sábado, 2 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16259: Manuscritos(s) (Luís Graça) (86): O Relim Não é um Poema (à memoria do médico Joaquim Vidal Saraiva 1936-2015)


À memória de Joaquim Vidal Saraiva  (1936-2015), ex-alf mil médico (Guileje, Bambadinca e Bissau, 1969/71)


Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Extractos de: História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina. Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos: (i) Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Comb, reforçada pelo Pel Caç Nat 52; (ii) Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb; (iii) Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106.

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.


Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): 

COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.



2. O Relim não é um poema



por Luís Graça



[à memória do médico 
Joaquim António Vidal Saraiva, 1936-2015]




Participaste nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.

Um passeio a Madina/Belel, 
a sudeste de Sara / Sarauol,
um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,

Porto Gole e Enxalé,
e à navegação no Geba Estreito,

no Mato Cão.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado 
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais seguro e barato:
pretos de primeira da tua CCAÇ 12
e dos Pel Caç Nat 52 e 54,
mais alguns brancos de segunda,
os açorianos
da CCAÇ Vinte e Seis Trinta e Seis

e um esquadrão de morteiro 81.
Levámos dois cantis de água por cabeça.

O que é um gajo pensa,

aos vinte três anos,
de Missirá a Salá 
e daqui até Sancorlá,
em bicha de pirilau,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,

lá na cabeça do império, 
a fustigar-te as trombas ?
Bendita chuva, ou chuvinha,
a primeira do ano,
que é um refrigério;
maldita a trovada,
ligada ao automático,
a disparar de rajada,
que te desperta os terrores mais antigos
da tua espécie.


Um gajo não pensa nada,

enquanto caminha toda a noite,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais uma operação,

no final do tempo seco...
Era março, marçagão,
mas na tua terra não,
que em abril, sim, 
é que as águas são mil.


Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(ver Operação Lança Afiada
em que um em cada seis fora evacuado).


Caminhaste, caminhámos, 
penosamente,
toda noite,
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã,
às dez em ponto,
para fazer o piquenique.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.

Cortaram-nos as voltas,
os gajos do PAIGC
(não te apetece dizer IN),
cercaram-nos pelo fogo.
E, quanto a Deus, Alá e os irãs,
mais as abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exatamente
de que lado é que estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
às catorze horas da tarde, 

no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...


Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Pois que saia, e  forte,
a bazucada, a morteirada,
com o código da morte!

Nós, quem ?

O patrão da Dornier, do PCV,
da tropa-macaca,
a quem as moranças estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio,
com ciclovia e tudo,
uma autêntica autoestrada
para as "bikes" dos homens do mato,
oferta da Suécia com amor.
Ainda não havia os Strelas,
a temível arma dos arsenais
do inimigo,
que haveriam de pôr o tuga
em sentido, em terra,
ou a pau, quando voava...


Alguém puxou dos galões dourados
e decidiu fazer um golpe de mão,
ou melhor: mandar fazer,
que tu nunca viste nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão,
p'ra ficar bem no álbum de fotografia do

batalhão,
e impressionar o Caco Baldé,
o homem grande de Bissau...


Um senhor da guerra qualquer,
do batalhão de Bambadinca,

que gostava de andar de Dornier, 
de cu tremido,
e que queria chegar a tenente-coronel,
e a coronel
e a general,
o que era perfeitamente normal
para quem escolhera a carreira das armas.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
ó oinca,
que lavras a tua bolanha,
e que talhas com a tua catana
a piroga onde te afogas ?
Quem é que comanda esta tropa-macaca,
ó mandinga,
ó beafada
ó fula,
ó minha gente ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
qual rolo compressor
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.


Entretanto, já alguém,
o nosso "tigre de Missirá",
tinha ido buscar, de heli,
o reabastecimento de água
a Bambadinca.
Alguém dos nossos (preto ou açoriano) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
e estilhaçou um dos vidros laterais.
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o "tigre", que é vadio mas não voa,

ficou retido no Xime.


A verdade é esta, camaradas:
o PCV falhou, 

o plano de operações,
o heli falhou,
a cadeia de comando quebrou-se,
ou porventura alguém quis matar
o "tigre de Missirá",
afinal o elo mais fraco da cadeia.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o senhor comandante do PCV
foi dormir nessa noite na sua cama em Bambadinca.



No regresso ao Enxalé,
depois de uma segunda noite no mato,
sofremos brutalmente,
tu sofreste,
que a dor não dá
para partilhar,
sofreste brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
a insolação,
as miragens,
o absurdo,
a desumanidade.

Tiveste miragens,
como no deserto do Sará,
bebeste o teu próprio mijo,
esgotado o soro,
mastigaste as ervas do orvalho,
esgotada a água,
desesperaste,
perdida a esperança,
bebeste sofregamente a água choca dos charcos,
amparaste os mais desgraçados do que tu,
transportaste os feridos.
consolaste os mais sofridos,
fizeste as tuas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus

que aprendeste quando eras cristão e crente 
e temente a Deus 
e tinhas amor à Pátria.

Não deste nenhum tiro de misericórdia, 
mesmo cristãmente, 
aos moribundos que não chegaram a haver,
felizmente,
mas odiaste o PCV,
Bambadinca,
as fardas, 

os galões,
a tropa, 

a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné,

o Amílcar Cabral,
os senhores da guerra
e os seus títeres.
Odiaste até... 
o dia em que nasceste.

Um homem,
mesmo o cristão que tu és,
tem que odiar, saber odiar,
para sobreviver,

em qualquer guerra,
tem que odiar o inimigo
e tem que odiar o seu general.

Camarada
que fizeste comigo a Op Tigre Vadio,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim:

o relim não é um poema,
um poema épico ou dramático,
é sim, tão apenas,
um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.


O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos,
das miríades de abelhas kamikazes
que arrancaste do cachaço,
que arrancámos do couro cabeludo,
dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel,
dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados dos elementos pop
que morreram à hora da sua sesta,
carbonizados,
o relim faz economia de tudo que é acessório,
das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome,
a sede,
a lassidão do corpo,
a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para chorares, de raiva.

Não, nunca mais iremos esquecer Madina/Belel.
tu, eu e mais 250 homens, combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
o "capitão diabo"
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China ou em Cuba.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
do batalhão,
o nosso médico,
Vidal Saraiva (tinha esquecido o teu nome,
valente alferes miliciano médico),
que o "tigre de Missirá"
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação
e ferimentos em combate...

Pobre doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficaste em terra
(nunca te tratámos por tu, a não ser hoje),
perdeste a boleia do heli
e conheceste o inferno do Cuor,
com os teus trinta e três anos feitos.

Agora, que morreste,
lá no Olimpo,
ao lado do velho Hipócrates, teu mestre,
deves estar a sorrir,
com um sorriso bonacheirão,
benevolente,
ou com uma gargalhada desbragada,
destas peripécias cá na terra...

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de bridge ou de king
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
vê lá tu,
é coisa que se apalpa, outrossim,
e que em último caso serve,
bem melhor do que o capim,
para enxugar a pele,
para limpar... o cu.

Luís Graça

Bambadinca, abril de 1970 / Alfragide, junho de 2016
 _____________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16165: Manuscrito(s) (Luís Graça (85): Peço desculpa...

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16258: Brunhoso há 50 anos (8): O Ciclo do Pão (1) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos, desta feita com a primeira parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 8 - O Ciclo do Pão (1)

Na década de cinquenta do século passado, que é até onde a memória me consegue transportar na minha viagem ao passado, Brunhoso vivia de uma agricultura rudimentar que pouco diferia da agricultura praticada pelos antigos egípcios, gregos, romanos e outros povos mediterrânicos.

Era uma agricultura, sem recurso a máquinas que se baseava na utilização intensiva da força humana e dos grandes animais domésticos: bois, vacas, gado muar e asinino. A tecnologia mais avançada que utilizava, para além da charrua, era o arado e o carro de bois de que já se vêm em gravuras do antigo Egipto do tempo dos faraós. A charrua com funções semelhantes às do arado, era toda em ferro, mais pesada portanto e com uma relha maior que rasgava a terra com mais profundidade e conseguia lavrar em solos mais duros, que veio como tal permitir aumentar a área de cultivo possibilitando o desbravar de muitos terrenos incultos. A charrua é considerada um avanço tecnológico da Idade Média, que terá sido mais difundida após a revolução industrial da Europa com a criação de fábricas metalúrgicas que as fabricavam em série como acontecia na fábrica de Tramagal no Ribatejo, donde eram as que eu conheci, nesses tempos. Para além da melhoria tecnológica que representou a invenção da charrua, terá havido, como é natural outras melhorias que a marcha dos tempos sempre traz, como melhores selecções de sementes, um melhor conhecimento dos solos e a criação de melhores adubos para os tornar mais férteis. Um adubo muito utilizado e publicitado por paredes de vilas e até aldeias, nos anos cinquenta e algumas décadas subsequentes era o famoso "Nitrato do Chile".

Charrua do Tramagal
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Depois das sementeiras em fins de Setembro, meados de Outubro, conforme o tempo o permitisse, novo ciclo do pão recomeçava. O lavrador nunca tinha descanso e a terra, essa deusa antiga, exigia dele uma atenção e um trabalho constante. O meu amigo Joaquim "Passarinho", já com 86 anos, diz muitas vezes que a “fazenda” (conjunto das propriedades agrícolas de que o lavrador tinha que pagar anualmente a décima nas repartições da Fazenda Pública) gosta de ver o dono. Para preparar as terras para as sementeiras do próximo ano, os lavradores começavam logo a decrua, que era a primeira lavra com as tais charruas de ferro da fábrica de Tramagal, puxadas por juntas de bois, vacas, mulas ou machos que rasgavam a terra cheia de ervas e restolho já ressequido. O tempo da decrua, que decorria no Outono, que por não haver colheitas, era uma estação do ano triste e temida pelos trabalhadores da terra, pois antes da apanha da azeitona que só começava em Dezembro as jeiras eram escassas.

Venda do Pinheiro - Publicidade ao Nitrato do Chile em azulejo
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A “vima”, que era a segunda lavra, fazia-se normalmente na Primavera, nos meses de Março, Abril e Maio. Não havia muito rigor nestas datas pois tanto a decrua como a vima dependiam muito das condições atmosféricas que podiam trazer tempo seco ou chuvas e condicionavam as fases da preparação dos campos de cultivo. Podia até acontecer que se fizesse alguma decrua na Primavera por não ter havido condições para fazê-la antes, nesses casos a vima seria já mais próxima da sementeira.

Alguns lavradores, quando a vima era feita logo no inicio da Primavera, “escardavam” também os campos, que era uma última lavra que tinha por objectivo arrancar as ervas daninhas que entretanto tinham crescido. Um dos sinónimos de escardar é eliminar os cardos, que nalguns terrenos cresciam em abundância.

As sementeiras começavam em Setembro e acabavam em Outubro. As sementeiras eram pois feitas ao entrar o Outono, nesse tempo de paz em que duração dos dias e das noites se equilibravam e o sol enviava raios mais oblíquos com um calor suave que iluminavam a terra com uma claridade que alargava mais os horizontes, quando as folhas caducas dos castanheiros, das parreiras e de outras árvores e arbustos de folha caduca, na despedida, se iam transformado em tonalidades suaves de verde, castanho, amarelo, rosa e vermelho. O tempo das sementeiras era um tempo que se adequava ao meu temperamento e sensibilidade. Um tempo calmo, ameno e em que os horizontes de montanhas se alargavam e tornavam mais visíveis, fazendo crescer os sonhos em evasões imaginárias.

Nesse tempo tínhamos uma junta de bois e uma junta de vacas. O meu irmão mais velho lavrava com a junta de bois e eu com a junta de vacas, enquanto o meu pai semeava o trigo. De manhã ao sair de casa a minha mãe como de costume, dava-nos o saco da merenda, feito de linho ou estopa, com o pão, presunto, toucinho, chouriço, por vezes queijo ou frango. Lembro-me desses dias de sementeira como de solenidades místicas com homens e animais empenhados no mesmo esforço comum, sendo o nosso pai o “Xamã” que "espalhava" o cereal (trigo ou centeio) com ar sério e compenetrado. Pelo meio-dia, por ordem dele, parávamos e escolhíamos uma sombra para merendar. Nunca esqueci um dia, teria 16 ou 17 anos, em que fizemos a sementeira duma terra do Zimbro. Há dias ou momentos que recordamos para a vida inteira sem sabermos explicar o porquê desse registo. A mim tem-me acontecido algumas vezes ao longo da vida. Desse dia de sol esmaecido, de fins de Setembro, recordo quase tudo com uma fidelidade fotográfica. Além da visão dos homens e dos animais e das suas tarefas até recordo o sabor do toucinho que fazia parte da merenda. Não me lembro de ter comido um naco de toucinho como aquele. Depois de ter sido curado pelos frio seco de Inverno e resguardado do calor intenso de verão na despensa fresca do rés-do-chão, o toucinho estava curado e feito, como um bom vinho, que afinal até lhe fazia companhia no mesmo lugar. Talvez tudo isto me tenha acontecido por ter experimentado a bênção da terra que o lavrador recebe quando comunica com ela, eu que era um lavrador sazonal, de tempos de férias.

Normalmente as terras ficavam de "POUSIO", pelo menos um ano. Não havia nenhum pacto de regulação de zonas, no entanto, para acautelar o pastoreio dos animais, os lavradores procuravam andar na mesma folha que os outros, embora houvesse quem assim não fizesse, se não tivesse alternativa. Isto significa que metade dos campos cultiváveis da aldeia estavam cobertos de cereal enquanto os da outra metade, de pousio, estavam a ser preparados para as próximas sementeiras.

Depois das sementeiras o trigo e o centeio tinham uma gestação de nove meses, tão demorada ou mais como as dos filhos dos lavradores, pois as colheitas só seriam feitas nos meses de Junho ou Julho do ano próximo. As searas iam crescendo lentamente, passado um mês não teriam mais de um palmo. Chegados os frios de Dezembro ou Janeiro, um pouco mais crescidas para poder suportar as geadas e a neve desses meses. Um provérbio muito conhecido, a experiência acumulada dos lavradores tinha tantos provérbios mensais e anuais, que este era mais um a juntar aos outros: “Cresce o trigo debaixo da neve, como o carneiro debaixo da pele”.

Com a chegada da Primavera ainda com muitas chuvas mas com mais sol a aquecer os campos de trigo e centeio, as searas iam crescendo e ondulando ao vento em aguarelas de tons de verde sobre verde. Pelos fins de Maio os campos de cereal iam adquirindo uma cor aloirada, sinal de que o grão e a palha estavam quase maduros e prontos a ser colhidos. Com as ceifas, que conforme o tempo atmosférico, teriam lugar nos meses de Junho e Julho, começavam os trabalhos que durante três meses congregavam o esforço de todos os homens e muitas mulheres da aldeia.

Olho para trás, para esses tempos antigos, e revejo esses homens, alguns ainda adolescentes, a andar ligeiros, curvados sobre a terra, cada qual com três assucadas, com a seitoura na mão direita, a ceifar o trigo e centeio, horas e horas debaixo desse sol transmontano de Julho que abrasa a terra como o fogo do inferno. Tenho recordações que são como flaches da memória e volto a ver esses quinze segadores, nesse dia quente de Julho, na Cortinha das Maias, todos magros e curtidos pelo sol e pelos ventos, com o suor a cair do rosto em pingas de água, como se fossem lágrimas. Os mais experientes revezavam-se ainda na tarefa de “atar” sempre difícil e dolorosa, ainda mais dolorosa que segar. Era preciso que alguém fizesse esse trabalho difícil com responsabilidade e, ao mesmo tempo, que os “molhos” fossem todos mais ou menos iguais entre si. Os segadores além de cada qual assumir uma responsabilidade individual pelo acompanhamento na marcha ritmada das assucadas tinham também a responsabilidade colectiva de fazer um trabalho perfeito mesmo que para isso alguns tivessem que se sacrificar mais. Eu, era o filho do patrão, que tinha por missão um trabalho bem mais leve que era distribuir água, que transportava num cântaro de barro, a quem dela necessitasse.

CEIFEIROS - Painel de azulejos policromos, pintado por Eduardo Leite segundo cartão de Dórdio Gomes, produzido na Fábrica da Viúva Lamego, Lisboa. Átrio da Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja. 
Com a devida vénia ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora

 As refeições eram os únicos momento de descanso que tinham durante todo o dia. Gostava de as fazer com eles, sempre abundantes e com boa qualidade para repor as energias gastas e compensar o organismo do esforço despendido:
Cerca das 9,30, comíamos sopas de pão centeio que levavam alho, colorau e azeite rijado. Os homens agrupavam-se cinco ou seis, de volta de uma caçarola, munidos de uma colher para comer esse repasto matinal. Gostava muito dessas sopas que a minha mãe só fazia para os segadores.
Ao meio-dia era o almoço que podiam ser batatas guizadas com carne de borrego ou carneiro;
Às quatro da tarde era a merenda, que podia constar de toucinho, queijo, saladas de alface e tomate, e às oito horas, já em casa do patrão, o jantar que muitas vezes era bacalhau cozido ou guisado com batatas.

Nesses tempos em que a dureza do trabalho era sentida por quem a prestava e era bem visível para quem a pagava geralmente todos os lavradores tratavam os trabalhadores com boas comidas, melhores até, falo dos lavradores médios, do que aquela que comiam diariamente eles e as suas famílias, em suas casas.

Todas as refeições acompanhadas de algum vinho pois era consensual, entre os trabalhadores, que o patrão que dava pouco vinho não prestava.

Os principais cereais que se semeavam em Brunhoso, que cresciam e amadureciam ao mesmo tempo, por vezes lado a lado, eram o trigo e o seu meio irmão o centeio, mais escuro e considerado menos nobre, como se fosse um bastardo do mesmo pai, mas apesar disso com um porte mais altivo. Tanto com um como com o outro as nossas mães faziam os grandes pães cozidos em grandes fornos aquecidos com lenha de giesta e esteva, que se conservavam quinze dias em óptimas condições, guardados nas despensas das casas. Lembro-me da minha mãe, afogueada pelo esforço e pelo calor, depois de ter metido todos esses grandes pães no forno, os abençoar, fazendo o sinal da cruz, na sua entrada, com a mesma pá com que os tinha metido. O pão era esse alimento sagrado que nunca devia ser pousado doutra forma que não fosse aquela em que assentou quando foi cozido, que quando deixávamos cair um pedaço ao chão tínhamos que o beijar, que não se devia estragar ou usar em brincadeiras.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Guiné 63/74 - P16257: (Ex)citações (310): Apreciação do texto do Poste 16248 de António José Pereira da Costa (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) com data de 30 de Junho de 2016, com uma apreciação ao texto do Poste 16248, de autoria do outro nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel Art Reformado:

Para o Camarada António José,
Portugal chocou contra os ventos da história. Espatifou-se, e pronto. Uns tiveram azar, outros tiveram sorte. Há sempre alguém que se safa com o azar alheio. Dirá, certamente, que é a lei da vida. Mas afinal, o que foram os ventos da história? Os tais que espatifaram a nação? Foram alguns poucos oficiais das Forças Armadas, que aliciaram outros, formaram uma espécie de tertúlia onde debatiam as suas circunstâncias, e... lá vai disto!

Os ventos da história, no caso particular dos que afectaram Portugal, foram alguns militares profissionais, que venceram a própria nação a que tinham jurado servir e defender. Portugal, naquela circunstância, não perdeu na luta, nem havia indícios de estar para perder em qualquer das três frentes da guerra. Podia estar difícil? Podia! Naturalmente em alguns sectores do ultramar. Mas situações difíceis não são situações derrotadas. Então, podemos concluir, Portugal perdeu por via de um golpe preparado por alguns dos seus oficiais, no momento histórico em que mais desenvolvia as províncias africanas, cujas proporcionavam estabilidade económica e social à metrópole.

Depois entraram em funcionamento cooperante com o turbilhão de desgraças e imprevistos, as máquinas inimigas, tanto de proveniência nacional como estrangeira, que exultavam os heróis do golpe traiçoeiro, e reconstruíam a ideologia através dos novos aparelhos ideológicos do estado, e passou-se da estabilidade e do progresso para a apropriação alheia e os mais disparatados saneamentos, já que sanear deve ser criar condições de progresso.

Isto é histórico, corresponde ao que aconteceu, e não me parece necessário invocar os milhares de crimes perpetrados em consequência, quer afectando os compatriotas emigrados em África, quer os que chegaram em condições dramáticas, testemunhas e vítimas do desprezo indigno dos revolucionários, só com a roupa que envergavam, quer, ainda, pelas perturbações que incidiram sobre os meios de produção, paralisando-a, do que resultou a breve trecho a exaustão das reservas financeiras.

Enquanto se viviam dramas humanos, fomentava-se a rivalidade entre grupos sociais ou ideológicos, e os militares estiveram na primeira linha desses conflitos, estimulando-os, e esses revoltosos tornaram-se vedetas na comunicação social, ou eram vitoriados pelos militantes apaixonados de dois partidos, na maioria oportunistas, que antes do golpe não tinham noção ou interesse pela organização político-social, e logo constituíram a frente de quem "mais ordena" em aliança com o MFA. Louis Althusser, pensador comunista, ajuda-nos a compreender a ideologia, enquanto fanatismo que lavra as personalidades, de quem respigo esta pérola: "Aliás, é próprio da ideologia impor (sem o parecer, pois que se trata de "evidências") as evidências como evidências, que não podemos deixar de reconhecer". Julgo não enganar ninguém se concluir tratar-se de um dos axiomas da manipulação.

Mas então a ideologia veio de onde, surgiu do quê? Da Academia? Sim e não. Alguns da nossa geração lembram-se de que o regime ditatorial permitia a circulação de literatura sobre psicologia, ciências sociais, ideologia, etc., bem como a comunicação social fazia frequentes referências, em alguns casos contínuas, através de órgãos de comunicação quase especializados na subversão. Do PCP é que nada, só pela clandestinidade daria notícias. Estava proibido. Ora, aquela juventude, virgem e generosa, lia umas coisas e pensava-se já dona da verdade, como ainda hoje acontece frequentemente, com grande desconhecimento dos tentáculos do poder oculto, que aos primeiros indícios controlavam os movimentos sociais e sugeriam-lhes direcções, do que resultava por vezes ficarem tolhidas ou submetidas as revoluções prometidas, mesmo no tempo de quando o povo era quem mais ordenava. Doces ilusões. Esses ciclos acabam por revelar-se manipulados, tal como os militares do Movimento foram manipulados numa aura de glória.

Porque se não o tivessem sido, os puros contestatários da circunstância, os anti-situacionistas, pediam a passagem à reserva, ou desertavam, o que implicava alguns riscos para encontrarem actividades alternativas tão bem remuneradas, para mais em eventual concorrência com outros mais qualificados ou experimentados. Também por isso fizeram o golpe, para continuarem a ser militares, sem correrem riscos salariais, sem terem que se afastar das famílias. E disso lavam as mãos, sendo que ainda há quem lhes chegue a água e o sabão, gente manipulada, que confunde os interesses das classes, dos interesses, e das circunstâncias. Mas ninguém os obrigou à profissionalização militar.

Para os que não têm noção sobre a dimensão do desastre em termos meramente humanos, que multiplicaram por muito as chacinas guineenses, deixo a indicação de alguns livros sobre o holocausto angolano, e onde se alude a elementos do MFA a acicatar pretos contra brancos, e pretos contra pretos. Mas a destruição do modelo económico nacional veio revelar que desde a primeira intervenção do FMI, com Mário Soares, Portugal não produz o suficiente para viver, ou de outra maneira, a nossa receita tem sido insuficiente para as crescentes despesas subtilmente ocultadas. E isso à custa da aniquilação de boa parte do nosso aparelho produtivo, dos empréstimos que reembolsamos pelo pagamento regular de prestações e juros, pelo pagamento das importações, pela exportação de capitais para offshores, e pela quota parte da participação em instituições internacionais que nos secam/condicionam a capacidade para criar riqueza através do investimento interno. E estamos reféns desta situação.

Bibliografia:  
"Segredos da Descolonização de Angola". Alexandra Marques, 2013;
"25 de Abril de 1974 - A Revolução da Perfídia", Gen. Silva Cardoso, 2008;
"Angola - anatomia de uma tragédia", Gen. Silva Cardoso, 2000;
"S.O.S. Angola - Os dias da ponte aérea". Rita Garcia, 2011;
"Livro Negro da Descolonização", Luíz Aguiar, 1977.

JD
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16163: (Ex)citações (309): Ex-Soldado Carlos Carrilho Alberto, da CCAV 3463 do BCAV 3869, Piche (Out71/Dez 73), recebeu a sua medalha com 43 anos de atraso (Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P16256: Nota de leitura (853): Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2016:

Queridos amigos,

Se é certo e seguro que gosto de desencantar imagens de combatentes, na procura de que fiquem registadas no mais impressionante álbum fotográfico da guerra da Guiné, que é o nosso blogue, não escondo o desconforto destas fotografias e por vezes correspondência comprada pelos feirantes às famílias dos militares desaparecidos ou rejeitados por uma separação, por exemplo.

Sei que o assunto não tem solução, o Arquivo Histórico Militar tem feito apelos à recolha deste preciosíssimo acervo mas a insensibilidade pesa muito mais.

Naquele sábado gostei muito de me reencontrar com o envelope esverdeado da Agência Militar, foi ali que acabei os meus estudos, guardo as melhores recordações da camaradagem e ainda hoje sinto arrepios quando me lembro que saía da porta principal do Banco de Portugal a segurar um malão de couro com três milhões de contos, uma pistola à cintura, o 1.º Cabo Silva com outra mala e sempre a perguntar-me o que é que devíamos fazer se houvesse assalto à mão armada...

Um abraço do
Mário


Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra

Beja Santos


Ainda não desisti de escrever longamente sobre a minha experiência como oficial na Agência Militar. Todos os dias úteis, tinha como uma das minhas obrigações era entrar num jipe aberto, com uma cobertura de lona, acompanhado por um 1.º Cabo que pegava pelo fuste uma G3, ele que nunca tinha dado um tiro depois da instrução, trazia uma mala de couro e ia até ao Banco de Portugal buscar de mil a três milhões de contos. A Agência era o Banco do Exército, pagava religiosamente as pensões aos familiares dos combatentes que vinham à rua D. Estefânia (é hoje uma igreja com um nome estranhíssimo) desciam uma escada de madeira sobre uma rampa e traziam um subscrito igual a este que encontrei na Feira da Ladra, era sempre esta cor, a importância variava, como é óbvio, de acordo com a patente do militar. Podíamos deixar dois terços na metrópole. Vezes sem conta imaginei-me apanhado num golpe de mão com largos milhões de contos, na rua do Comércio. Estes passeios diários eram também educativos: aprendi a comprar moedas comemorativas e a visitar cambistas; e apercebi-me de que havia um desenlace trágico no nosso sistema financeiro quando a partir do último trimestre de 1973 vi uma autêntica multidão a comprar e vender ações a preços irrealistas junto do Banco Totta & Açores, a polícia bem pretendia afugentar as pessoas, sem resultado. Estavam a vender as ações das empresas que apareceram falidas a seguir ao 25 de Abril.




Dois dos meus “fornecedores” combateram na Guiné. Do Eduardo Martinho, que esteve em Bissorã, e é amigo do nosso confrade Armando Pires, já aqui falei várias vezes. Tudo quanto é revista, mapa, publicação avulsa onde apareça a palavra Guiné, é religiosamente guardado para me surpreender, em situação alguma esqueço esta elevada prova de consideração. E quando não trago na bolsa algo sobre a Guiné é muito capaz de virem estudos sobre Fernando Pessoa ou aparentados.

O outro fornecedor combateu em Encheia, prefere o anonimato, está à espera que a ex-mulher lhe devolva o seu património de combatente, quer pôr tudo por miúdos, aceitou o convite que lhe fiz para falarmos da sua comissão. Compra espólios, o mesmo é dizer que traz tudo aquilo que as famílias não querem, incluindo álbuns de fotografias, peças de vestuário, penicos, tenho visto de tudo. Mostrou-me estas duas fotografias, indignado, para ele estas imagens não são comercializáveis.

José Martins Pereira aparece em pose em Bissau, a data é de 15 de Janeiro de 1965. Escreve no verso: “Zé, Como vês, continuo a estar magro mas da maneira que estou a comer espero engordar dentro em pouco. O edifício que vês ao fundo é o mais importante do quartel-general. É o Estado-Maior, sala de operações. Não tem elevador. A pistola está aqui porque tinha chegado de uma reportagem perto de Bissau e fora de Bissau anda tudo armado”. Assina com garatujado.

Temos agora a última fotografia, alguém que se assina “Belo”. No verso escreve-se Bigene e diz-se que é uma imagem do descanso da porrada. E solta-se um palavrão.



Trata-se de uma edição da Afrontamento, Setembro de 1974, trata-se da reedição de uma publicação clandestina policopiada. Diz-se na nota introdutória: compilação de textos significativos, procurando dar uma visão de conjunto sobre o colonialismo português e as guerras coloniais, com o intuito de fornecer um instrumento de trabalha para a luta anticolonial.

Luís Moita e Nuno Teotónio Pereira são dois dos editores, o que faz supor que era uma açã clandestina os católicos de vanguarda. O leitor encontra os seguintes dossiês: a expansão colonial portuguesa com o tratamento do comércio ao longo da costa, a partilha de África e a ocupação militar e um documento sobre a evolução da escravatura aos trabalhos forçados; o segundo dossiê tem a ver com dados coligidos pelos autores sobre trabalho forçado, dados sobre a saúde na Guiné nos anos 1950 e a saúde em Angola nos anos 1960, o ensino e a cultura, o racismo, o papel da igreja católica e o sistema económico; o terceiro caderno, seguramente o maior, tem a ver com a luta pela independência em Angola, Guiné e Moçambique; o quarto prende-se com solidariedade em torno das lutas de libertação, o quinto é dedicado às vítimas de guerra, o sexto perspetiva a luta nos anos seguintes e o sétimo documento comporta anexos, desde mapa cronológico à bibliografia.

Dá relevo às fases da ocupação portuguesa na Guiné entre 1878 e 1936, cita abundantemente passos de livros de Basil Davidson, Gérard Chaliand e relatórios de Amílcar Cabral. O livro tem aspetos muito melindrosos na medida em que apresenta nomes de militares e polícias de segurança política, designadamente em Angola, associados a crimes gravíssimos, trata-se da citação de um documento clandestino que teria sido elaborado por estudantes portugueses. O mapa cronológico dos acontecimentos ligados à guerra parece bem elaborado.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16255: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XI Parte: VI - Por Terras de Portugal (v) : a CCAÇ 763 toma conta do subsetor de Cufar e prepara-se para fazer uma experiência única no CTIG: a utilização de cães de guerra



Foto nº 1 > O Cadete em pose



Foto nº 2 > Secção de cães da CCaç 763


Foto nº 3 > Elementos da CCaç 763 em Cufar: Mário Fitas é o 1º da direita


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Texto e fotos e legendas : © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.



[À esquerda: capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.]



Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VI - Por Terras de Portugal: Tavira, Elvas, Lamego, Oeiras, Lisboa, Bissau, Cufar> (v) (pp. 35-40)


por Mário Vicente [, foto à abaixo à direita, março de 2016, Oitavos, Guincho, Cascais]




Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8), 

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra"):

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

e (vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965,



[Mério Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô].


1. Continuação da publicação do cap VI - Por Terras de Portugal (v) (pp. 35-40) (*)....
[Fixação de textop e subitítulos: LG]
A 2 de Março de 1965, quando o 2º. Grupo de Combate aporta ao cais de Cufar, as Forças do PAIGC controlavam total­mente o sector, dispondo de um forte acampamento na mata de Cufar Nalu, de onde eram feitas flagelações ao aquartelamento. Apa­recendo aqui a primeira brincadeira, uma provocação do jogo do gato e o rato, que é a guerra de guerrilha. O corneteiro toca ao içar da bandeira e da mata, a resposta são rajadas de metralha­dora e de armas ligeiras. Há que arranjar abrigo para que o cor­neteiro se sinta seguro, e sopre na corneta com força.

O aquartelamento resume-se às ruínas de uma antiga fábrica de descasque de arroz, onde irão funcionar todos os serviços da Companhia. O pessoal encontra-se instalado em abrigos escavados no solo e cobertos por troncos de palmeira, chapas de bidões e terra por cima. Estes abrigos circundam a velha fábrica e no seu interior, a temperatura mínima é atingida durante a madrugada, nunca baixando dos 30.0 centígrados. Dor­mir só ao relento, nas trincheiras que ligam os abrigos. 

Vagabundo tinha aprendido muito de guerra, mas ao chegar a Cufar, sente a responsabilidade de que nada sabe. A guerra no terreno é totalmente diferente da guerra a brincar e no papel. Meus amigos, Cufar é um problema muito sério e há que tratar as coisas como devem ser tratadas. Com vinte e dois anos sente a responsabilidade e vê que a sua juventude não chegou a ser vivida. Tem de se tornar adulto, mas rápido. Na Guiné depara com terrenos de características especiais e que desco­nhecia por completo. Há que aprender a atravessar pântanos, bolanhas, lalas, tarrafos, com o lodo pela cintura, pelo peito, tem de transpor rios de maré de profundidades variadas, alguns atravessados a nado, a vau ou de cordas de margem a margem. Há que preparar o pessoal para este terreno, para a natureza do clima e para as exigências do combate.


Carlos, o comandante, o líder


Primeira fase: disciplinar o pessoal. Aqui o furriel tem pleno conhecimento de que tem que ser duro e que a forma de tratar com o pessoal tem de ser diferente, para os poder defender.  Carlos, chefe máximo, é sem dúvida um grande exemplo de militar, que saberá conjugar as obrigações profissionais com o tratamento humanizado do pessoal que dirige. Corajoso, abnegado, sempre na primeira linha de combate, a CCAÇ e todos nós, em geral, como veremos lhe ficaremos a dever os êxitos que iremos ter e, graças à sua capacidade de liderança, ultrapassaremos momentos de grande perigo, onde a decisão certa será o mais importante. Inteligentemente, é o primeiro a identificar e caracterizar a situação, e não tem problemas em definir as estratégias aos alferes e sargentos. Há que dar uma volta à guerra, em termos totais, equipamento, técnica e táctica.

Aqui nasce o primeiro princípio da anti-guerrilha. Dado estar o medo ligado à preservação da vida, manifestando-se perante situações de ameaça da mesma. Sendo resultante de reacções físicas e mentais motivadas por abalo do organismo, enviando o cérebro mensagens para todo o corpo com forte descarga de adrenalina, provocando a aceleração cardíaca, são necessárias formas de inverter este sistema para não termos medo. Sejamos claros, o primordial é saber dominar essa situação causadora do medo, dado que ele existe pois só os loucos não sentem essas manifestações. É pois primordial saber dominar essa coisa invisível, sem forma, mas que senti­mos e nos deprime. É necessário não ter medo. Acertemos en­tão, que o princípio dos princípios é a autodisciplina. Vamo-nos transformar em guerrilheiros para fazermos a anti-guerrilha. Carlos é extraordinário a transmitir estas mensagens aos seus comandados, não subordinados. Terão que se sacrificar determi­nados conceitos e regras, em prole da defesa da vida dos homens que nos estão confiados e da nossa.
Agora já sabemos que temos pela frente um IN (inimigo) numeroso, bem armado e aguerrido. Os procedimentos tácticos não podem ser os da guerra convencional, há que fazer alterações profundas. Vagabundo começa a entender determina­das instruções de Lamego. Só no terreno se pode actuar. Aos srs. mandantes da guerra nos gabinetes, que querem que os soldados apanhem os invólucros das munições quando em contacto com o inimigo, há que mandá-los urgentemente para as recrutas bási­cas, e que venham tirar o curso de sargentos milicianos nas matas da Guiné. Srs. comandantes de companhia, façam como o alferes Paolo, e atirem com as boinas para cima das secretárias, nos gabinetes de Bissau. O furriel Humberto tinha razão, quando, com o seu pastor alemão atrás, passava e gritava:
–  Oh "Mula Branca," vai pró mato, malandro.

Haveria que dar muitas lições de procedimentos técnicos e tácticos a esses senhores dos gabinetes. Carlos com certeza se irá encarregar disso. Vagabundo e seus companheiros têm de se preocupar com os seus soldados. Entramos na vida dramática que não é nada fácil.

A acção subversiva internamente atingiu já a fase de criação de bases e forças regulares. Temos como adversários neste jogo, na zona do prolongamento do corredor de Guilege, os nossos amigos João Bernardo Vieira "Nino", e Joãosinho "Guade", comandantes das forças armadas revolucionárias po­pulares e responsáveis pela Zona 11, que se situa algures, na península de Cabedu, entre os rios Cacine e Cumbijã, na região do Cafal.

A CCAÇ tem de construir todas as instalações. Não pode­mos ser apanhados pela época das chuvas dentro dos buracos. Nos intervalos da actividade operacional, os soldados, em vez do merecido descanso, têm uma obra ciclópica pela frente. Fa­bricam blocos de terra (barro amassado) e, improvisando com a habilidade e necessidade adquiridas, vão construindo abrigos, refeitórios, latrinas, paióis, balneários, e reconstruindo casas destruídas. As situações mais diversas levam os soldados à in­ventiva engenharia. Não suficientemente cómodas, nem obras primas de arquitectura, o esforço e a vontade colocada nas obras são insuspeitas, e fazem delas coisas maravilhosas num esforço sobre humano. 

Não é demais frisar a heroicidade destes verda­deiros e excelentes guerreiros aqui no Sul, referido como "cu de Judas" e onde a guerra se faz taco a taco. Toda a região de Cufar se encontra "depredada," porque destruídas e desabitadas muitas tabancas. Área plana, cortada por muitas linhas de água, nela predominam as bolanhas, o tarrafo e os pântanos, o que põe sérios problemas de progressão ao pessoal. Mas devagar vamos lá chegar.

A fauna e a flora do sector de Cufar

Quando a CCAÇ tomou conta do sector de Cufar, existia uma enorme lagoa entre o aquartelamento (antiga quinta do Sr. Camacho) e a tabanca de Iusse. Era pois um ponto onde para além do gado dos moradores daquela tabanca pastoreava e se sedentava, outros clientes utilizavam este maná: gazelas, cabras do mato, javalis, porcos-espinhos e alguns predadores, como uma espécie de gato bravo, mais parecido com o nosso furão.

Quanto a répteis, desde as serpentes às mais variadas espécies de cobras, tudo por ali aparecia, até uma espécie de lagarto grande parecido com as iguanas e com qual o meu amigo Alfa Nan Cabo se banqueteava.

Mas o verdadeiro espectáculo era dado pelas aves de variadíssimas espécies que frequentavam a lagoa, sendo fáceis de identificar. Desde o grou coroado conhecido por ganga, ao pato da Berbéria conhecido como pato mudo. Grande variedade, de patos de todos os tamanhos, assim como rolas, a rola diamante, pequenina com os seus pontinhos nas asas, até às rolas gigantes incluindo pombos verdes. Havia os massorongos, conhecidos por papagaios do Senegal, e periquitos verdes, o marabu, os jagudis abutres almeidas desta terra e protegidos por lei, a passarada miúda, desde os barulhentos tecelões que faziam das árvores colmeias de ninhos, até aos pequeninos bicos de lacre, degolados e sumptuosas viúvas do paraíso, no seu lindo e ondulante esvoaçar.

Com tudo isto, a guerra foi destruindo, não sendo portanto apenas calamidade humana, mas ecológica também.

Quanto aos nossos amigos babuínos, vulgar macaco-cão o qual se dizia ser um grande pitéu, alguns problemas tivemos, resultante das suas más relações provocatórias com os nossos cães. No entanto as nossas relações eram amistosas e até por vezes nossos batedores, pois quando progredíamos por estrada, eles faziam a mesma coisa que nós progredindo à nossa frente “em fila de pirilau”, e houve pelo menos duas ocasiões que nos foram úteis. Mas nessas alturas pareceu que fizeram mais barulho que o matraquear das armas. Babuínos, embora fosse fácil encontrá-los a todo o momento nas matas, na região de Cufar existiam dois grupos bem definidos que andariam acima dos cinquenta exemplares por grupo, incluindo fêmeas, machos e é claro o manda chuva dominante, sempre no comando.

Um dos grupos, e o mais numeroso, costumava acompanhar-nos pela estrada para Catió. Desde o começo da mata, ao cimo da lala a seguir ao cruzamento de Camaiupa Cabaceira, chegando até às proximidades de Priame.  O outro grupo aparecia na estrada Catió-Cobumba, após Camaiupa já próximo da mata de Afiá.

Uma experiência única no TO da Guiné: a utilização de cães de guerra

De qualquer forma estas maravilhas da natureza, não nos deixava esquecer que o grande problema era a guerra, e daí a ideia de Carlos, Comandante da CCAÇ 763 introduzir a experiência que se julga única na Guiné, da utilização de cães de guerra que vale a pena recordar:

Para nos rever, e ter fundamentos para esta experiência de introdução de cães de guerra na contra guerrilha em terras da Guiné, há que remontar a formação e criação da Secção de Cães de Guerra, composta pelo Chefe de Secção e oito tratadores que eram responsáveis pelos seguintes animais:

CADETE – macho, nascido em 15/09/1959

PUNCH DE BOANE – macho, nascido em 06/12/1962

FADO – macho, nascido em 29/04/1964

SOVA – macho, nascido em 30/08/1964

GUINÉ – macho, nascido em 29/02/1964

BISSAU – macho, nascido em 25/07/1964

CARHEN – Fêmea, nascida em 03/03/1963

LISBOA – Fêmea, nascida em 28/2/64

Eram propriedade de Carlos, Comandante da 763, o Cadete, o Punch de Boane e a Carhen sendo os restantes adquiridos pela CCAÇ. Conhecedor da mais valia que o cão de guerra poderia dar às Forças Armadas quando devidamente treinado, em termos ao seu emprego, em patrulhas, guarda, sentinela, esclarecedores no terreno, ataque e combate, decidiu Carlos, particular e por conta própria, formar uma secção de cães.

Porquê a escolha da raça pastor alemão? Por reunir as melhores condições para o cão de guerra, pelas razões que se descrevem:

– Aprende e pensa rapidamente;

–  Ouvido mais apurado do que qualquer outra raça;

–  O seu faro é melhor que qualquer outra raça do mesmo tipo:

– Ser extraordinariamente ágil e rápido;

–  Come pouco em relação ao seu tamanho;

–  O seu pelo confere-lhe protecção contra o calor ou frio,  picadas de insectos e mordeduras de outros animais;

– De elevado moral sobre desordeiros;

– Dominar com facilidade quem se lhe oponha.

Carlos, tendo consciência que este seu projecto implicaria custos não só na aquisição de animais, bem como em todo o equipamento necessário (trelas, coleiras, açaimes, material de limpeza e cirúrgico/veterinário de laboratório, para além de material de treino) não dispondo de qualquer dotação para alimentação e outros gastos, mesmo assim resolveu avançar com a formação da secção em várias etapas.

1ª. Fase:  Selecção do graduado que ficaria com a responsabilidade de administrar a formação e que ficaria como comandante da secção.

2ª. Fase: Formação dada ao comandante da secção através de fichas e práticas, utilizando para o efeito demonstrações com o Cadete, Carhen e Punch.

3ª. Fase: Selecção dos tratadores, os quais deveriam possuir as seguintes qualidades:  Ser amigo de cães, paciente, perseverante, inteligente, expedito e desembaraçado, imaginação, coordenação física/mental e resistência física.

4ª. Fase:  Treino dos cães em equipa já com os respectivos tratadores.

Treino de Obediência – com aprendizagem da voz do comando: neste período, o animal aprende a colocar-se junto ao tratador, a deitar-se,  pôr de pé, a ladrar, a estar quieto, condução de objectos, a rastejar,   progressão, interrupção de marcha, acção de busca, ataque, etc.

Físico – (obstáculos);
Básico;
Específico patrulha, guarda, sentinela, busca e pisteiro.




Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 1972 >  Babuíno (em cativeiro) e cão (doméstico). Foto do nosso camarada Herlander Simões, fur mil, que passou pelo CTIG entre maio de 72 e janeiro de 74. Destinado à CCAÇ 16 (onde nunca chegou a ser colocado) foi primeiro para os "Duros" de Nova Sintra (CART 2771, onde esteve seis meses) e posteriormente para os "Gringos" de Guileje (CCAÇ 3477, 1971/73), entretanto já sediados em Nhacra.

Foto : © Herlânder Simões  (2008). Todos os direitos reservados.



Atividade operacional:  vantagens e desvantagens do cão de guerra no CTIG (**)

Falemos agora da acção operacional na zona de Cufar. Algumas dificuldades surgiram, na actuação dos cães no teatro de guerra da Guiné, e que levaram a alterações na utilização do cão de guerra e que se especificam:

A existência de abundantes bandos de macacos-cães que pela sua extrema  agressividade enfrentavam os cães com tal alvoroço e agitação, o que permitia a fácil detecção das nossas forças pelo IN.

Surgiram várias infecções nas patas dos cães, que se verificou serem causadas pela existência de vasta vegetação arbórea constituída por espécies com espinhos.

Isto reduziu a utilização dos cães em operações, cuja natureza era de grande surpresa, principalmente em assaltos a acampamentos IN.

A redução da utilização do cão patrulha, levou a que o treino e utilização fosse  intensificado na utilização como cão pisteiro e sentinela.

Como cão sentinela, a sua prestação foi extraordinária, dando a possibilidade de  poupança de meios humanos, e melhor garantia de alerta pela grande capacidade de faro e audição. Foi de reconhecido mérito, a sua utilização, quando na pista de Cufar por qualquer motivo teria de pernoitar qualquer aeronave.

Como cão pisteiro, teve uma grande prestação no controlo das populações a  sul de Cufar, não só na detecção de material, bem como de pessoas, que escondendo-se, tentavam fugir à vigilância das nossas tropas. Aqui pode referir-se, a captura de guerrilheiros e controleiros do PAIGC.

Refira-se também a utilização do cão como guarda de prisioneiros.

Poder-se-iam narrar casos isolados: por exemplo o “Punch” rastejar junto ao seu  tratador numa emboscada. A descoberta de munições e pessoas escondidas em depósitos de arroz ou telhados de moranças etc. etc… Seria fastidioso, e possivelmente sem importância de maior.

Considerando embora os contratempos descritos e que impediram a utilização  plena do Cão de Guerra, pode afirmar-se que foi uma experiência bastante positiva levada a efeito pela CCAÇ  763 o que permitiu ser conhecida na região, para além dos “Lassas” como “Companhia dos Cães”.

Poderemos considerar que a CCAÇ 763 contou com mais oito elementos de  grande valia, estes extraordinários animais. Um testemunho, que os grupos armados do PAIGC que operavam no sector nessa altura, poderiam dar.

Foi-nos comunicado por testemunha idónea que, em 1999, trinta e quatro anos  depois, ao passar pela zona de Cufar, ouviu referenciar a companhia dos Cães.

Por tudo isto que se passou:

–   Meus Vagabundos! Eu, mísero furriel e vosso chefe, reconheço a vossa rusticidade, a vossa abnegação, os vossos feitos notáveis mas que parecem ser naturais, pelo que permane­cerão esquecidos para sempre. Aquilo a que se convencionou que se chamasse Pátria, como tem acontecido com alguma fre­quência ao longo da nossa História, não se mostrará convosco muito generosa, é verdade! Independentemente da razão ou falta dela, a dignidade e a forma como vos bateis, só confirma que o «Olhai a Pátria que a Pátria vos contempla», foi das maiores hipocrisias e falsidades que enlamearam a nossa História. Todas as guerras são iguais, mas cada povo faz a guerra com a sua herança cultural. Vós, soldados portugueses, vindos dos mais recônditos confins do velho Portugal, fazeis a guerra com gene­rosidade, suor, lágrimas e sangue, caldeados por séculos de His­tória. Só vós conseguisteis os prodígios de adaptação e dádiva necessária para vos manterdes nestas inconcebíveis circunstân­cias.  Rapazes, já que aqui nos puseram, entraremos pelo inferno dentro que já sabemos, existe nas matas de Cufar Nalu, Ca­maiupa, Cachaque e Cabolol. E quando chegar a vez de termos de atravessar o Cumbijã e o inferno for já o Cantanhez, que este­jamos preparados para a vida e sobretudo para a morte.

(Continua)

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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 18 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2664: Os Cães de Guerra (Mário Fitas e Carlos Filipe, ex-Fur Mil, CCaç 763, Cufar, 1965/66)

Guiné 63/74 - P16254: Parabéns a você (1104): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16250: Parabéns a você (1103 ): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16253: In Memoriam (261): Joaquim Vidal Saraiva (1936-2015), um adeus, emocionado, do "Tigre de Missirá"



Foto nº 116 A


Foto nº 116 B



Foto nº 117 A



Fotyo nº 118 A


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > 1970 > Destacamento de Nhabijões > 
O alf mil médico Joaquim Vidal Saraiva, de 33 anos,  prestando assistência médica à população do reordenamento de Nhabijões, maioritariamente de etnia balanta (e com "parentes no mato", tanto a norte do Cuor como ao longo da margem direita do Rio Corubal, nos subsetores do Xime e do Xitole). À sua  vesquerda  tinha um intérprete. Na foto nº 117 A, vê-se. sentado, por detrás do médico, o major op inf Herberto Alfredo do Amaral Sampaio,  responsável pelo grande reordenamento de Nhabijões, talvez o maior ou um dos maiores da Guiné, na época, com c. de 3 centenas de moranças e diversos equipamentos (escola,  posto sanitário, etc.).
De seu nome completo, Joaquim António Pinheiro Vidal Saraiva, (i) nasceu em 26 de Junho de 1936; (ii) .fez a licenciatura em medicina e cirurgia na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto para a qual entrou no ano escolar  de 1957/58;  (iii) foi alf mil med na Guiné (1969/71), tendo passado por Guileje, Bambadinca e Bissau (HM 241); (iv) era especialista em cirurgia geral; (v).trabalhou. no Hospital de São João, no Porto e no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia / Espinho, EPE; (vi) residia em São Félix da Marinha, V. N. Gaia; (vi) foi a um único encintro do pessoal de Bambadinmca, em 2004,em Ferreira do Zézere; (vii) soubemos agora da triste notícia da sua morte, ocorrida há um ano, em 21/6/2015; (viii) está sepultado em Valadares, V.N. Gaia. 

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição: complementar: LG]



1. Comentário de Mário Beja Santas, "Tigre de Missirá",  ao poste P16251 (*)

[Foto à esquerda: Bambadinca, 1970: Mério Beja Santos, ex-alf mil inf, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, junto ao edifício do comando e instalações de oficiais, ao tempo da CCS/BCAÇ 2852; foto do arquivo do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Queridos camaradas, 
Não sei por onde começar, acresce que tenho que me manter muito contido, não abrir a porta às emoções. 
O Joaquim Vidal Saraiva desembarcou em Bissalanca e não chegou a entrar em Bissau, uma avioneta levou-o diretamente para Guileje. Aí permaneceu alguns meses, pedia encarecidamente que nunca o questionássemos sobre o que viu, ouviu e o que tratou, mas vinha bem marcado. 
Era um camarada sempre a transparecer vivacidade, pronto para os acepipes e sempre capaz de entrar nos quartos a desoras exigindo-nos livros do tio Patinhas, a pressão era tão forte que o Abel Rodrigues, o Magalhães Moreira e eu, os três locatários daquele habitáculo, nos combinámos em comprar em Bafatá vários livros para o sossegar naquelas noites de turvação, em que lhe faltava o lenitivo literário. 
Ficará na minha vida como alguém que me tratou fisicamente e que deu suporte, sempre com a sua solicitude maravilhosa, à minha tropa. Recordo particularmente o estúpido acidente de 1 de Janeiro de 1970 em que Quebá Sissé disparou sobre o Uam Sambu e este caiu no colo dizendo: alfero, mim muri! 
O Vidal Saraiva, na enfermaria de Bambadinca, tudo fez para lhe estancar as golfadas de sangue, chegou morto a Bissau, o Vidal andou dias deprimido e gemia: "Anda aqui um gajo a dar o coirão sem conseguir safar estes desgraçados, que merda de profissão a minha!". 
O Vidal Saraiva é autor de uma frase única, uma exclamação que ainda não consta no dicionário da Academia das Ciências, algo sinónimo a caramba, "é o caralho feito vaca!". Jogava à lerpa com comentários desbragados, que o digam o Zé Luís Vacas de Carvalho, o Ismael Augusto, o Fernando Calado. 
Tinha as suas extravagâncias, quando lhe comunquei que ia casar a Bissau foi prontamente falar com o comandante, Jovelino Sá Moniz Pampolona Corte-Real: "O meu comandante fica a saber que vou a Bissau tratar de trazer equipamento médico e aproveito para assisitir ao casamento do Tigre".
O mínimo dos mínimos que me ocorre dizer, e continuo a procurar estar contido, é que perdi, e muitos de nós perdemos, um meteoro que nos aliviava a alma, um compincha das nossas pequenas estúrdias, um zelador da saúde dos nossos homens. 
Durante anos ainda liguei para o Hospital da Gaia e marcávamos encontros imaginários. Escrevo com um mágoa sem limites, há momentos em que parece que caminho num campo de batalha do tipo da I Guerra Mundial em que vejo petardos a fazer desaparecer a malta da minha trincheira, é um desnorte terrível, sentimos que o trilho se estreita e que, irremediavelmente, nunca mais exprimiremos face a face a gratidão profunda por aqueles gestos que praticámos há quase 50 anos, e que restam grudados na retina e no coração. 
Curvo-me respeitosamente diante de si, meu caro Vidal Saraiva, é mesmo tudo tão extraordinário que posso escrever pela sua bocaé mesmo o caralho feito vaca, lá nas nuvens receba um abraço do Tigre.
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