1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte XI) (*) [, Foto à esquerda, em Catesse, janeiro de 2012, crédito fotográfico: Pepito]
5 de Março de 2012 O gerador avariou-se de todo no dia 1! O depósito da água, ontem, ficou vazio. Agora é mesmo estar em África! Mais uma vez tem sido a lanterna solar e a lanterna de cabeça que o Paulo me deu para a pesca que me têm valido. A Judith, uma jovem francesa da idade da minha Mariana que está em Madina (tabanca que fica a 3 km) a estudar questões genéticas dos chimpanzés, fez-me o favor de levar o computador para o carregar no painel solar. Comprei 2 litros de gasolina para a Satu pôr o pequeno gerador que tem no restaurante a trabalhar e carregar o meu telemóvel.
A água é o mais complicado pois o poço da tabanca fica longe daqui mas os meus vizinhos já ontem providenciaram para que não me falte água em casa. Aqui, mesmo quando há água na torneira, tenho bem a noção da sua preciosidade e por isso quase toda a água é reaproveitada. É difícil tomar banho de água completamente fria e por isso todas as manhãs ponho um bidão com 10 l de água ao sol. É o termómetro, quanto mais quente está a água à noite mais quente esteve o dia. Depois ponho a água numa grande bacia e tomo banho de púcaro. A água restante vai para o balde da esfregona ou serve para pôr roupa de molho ou para regar as plantas dos meus canteiros. Só quando a água tem muito detergente é que é atirada para o terreiro. Só não costumo deitar água suja de lavar a loiça na sanita para não a engordurar mas agora tenho de repensar esta questão.
Tudo aqui tem um valor bem diferente do que tem na Europa. Há dias, um turista italiano, antes de se ir embora, ofereceu-me uns quantos sacos de plástico forte, daqueles pretos que usamos em Portugal para o lixo, mas fortes. A alegria que senti! Parecia que tinha recebido uma grande prenda! Uma garrafa de água de plástico vazia tem aqui um enorme valor, as pessoas fazem de tudo para ficarem com elas pois servem-lhes para imensas coisas. A minha saboneteira é uma caixa vazia de queijo Filadélfia que comprei em Bissau quando vim. Guardo latas (já tenho uma de leite Nido em cima da secretária com elásticos e pioneses, todas as semanas gasto duas de refrigerantes que são os cinzeiros da casa de banho e da varanda), garrafas de cerveja vazias (tenho 4 para o que der e vier), sacos de plástico que não estejam rotos (a maioria dos que há aqui rompem-se logo porque são muito rascas) são lavados e reutilizados, caixas da manteiga vazias são lavadas e guardadas (servem para dar de comer aos gatos, para levar para a pesca para pôr o isco, para o que fizer falta), o frasco do creme de dia foi bem lavado e agora está com canela.
Diferentemente do que as pessoas fazem aqui, eu separo o lixo – queimo os papéis e cartões que não reutilizo, as beatas, garrafas, latas e plástico sem utilidade vão diretamente para o poço seco e o lixo orgânico vai para os gatos, para as cabras ou é atirado para o mato. Quero aprender a fazer composto mas sem Internet tudo é mais difícil. Creio que já convenci o Abubacar a fazermos uma pequena horta aqui ao pé de casa. O Abubacar é engenheiro agrícola, especialista em horticultura e fruticultura e é fruticultor mas ….. como não estão habituados a comer legumes não fazem horta pois a rega dá muito trabalho. Mas assim que voltarmos a ter gerador, e consequentemente água, vamos fazer os viveiros.
Também não sei por que razão é tão difícil comprar aqui papaias. Ontem um senhor em Camucote disse-me que a papaieira não se dá muito bem nesta região. Aqui há muitos citrinos – laranjas, mandarinas, diversas variedades de limões. Se não posso comparar os citrinos com os do Algarve considero, no entanto, um privilégio tê-los com fartura.
Tudo aqui me sabe muito bem. Aquilo que mais facilmente conservo em casa (sem frigorífico) para o pequeno-almoço é queijo de bola que mando vir de Bissau. Ah, como me sabe bem o queijo de bola! Há dias dei à Judith, a francesa que vive em Madina em condições muitíssimo piores que as minhas, um pedaço de pão com queijo! Que alegria lhe proporcionei!
Todos os europeus deveriam passar aqui 6 meses, inclusive as crianças. Como não têm brinquedos ocupam-se a maioria do tempo a fazer algum trabalho. No sábado acordei com espírito de agricultora, mas como não podíamos ir fazer os viveiros porque não tínhamos água, resolvi limpar os canteiros de flores da minha casa e da dos meus vizinhos. Já tinham demasiadas folhas secas e os do meu vizinho outras sujidades. Passados uns minutos tinha ao pé de mim o Mamadu e o Alaje! Eu não queria que eles saltassem para dentro dos canteiros pois pisam as plantas mas tive que os pôr a fazer alguma coisa para os dominar. Assim, eu ia tirando as folhas e eles iam levá-las ao monte onde são colocadas para depois serem queimadas. Primeiro iam levá-las na bacia velha ou no balde mas depois foram buscar a carreta. E tive que pôr ordem no assunto para irem à vez com a carreta. Levar as folhas na carreta é para eles um divertimento.
E assim passei a manhã de sábado a limpar os canteiros com os dois garotos. No fim estava imunda de suor, de terra e fui tomar um duche de água fria do chuveiro. À tarde a Mariama veio com o Gassimo limpar a minha casa e mudei o meu quarto para o detrás pois é muito mais fresco. Dormia no Tarrafe (nome de uma das minhas divisões que quer dizer mangal) e agora durmo no Tagara (nome de uma árvore). É que o calor está a começar e dou comigo a suar em bica! E isto ainda não é nada pois em Abril e Maio é que o calor é mesmo a sério. Vamos ver como me adaptarei.
A limpeza da casa, esta semana, era para ter sido feita na 6ª feira mas a nora da Mariama, a Mariatu, começou com dores de parto e a Mariama teve de ir para casa. O Arnold e a Sónia, um casal alemão que viveu aqui na Guiné nos anos 80 e que até cá tiverem um filho, estiveram cá com o Pepito assim como uma sua amiga guineense, a Luana, que vive em França há muitos anos e tinham-se ido embora depois do almoço. Assim, fiquei pelo restaurante com a Satu até que ela resolveu que iríamos ver como o parto estava a decorrer.
Na casa da Mariama, num quarto exíguo de espaço livre, porque quase todo ocupado com uma cama de casal, encontrei deitada no chão, em cima de uma manpufa (esteira mais grossa e macia onde as pessoas se deitam), a Mariatu, completamente nua. Por detrás dela estava a Fatumata sentada e que servia para a Mariatu passar os braços por detrás dela e fazer força. À frente da Mariatu estava a matrona (parteira) a controlar o andamento do parto e a Mariama e a Duturna a massajarem as pernas da parturiente. Depois a Mariama passou também para trás da Fatumata para ser mais uma a ajudar a rapariga a fazer força. A Mariatu chorava e queria gritar mas as fulas não querem que as parturientes chorem nem gritem. A rapariga já tinha chorado no primeiro parto, o que segundo as fulas é muito mau, pois se chora no primeiro vai chorar sempre.
A Dra. Sónia, a alemã, que é médica materno-infantil e fala crioulo, ainda foi ver a parturiente mas o parto estava demorado e eles tinham de partir para Bissau. A Mariatu chorava, baixinho, chamava pela mãe em fula (né, né), mas a mãe já faleceu. A matrona dizia que estava quase a nascer. A Satu, que está habituada a ajudar aos partos, estava numa inquietação por ouvir a jovem chorar e quando ela quis gritar a Satu quis tapar-lhe a boca com um pano. Resolvi então agarrar na Satu e vir a casa buscar cigarros. Demoramos a vir e ir uns 15 minutos e quando lá chegámos o “bichinho” já tinha nascido! Para alegria da avó nasceu um rapaz. O casal já tinha uma menina. No chão, em cima da esteira e de um pano, estava o bebé, a placenta, e um jorro de sangue no chão.
Meu Deus, entre esta cena ou a do nascimento de um bezerro a diferença não deve ser muito grande. A matrona, que, diga-se, tinha uma luva na mão direita, cortou o cordão umbilical e de seguida lavou o bebé em água fria. Tirei então uma foto ao bebé nas mãos da matrona. A Mariatu quis fazer xixi, chegaram-lhe um penico, começou a tremer de frio, voltou a deitar-se no chão e cobriram-na. Mas não havia pressa em tratar da mãe. Peguei um bocadinho no bebé, fiz uma carícia à Mariatu, dei-lhe os parabéns, agradeci a todas as mulheres em fula (Jarama, jarama) e vim-me embora pois achei que a Mariatu precisava de ser cuidada e de sossego.
Tive pena de não ter assistido mesmo ao nascimento pois nunca vi nenhum mas certamente terei outras oportunidades. Felizmente tudo correu bem e a moça esteve pouco mais de cinco horas em trabalho de parto. Mãe e filho estão bem. Penso que não suportaria assistir a uma cena destas que acabasse mal, como acabam muitas aqui. E ao ver tudo isto pensava-nos no hospital, rodeadas de cuidados, e tão cheias de medo. E a Mariatu deitada numa manpufa no chão.
[ Fotos, acima, Iemberém, dezembro de 2009: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]______________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 9 de março de 2013 >
Guiné 63/74 - P11217: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (10): Nunca pensei vir a gostar deste arroz e não me aborrecer de o comer praticamente todos os dias