terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11278: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (24): O Sampaio armadilhou os seus tomates e deu mesmo estouro

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 13 de Março de 2013:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.
Votos de muita saúde e bem-estar, sempre, só que desta vez desta vez acompanhados de mais um Salpico que foi buscar às minhas memórias.
Passem bem, muito bem mesmo.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

24 - O Sampaio bem soube armadilhar os seus tomates,… e não é que deu mesmo estouro!

O amigo do Sampaio, o cabo fiel da arrecadação, e a quem bem podíamos de alcunhar de “mão para toda a obra”, pois passava a vida a engendrar isto e aquilo, e diga-se de passagem, que as suas obras saíam sempre perfeitas e sobretudo de boa utilidade.
Era realmente possuidor de muita habilidade e sobretudo de grande poder de imaginação. Uma espécie de self made man. Na arrecadação nada falhava.
Muita habilidade para tudo, só que a sorte nem sempre o acompanhou, como veremos adiante.

Entre as diversas engenharias dele, sobressaiu a armadilha nas suas plantações de tomates, plantações estas que ele tinha ali mesmo ao lado da arrecadação. Soube ele bem aproveitar aquela meia dúzia de metros quadrados, com muito esmero e dedicação, e então aquela terra era tão fértil!… Quantas vezes por ano pensava o Sampaio fazer a safra!

Mas, assim que os tomates começaram a aparecer maduros (e até mesmo ainda longe disso), começaram também a aparecer os seus apreciadores, oportunistas e amigos do alheio, e que, a coberto da noite, vinham lá de visita e… principalmente de colheita.

Então o amigo Sampaio vê a improficuidade do seu trabalho e arranja lá maneira de pregar um grande susto a tal clientela e, vai daí armadilha a plantação com detonadores, a começar pela pequena cancela de madeira que era a porta (?) da horta, já que em toda a volta havia uma sebe que tornava mais difícil o acesso à pequena mas cuidada plantação. Os detonadores não demoraram a estoirar apanhando os mais incautos e os tomates foram assim preservados; os que ficaram, naturalmente.
Quase se pode dizer que o Sampaio mal virou as costas após montar os detonadores, eles estouraram…

Meter-se com o bom do Sampaio não era assim tão fácil sair a ganhar.

Recordo-me de uma pequena mesa em madeira que ele fez para o meu quarto, e do Luís José, ainda em Bissorã, ainda nós com muito pouco tempo de Guiné, mesa essa toda feita à mão com ajuda de rudimentar ferramenta, o que logo ali mostrou toda a sua habilidade.

Então o Sampaio, numa das suas engenhocas, havia de pagar um alto tributo, pois aconteceu o que ele menos esperava, e que também passo a contar:

O Sampaio, na qualidade de responsável pela arrecadação do diverso material, incluindo munições, era amiudadas vezes incomodado de noite, quando já se deleitava com um sono retemperador. Isto já no Olossato (tínhamos estado um tempo em Bissorã). Assim, de vez em quando, lá aparecia um “fora d’horas” a importuná-lo, ou a pedir óleo para limpar a arma, ou a pedir munições para a operação no mato que se ia fazer, ou isto ou aquilo. Às vezes parecia que o objetivo era alvoraçar o bom do Sampaio

O Sampaio, às vezes, primeiro que se visse despachado era um dia de juízo. Acordar em sobressalto e por coisa que não se justificava, a maior parte das vezes, não, não podia continuar. Até parecia que faziam de propósito, até parecia…

Então o Sampaio há que pôr a imaginação a trabalhar e tratou de arranjar o antídoto para aquele estado de coisas e pôs mãos à obra. Coloca um latão, daqueles de 25 litros, cheio de água em cima da porta da arrecadação e ata-lhe um fio que se estendia até à sua cama, o que ainda distava uns bons metros.

Assim, ele, sem se levantar, e até sem ter que se movimentar muito, comandava por meio do dito fio, o movimento do latão. Assim que alguém o viesse chatear a horas impróprias e desadequadas, ele, da sua cama, sem se levantar, puxava primeiro o fio que abria a porta (este sempre existiu) e depois já com o ilustre e inoportuno visitante do lado de dentro, puxava um outro fio que fazia virar o latão e despejar toda a água pela cabeça abaixo do insolente cliente. Bom, até aqui tudo muito certo, até porque o Sampaio tinha direito ao seu descanso como qualquer comum dos mortais, e alguém teria de levar uma ensinadela, agora o que nunca passou pela cabeça do Sampaio era que o primeiro cliente a levar com a água pela cabeça abaixo seria, nem mais nem menos e, vejam lá (!)… o Capitão!!
Isso mesmo: O Comandante da Companhia.
De perto de 200 homens havia de aparecer o que ele menos contava.

O Sampaio naquela noite de estreia, com tudo preparadinho e afinadinho ao pormenor, como só ele o sabia fazer, deitou-se concerteza com um sorriso a aflorar-lhe os lábios, imaginando o que queria gozo, todo encharcado.

Aconteceu porém, que naquela noite, que já tinha principiado há muito, o Capitão, em pijama tropical, resolve ir à arrecadação para dar um recado ao Sampaio, o que nunca aconteceu ou muito raramente acontecia. Bateu à porta, uma, duas vezes, esta abre-se e de seguida catrapus, temos o Capitão molhado dos pés à cabeça. E ele que ia só com um fino pijama sobre a pele.
Foi mesmo em cheio ou aquilo não fosse projeto do Sampaio. Eu, claro, não vi, mas faço uma pequena ideia da cara do Sampaio ao constatar quem foi o primeiro a morder o isco.
O Capitão, é que não gostou da brincadeira, e trata logo de saber quem fez aquilo e no final das contas também constatou que havia cúmplices. O castigo foi fazer alinhar o Sampaio e os seus acólitos em duas operações ao mato, entre eles o bom do Zé corneteiro

O Cabo Zé corneteiro, (falecido cá já há alguns anos - paz à sua alma-), que também tomava conta da nossa messe, e que tinha sido um dos colaboradores do Sampaio, nunca mais deixou de tremer, ao saber da sua sorte.
O quê?, ir para uma operação no mato, coisa que tal nunca tinha acontecido, nem estava previsto acontecer? Afinal ele era só corneteiro: "Oh meu Furriel, como é que eu faço?” - pergunta o sobressaltado do Zé.

Apanhou por tabela o engenho mal sucedido, embora moralmente bem intencionado, do “engenheiro” e seu colega de apartamento, o Sampaio
O Zé até fez sandes de ovos estrelados para levar para o mato com o “medo de poder enfraquecer!…” (palavras dele)
Pois é verdade, o Capitão não condescendeu e eles cumpriram mesmo o castigo.

Aquela engenhoca desta vez tinha ficado cara ao habilidoso do Sampaio. O Sampaio, esse, de sorriso simples e constante, esqueceu-se deste por uns dias. Mas só por aqueles que andou por o mato.

O sorriso que o Sampaio ainda hoje o tem (semelhante ao da Gioconda) e que logo se amplia quando eu lhe lembro o episódio dos tomates, nos Convívios que ainda hoje e sempre fazemos.

À hora da partida para o mato, já pela noite dentro, era vê-los aos dois ali alinhadinhos junto ao “cavalo-de-frisa” e metidos bem debaixo dos capacetes, como bons operacionais. Muita gente à frente deles na fila indiana. Pelo menos puderam escolher a posição. Impressionou-me eles a tremerem quando frio era coisa que não existia naquelas paragens, e a cor deles também não era das melhores para além, claro, da inusitada tremedeira.

Mas voltaram sãos e salvos às lides do Aquartelamento: o Zé volta a tocar a gaita com todo o vigor ao alvorecer e com rara mestria, e o Sampaio voltou a sorrir e a atender o pessoal na Arrecadação mas aqui já com cuidados recíprocos.

Quanto à plantação dos tomates não mais valeu a pena. Agora só dava para coçar… a história.

____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

1 comentário:

Anónimo disse...

Viva Rui,
Li com agrado mais um texto da tua colecção. Continua, seja com que tema for, compila-os e que em breve saia um livro.
Vemo-nos em Monte Real a 8/Junho.
Um abraço,
Raul Albino