
Queridos amigos,
Permitam-me um desabafo de quem há duas semanas foi operado a um tendão na coifa ou manguito e anda com o braço enfraquecido, como se impõe, como diz a minha ortopedista o tempo é que é o remédio. Fiz desta viagem já um tanto gemebundo, nunca me passou pela cabeça que mesmo com aquelas massagens de alívio do Voltaren e a toma de analgésico pudesse andar por ali com tanta genica, como felizmente andei, não é por prosápia que me interrogo como andei a fazer aqueles quilómetros de bom andarilho desde a estação central ferroviária de Frankfurt até ao museu e etapas seguintes, ainda se vão seguir alguns dias em que andei sem parança. No caso do apontamento de hoje, deliciei-me com o contraste do centro histórico da velha Frankfurt visto de dia e de noite, é uma área muito dinâmica da segunda maior praça financeira da Europa (a primeira é Londres); o essencial da viagem era despedir-me de uma velha amiga que me cumulou de gentilezas, mais de um quarto de século, e que determinou ao seu herdeiro que eu seria uma das poucas pessoas a ter direito às cerimónias fúnebres; e mesmo com a coifa a dar-me dores regressei ao centro histórico de Frankfurt, também em jeito de despedida, já no comboio de regresso a Idestein dei graças por ser um velho a caminho de 80 anos que tem tido o privilégio de percorrer caminhos de um continente que cimenta os valores e princípios que o moldam, é na Europa que eu sinto a minha identidade, sem nenhum detrimento do meu amor por um certo ponto de África.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (206):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 6
Mário Beja Santos
Não quero esconder que saio compungido do Museu Der Städel, os alemães não brincam com os horários, falta um minuto para as 18 horas, esta imagem do vestíbulo do museu ninguém me a tira. Fiquem sabendo que descia esta bela escadaria e mergulhei de chofre na primeira mostra de imagens que vos apresentei, uma seleção de alta qualidade entre o século XIX e o modernismo europeu. Paciência, hei de voltar, haja saúde, tenho este privilégio de haver amigos fraternos que em franqueiam cama e mesa. É nisto, do hei de voltar, que me assaltou à mente aquela tirada retumbante do final da obra de José Saramago Viagem a Portugal em que ele diz que a viagem nunca acaba, os viajantes é que acabam, o que se vê dia não é o que se vê de noite, o que se vê na primavera não é o que se vê no outono, etc., etc., deu-me, o leitor que me desculpe, para pôr em sequência o que eu tinha posto na câmara ao atravessar o rio Meno, e seguidamente mostrar-vos o que deste lado do rio Meno vejo à noite, tão só para me sentir certo e seguro que todos os dias são bons para voltar, e há aquela sedução da cambiante horária que tudo molda sobre a forma das coisas.
O leitor que me perdoe a ingenuidade e a ignorância, tirar uma imagem com o vidro em frente pode ser entendido como muito artístico, aqui certamente não o é, mas temos o confronto entre a luz e a sombra.
Ao amanhecer, partimos em grupo para uma localidade perto de Frankfurt, Offenbach, é a apertadíssima moção de uma despedida, a deposição de cinzas de alguém com quem tive íntima amizade mais de um quarto de século, telefonemas a fio, convites para ir de lá para cá e de cá para lá, dei comigo a pensar que é a primeira vez que entro num cemitério alemão, gozam de uma serenidade que se aparenta com a dos britânicos, lá fui tirando imagens à sorrelfa, não queria ferir sentimentos, há preconceitos a respeitar, e não vimos propriamente para circuito turístico.
Ocorreu-me conectar estas três imagens, já lera que por razões geológicas, porventura por fenómeno que terá milhões e milhões de anos, todo este vale de Frankfurt parece a cratera de um vulcão rodeado de uma cordilheira de montanha, como é patente na terceira imagem, anteriormente mostrei uma secção do cemitério e um monumento dedicado aos mortos da guerra, o monumento, imagine-se, tem a ver com a guerra franco-prussiana de 1870.
Finda a cerimónia fúnebre, abraços repetidos e apertos de mão, olhos molhados, até à próxima, cada um partiu para o seu destino, o meu é o centro histórico de Frankfurt, vou andar à volta desse espaço que dá pelo nome de Römerberg, prende-se com uma área de grande interesse histórico para os alemães, na catedral de S. Bartolomeu os príncipes eleitores escolhiam o novo imperador, depois de investido, em festa encaminhava-se para o Römer, o edifício da Câmara Municipal e depois para o palácio imperial, todo este território conheceu ocupação romana, a era carolíngia, a alta Idade Média, aqui os nazis fizeram a queima de livros a que eram hostis, a barbaridade em fogueira. Entro agora na Igreja de Santa Catarina perto de Hauptwache, onde existiu uma estação da guarda, agora um café do século XX, como quase tudo neste espaço conheceu a reconstrução, no final da visita irei aqui tomar um café. Santa Catarina foi igreja medieval, depois transformada em igreja barroca, devorada pelo fogo em 22 de março de 1944 e reconstruída. Fui surpreendido à entrada por alguns vestígios do passado, estava na hora de servir uma refeição quente a gente sem-abrigo, pediu-se licença para ir ver peças que resistiram ao bombardeamento ou que tinham sido salvaguardadas.
Belíssimas pedras tumulares
Quando intitulado O Bom Samaritano, de Daniel Thielen, 1623-1711, da galeria que pertenceu à igreja destruída nos bombardeamentos de 1944. Juro que bem procurei fugir à intensa iluminação que pairava neste espaço, depois de andar várias vezes à frente, atrás e ao lado, foi o melhor que consegui.Reconstrução da igreja, solução muito impressiva com a reconstrução do teto e a reprodução dos vitrais
Bem gostaria de saber o que é que estava a ver, ficou-me a consolação que talvez fosse uma lápide funerária, nunca me acanho em fazer perguntas, mas quem por aqui passava ia em direção a uma refeição, siga, meu amigo, e console o seu estômago.Reconstrução do Römer, nem passou pela cabeça, atendendo à pressão do tempo, a entrar
É a reprodução desta praça de eleição, o Römer, com a fonte da justiça ali perto, aqui foi a queima de livros nazi de 1933, perto oiço um guia a referenciar os acontecimentos da praça ao longo da história, mercados, feiras, torneios, festivais e campo de execuções.Igreja de S. Nicolau, para surpresa do leitor foi ligeiramente danificada e mostra toda a beleza do gótico alemão, com as suas cores primitivas.
É uma das mais imponentes casas da velha Frankfurt, diz aqui na brochura que é conhecida pelo nome de Goldene Waage, escamadas douradas, construída entre 1618 e 1621, reconstruída no século XVIII, tem café e o museu histórico de Frankfurt.
Chama-se catedral de S. Bartolomeu, a torre sineira é impressionante, o seu vestíbulo é neogótico. Diz na brochura que não é uma catedral no sentido estrito da palavra, seria melhor designá-la por igreja episcopal. O que acontece é que a partir do século XII era aqui que decorriam as cerimónias de investidura do imperador do sacro império romano-germânico. Como em tantíssimas igrejas, neste caso vem da era merovíngia, tornou-se na capela palatina dos Carolíngios e Saxões, de facto as eleições reais começara por se realizar aqui, com o andar dos anos fez-se uma divisão para a eleição, projetou-se o transepto e a grande torre é obra já do século XV.
Placa alusiva aos sucessivos incêndios durante a Segunda Guerra Mundial
É uma das melhores recordações que vou levar desta catedral, a capela Mariana onde está o altar de Maria Adormecida, obra do século XV, num espaço decorado do século XIX, escultura de uma beleza impressionante, não é permitido avançar mais, o que me impediu de poder ter focado num elemento de grande ternura, um anjinho a fechar um dos olhos da Virgem, ela adormece e depois, de acordo com o texto bíblico, ascende aos céus.A catedral está recheada de belos retábulos, altares, capelas, grandes tesouros como o quadro de Anthonis van Dick, A Lamentação de Cristo, os cadeirais do coro são de uma beleza impressionante, como aqui se exemplifica com um dos retábulos.
Na linha do transepto, que era aqui que na Idade Média se realizava a procissão do novo imperador eleito, temos agora a sul um grande órgão, construído entre 1553 e 1944, é uma construção impressionante, um órgão moderno perfeitamente adaptado a uma estrutura antiga.
Um outro retábulo que não me podia deixar indiferente
Estas duas imagens têm a ver com os aspetos da coroação do novo imperador, a primeira com o local onde se fazia a sua proclamação, a segunda com a sua coroação.À saída de S. Bartolomeu encontrei esta imagem que nos mostra os efeitos do bombardeamento de 22 de março de 1944, foram vários dias de bombardeamentos que coroaram com o daquele de 22, esmagador, a catedral aguentou todos aqueles embates, tal como a igreja de S. Nicolau.
É hora de regressar a casa, o dia de amanhã será passado no Limburgo, que eu desconhecia totalmente, estou pronto a regressar pelas razões do que a seguir vos vou mostrar.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 24 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26841: Os nossos seres, saberes e lazeres (682): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5 (Mário Beja Santos)
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