que os sucessivos insucessos das sociedades agrícolas, vinham com muitos sonhos e com pouco sentido das realidades; a colónia intensifica a exportação do amendoim e das oleaginosas e destaca-se uma figura de governação durante este período, Vellez Caroço, queria fazer da Guiné o que Norton de Matos lançara bases em Angola. Dir-se-á que não há nada de inovador no texto, certo é que está muitíssimo bem arrumado e não esconde que a Guiné marcava passo, não havia meios financeiros e o pessoal político vinha para se amanhar.

Um abraço do
Mário



A Guiné e a I República

Mário Beja Santos

O "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", com coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014, acolhe no seu II volume um artigo de Célia Reis sobre a Guiné republicana. Abre o trabalho com a evolução política da colónia designadamente a partir da definição das fronteiras em 1886, refere as ininterruptas rebeliões das diferentes etnias, em particular as do litoral, contestando o imposto palhota que era encarado como o principal fator do reconhecimento da soberania portuguesa. É um período de campanhas que levou a que a administração guineense se mantivesse essencialmente militarizada.

O ideal republicano era difuso, com a chegada do 5 de Outubro de 1910, houve mudanças de posições mas também recalcitrantes, a proclamação do novo regime teve lugar no dia 10, quando se arvorou o novo estandarte. A 23 de outubro chega o primeiro governador republicano, Carlos de Almeida Pereira, Tenente da Armada, viu-se envolvido em múltiplas contendas, deixa o seu nome ligado ao derrubo das muralhas que cercavam Bissau. O Partido Republicano começou a sua organização local, surgiu a Liga Guineense, cedo começou a divisão política, logo patente na eleição de deputados de 1911, através de processos habituais de corrupção e de compra de votos. 

Em 1916, Bolama e Bissau voltaram a ser concelhos. Antes, porém, iniciou-se uma fase de conflitos e sublevações que levaram à intervenção do Chefe de Estado-Maior Teixeira Pinto, entre 1913 e 1915, deixou a classe política dilacerada, a Liga Guineense opunha-se aos métodos usados por Teixeira Pinto e aos castigos impostos aos Grumetes de Bissau e aos seus parentes Papéis. A Liga acabou dissolvida, continuou a contestação de Cabo-Verdianos e Grumetes a Teixeira Pinto e a Abdul Indjai. Ainda hoje permanece na penumbra as razões principais sobre tal confronto, mais recentemente René Pélissier admitia a hipótese, até então não explorada pela historiografia, de uma movimentação dos alemães em conjunto com os Grumetes e os Papéis ou mesmo na influência dos franceses, mas documentação comprovativa não há.

A Primeira Guerra Mundial teve reflexos indiretos na Guiné, a opinião pública em Bissau e Bolama manifestava-se pró-alemã, enquanto o novo governador, Manuel Maria Coelho, pareceu estreitar relações com os franceses. Seja como for, foi proibida às casas alemãs a venda de armas e mobilizaram-se as embarcações de captagem que lhes pertenciam. Alemães e sírio-libaneses foram detidos, sendo parte dos primeiros enviados para os Açores. A partir de 1917, voltaram a fazer-se campanhas militares, primeiro nas ilhas Bijagós, depois contra os Baiotes. 

Em 1919, deu-se a queda de Abdul Indjai, levado para Cabo Verde. Em 1917, publicou-se a Carta Orgânica da Guiné, onde se manteve a importância da autoridade dos régulos. Criou-se a Secretaria dos Negócios Indígenas, para resolução das questões da maioria da população e alteraram-se as circunscrições. 

Em 1922, foi aprovado o Código Administrativo da Guiné, pelo qual Bolama e Bissau passaram a ter câmaras municipais, enquanto Cacheu, Farim, Canchungo e Bafatá contavam com comissões municipais. É governador Jorge Vellez Caroço, vem inspirado para mudar a colónia, tomado pelo exemplo de Norton de Matos em Angola. Não faltarão intrigas durante o seu mandato, nem conspirações, lança-se num processo de desenvolvimento, privilegiando a instrução e a construção de infraestruturas de comunicação. Suceder-lhe-á Leite de Magalhães. Finda a I República, a Guiné continuou a ser uma colónia para onde se deslocavam como deportados muitos republicanos, alguns deles, em ligação com a insatisfação de comerciantes locais, farão eclodir a revolta de 17 de abril de 1931, chefiados pelo médico Gonçalo Monteiro Filipe.

Célia Reis dá-nos o quadro étnico, referencia o número diminuto de europeus e a carência brutal de estruturas básicas: ao tempo de Vellez Caroço havia apenas 3 médicos. Predominavam ao tempo as religiões fetichistas, seguia-se o islamismo, a doutrina católica era mínima, não havia ordens religiosas, as Franciscanas só regressariam em 1932. As publicações durante este período espelharam a fraca presença europeia. O Boletim Oficial da Guiné manteve-se como o único órgão informativo da colónia até 1920, quando apareceu o jornal Ecos da Guiné, foi seguido por A Voz da Guiné e depois pelo Pró-Guiné, todos de vida curta e dedicados aos portugueses. O novo órgão de informação só surgiu depois de 1931, O Comércio da Guiné. Não havia ensino secundário e em 1916 as escolas de ensino profissional reduziam-se ao ensino de tipógrafos e radiotelegrafistas. Vellez Caroço preocupou-se com o desenvolvimento da instrução dos guineenses, criando escolas: em 1925, contavam-se 10 estabelecimentos para o sexo masculino, 6 para o feminino e 5 mistas.

Finda a escravatura, a Guiné tornou-se uma colónia de exploração dos seus recursos, com vista à exportação. Apareceram várias companhias concessionárias, que não tiveram sucesso, caso da Agrifa, Companhia Agrícola e Fabril da Guiné e a Sociedade Agrícola do Gambiel. O problema das taxas foi uma permanente dor de cabeça, sempre a questão da proteção pautal e Célia Reis dá-nos conta da vida económica e financeira da colónia no período. A Alemanha era o principal parceiro comercial até à Primeira Guerra, esta alterou a situação, dando primazia a Portugal. É um período que leva a melhoria de comunicações, o telégrafo estabeleceu-se no interior, no final da Monarquia.

Como observa a autora, “Entre os rendimentos na Guiné encontrava-se o imposto de palhota, que substituíra o de capitação, em 1903. Nem todas as despesas previstas eram realizadas, mas as sucessivas campanhas militares contribuíram, naturalmente, para o seu acréscimo, não obstante a compensação de vida ao alargamento do imposto palhota a mais subjugados. Entre as despesas, a maior parte pertencia ao funcionalismo militar, a que se somavam os gastos com os restantes funcionários. Os projetos de Vellez Caroço, na década de 1920, provocaram o endividamento da Guiné, tornando necessário que o ministro João Belo (já na Ditadura Militar) abrisse um crédito para o compensar. O aumento de imposto, então, usado para ultrapassar aquela situação deficitária.”

Lembro ao leitor que Célia Reis é autora do artigo Guiné na obra O Império Africano, coordenado por A. H. de Oliveira Marques, Vol. XI da Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e Oliveira Marques, edições Estampa, 2001, de que aqui já se fez recensão.

Cacheu e a sua fortaleza
Monumento aos aviadores italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama
Tropas portuguesas perfiladas na inauguração ao monumento dos aviadores italianos
Estátua do presidente americano Ulysses S. Grant, em Bolama
Bolama, capital da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)