Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
Guiné 61/74 - P25845: Em busca de... (327): Esclarecimentos sobre a morte do meu amigo Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus, Soldado Básico da CCAÇ 2382 (Juvenal José Danado, ex-Fur Mil Sap Inf)
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS / BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71) com data de 12 de Agosto de 2024, enviada ao blogue através do Formulário de Contacto do Blogger:
Camarada e amigo Luís Graça:
Sendo possível, gostaria que o texto seguinte fosse publicado no nosso blogue.
Muito obrigado pela atenção e aquele abraço.
CCaç 2382 / Buba
Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus (o Esgota-Pipas), mortalmente atingido no ataque a Buba, em 14/02/1969
Li um texto publicado neste blogue em 28 de maio de 20161, no qual o companheiro e furriel miliciano Manuel Traquina, fala do Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus, soldado ferido durante o ataque a Buba de 14/02/1969, ferimento que lhe provocou a morte.
O texto interessou-me sobremaneira, porque o Ruço (alcunha por que toda a gente na aldeia tratava o Ilídio) era um querido amigo com quem convivi e partilhei muitas brincadeiras na infância e na adolescência. Somos os dois naturais de Aires, aldeia do concelho de Palmela. Jogámos muitas vezes à bola no Largo da Fonte e no olival contíguo à sede do Grupo Desportivo Airense, andámos aos pássaros (ele era exímio com a fisga), estivemos em bailaricos, nadámos no tanque de rega da quinta para onde me mudei aos 13 anos, parodiámos muito, fomos amigos, irmãos de coração.
O Ruço tinha o nome próprio do pai e pertencia a uma irmandade de cinco, contando com ele. O pai era trabalhador rural, como a maior parte dos pais da aldeia, e a família tinha poucos recursos, razão pela qual o Ruço nunca foi à escola, começando a trabalhar muito cedo, a pastar ovelhas.
Fiquei admirado quando li que ele «foi dispensado das saídas para o mato e colocado como ajudante de cozinheiro». Sendo analfabeto (não foi à escola), ele teria de ser básico, «especialidade» que o livraria das saídas para o mato, reservadas a atiradores, pessoal de transmissões, de enfermagem e informações, sapadores. E normalmente, segundo creio, os básicos ajudavam nas cozinhas.
A minha comissão (Batalhão 2892 - 1969/71) foi passada entre Aldeia Formosa, Nhala e Buba. A história que eu apurei, nas indagações que fiz em Buba, foi a seguinte: o meu amigo trabalhava na messe de sargentos, como ajudante de cozinheiro; durante um ataque noturno correu para se abrigar na messe, uma granada explodiu por cima da porta onde ia a entrar, e ele foi atingido por estilhaços que o vitimaram, dias depois, já em Bissau.
Gostaria que o Manuel Traquina ou qualquer outro membro da Companhia 2382 fizesse o favor de me esclarecer, com os pormenores possíveis, deixando desde já os meus agradecimentos.
Um grande abraço aos companheiros da 2382, a todos quantos visitam o nosso blogue e aos que o mantêm atualizado e vivo.
Cumprimentos,
Juvenal José Cordeiro Danado
_____________
Notas do editor
1- Vd. post de 28 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)
Último post da série de 13 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25838: Em busca de... (326): Camaradas do malogrado Fur Mil Op Esp Dinis César de Castro, da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2885, que morreu em combate, no dia 12 de Outubro de 1970, durante a emboscada a uma coluna auto no itinerário Mansoa-Infandre
domingo, 30 de junho de 2024
Guiné 61/74 - P25702: Fichas de unidade (36): CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)
Guiné > Região de Quínara > Buba > CCAÇ 2382 (1968/70) > Dia do "santo patacão", o do pagamento do pré. Cap Mil Art Gomes de Araújo, sentado, alf mil Curado, de pé, à direita, o sargento Boiça, à esquerda e o fur Mil Henrique, ao centro, em segundo plano.
Guião da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70), "Por picadas nunca estradas, por estradas nunca picadas"... Um trocadilho bem achado..., ó Zé do Olho Vivo!
Identificação: CCaç 2382
Unidade Mob: RI2 - Abrantes
Crndt: Cap Mil Art Carlos Nery de Sousa Gomes de Araújo
Divisa: "Por picadas nunca estradas, por estradas nunca picadas"
Partida: Embarque em 1mai68; desembarque em 6mai68
Regresso: Embarque em 3abr70
operacional com a CCaç 2312, sob orientação do BCav 1915, tendo tomado parte em operações realizadas nas regiões de Blequisse, Ponta Consolação e Bajope, nas quais obteve excelentes resultados.
Em 7jun68, dois pelotões ocuparam Contabane e em 11jun68, o comando e os outros dois pelotões instalaram-se em Mampatá; no entanto, em 18Jun68, a sede da subunidade passou para Contabane, ficando um pelotão
destacado em Mampatá.
Em 13jul68, substituíu temporariamente a CArt 1612 no subsector de Aldeia Formosa até à chegada da CCaç 2381, em 8ag068, com os seus pelotões disseminados por Nhala, Mampatá, Chamarra e Patê Embalá, este até 3ag068 e depois deslocado para Buba, em reforço do BCaç 2834.
Em 12ag068, a subunidade foi então transferida para Buba, com um pelotão destacado em Nhala, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2834, e depois do COP 4, quando criado, com a missão de intervenção e reserva; nesta função, efetuou diversas operações na zona de acção e exerceu o seu esforço na contrapenetração, tendo capturado elevadas quantidades de armamento e material e de que se destaca uma emboscada efectuada a uma coluna de reabastecimentos inimiga, no rio Chinconhe, em 22nov68.
Em 290ut69 e 8nov69, foi rendida, por frações, pela CCaç 2616 e recolheu a Bissau, a fim de se integrar no BArt 2866 e colaborar na segurança e protecção das instalações e das populações, tendo ainda um pelotão destacado em Sanfim e João Landim.
Em14mar70, foi substituída pela CArt 2411, a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 96 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).
sexta-feira, 28 de junho de 2024
Guiné 61/74 - P25694: S(C)em Comentários (41): Contabane, que depois, em 22 de junho de 1968, será praticamente riscada do mapa, acabando por ser evacuada em 1 de julho...
1. Face à pressão IN sobre a região do Forreá, a CCAÇ 2382 (que chegara ao CTIG em 6mai68, e estava a fazar a IAO em Bula), é colocada em 7jun68, à pressa, no Sector S2 (Aldeia Formosa), com dois pelotões em Contabane. Veio redner forças da 5ª CCmds.
Guiné-Bissau > Saltinho > Sinchã Sambel > 2005 > A mulher do régulo local. A que está a ordenhar a vaca é casada com o régulo de Sinchã Sambel, Suleimane Baldé, antigo milícia, filho do antigo régulo de Contabane, Sambel Baldé. Depois da evacuação de Contabane, em 1 de julho de 1968, a população dispersou-se por Mampatá e Aldeia Formosa. Mais tarde,foi reunida numa nova tabanca, junto ao Saltinho, Sinchã Sambel, em homenagem ao régulo, que foi sempre leal aos portugueses (era um firme alidado de Spínola).
Foto (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné](...) Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.
Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.
Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto. (...)
(*) Vd. poste de 28 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)
(**) Último poste da série > 20 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25664: S(C)em Comentários (40): O Cherno Baldé que hoje faz anos, entrou para o nosso blogue em 18/6/2009 e já nos contou aqui como, "djubi", "rafeiro", tirou a "recruta" em Fajonquito e, no meio da tropa, da guerra, e do pós-guerra, se fez depois homem, em Bafatá, em Bissau, em Kiev...
Guine 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)
Carlos Nery, foto de perfil do Facebook. Grande ator da Companhia Maior |
— Morteiro 60?
— Pronto, meu capitão!
— Lança-granadas?
— Presente!
— Dilagrama?
— Estou aqui!
Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.
— Meter uma bala na câmara!
O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.
— Patilhas em segurança!
Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.
— Está «no ir»!
Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».
Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.
— Aumentar os espaços entre cada dois homens!
— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!
As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç Nat na documentação operacional).
Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.
Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.
Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.
Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.
Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.
– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...
Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.
Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.
– Vamos lá então ver essa tabanca.
Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Rachid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.
O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.
Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.
– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.
– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.
Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.
Perante os ataques a Contabane e Mampatá [de 22 de maio e 11 de junho de 1968, respetivamente] e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.
A companhia cujo comando me fora entregue, interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.
Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.
Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.
Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.
- Capitão! Capitão! — ouço num apelo lancinante.
Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem Caçador Nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.
– Acode-me! Capitão, acode-me!
Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.
– O enfermeiro!
– Não veio...
Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.
– Salva-me, capitão!
Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.
Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido. Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.
Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.
Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.
O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.
Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta-mato, trazíamos pela estrada.
Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.
Instalar os canhões em posição de tiro direto, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.
Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.
Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.
Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.
Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «Por uma Guiné Melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.
Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.
Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.
Carlos Nery (2010). Nasceu no Funchal em 1933. Aos 35 anos estava a comandar um companhia operacional na Guiné |
Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser
chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. À medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.
Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida, que, não escondendo a suacontrariedade, iam ser preparados «à pressão» para assumir
Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.
Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.
Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.
Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tetos de colmo seco das casas.
Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.
Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma coletiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detetar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.
Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.
Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direções.
A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.
– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.
O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro. Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.
Abrigados junto de uma parede semidestruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa tarde e do furriel enfermeiro da companhia.
– Então, como está ele? — pergunto.
– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!
Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.
O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.
Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.
– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.
O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.
Em combate noturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!
Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?
Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.
Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.
– Há mortos?
– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?
– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.
– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.
O perigo da situação residia, efetivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.
O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.
A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.
O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.
O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.
Sinal de retirada, viríamos a saber.
Clareia o dia.
Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.
Fatumatá, mulher grande do régulo Sambel [foto acima, de 2005] (*), apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objetos que satisfaçam a sua cobiça.
Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.
A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina antipessoal acionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.
O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.
'Nino', comandante da Frente-Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.
Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.
Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.
Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.
Somos sobrevoados por jatos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.
A então ten enf pqdt Ivone Reis (1929-2022), em Cacine, 12/12/1968. Foto: António J. Pereira da Costa (2013) |
– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma exceção e espero aqui com vocês.
Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira paraquedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu, facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.
Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.
– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... – ouço-me dizer.
Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?
Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:
– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.
As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente.
Carlos Nery Gomes de Araújo (**)
In Memórias da Guerra Colonial, volume 2: carne para canhão.
S/l, Andrómeda Publicações, 1984, 158 pp.
(Revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: CV/LG)
Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (18): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatumatá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)
quinta-feira, 27 de junho de 2024
Guiné 61/74 - P25690: 20º aniversário do nosso blogue (16): Alguns dos melhores postes de sempre (XII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte II: a versão de Carlos Nery, na história da unidade (pp. 10,11,12 e 13)
Leiria Monte Real > Palace Hotel Monte Real > 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional da Tabanca Grande > A paixão do teatro e da Guiné: o João Barge e o Carlos Nery....
Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Carlos Nery (Carlos Nery Gomes de Araújo, de seu nome completo) foi o comandante da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)...Era capitão miliciano. Tem cerca de 40 referências no nosso blogue. Entrou para a Tabanca Grande em 18/4/2010. Foi também ele o autor da história da unidade, de que vamos reproduzir as pp. 10 a 13, com referência ao ataque de Contabane, de 22 de junho de 1968...
Durante 3 horas, a tabanca (e destacamento) esteve a ferro e fogo, e ficou reduzida a cinzas. O novo comandante-chefe, o brigadeiro Spínola, uma das medidas que tomou, logo no início do seu mandato, dentro da economia de meios, e na impossibidade de obter rapidamente os reforços que lhe prometeram, foi "desmilitarizar" uma série de pontos, nomeadamenet no sector Sul... Contabane está na lista: "Banjara, Beli, Madina do Boé, Ché Che, Contabane, Colibuia, Cumbijã, Ponte Baiana, Gandembel, Mejo, Sangonhá, Cacoca, Cachil, Ganjola e Gubia". (Só Banjara pertencia a zona leste.)
Vamos revisitar as páginas que escreveu, sobre o ataque a Contabane, na história da sau unidade.
Contabane, a ferro e fogo
por Carlos Nery
terça-feira, 25 de junho de 2024
Guiné 61/74 - P25681: 20º aniversário do nosso blogue (16): Alguns dos melhores postes de sempre (XI): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte I: a versão de Manuel Traquina (ex-fur mil mec auto, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)
Contabane foi então abandonado pelas NT e pela população. Mais tarde será feito um reordenamento, mesmo frente ao Saltinho. Por lá passou o nosso camarada Paulo Santiago, quando foi comandante Pel Caç Nat 53 (1970/72). A povoação hoje chama-se Sinchã Sambel.
Foto (e legenda): © Manuel Traquina (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. O Manuel Batista Traquina, "ribatejano, escritor e fadista", com vivências ang0lanas, ex-fur mil mec auto, da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70) vive em Abrantes, onde nasceu em 1945. [foto de 2008 à equerda].
Beja Santos e Hermínio Marques |
Este episódio de guerra foi recentemente evocado aqui pelo Beja Santos que, no passado dia 17, foi abordado pelo Hermínio Marques, antigo sold cond da CCAÇ 2382, o qual lhe contou como perdeu tod0s os seus haveres há 56 anos, em Contabane.
Ambos estava de passagem pela ilha de Santa Maria. O Hermínio Marques, que vive na América, casado com uma açoriana, reconheceu, no Hotel, o Beja Santos, sendo visita assídua do nosso blogue! (*).
Vamos convidar o Hermínio, que já nos escreveu, a juntar-se a esta tertúlia que é a Tabanca Grande, e onde já cá estão alguns bravos da CCAÇ 2382, a companhia do Zé do Olho Vivo, como o Manuel Traquina, o Carlos Nery, o José Manuel Cancela, o Alberto Ferreira,
Era o dia 22 de Junho daquele ano de 1968, a Companhia estava na Guiné havia pouco mais de um mês e, ao ser deslocada para a região de Aldeia Formosa, (Quebo) dois pelotões fixaram-se em Mampatá, os restantes bem como o Comando foram deslocados para a aldeia de Contabane.
Porém, já próximo do anoitecer, um dos elementos nativos que connosco efetuavam um patrulhamento, pisou um engenho explosivo, que lhe deixou um pé seriamente afectado. Este foi o primeiro sinal de que toda aquela paz não era real, o grupo recolheu à aldeia/aquartelamento, era a hora de jantar e na improvisada enfermaria o furriel enfermeiro Chambel com grande dificuldade, tentava encontrar uma veia onde pudesse administrar algum soro ao militar milícia, que com um pé decepado tinha perdido muito sangue.
Entretanto o sargento João Boiça, apercebendo-se da situação, corria de uma ponta à outra da aldeia, não parava de alertar todos para que de imediato se deslocassem para os abrigos, talvez ao tomar esta medida tenha evitado algumas mortes.
Tinha anoitecido e, de repente, algumas explosões deram inicio a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à morança onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças arrastou-se até á porta e, no escuro, sem que nos apercebesse-mos desapareceu rastejando, só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.
Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia reduzida a cinzas mais parecia um inferno. Mo final foi uma forte trovoada que, transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar.
Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram.
Neste agora passado dia 22 de junho de 2008, ao completarem-se quarenta anos sobre este ataque, quero homenagear os dois camaradas mortos, não neste ataque, mas noutros que se seguiram, furriel Ramiro de Sousa Duarte e o soldado Elidio Fidalgo Rodrigues, pertencentes a esta Companhia.
Ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)
Guiné > Região de Tombali > Carta de Contabane (1959 > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Contabane, a sul de Saltinho e do rio Corubal, a caminho da fronteira... A nordeste, Quirafo, também de trágica memória para as NT (abril de 1972).
________________
sábado, 22 de junho de 2024
Guiné 61/74 - P25674: (De) Caras (209): Hermínio Marques, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 2382: "Vou contar-lhe como perdi as minhas coisas em Contabane" (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Pelo adiante vos contarei a alegria que tive em encontrar um soldado a quem dei recruta na ilha de S. Miguel, de outubro a dezembro de 1967, uma amizade indefetível, não nos víamos há umas boas décadas, o prazenteiro andou-me a mostrar as belezas da ilha de Sta. Maria, ele é do Santo Espírito, este encontro foi primeiro milagre; o segundo ocorreu no dia seguinte, alguém que me questiona à hora do pequeno-almoço, o mais importante de tudo é que ele nos acompanha lá onde vive, entre Nova Iorque e Boston, fiquei a conhecer a família, a quem fui apresentado, espontaneamente decidimos tirar uma fotografia, tão eloquente quanto a nossa Tabanca é Grande. E ouvi com pormenores o que se passou em Contabane, em 22 de junho de 1968.
Um abraço do
Mário
Vou contar-lhe como perdi as minhas coisas em Contabane
Mário Beja Santos
Hora do pequeno-almoço, 17 de junho de 2024, Hotel Colombo, Vila do Porto. Mordiscando com apetite uns ovos mexidos com bacon, antevendo as delícias panorâmicas que me serão proporcionadas durante um passeio a uma boa parte da ilha de Sta. Maria, eis que se aproxima da mesa alguém que pede desculpa pela interrupção, não leve a mal, o senhor lembra-me alguém que escreve num blogue que eu frequento regularmente lá na América, estou aqui de visita porque a minha mulher nasceu e viveu aqui bem perto, trouxemos a família para conhecer a terra natal da mãe da avó, é que eu estive na guerra da Guiné e o senhor lembra-me alguém, não se ofenda se não for essa pessoa.
Então levanto-me, confirmo que ele está certo, é o soldado condutor Hermínio Marques, escrevo à pressa CCAÇ 2382, andarilharam por Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, mas ele quer falar-me de Contabane, uma flagelação que durou três horas, ficou tudo reduzido a um caco, perdeu os seus haveres, sobrou uma mala de cartão toda empapada, cada um dos que lá estavam ficou com o que tinha vestido. Contagiou-me a alegria deste homem cuja existência, como compreenderão, ignorava completamente, para amenizar o ambiente falei-lhe de um telefonema que há muitos anos recebi do João Crisóstomo, ele tinha adquirido no aeroporto um dos volumes do meu Diário da Guiné, estava profundamente emocionado, prometi que nos iriamos conhecer quando viesse a Portugal.
O Hermínio leva-me junto da família, sinto-me como tivesse chegado da Lua, falo-lhes da Guiné e do que vivemos, a mulher do Hermínio vai-me respondendo, o resto da família parece ignorar a língua portuguesa. Estamos todos num embaraço, o Hermínio insiste que eu tenho de saber o que viveram em Contabane, a mulher leva-me a um corredor e mostra-me uma casa lá no alto, era a casa dos avós, e é nisto que Hermínio insiste, vamos tirar uma fotografia, peço licença para a divulgar no blogue, então porque não? Prometemos voltar à fala, ao fundo da sala alguém põe um dedo em cima de um relógio, e eu não quero partir para a Praia Formosa, Farol da Maia e Baía de S. Lourenço sem o estômago aconchegado. Novo abraço, fico a saber que o Hermínio vive entre Nova Iorque e Boston, nasceu na região de Viseu, só me faltou perguntar-lhe se também vai levar a família ou já a levou à sua terra natal.
Vou passar a manhã dividido entre este encontro e o espetáculo de uma ilha desconhecida, aonde quero voltar, eu tenho a impressão que já lera um texto do Manuel Traquina[1], nosso confrade, sobre a destruição de Contabane, no meio da conversa o Hermínio falava-me nos Palhaços, na irreverência que o Capitão Carlos Nery caprichara para uso do estandarte, é facto que é uma completa desobediência aos preceitos castrenses, é quase uma diversão.[2]
E pronto, que o Hermínio e os seus gozem de muita saúde e que ele nos acompanhe lá dos EUA, da minha parte, e até poder, deste lado do oceano endosso-lhe notícias do que vou fazendo, com lembranças da Guiné.
_____________
Notas do editor
[1] - Vd. post de 19 DE AGOSTO DE 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
[2] - Vd. post de 8 DE JUNHO DE 2010 > Guiné 63/74 - P6561: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (3): Fui o criador do emblema da Companhia, e gosto
Último post da série de 29 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25575: (De) Caras (208): António Baldé, ex-1º cabo , CIM Bolama (1966/69), Pel Caç Nat 56 (São João, 1969/70), e CART 11 (Paunca, 1970/71): "Eu tinha um sonho: ser apicultor no Cantanhez"...
terça-feira, 14 de maio de 2024
Guiné 61/74 - P25522: Convívios (994): Rescaldo do XXXIII Encontro da CCAÇ 2382, levado a efeito no passado dia 11 de Maio de 2024, em Alferrarede (Alberto Sousa e Silva, ex-Soldado TRMS)
1. Mensagem do nosso camarada Alberto Sousa e Silva, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2024:
A concentração foi às 10 horas junto do antigo RI 2, com visita guiada à Unidade, que no dia 01/05/1968 nos viu partir para a Guiné.
O toque para o rancho foi às 13 horas no Restaurante Quinta das Oliveiras – em Alferrarede.
Um dos organizadores tomou a palavra para agradecer a nossa presença e fez a leitura do expediente, nomedamente a salientar algumas faltas por a correspondência ser devolvida, devido a alteração das moradas.
Depois de saboreada a ementa, que a todos agradou e de se ter recordado algumas passagens do tempo na Guiné, que é a razão destes convivios, procedeu-se à escolha do novo organizador para o próximo encontro que coube ao colega Coelho (Transmissões) a realizar em Fernão Ferro.
Feitas as despedidas, que todos tenham tido uma boa viagem para as suas residências e para alguns, até ao próximo pela diversidade de localidades.
Renovo o meu abraço para todos os colegas.
Silva (Transmissões)
V. N. Famalicão
_____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 de Maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25521: Convívios (993): Rescaldo do 39.º Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 /Brá, levado a efeito no passado dia 11 de Maio de 2024 nas Caldas da Rainha (João Rodrigues Lobo)
quinta-feira, 23 de março de 2023
Guiné 61/74 - P24165: Facebook...ando (73): "Palco Sombrio", de Alice Caetano (Almada, Emporium Editora, 2020, 276 pp.): Uma narrativa dinâmica centrada nos relatos do homem de teatro e ex-cap mil, Carlos Nery, CMDT da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)
Capa do livro de Alice Caetano, "Palco Sombrio: Guiné - Guerra Colonial e Actos Cénicos" (Almada, Emporium Editora, 2020, 276 pp.)
Boa tarde. Escrevi este livro recentemente. Intitula-se "Palco Sombrio: Guiné . Guerra Colonial e Actos Cénicos". Para a sua construção contei com a contribuição de algumas entrevistas a antigos militares, entre as quais a Carlos Nery, obtendo o seu maior contributo. Havendo interessados em adquiri-lo, enviarei pelo correio. Obrigada.
Fonte: Emporium Editora (com a devida vénia...)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(**) Vd. poste de 7 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7399: In Memoriam (66): A morte dolorosa de um dos últimos homens a chegar a Gandembel, o ex-Alf Mil João Barge (1944-2010)