sábado, 23 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11301: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (12): As mulheres, as mães...também aqui elas são, na maioria das vezes, o garante do sustento da família



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 10 de dezembro de 2009 > Mulheres...

Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte XII) (*) [, Foto à direita, em Catesse, janeiro de 2012, crédito fotográfico: Pepito]

8 de Março de 2012

Hoje é o dia Internacional da Mulher que também aqui é comemorado. Parece que esta tarde haverá um jogo de futebol entre solteiras e casadas e as casadas querem que eu também vá jogar à bola! Aleguei que sou divorciada e que como tal não posso jogar mas elas não estão convencidas! Se calhar vou mesmo ter de dar uns pontapés na bola! Veremos.

As mulheres, as mães ….. também aqui elas são na maioria das vezes o garante do sustento da família. A Alice tinha-me dito que aqui elas é que trabalhavam e que os homens não faziam nada. Antes de vir perguntei ao Pepito e ele disse-me que os homens trabalham no duro na época das chuvas, altura em que fazem a cultura do arroz e que por isso teria dificuldade em dizer quem trabalha mais. Bem, a minha amostra é muito reduzida mas a Duturna, efetiva da AD, sustenta com o seu salário umas 9 pessoas, pelo menos. Claro que a neta e as sobrinhas netas vêm ajudá-la com muita frequência no trabalho. O marido, o sr. Manuel, que é mais novo do que eu, já não cultiva arroz porque os filhos foram para Bissau. Disse-me que talvez este ano cultive um pouco. 

A Mariama, que é contratada da AD durante a época seca, sustenta umas 12 pessoas. O marido é agricultor mas como os filhos não o ajudam cultiva pouco. Os dois filhos já homens fazem uns biscatos e vão ganhando uns trocos para eles. A Elisa, sobrinha da Mariama, que vive com eles, é negociante mas o que ganha é para si. É a Mariama que tem de pôr todos os dias o arroz e o peixe para as refeições, é a Mariama que tem de fazer o batizado do neto que nasceu. O seu filho mais novo, o Gassimo, que é um menino de bom coração que vai fazer 15 anos mas é miudinho, ajuda a mãe e anda quase sempre atrás dela. Costumo até brincar com ele dizendo-lhe que me parece um cabrito. Os cabritos balem “Mé, Mé” e o Gassimo “Né, né” (mãe em fula). A Pónu, contratada da AD durante a época seca, é viúva, tem 3 filhas e um filho, estão 2 em Bissau com a mãe dela, e ainda a enteada. Além de trabalhar aqui tem um pequeno negócio na tabanca. 

A Fatumata, que tem aqui um trabalho temporário, só 2 vezes por semana, é separada – deixou o marido na Guiné-Conacri por ele ter 4 mulheres. Diz que quer ser mulher única de um homem. Tem umas quantas filhas. Não sei o que faz mais para sustentar a família. Como diz o Abubacar, aqui, em média, uma pessoa trabalha para sustentar 10! E a maioria pensa se amanhã tem arroz para a família comer. Se tem, o depois de amanhã logo se vê. 

Enfim, apesar de mesmo estas mulheres se mostrarem cansadas rapidamente no trabalho do dia-a-dia, não sei se por estarem mal alimentadas, se por estarem efetivamente cansadas ou se porque o trabalho é um mal necessário, a verdade é que ainda assim são elas que se preocupam com a alimentação diária das grandes famílias e é por elas que uma filha chama na hora do parto. Por tudo isso, bem hajam as mulheres de todo o mundo.

Ainda nada escrevi sobre as minhas rotinas diárias, que são um pouco variáveis. Nunca me levanto depois das 7 horas e são muitos os dias em que me levanto às 6 ou antes. É quando acordo. Se me levanto antes das 7 e tenho bateria no computador venho escrever estas linhas. É bom levantar-me cedo pois são quase só as horas em que consigo estar sozinha e ter tempo até para pensar. Tomo o meu 1º pequeno-almoço, fruta e café, às vezes vou aqui ao lado comprar pão ao Mumini, às vezes faço algum pequeno trabalho doméstico, lavo-me, visto-me, faço a cama, como pão com queijo ou manteiga e bebo mais café e às 9 horas gosto de estar na rua e de ir ter com as mulheres e com o suposto jardineiro para ver quais os trabalhos do dia. 

Levo logo o bidão para pôr água a aquecer ao sol e a minha lanterna solar para carregar e às vezes o carregador solar de pilhas que as minhas colegas me ofereceram. As manhãs têm sido até agora quase sempre passadas nos alojamentos que foram sujeitos a grandes limpezas. Agora, que entrámos na fase de manutenção do que foi limpo, ando a ver como convencer o Sambajuma, guarda de dia e suposto jardineiro, a tratar melhor dos canteiros. Anteontem andei com ele a limpar 2 canteiros.

Se o Pepito visse ia zangar-se comigo pois diz-me que às tantas eles dizem “ela que faça”! Penso que o Pepito tem toda a razão mas se eu conseguisse dar a volta ao Sambajuma pela afetividade seria bom para nós e para ele. É “torrão”,  o Sambajuma! Era pescador de rede mas por causa dos copos perdeu tudo. Tem uns 60 e tal anos o que para aqui é muito e parece de facto um velho mas eu sei que ele ainda tem força pois quando vamos à pesca bem o vejo remar e nesses dias não se cansa. Andamos todo o dia na piroga e ele, como eu, não se cansa de estar à pesca mesmo quando não apanhamos nada! Vamos e voltamos a pé com as tralhas e se eu não estou pronta às 9 horas ele fica na maior inquietação. Ser guarda é fácil pois está sentado à sombra da mangueira todo o dia mas jardineiro … ih … dá “canseira”! O canteiro que ele limpou ontem não está devidamente limpo e eu disse-lhe mas … ainda não vi resultados! 

Falamos em francês porque ele cresceu no Senegal e comigo é muito educado e gentil. Ele vê mal, tenho a prova disso quando vamos à pesca, está muito desdentado mas tem uma mulher jovem e bonita e uma filha com uns 7 anos. Tem outras filhas adultas, de outros casamentos, mas as outras mulheres morreram. Mas o safado não se preocupa em alimentar a família! Há dias apareceu uma menina ao pé de nós a falar com ele. Disse-me que era a filha a pedir dinheiro para ir comprar arroz. Ele disse-lhe que não tinha e como a pequena não arredasse pé correu com ela e disse que fosse pedir à mãe dela! 

O Abubacar disse-me que já o mandou embora do trabalho 2 ou 3 vezes mas …. não tem coragem de tirar a este velho os únicos tostões que ele aqui ganha. Outro dia, na reunião que fizemos com todo o pessoal, à segunda vez que o Abubacar o chamou à atenção para aquilo que deve fazer melhor, ele não esteve com meias medidas – abandonou a reunião, e foi-se embora a dizer para o Abubacar “Tu ne me amais pas, tu ne me amais pas”! Mas nos dias em que o Pepito cá esteve não ficou sentado debaixo da mangueira. Ficou na Casa Redonda conforme o Abubacar lhe tinha dito que devia fazer. 

Quando o Pepito cá está cumprem horários e fazem de conta que andam direitinhos. O Pepito vai-se embora e volta tudo ao que é costume. Ele devia aparecer aqui de surpresa! Bem, o melhor trabalhador é o Lama que é guarda noturno e faz também alguns trabalhos de jardinagem, de limpeza de árvores, etc.. É muito, muito gentil, humilde, tudo o que se lhe diz acata e faz bem feito. A Mariama também é boa trabalhadora. Ao princípio dizia-me, quando queria que ela limpasse, por exemplo, pingos de tinta, “não sai”! E eu respondia “sai, sai, Mariama!” E lá ia eu com um esfregão de arame molhado mostrar-lhe que saía. Agora já limpa razoavelmente bem embora às vezes ainda se esqueça de limpar algumas coisas. É boa mulher, a Mariama! Escolhi-a para vir aqui a casa fazer a limpeza semanal, ao acaso, e tive sorte.

Estava a escrever sobre as minhas rotinas e acabei a escrever sobre as pessoas com quem trabalho. Voltarei à minha intenção inicial na próxima vez que aqui me sentar. São horas de me pôr a mexer!

(Continua)

Observ. de LG: Abubacar Serra, eng agr, é o o director do PIC (Programa Integrado de Cubucaré). Desenvolve actividades na área da promoção da fruticultura e horticultura, aproveitamento agrícola dos pequenos vales interiores, gestão comunitária dos recursos florestais e formação de viveiristas. Também faz consultorias no âmbito da fauna selvagem.  (Fonte: AD -Acção para o Desenvolvimento < Equipa)

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11266: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (11): Todos os europeus deveriam passar aqui 6 meses, inclusive as crianças

4 comentários:

Luís Graça disse...

Escreve a Anabela:

"A Fatumata, que tem aqui um trabalho temporário, só 2 vezes por semana, é separada – deixou o marido na Guiné-Conacri por ele ter 4 mulheres. Diz que quer ser mulher única de um homem. Tem umas quantas filhas. Não sei o que faz mais para sustentar a família. Como diz o Abubacar, aqui, em média, uma pessoa trabalha para sustentar 10! E a maioria pensa se amanhã tem arroz para a família comer. Se tem, o depois de amanhã logo se vê. "

A Anabela tem uma particular sensibilidade (e formação sociológica) para rapidamente se dar conta dos problemas das mulheres na Guiné-Bissau e do que está a mudar, a nível de atitudes e comportamentos das mulheres em relação à família, ao trabalho, ao casamento, à poligamia, aos homens, à sexualidade, à procura de cuidados de saúde, etc.

Reparem, ela chegou há mês e meio a Iemberém...

Luís Graça disse...

Já tem mais de 6 anos, mas julgo que não perdeu muita atualidade, esta reportagem publicada no "site" IRIN - humanitarian news and analysis a service of the UN Office for the Coordination of Humanitarian Affairs.

Vou publicá-la em duas partes, devida à sua extensão (excede os 4096 carateres)

http://www.irinnews.org/printreport.aspx?reportid=45620

GUINÉ-BISSAU: Ele, ela e as atitudes sobre a Sida

Bissau, 14 July 2006 (PlusNews) -
Todas as terças e quintas-feiras, o Centro Cida Alternag, no Bairro Sintra, em Bissau, fica cheio. Os pacientes seropositivos vão à consulta médica, aconselhamento, buscar a dose mensal de antibióticos, milho, óleo e açúcar, do Programa Alimentar Mundial.

Terça-feira é o dia dos jovens, até 35 anos. Quinta é do dia dos mais velhos, em geral, não escolarizados. Assim, cada grupo tem a informação adequada ao seu nível e necessidades. Mas, sejam mais novos ou mais velhos, a maioria são sempre mulheres.

No entanto, os que mais vão às sessões de aconselhamento – primeiro passo antes de fazer o teste - são os homens jovens. Isso deriva do facto de terem mais tempo livre e participarem mais nas associações comunitárias que as mulheres.

“Entre as tarefas domésticas, o trabalho e os estudos, as moças, mesmo que queiram, não têm tempo de participar”, explica Catarina Baió, enfermeira e coordenadora do programa de Sida da Alternag, uma organização não governamental.

A Alternag gere o Centro de Informação, Despiste, Apoio e Aconselhamento em Sida. É um dos quatro locais que assistem a pessoas HIV+ na capital da Guiné-Bissau.

Uma vez feito o aconselhamento, “são as mulheres que avançam para a testagem,” disse Baio. “As mulheres prestam atenção, ganham coragem e fazem o teste,” explica Baio.

O mesmo acontece com os jovens activistas do projecto de prevenção da ONG Médicos do Mundo, que atinge 45 mil pessoas no bairro de Bandim, em Bissau. Dos 48 activistas formados em HIV/Sida, apenas dois ganharam a coragem de fazer o teste – e são mulheres.

Uma tarde de calor

Numa quinta-feira de Junho, daqueles dias de calor pesado antes das chuvas, 35 mulheres e cinco homens estão sentados na sala do Cida Alternag, aguardando o pontapé inicial duma partida do campeonato mundial de futebol, na televisão. Um dos homens, de 63 anos, vive há dez anos com o vírus, e ainda não precisa de ARVs. Veste um chapéu castanho, uma camisete com os dizeres “Guiné-Bissau, por uma geração sem Sida”, e sorri para dizer que não quer nem fotografias, nem dar o seu nome.

Outro é Sankim Ynfai, de 40 anos, casado e pai de três filhos adolescentes. Ele testou positivo, em Junho de 2005. Esteve gravemente doente, mas recuperou e ainda não precisa de antiretrovirais (ARVs). Hoje é um dos dirigentes da Nova Vida, associação de seropositivos .

“O homem tem medo de ser acusado de ser HIV+ e não faz o teste,” ele explica. “Outros têm vergonha de serem vistos a entrar no Centro.”

(Continua)

Luís Graça disse...

(Continuação)

Nos seus bairros, os activistas da Nova Vida tentam convencer os vizinhos a testarem.

Desde 2001, o Centro tem dado seguimento médico a mais de 900 pessoas HIV+, das quais oito estão em tratamento ARV. Quase a metade deles precisará de ARVs, disse Baió, mas o país não têm stock suficiente. Este ano, Brasil ofereceu ARVs para 300 pessoas, distribuídos pelos quatro centros, na capital, e um, em Mansoa, que assistem aos seropositivos.

“Ficamos de mãos atadas, podíamos fazer mais,” lamenta Baió.

Um a um, os pacientes passam pela consulta. Uma enfermeira regista o seu peso. Quem tiver algum problema médico, entra num gabinete para ter com a Dra. Isabel Mafé, uma mulher forte e alegre. Após o teste, Mafé explica as pessoas que para levar uma vida positiva e também no tratamento ARV, não devem fumar, nem beber álcool.

“Quando os homens ouvem isto, não querem começar,” ela explica. “As mulheres são mais lúcidas e disciplinadas, começam logo e continuam com o tratamento.”

Poligamia, levirato e incredulidade

Outra razão que explica a presença de tantas mulheres sentadas na sala e no quintal do Centro é a poligamia. “Cada homem infecta três ou quatro mulheres,” explica Baió.

A poligamia não é exclusivamente praticada pelos muçulmanos (45 por cento da população), mas também por outras tantas pessoas das 30 etnias, aberta ou discretamente. Muitos homens têm uma esposa na tabanka e outra na cidade.

Outra tradição que espalha o HIV é o levirato, a herança da viúva do irmão, frequente entre os pepeis, grupo étnico numeroso na capital.

A negação do problema também contribui. “O primeiro obstáculo no nosso trabalho é que as pessoas não acreditam na doença,” disse Joana Sanches Pedro, enfermeira da Médicos do Mundo.

Há “uma atitude fanfarrona negando a existência da Sida no país”, porém, acompanhada por “uma ansiedade difusa sobre...a necessidade se proteger da doença misteriosa”, diz um estudo feito entre jovens, nos subúrbios de Bissau, em 2001, citado no Plano Estratégico Nacional de Luta contra a Sida.

Outra razão é a relação diferente de homens e mulheres com os serviços de saúde. As mulheres, por causa da saúde reprodutiva, têm maior familiaridade com a estrutura sanitária e com o controlo médico. Os homens frequentam menos as clínicas e estão habituados a controlar as suas vidas, a sofrer sem partilhar e sem pedir ajuda.

Estudos no mundo inteiro revelam que as mulheres recorrem mais e mais cedo aos serviços de saúde do que os homens, antes que o seu estado se agrave.

“Os homens são machistas, pensam ser mais fortes que o vírus, e não acreditam que o tem até não caírem doentes,” disse Mafé. São conceitos tradicionais da masculinidade e de género, que acabam por impedir aos homens o aceso aos cuidados de saúde.

Porém, Ynfai não consegue levar a esposa à testagem, embora ela já esteja doente.

http://www.irinnews.org/printreport.aspx?reportid=45620


[This report does not necessarily reflect the views of the United Nations]

Antº Rosinha disse...

É “torrão”, o Sambajuma!

Anabela está a tentar o impossível: pôr o Sambajuma a produzir.

Impossível, pois nem o Intendente Guerra Ribeiro conseguiu em 500 anos que o "Sambajuma" se esforçasse diferentemente que o habitual.

Vieram depois milhares de estrangeiros como suecos, soviéticos, cubanos, caboverdeanos e portugueses a berrar aos ouvidos do "Sambujama" e o esforço dele não passava daquilo.

O "Sambajuma" tem uma enorme paciência.

Eu gostei muito de ter vivido com muitos "Sambajumas".

Penso que Anabela compreende muito bem a vida de "Sambajuma".

Cumprimentos