E, dando um salto na cadeira, continuou o "Campanhã", de dedo em riste:
− Mais, seus c..., alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…
− Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas! − interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a "Máfrica" (onde fez a recruta) e depois para Lamego (onde tirou o Curso de Operações Especiais), com passagem por Tancos (para tirar as 'minas & armadilhas').
− Bom amigo e camarada, tenho que te lembrar que muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos, e alguns começaram bem cedo, feito o 5.º ano ou o 7.º, do liceu ou equivalente... − atalhou o Neves, ajudando a cortar o fio à meada do discurso torrencial (e perturbador) do "Campanhã", e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição.
− Cá o Zé Soldado, como eu, já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato, c.., não traziam código postal!
O "Campanhã" e o Neves tínham-se tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia verdadeiros amigos, amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo "bunker", a mesma vala, o mesmo espaldão, o mesmo beliche, a mesma cama, enfim, o mesmo buraco)...
Voltaram ambos a recordar essa memorável viagem de comboio que, em meados de 1969, tinha levado a Companhia, ensonada, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.
Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-lhe contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, fazendo do Neves o seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, "lucidamente deprimido" (escreveria ele mais tarde), à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras banhadas pelo Tejo, ronceiro, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "Quarteleiro" tirava uns acordes sinistros do seu acordeão. Mas a maior da malta dormitava, encostada aos ombros de uns e outros, para acordar, estremunhada, com a brisa do estuário do Tejo...
Muitos deles ainda se tratavam, neste primeiro convívio anual, em 1991, pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, o Neves já não se lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos seus camaradas da Companhia. O "Quarteleiro", por exemplo, sempre o havia conhecido por "Quarteleiro" e era um gajo impecável que punha a G3 num brinquinho, quando a malta regressava do mato, coberta de pó ou enlameada, "a tresandar a merda". E, depois, animava a malta com o seu acordeão de arraial minhoto, tal como o Oliveira, que tocava viola e cantava uns fados e baladas de Coimbra.
Da dura história de vida do "Campanhã", o Neves, com o seu traquejo de jornalista, tinha, porém, tomado notas, no seu diário. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem.
Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" do Porto, na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea, e que lhe deu guarida nos primeiros tempos.
− Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias na Invicta, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias, como um cigano ou um ladrão.
− Falas em fome... mesmo, a sério?!− insinuou o Neves, timidamente.
− Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… E um pingo de azeite, com cebolinhas, e castanhas cozidas no outono e inverno... Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não direi. Digamos que passei... necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo, manteiga ou iogurte, nem muito menos cerveja. Nem sequer um ovo estrelado, que a minha mãe vendia os ovos para fazer algum dinheiro!... Não, nunca conheci calças sem remendos. Ou sequer um par de botas. O meu furriel sabe o que são socas?
− Não, não faço ideia! Peço perdão, sou um citadino...
− Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente botava nos pés, quando ia à vila ou à escola.
E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda morou depois de vir da Guiné, sendo mais tarde alojado num bairro camarário), antiga zona popular e operária da cidade, faria entretanto a sua "universidade da vida" antes da tropa: moço de recados, marçano, aprendiz de barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se dizia lá na "ilha" – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica metalúrgica, que foi o seu primeiro emprego a sério, com descontos para a "Caixa", em Massarelos, a célebre Fundição de Massarelos, que já havia conhecido melhores dias, e que irá fechar os portóes a seguir ao 25 de Abril).
− "Cães grandes"?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4.ª classe, acompanhava o meu velho na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel...
− São Miguel?...
− Sim, no fim do ano agrícola, lá para o fim de setembro... Para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista (que o povo dizia que era do "Supremo" e condiscípulo de Salazar) e que tinha mais quintas na região, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…
"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1.º sargento ao oficial superior, do abade ao "fidalgo"... Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja", o Gravata, por evidente abuso do poder do seu superior hierárquico, acrescentaria o Neves, que foi contemporâneo dos acontecimentos...
O Neves aproveitou o reencontro da malta, em 1991, para recapitular, com o "Campanhã", o que se tinha passado, ao certo, em Santa Margarida em maio de 1969, na formação da Companhia: o 1.º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos cabos milicianos, futuros furriéis... Por outro lado, o homem esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos , em Águeda.
Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da Companhia.
− Andavas já debaixo de olho do nosso primeiro!... Ele nunca foi à bola com reguilas como tu, e para mais do Porto!
De nada valeram os pedidos, insistentes, que os cabos milicianos lhe fizeram, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível, oriundo da arma de cavalaria "como o Spínola" (como gostava de lembrar). E alguns de deles até tinham um certo ascendente sobre ele, haviam começado, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para um futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)...
O "Campanhã", que era uma figura popular, muito querida entre a malta da Companhia, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita mágoa e raiva", como simples soldado atirador de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1.º sargento, para mais logo no início da formação da Companhia, nada fez para demover o 1.º sargento, acabando por dar andamento à participação, o que causou evidente mal-estar entre a generalidade dos cabos milicianos.
O "Campanhã" falava do seu "velho", do seu pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.
− As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1.º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. − confidenciou ele, nessa inesquecível viagem de comboio.
Foi despromovido, podia ter ido no "Niassa", com as divisas de 1.º cabo, "com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor"... E perguntava ao Neves:
− Acha justo eu estar a comandar uma secção, na falta de um furriel, com o reles posto de soldado raso?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"!... Se ele alguma vez tiver o azar de alinhar no mato (o que nunca irá acontecer, eu sei) ou se eu o apanhar a jeito nalgum ataque ao quartel, juro que o mato com um tiro na testa...
E, depois, arrependendo-se da enormidade que tinha acabado de proferir, emendou, não fosse alguém ouvi-lo e denunciá-lo à "bófia":
− Não o mato, pela simples razão de que eu tenho uma filha pequena para criar... Mas sou capaz de lhe pregar um susto quando o pessoal se instalar no 'parque de campismo'...
E prosseguiu, já com uns bagaços a mais, enquanto o comboio uivava na breu da noite:
− As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.
O Neves, "alfacinha" (que ue não conhecia nem imaginava até o que era a pobreza de muita gente do campo e da cidade que vivia no Norte) não conseguiu disfarçar as suas próprias emoções quando uma grossa lágrima caiu pela cara abaixo do "Campanhã " ao evocar a figura do pai, num longo e pungente monólogo:
− Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra.... Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestadada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior... Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...
O Neves recordava estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava "carne para canhão", no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem" (como dizia o safado do Azevedo), que nenhum deles se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude, os seus "verdes anos" (como cantarolava o Oliveira). Em contrapartida, haviam-se ganho novos amigos:
− Amigos para sempre! − concluiu o "Ranger", embevecido.
Para alguns deles, porventura para a maior parte deles, agora "despidos e despedidos" (a expressão era do Neves), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que haviam ido à inspecção, alcunhados de ex-combatentes da guerra do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril) − "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, a falar sozinho, lá do outro mundo, orgulhoso, porque sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") − , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das suas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta.
− Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes... - completou, dedilhando a velha viola, ao lado do Neves, irónico, o "baladeiro" do Oliveira, ex-furriel de transmissões, que era de Coimbra (ou arredores) e que, entretanto, se formara em direito.
− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! − arremataria o "Peniche", no meio da galhofa geral, se fosse vivo, repetindo a frase que lhe dera celebridade e impunidade: "E eu inda hei-de ficar grávida (sic)... e dar à luz, com a ajuda da ciência!"...
Talvez, o Neves, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar com o pagode. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas, não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra"!...
− Éramos todos, afinal, bons rapazes! − confidenciou, desalentado, o Neves para os seus botões...
É que todos faziam ali o jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tácitas ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabiam que nunca mais voltaria a repetir-se esse encontro na Anadia, em 1991, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irem comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).
− Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!
− Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, que é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada. − ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul, os "mouros".
No fundo, todos aqueles homens, a caminho do meio século de existência no bilhete de identidade, sabiam que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar aquele insólito e fugaz mas inesquecível encontro de umas escassas dezenas (não mais do que trinta!) de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço (e depois de uma nova rodada de uísques, de uma Old Parr de 1970, que o "Vagomestre" trouxera de lembrança, daquelas garrafas ainda com a etiqueta "From Scotland with Love For the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto, a bizarria ou o azar de se lembrar de evocar os mortos da Companhia...
− Agora é que foderam tudo, c...! – exclamou, em voz alta e pose teatral, o "Campanhã".
Comentava o Neves que nunca conhecera nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: "nenhum actor, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele"... Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...
Fez-se um "minete de silêncio" (uma infeliz bocarra do "Campanhá") pela memória do "Peniche", o "bobo da Companhia" e que, na "peluda", ainda chegou a ser um popular mas meteórico artista de cabaré. O Peniche, "ofendido e humilhado", com 4 ou 5 anos de tropa no lombo, de tal modo que o capitão desistira, logo no início, de lhe dar mais "porradas"....
Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de colunas logísticas. E de emboscadas. E de operações. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da Companhia, que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros...
Enfim, havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E o Neves, surpreso, descobriu que, nestes convívios, a generalidade da malta só queria falar afinal das coisas boas da guerra, as tainadas, as bezanas, os desenfianços, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...
Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo.
Esta foi, pelo menos, a versão do "Ranger" que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!...)
O "Campanhã" fazia parte da 2.ª secção do 1.º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "Ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos" (sic), também manteve sempre essa versão oficiosa que alguns, talvez "com dor de corno", consideravam no mínimo "fantasiosa"...
O Neves lembrou que não podia confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safou-se desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3.ª secção.
O Neves era o único furriel do 1.º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que ele, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para conforto dele e tranquilidade do seu espírito. Claro que o Neves, mal humorado, também fez questão de dizer, alto e bom som, não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que lhes dera depois o capitão, e que deixara a malta toda "descolhoada" (sic)... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para a rapaziada que veio com ele, de Santa Margarida, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor: um gajo certinho, pouco ou nada falador, amigo do seu amigo, que sabia "fazer as coisas pela calada"...
De qualquer modo, o Neves sempre achou que a cruz de guerra, "com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo", ficava bem no peito do bravo "Campanhã".
Ao que parece, a 1.ª secção do 1.º pelotão já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o guia à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2.ª secção, na curva do trilho, viu de relance, de perfil, o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.
− Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava, de pé, por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador sobre o tronco, visto de perfil...
Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficar-lhe-ia reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 2 estimadas, pelos rastos de sangue"...
O Neves recordou, para um grupo mais restrito, à mesa, o gozo interior, e o ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1.º cabo, no 2.º ano da comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de cabos de guerra de Águeda...
− Tenho pena que esse 'cão grande' (sic) já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ... - disse-me ao ouvido do Neves, no gozo.
Naturalmente que o amigo (e camarada de pelotão) desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Aliás, também, naquele tempo, não havia assim tantos heróis de guerra por metro quadradao: o "Campanhã" fora um deles e o Azevedo nunca chegara a sê-lo, com muita pena dele.
O Neves ainda voltou a um um outro convívio da companhia, já no virar do milénio... E num deles reencontrou o capitão, então já coronel, na situação de reforma. Ter-se-á emocionado, o antigo capitão, quando evocou as trágicas circunstàncias em que foi morto o primeiro homem da Companhia, logo nos dois primeiros meses de Guiné... Estavam emboscados, de noite, quando há um militar que sai da sua seção para ir "arriar o calhau" (sic), sem dizer nada a ninguém e quebrando a rigorosa disciplina imposta... No regresso, ao ouvir restolhar o capim, o capitão instintivamente disparou uma rajada... Teve uma agonia horrorosa, o pobre soldado, durante quase uma hora, sem possibilidades de ser helievacuado...
− "Herói ou santo", parece que era o lema de vida do Azevedo, já do seu tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois anos, em 2011... E o nosso "Campanhã", também infelizmente, está em Custóias, à espera de julgamento. Foi um choque para todos nós a revelação da sua vida dupla. Uma vida madrasta. Esperemos poder voltar a abraçá-lo, de novo, o mais breve possível. Quero crer na sua inocência.
De resto, o Neves nunca mais estivera com nenhum deles, o "Ranger" e o "Campanhã", depois do convívio na Anadia, em 1991. E também não tinha podido ir, no ano seguinte, a França de Bragança, como ele escrevera, em email enviado ao organizador do convívio de 2013, no Porto.
No discurso, de improviso, que fez no Porto, à hora dos brindes, nesse convívio de 2013, o Neves (que não era dado a tiradas patrioteiras) disse tudo o que achava que se podia dizer sobre estes encontros de saudade, dos ex-antigos combatentes da Guiné:
− Em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, essa guerra nunca existiu e, se chegou a existir, nós perdemo-la, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã" ou grandes combatentes como o nosso "Ranger", que nem sequer foram reconhecidos. De qualquer modo, honra e glória para eles!... Mas, em boa verdade, não foram heróis, não se consideravam heróis... Foram portugueses que apenas cumpriram o seu dever para com a Pátria, que está sempre acima de qualquer regime político, souberam fazer a guerra mas também a paz. E nós todos, aqui presentes, neste convívio, não passamos afinal de bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntam para beber uns copos, conviver e matar saudades do tempo perdido. Mas ficámos amigos, isso sim, ficámos amigos para sempre, citando o nosso saudoso "Ranger".
© Luís Graça (2007). Última versão, revista e melhorada: 19/7/2023.