Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta museus. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta museus. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26916: Notas de leitura (1808): Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Quando visitei este museu pela primeira vez, confesso que fiquei desconsolado com a rusticidade museográfica, tudo exposto um tanto a monte, nada de quadros explicativos, bem quis adquirir uma qualquer brochura, não existia. Estou em crer que o museu criado em 1947, por empenho pessoal do 2.º Tenente Teixeira da Mota era muito mais frequentado por quem fazia parte do Centro de Estudos e quem colaborava no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. O acervo patrimonial terá sido recolhido por administradores e doadores, uma coisa era certa, impressionava pela alta qualidade dos panos e pelas esculturas Bijagó e Nalu, afinal aquelas que se impõem ainda hoje ao gosto de quem aprecia e até coleciona arte africana. Se, porventura, o leitor dispuser de documentação sobre este museu bem podia mostrá-la, ficaríamos assim com uma visão mais ampla deste museu que mudou de significado em outubro de 1974, o seu acervo andou em bolandas, deploravelmente. Temos pelo menos duas belíssimas coleções em museus, o Museu Nacional de Etnologia e o Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Esqueci a data precisa, ou 31 de julho ou 1 de agosto de 1968, quando entrei no Museu da Guiné Portuguesa, que não passava de um museu etnográfico, no mesmo local onde funcionava o Centro de Estudos e a administração e redação do Boletim Cultural da Guiné-Portuguesa. Fora uma criação ao tempo do Governador Manuel Sarmento Rodrigues, 1947, quem ativou todo este empreendimento foi um seu adjunto, Avelino Teixeira da Mota. A legislação idealizara um acervo de outros patrimónios e até um arquivo histórico, este só apareceu em 1970. Completamente ignorante dos valores artísticos do que estava a visitar, registei na memória os panos manjacos e as esculturas Nalu e Bijagó. Na única vez que visitei Nova Iorque, fui ao Museu Metropolitano, que tem uma organização totalmente diferente dos nossos museus, a sequência cronológica é coisa que não existe naquele património, tinha visitado uma sala pomposa de um califa de Bagdade, segui para a sala seguinte, era dedicada a arte africana, e andando por ali a ver escultura e a procurar entender a documentação conservada em vitrinas, chamou-me a atenção um caderno de viagens de um Rockfeller que andara na África Ocidental e fizera aquisições, aí pela década de 1930, deixara escrito no seu caderno que ficara fascinado pela “suprema genialidade” de umas esculturas de um povo chamado Bijagó.

Durante a comissão, ainda em Missirá, recebi um aerograma do Comandante Teixeira da Mota com o pedido de falar com o régulo e em Bambadinca saber se havia um Sónô à venda (cetro das chefaturas, é uma haste de ferro com mais de um metro de comprimento tendo na extremidade superior um processo escultórico, podem ser quatro braços ou uma estatueta), em caso afirmativo que eu pagasse o que eles pediam ou então que fizesse regateio. Bati a várias portas, sem qualquer sucesso. Tinha visto, de facto, as tais hastes de ferro com elementos escultóricos no museu em Bissau, olhei para aquilo tudo como boi para palácio. Como há anos dei conhecimento aqui no blogue, encontrei num catálogo de leilões da Christie’s sobre arte africana, Sónôs com licitação inicial de alguns milhares de euros.

Chega-me agora às mãos um inventário feito no início da década de 1960, o seu autor é omisso nas considerações artísticas ao que inventariou, diz que o museu tem caminhado muito modestamente, que as instalação são muito precárias e o seu conteúdo insuficiente, e que este inventário sirva de ponto de partida para futuros empreendimentos; e despede-se com uma exultação nacionalista: que o museu mostre às gentes que o visitarem o valor de uma civilização luso-tropicalista que só os portugueses podem mostrar ao mundo.

Sumariando a apresentação que ele faz, ficamos a saber:
- Os Balantas estão representados por cestos e arados;
- Os Bijagós por cocharros, cabaças, sais de ráfia, redes de dormir, um tambor cilíndrico de madeira, lanças, machados, pulseiras; as suas artes plásticas são muito expressivas, e ali bem documentadas por um casal de garças, representação de cão, galo, tocador de bombolom, pássaros, missionários, bajudas, canoas, um dançarino da vaca bruto, um tubarão e um homem caçando um pelicano;
- A etnia Brame ou Mancanha tem a representá-la colheres, cabaças, chapéus e esteiras;
- A etnia Felupe apresenta cenas de fanado e danças;
- A etnia Fula tem em exposição cabaças, colheres, barretes de fio de algodão, ornatos para despentear o cabelo, pilões, banquetas, sachos, machados, raspadores, enxós, instrumentos musicais, bastões de madeira ornamentados com anéis e placas de alumínio;
- A etnia Mandinga apresenta ventarolas, peças forradas a couro, ourivesaria de prata e filigrana, adornos, korás e aparece um Sónô com o comentário que é uma haste de ferro com o comprimento de 1,23 metros, na extremidade superior tem 4 braços laterais, encimados por campânulas de bronze e no topo encontra-se uma estatueta de bronze representando um camelo com arreios;
- A etnia Manjaca: cestos, panelas, panos, esculturas de pessoas e tambores;
- A etnia Nalu: também com cestos, esculturas, tambores, a árvore da vida (estilização de dois pássaros de madeira de poilão), máscaras, o icónico Ninte-Camatchole (representação do Deus do fanado, ensina os iniciados da circuncisão a conhecer os companheiros do fanado) e máscaras;
- A etnia Papel: cestos, bancos, panos tecidos com fio de algodão, enfeites e adornos, grupos escultóricos e arados;
- A etnia Saracolé (apresentada no Atlas Missionário como um ramo dos Mandingas): representada por panos;
- A etnia Sosso (também apresentados como um ramo étnico Mandinga): têm em exibição redes de pesca.

É este o conteúdo do inventário, não passa de uma lembrança, porventura acontecimentos tumultuosos vividos na Guiné-Bissau, como a guerra civil, levaram ao desaparecimento deste património artístico; pela sua localização privilegiada, mesmo ao lado do Palácio Presidencial, na Praça dos Heróis Nacionais, o museu foi parar ao INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, naquele edifício está hoje a Primatura (gabinete de trabalho do primeiro ministro).

Edifício do Museu da Guiné Portuguesa, década de 1960
Benumbé (visto de lado)
Benumbé, arte Nalu, a mesma peça que a anterior noutra perspetiva
Incauelá, arte Nalu
Esculturas antropomórficas, arte Nalu
Duas peças de arte Bijagó e um chocalho de ferro de arte Papel
_____________

Nota do editor

Último post da série de 9 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26902: Notas de leitura (1807): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26869: Os nossos seres, saberes e lazeres (683): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (206): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 6 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março 2025:

Queridos amigos,
Permitam-me um desabafo de quem há duas semanas foi operado a um tendão na coifa ou manguito e anda com o braço enfraquecido, como se impõe, como diz a minha ortopedista o tempo é que é o remédio. Fiz desta viagem já um tanto gemebundo, nunca me passou pela cabeça que mesmo com aquelas massagens de alívio do Voltaren e a toma de analgésico pudesse andar por ali com tanta genica, como felizmente andei, não é por prosápia que me interrogo como andei a fazer aqueles quilómetros de bom andarilho desde a estação central ferroviária de Frankfurt até ao museu e etapas seguintes, ainda se vão seguir alguns dias em que andei sem parança. No caso do apontamento de hoje, deliciei-me com o contraste do centro histórico da velha Frankfurt visto de dia e de noite, é uma área muito dinâmica da segunda maior praça financeira da Europa (a primeira é Londres); o essencial da viagem era despedir-me de uma velha amiga que me cumulou de gentilezas, mais de um quarto de século, e que determinou ao seu herdeiro que eu seria uma das poucas pessoas a ter direito às cerimónias fúnebres; e mesmo com a coifa a dar-me dores regressei ao centro histórico de Frankfurt, também em jeito de despedida, já no comboio de regresso a Idestein dei graças por ser um velho a caminho de 80 anos que tem tido o privilégio de percorrer caminhos de um continente que cimenta os valores e princípios que o moldam, é na Europa que eu sinto a minha identidade, sem nenhum detrimento do meu amor por um certo ponto de África.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (206):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 6


Mário Beja Santos

Não quero esconder que saio compungido do Museu Der Städel, os alemães não brincam com os horários, falta um minuto para as 18 horas, esta imagem do vestíbulo do museu ninguém me a tira. Fiquem sabendo que descia esta bela escadaria e mergulhei de chofre na primeira mostra de imagens que vos apresentei, uma seleção de alta qualidade entre o século XIX e o modernismo europeu. Paciência, hei de voltar, haja saúde, tenho este privilégio de haver amigos fraternos que em franqueiam cama e mesa. É nisto, do hei de voltar, que me assaltou à mente aquela tirada retumbante do final da obra de José Saramago Viagem a Portugal em que ele diz que a viagem nunca acaba, os viajantes é que acabam, o que se vê dia não é o que se vê de noite, o que se vê na primavera não é o que se vê no outono, etc., etc., deu-me, o leitor que me desculpe, para pôr em sequência o que eu tinha posto na câmara ao atravessar o rio Meno, e seguidamente mostrar-vos o que deste lado do rio Meno vejo à noite, tão só para me sentir certo e seguro que todos os dias são bons para voltar, e há aquela sedução da cambiante horária que tudo molda sobre a forma das coisas.

O leitor que me perdoe a ingenuidade e a ignorância, tirar uma imagem com o vidro em frente pode ser entendido como muito artístico, aqui certamente não o é, mas temos o confronto entre a luz e a sombra.
Ao amanhecer, partimos em grupo para uma localidade perto de Frankfurt, Offenbach, é a apertadíssima moção de uma despedida, a deposição de cinzas de alguém com quem tive íntima amizade mais de um quarto de século, telefonemas a fio, convites para ir de lá para cá e de cá para lá, dei comigo a pensar que é a primeira vez que entro num cemitério alemão, gozam de uma serenidade que se aparenta com a dos britânicos, lá fui tirando imagens à sorrelfa, não queria ferir sentimentos, há preconceitos a respeitar, e não vimos propriamente para circuito turístico.
Ocorreu-me conectar estas três imagens, já lera que por razões geológicas, porventura por fenómeno que terá milhões e milhões de anos, todo este vale de Frankfurt parece a cratera de um vulcão rodeado de uma cordilheira de montanha, como é patente na terceira imagem, anteriormente mostrei uma secção do cemitério e um monumento dedicado aos mortos da guerra, o monumento, imagine-se, tem a ver com a guerra franco-prussiana de 1870.
Finda a cerimónia fúnebre, abraços repetidos e apertos de mão, olhos molhados, até à próxima, cada um partiu para o seu destino, o meu é o centro histórico de Frankfurt, vou andar à volta desse espaço que dá pelo nome de Römerberg, prende-se com uma área de grande interesse histórico para os alemães, na catedral de S. Bartolomeu os príncipes eleitores escolhiam o novo imperador, depois de investido, em festa encaminhava-se para o Römer, o edifício da Câmara Municipal e depois para o palácio imperial, todo este território conheceu ocupação romana, a era carolíngia, a alta Idade Média, aqui os nazis fizeram a queima de livros a que eram hostis, a barbaridade em fogueira. Entro agora na Igreja de Santa Catarina perto de Hauptwache, onde existiu uma estação da guarda, agora um café do século XX, como quase tudo neste espaço conheceu a reconstrução, no final da visita irei aqui tomar um café. Santa Catarina foi igreja medieval, depois transformada em igreja barroca, devorada pelo fogo em 22 de março de 1944 e reconstruída. Fui surpreendido à entrada por alguns vestígios do passado, estava na hora de servir uma refeição quente a gente sem-abrigo, pediu-se licença para ir ver peças que resistiram ao bombardeamento ou que tinham sido salvaguardadas.
Belíssimas pedras tumulares
Quando intitulado O Bom Samaritano, de Daniel Thielen, 1623-1711, da galeria que pertenceu à igreja destruída nos bombardeamentos de 1944. Juro que bem procurei fugir à intensa iluminação que pairava neste espaço, depois de andar várias vezes à frente, atrás e ao lado, foi o melhor que consegui.
Reconstrução da igreja, solução muito impressiva com a reconstrução do teto e a reprodução dos vitrais
Bem gostaria de saber o que é que estava a ver, ficou-me a consolação que talvez fosse uma lápide funerária, nunca me acanho em fazer perguntas, mas quem por aqui passava ia em direção a uma refeição, siga, meu amigo, e console o seu estômago.
Reconstrução do Römer, nem passou pela cabeça, atendendo à pressão do tempo, a entrar
É a reprodução desta praça de eleição, o Römer, com a fonte da justiça ali perto, aqui foi a queima de livros nazi de 1933, perto oiço um guia a referenciar os acontecimentos da praça ao longo da história, mercados, feiras, torneios, festivais e campo de execuções.
Igreja de S. Nicolau, para surpresa do leitor foi ligeiramente danificada e mostra toda a beleza do gótico alemão, com as suas cores primitivas.
É uma das mais imponentes casas da velha Frankfurt, diz aqui na brochura que é conhecida pelo nome de Goldene Waage, escamadas douradas, construída entre 1618 e 1621, reconstruída no século XVIII, tem café e o museu histórico de Frankfurt.
Chama-se catedral de S. Bartolomeu, a torre sineira é impressionante, o seu vestíbulo é neogótico. Diz na brochura que não é uma catedral no sentido estrito da palavra, seria melhor designá-la por igreja episcopal. O que acontece é que a partir do século XII era aqui que decorriam as cerimónias de investidura do imperador do sacro império romano-germânico. Como em tantíssimas igrejas, neste caso vem da era merovíngia, tornou-se na capela palatina dos Carolíngios e Saxões, de facto as eleições reais começara por se realizar aqui, com o andar dos anos fez-se uma divisão para a eleição, projetou-se o transepto e a grande torre é obra já do século XV.
Placa alusiva aos sucessivos incêndios durante a Segunda Guerra Mundial
É uma das melhores recordações que vou levar desta catedral, a capela Mariana onde está o altar de Maria Adormecida, obra do século XV, num espaço decorado do século XIX, escultura de uma beleza impressionante, não é permitido avançar mais, o que me impediu de poder ter focado num elemento de grande ternura, um anjinho a fechar um dos olhos da Virgem, ela adormece e depois, de acordo com o texto bíblico, ascende aos céus.
A catedral está recheada de belos retábulos, altares, capelas, grandes tesouros como o quadro de Anthonis van Dick, A Lamentação de Cristo, os cadeirais do coro são de uma beleza impressionante, como aqui se exemplifica com um dos retábulos.
Na linha do transepto, que era aqui que na Idade Média se realizava a procissão do novo imperador eleito, temos agora a sul um grande órgão, construído entre 1553 e 1944, é uma construção impressionante, um órgão moderno perfeitamente adaptado a uma estrutura antiga.
Um outro retábulo que não me podia deixar indiferente
Estas duas imagens têm a ver com os aspetos da coroação do novo imperador, a primeira com o local onde se fazia a sua proclamação, a segunda com a sua coroação.
À saída de S. Bartolomeu encontrei esta imagem que nos mostra os efeitos do bombardeamento de 22 de março de 1944, foram vários dias de bombardeamentos que coroaram com o daquele de 22, esmagador, a catedral aguentou todos aqueles embates, tal como a igreja de S. Nicolau.

É hora de regressar a casa, o dia de amanhã será passado no Limburgo, que eu desconhecia totalmente, estou pronto a regressar pelas razões do que a seguir vos vou mostrar.

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 24 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26841: Os nossos seres, saberes e lazeres (682): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5 (Mário Beja Santos)

sábado, 24 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26841: Os nossos seres, saberes e lazeres (682): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março 2025:

Queridos amigos,
Só espero não ter abusado da vossa paciência saltando da arte do século XX para a do século XVI, até ser posto na rua não descansei a contemplar grandes nomes do Renascimento e à saída fui contemplar um quadro que sempre me fascinou por Georg Baselitz, obra da década de 1960, já este mestre alemão era motivo de escandaleira. Alguns destes génios da pintura foram referências essenciais para pintores contemporâneos, é o caso de Velásquez, outros têm sido subtraídos de um plano discreto e são hoje glorificados, caso de Andrea Mantegna; diante de um belo quadro de Pieter Bruegel, o Jovem, deixei a memória esvoaçar e recordei uma exposição espantosa intitulada A Firma Bruegel, que visitei no Museu das Belas-Artes de Bruxelas, a história verídica de um empreendimento que meteu várias gerações de Bruegel a reproduzir obras que vinham de Bruegel, o Velho, e que encheram palácios por toda a Europa, nós não ficámos de fora, temos uma dessas obras no Museu Nacional de Arte Antiga. E despeço-me de Der Städel, passo as margens do rio Meno sempre ofuscado por ver a capital do euro completamente iluminada.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5


Mário Beja Santos

Depois de uma viagem por obras representativas e movimentos estéticos da primeira metade do século XX e a contemplação de uma exposição da cidade de Amesterdão do tempo de Rembrandt, feita uma pausa para descansar as pernas e tomar um snack, atiro-me para o passado, estou ávido em rever algumas obras-primas que aqui visitei no início do século, penso que não constituiu o núcleo duro da coleção do banqueiro Städel, ele tinha as suas preferências pelos barrocos alemão e flamengo, há para aqui obras da maior importância, é essa a incursão que tenho o prazer de vos mostrar, e despeço-me do Städel olhando uma obra contemporânea de Georg Baselitz, da década de 1960, apreciei sempre este pintor um tanto inclassificável, alvo de escândalos, figurativo e abstracionista, onírico e prosaico, exigente pela leitura dos temas da sua pintura, sente-se a intensidade da sua polivalência, experimentou quase tudo no mundo das artes, desde as artes gráficas à encenação, da escultura ao desenho. Aqui vos deixo um resumo do que mais apreciei até soar a campainha e pôr os visitantes na rua. E mesmo aqui deslumbrei-me com a vista do Meno e a cidade iluminada, mostrarei mais tarde.

Retrato de uma jovem com o seu cabelo solto, Albrecht Dürer, 1497. Dürer frequentou a feitoria de Antuérpia, aqui recebeu encomendas, aqui teve notícia do comércio português, o seu desenho do rinoceronte é fruto dessa relação e desse acervo de encomendas temos uma obra-prima no Museu Nacional de Arte Antiga, S. Jerónimo, uma aquisição do feitor de Antuérpia, Rui Fernandes de Almada.
O geógrafo, Vermeer, 1669. Para ser sincero, era uma das vincadas lembranças que me restava da visita deste museu, um quarto de século atrás. É uma tela pequena, tudo se ilumina, como é obra e graça na pintura de Vermeer da esquerda para a direita, o que permite a quem a contempla ter acesso ao trabalho minucioso do tecido recamado, multicolor, à frente, vemos vividamente um conjunto de objetos, a postura do geógrafo parece a de um modelo, inclinado e a olhar à distância através da vidraça, e depois prende-nos a atenção um sem número de detalhes como aquela estruturação da luz por toda a tela.
Companhia de milícia do distrito XI de Amesterdão sob o comando do capitão Reynier Reael, por Frans Hals e Pieter Codde, 1633-1637. Desde que tive o privilégio de conhecer obras de Frans Hals em Haia, procuro a sua companhia, temos aqui um grupo de gente muitíssimo bem arranjada, o pintor engalanou os dois oficiais, o capitão e o tenente, ricamente vestidos, por aqui me detive, deslumbrado, e sem querer a memória esvoaçou até ao famoso quadro de Rembrandt intitulado A Ronda de Noite, esta rapaziada da tropa queria um registo para todo o sempre, são quadros em que a vivência do grupo é o clamor do poder e da riqueza dos Países-Baixos.
Ecce Homo, por Bosch, ca. 1500. Ainda não é o Bosch do fantástico e do surreal, o que me embevece é esta alucinante profundidade do quadro, a raiva e o escárnio da multidão, a quase humanidade de Cristo que parece tiritar no seu corpo flagelado, curvado, o seu olhar estende-se até à eternidade, totalmente indiferente o conjunto dos seus algozes e da multidão ululante.
Vénus, Lucas Cranach, 1532. Cranach celebrizou-se pela nudeza dos corpos, revela-se um profundo conhecedor da anatomia humana e pela invulgaridade das exposições das figuras, veja-se a escolha da cor do chão em que a deusa assenta os pés, o seu véu transparente, quase translúcido, a evidenciar-se na negridão do fundo da tela.
Retrato do cardeal Gaspar de Borja y Velasco, Velásquez, ca. 1643-1645. Foi um dos maiores retratistas espanhóis, seduziu grandes nomes da pintura até ao presente, caso de Francis Bacon que sentiu atração em distorcer uma destas telas com cardeal, recriando outra pessoa, o pintor espanhol deixa patente o peso dos pormenores, veja-se o nariz cardinalício, o seu olhar penetrante, as faces encovadas, tem majestade, tem pose, mas não nos transmite empatia.
O evangelista S. Marcos, Andrea Mantegna, ca. 1448-1451. Foi um dos maiores do Renascimento italiano, tive a felicidade de ver expostos três quadros seus com o motivo da crucificação de Cristo no Museu das Belas-Artes em Tours, dois emprestados pelo Louvre, a partir de então este genial pintor faz parte das minhas preferências.
Retrato de Simonetta Vespucci como Ninfa, Botticelli, ca. 1480-1485. Botticelli é daqueles pintores que reconhecemos à primeira vista, olha-se para este retrato e de imediato viajamos até ao Nascimento de Vénus, uma das suas obras-primas na Galeria dos Ofícios, em Florença.
Retrato do Papa Júlio II, por Rafael, 1511/12. Pintor de encomendas papais, Rafael encheu o Vaticano de obras e este quadro de alguém que protegeu as artes é uma forma de imortalidade que também Miguel Ângelo ajudou com a poderosa escultura de Moisés junto do túmulo papal na Igreja de S. Pedro em in Vincoli, não muito longe do Fórum Romano.
Praça de S. Marcos em Veneza, Giacomo Guardi, ca. 1870-1810. Esta é a Praça de S. Marcos antes da chegada de Napoleão Bonaparte que mandou fechar o fundo com a chamada galeria napoleónica, neoclássica, que deu a esta praça uma formosura ímpar. Giacomo Guardi era descendente de Francesco Guardi, a maior coleção de obras em coleção particular dele está em Lisboa, no Museu Gulbenkian.
A Virgem e o Menino com S. João Batista e Isabel, Bellini, ca. 1490-1500. É preciso ser dotado de uma finura genial para que esta composição possuir o poder magnético de nos estontear com aqueles tons azuis intensos que ganham um estranho recorte com aquele fundo de azul do céu cheio de nuvens, e como nada destoa na simetria da composição com a indumentária pobre de S. João Batista enlevado diante daquele, como diz o Evangelho, de que ele não era digno de desatar as sandálias.
A adoração dos Reis Magos numa paisagem de inverno, Pieter Bruegel, o Jovem, ca. 1630. Mal sabia o pai deste que se transformara no promotor de uma firma de consecutivas cópias que eram encomendadas pela aristocracia e a grande burguesia. O filho de Pieter Bruegel, o Velho, também não frutava a introduzir variantes, e consegue fazer conjugar, com sucesso pleno, esta mistura de religiosidade com cenas da vida quotidiana, dando um cuidado realce à neve.
Retrato da infanta Margarida, por Velásquez, 1651-1673. Uma obra pictórica de génio fala por mil palavras, esta infanta aparece num conjunto de obras-primas, confesso que a que mais gosto é Las Meninas, que está no Museu do Prado, a infanta de Espanha rodeada da sua Corte no primeiro plano, uma tela cheia de profundidade quando ao fundo se abre uma porta por onde discretamente o pintor sai.
Oberon, por Georg Baselitz, 1963 – 1964. Já se ouvem os chamamentos das 17h45, os senhores visitantes são convidados a sair, e despeço-me desta memorável visita a Der Städel contemplando o Oberon de Baselitz, este mítico rei das fadas que também atraiu Shakespeare que deu intenso vigor na sua comédia Sonho de Uma Noite de Verão, o mesmo Oberon que entusiasmou o músico Weber, o seu Oberon é peça de reportório dos concertos. O que aqui me facina é a multiplicidade de figuras que parecem exatamente saídas de um sonho, fazem parte de um formulário de Baselitz de expor temas em completa rutura com a vida quotidiana. E agora vou ver Frankfurt ao anoitecer.

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 17 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26811: Os nossos seres, saberes e lazeres (681): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 4 (Mário Beja Santos)