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segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23098: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (22): Lugares da Guiné

Carta Geral da Província da Guiné
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem do dia 18 de Março de 2022, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71), lembra os locais da Guiné por onde peregrinou.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

22 - LUGARES DA GUINÉ

A CART 2520 enquanto sediada no Xime exerceu uma grande actividade fora do arame farpado, tanto a nível de Companhia ou de pelotão e conjuntamente com a CCAÇ 12 e os Pelotões de Caçadores Nativos 52 e 54, originando para os operacionais um enorme trabalho e também um grande desgaste físico e psicológico. O 3.º pelotão a que pertenci, percorreu praticamente todos os cantos, trilhos e picadas da zona operacional. Por mero acaso fui tomando alguns apontamentos numa pequena pasta onde guardava a minha correspondência e que actualmente a conservo quase religiosamente.

A partir destes curiosos apontamentos, da minha memória e com recurso à carta do Xime e de outros locais, elaborei uma lista que vou partilhar com os camaradas da nossa Grande Tabanca, ou melhor, da Tabanca Grande, dos lugares da Guiné por onde andei, incluindo também os lugares da segunda fase da nossa passagem pelo Ultramar quando a nossa Companhia assentou arraiais em Quinhamel:

Bissau - Início da comissão em 30 de Maio de 1969, alguns dias. Em Junho e Julho de 1970 várias vezes e em Março de 1971
Brá - Primeiras dormidas na Guiné antes da partida para o Xime
Xime - Base da CART 2520 durante o 1.º ano, Junho de 1969 a Junho de 1970
Bambadinca - Um sem número de deslocações com a finalidade de alguns reabastecimentos, ir buscar e levar correio e outros serviços
Mansambo - Primeiras 3 semanas para o treino operacional com o 3.º pelotão
Bafatá - Várias idas com a finalidade do Vaguemestre comprar vacas para nossa alimentação
Ponte Rio Udunduma - Por inúmeras vezes como mini destacamento e de passagem para Bambadinca
Enxalé - Mais de dois meses como destacamento e para segurança da população
Finete - Patrulhamento até ao Enxalé
Mato de Cão - Patrulhamento a partir de Finete até ao Enxalé
Mato Madeira - No percurso entre Finete e Enxalé
Malandim - Zona do Enxalé, patrulhamento
Gambana - Nas proximidades do Enxalé, patrulhamento
Madina Colhido - Inúmeros patrulhamentos e montagem de emboscadas e de seguranças aos barcos que passavam no rio Geba
Ponta Varela - Em operações
Ponta do Inglês - Três passagens em Operações
Foz do Corubal - Uma passagem em Operação
Ponta Coli - Dezenas de seguranças para a passagem de colunas da nossa Companhia e de outros militares
Ponta Luís Dias - Passagem durante Operação
Mouricanhe - Em Operação
Chacali - Em patrulhamento
Chicamiel - Em Operação
Poidon - Em patrulhamentos
Háfio - Em operações
Darsalame/Baio - Em Operações
Buruntoni - Em Operações
Colicumbel - Em patrulhamentos
Lantar - Proximidades do Xime em patrulhamentos
S. Belchior - Em operações
Malafo - Patrulhamento
Bissilão - Em Operações
Gundagué Beafada -Em operações
Amedalai - Ponto de passagem obrigatório para colunas a Bambadinca
Samba Silate - Em patrulhamento, passando por Amedalai
Taibatá - Colunas de apoio à população
Demba Taco - Colunas de apoio à população
Quinhamel - Base da CART 2520, tendo divergido para Safim, João Landim e posteriormente para o Biombo
Safim - Base do 3.º pelotão - Junho, Julho e parte de Agosto de 1970
João Landim - Permanência de dois meses com uma secção
Nhacra - Breve passagem
Biombo/Ondame - Entre Setembro de 1970 e Março de 1971 como destacamento
Blom - Tabanca nas proximidades do Biombo
Blimblim - Tabanca nas proximidades do Biombo
Dorce - Tabanca nas proximidades do Biombo
Ponta Biombo - Patrulhamentos e momentos de descontração
Ilondé - De passagem
São Vicente da Mata - De passagem
Cais de Pigiguidi - Chegada a Bissau e "Adeus Guiné"

José Nascimento

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22311: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (21): Martins, o caçador de rolas

sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22614: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (17): as meninas do rio Gambiel, no regulado do Cuor, à pesca...


Foto nº 1A


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 5A

Guiné-Bissau > Leste > Região de Bafatá > Setor de Bambadinca > Regulado do Cuor > Rio Gambiel > Junho de 2021

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem de Patrício Ribeiro (português, natural de Águeda, da colheita de 1947, criado e casado em Nova Lisboa, hoje Huambo, Angola, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; membro da nossa Tabanca Grande, com 107 referências no blogue):


Data - 05/10/2021, 22:39 (há 3 dias)


Assunto - Fotos de Finete, Bambadinca, pesca

Luís,

Conforme teu pedido (, "Patrício, quando passares lá pelos meus lados - Contuboel, Bafatá, Bambadinca, Fá Mandinga, Xime, Xitole, Saltinho, Rio Corubal - bate umas chapas"), mando-te fotos do Leste.

Tu e o Beja Santos, poderão encontrar nestas fotos as bisnetas … (dos vossos camaradas de armas) à pesca no rio Gambiel, nos finais de julho de 2021. (Fotos nºs 1 e 2).

Junto à ponte de betão que atravessa o rio (Foto nº 3), no meio da bolanha onde se cultiva o arroz no tempo da chuva, entre Finete e Bantajã, perto de Bambadinca, onde as bajudas e mulheres, se juntaram às dezenas para fechar o rio, com as sua redes artesanais, para pescarem na maré baixa. (Fotos nºs 4 e 5).

Esta pesca, é muito comum nos diversos rios da Guiné, com água até ao peito e com o balde à cabeça.

O rio, um pouco mais a nascente, é alimentado por lagoas de água doce, onde há mais de 30 anos eu comprava peixes para a alimentação dos meus colegas de trabalho.

Neste rio e lagoas, eu também “pescava” patos bravos para as minhas refeições, quando durante 3 anos, tive uma casa na tabanca de Gambiel, para os meus trabalhos nos diversos projetos da empresa pública de madeira SOCOTRAN, financiados pela Cooperação Sueca.

Esta ponte  (sobre o rio Gambiel, afluente do Rio Geba Estreito)
 foi construída depois da Independência (Foto nº 3).

Em 1998, era uma das muitas fronteiras; entre os militares da Junta militar do Ansumane Mané do lado norte, e os militares da Guiné-Conacri, que apoiavam o presidente 'Nino' Vieira que estavam do lado sul, tinham carros blindados na encosta de Bantajã debaixo das árvores.

Quando por lá passei de viatura a caminho de Dacar, levando alguns amigos comigo, para apanhar avião para Lisboa, não fomos autorizados a sair de Bissau. Tivemos que fugir… apanhámos muitos sustos, passamos por 20 controlos militares e policiais, até Dacar. Nesta altura, o aeroporto de Bissau, esteve fechado durante muitos meses.

Tabanca onde anteriormente a Soares da Costa e a Somec, Empresas Portuguesas de Construção Civil, tinham as suas pedreiras, para as extrações da pedra duralite, semelhante ao granito, utilizada nas maiores construções de obras publicas, pós-independência. (Vamos ver os comentários que o nosso amigo António Rosinha tem, sobre o assunto !!!???)

Nota: Ver o que o nosso amigo Beja Santo escreveu nos seus livros sobre esta zona, e continua a escrever …

Abraço, Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com


Guiné >Leste >  Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bambadinca, Nhabijõs, Mato Cão, Finete, Mero, Santa Helena, Bantajá,Ponta Brandão, Fá Mandinga, Canturé,  Missirá, Aldeia do Cuor, rio Geba e tio Gambiel... Lugares "míticos" que alguns de nós conhecemos...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22589: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (16): Mais algumas fotos dos meus passeios: Bolama, junho de 2021

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette está de regresso a Bruxelas, atira-se ao trabalho, esse trabalho não é só profissional, trouxe de Lisboa documentos, cartas, aerogramas, folhas soltas e imagens correspondentes ao primeiro trimestre de 1969, tudo referente a Paulo Guilherme e a um tal regulado do Cuor, por quem ele sente uma paixão inextinguível.
Escrevendo a Paulo, Annette pergunta se a realidade não supera quase sempre a ficção, basta ler estes patrulhamentos, estas operações, a flagelação sobre Missirá e a dura resistência a que ela obrigou aqueles homens que juraram entre si que jamais se renderiam. Como o leitor verificará, esta regra do jogo de escrever para uma ficcionada mulher amada leva a que todo este estado amoroso acaba por absorver aquela estranhíssima proposta do tal português que fizera a Annette, inesperado encontro, ele disse-lhe que tinha imaginado um romance em que um português contaria a uma estrangeira toda a sua experiência numa guerra de que ela nunca tinha ouvido falar, de um país que é um pequeno ponto no mapa, a Guiné-Bissau, e que aquele encontro a pretexto do romance desaguara numa coisa séria, romance mais dentro do romance é pouco imaginável que possa vir a acontecer.
Deixemo-los nesta felicidade pois quem anda a mexer nos cordelinhos da prosódia também ganha em satisfação, à distância de mais de meio século ele sabe que o renascimento de Missirá foi um dos episódios determinantes da existência, aprendeu que há lutas que não se enjeitam, há causas que dão mais vida aos anos, e quanto mais as sentimos mais tempo vivemos, com dignidade e respeito por nós próprios.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorable Paulo, chegou o momento de te agradecer a minha primeira estadia em Lisboa, apreciei muito comovida o modo como me acolheste, bem como os teus entes queridos e amigos, é uma cidade magnífica, já a visitara duas vezes para conferências, primeiro quando Portugal aderiu à CEE e depois na presidência de 1992, fiquei impressionada nesta última com as mudanças, agora ainda fiquei mais, tu fizeste-me a grande surpresa de me levar ao Parque das Nações, é fascinante, acredito que toda aquela parte velha que vai até ao Terreiro do Paço sofrerá ao longo dos anos grandes benefícios, foi o que eu senti naquele longo passeio que demos no último dia do ano, regressei a casa cansadíssima, tu adoras andar a pé e eu acompanho-te entusiasmada com as tuas descrições, gostei mesmo muito de conhecer o Palácio do Duque de Lafões, imagine-se numa zona ainda relativamente degradada.

Tu tens muito bons amigos, e isso é consolador para nós os dois, sinto que tu és estimado e correspondido nos teus afetos. Aquela passagem de ano em casa da tua amiga Belmira Coutinho, a vermos os fogos de artifício, a comer as vossas iguarias e vir depois para a varanda com as doze passas e o copo de espumante foi mais um momento de felicidade, meti todas aquelas passas à boca a pensar no futuro promissor dos meus filhos e viver permanentemente ao pé de ti. Imagina que enquanto todo aquele fogo ribombava me veio ao espírito uma conversa havida com a minha mãe a propósito do meu pai que faleceu tão novo, seguramente que os sofrimentos a que foi sujeito durante a II Guerra pesaram muito. Depois dizia a minha mãe que recebera na véspera do casamento uma carta do seu noivo a confessar-lhe a adoração que sentia por ela, a exaltar os primores de caráter da noiva e que a frase final a marcara para sempre: “Se te couber um dia fechares os meus olhos no leito de morte, lembra-te que foram olhos que agradeceram os dons da vida em que estiveste como minha aliada permanente, olhos brilhantes de paixão, olhos que te seguiram para todo o lado com enlevo e admiração. E ao fechares os meus olhos tu terás para o resto da tua vida a grata lembrança que soubemos permanecer unidos pelo respeito e na plena fusão dos nossos projetos. E amanhã serás a mulher desse homem que em circunstância alguma abdicará da luminosidade da tua companhia”.

Pois regressei, procurei pôr em ordem o que trouxe de Lisboa, conversei com os filhos e organizei a semana de trabalho. Como é meu hábito, à noite organizo em parte todo o material que me envias, e desta vez trouxe debaixo do braço tudo quanto faltava para saber ao pormenor o primeiro trimestre da tua guerra em 1969. Aqui vai um resumo de tudo quanto pude captar.

A 1 de janeiro, a caminho de Finete e da missa na Capela de Bambadinca, encontras vestígios da passagem de elementos ligados à guerrilha. No dia seguinte regressas a Bambadinca para fazer um reconhecimento aéreo com o major de operações, descobres que a escassos quilómetros de Missirá há bolanhas cultivadas. Não perdes tempo, saem na madrugada seguinte e foram até à ponte do rio Gambiel que já escreveste dizendo é um sítios mais formosos do mundo. Caminham pela orla que separa os regulados do Cuor dos de Mansomine e Jaladu. Vocês foram avistados e logo fogueados com morteiros. Respondem ao fogo e um dos apontadores de bazuca fica ferido, não se sabe a dimensão da gravidade.

Enquanto se fazem obras no arame farpado e anda por ali atarefado o alferes sapador (tu dizes chamar-se Mena Reis) com quem terás contencioso, ele pretende armadilhar locais acessíveis a crianças, descobre-se uma conjura de gente de Finete que se queixou de ti ao comandante, haveria milícias que se queixariam de maus-tratos e que não darias apoio à tabanca, privilegiando Missirá. Não foi precisa uma longa investigação para descobrires que por detrás da cabala estava o comandante da milícia, o vaidoso e pouco amigo do trabalho Bazilo Soncó. Escreves ao comandante do batalhão alertando-o para várias urgências, achavas que a vida militar do Cuor podia estar intimamente associada ao Enxalé, recordavas o estado degradado em que se encontravam os dois destacamentos de Missirá e Finete, mandaram-te teres paciência. Anotei o acervo de leituras que fizeste, as cartas enviadas e recebidas.

Pelas consequências havidas, reproduzi ao pormenor o que tu me mandaste sobre a primeira visita do General Spínola a Missirá, a sua rispidez contigo e também a do comandante de Bafatá. Ri perdidamente com aquele episódio em que o dito general falando aos soldados os chamava por “luz do mato” e um deles interpelou-o da seguinte maneira: “Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quanto traz gerador para Missirá?”. Serás punido com dois dias de prisão simples e assim impedido de teres férias, e ao mesmo tempo recebes o primeiro louvor dado por general considerando que a tua mentalidade ofensiva deve ser apontada como exemplo. Vão seguir-se vários patrulhamentos, cada vez mais próximos dos locais onde se fixa a guerrilha. Há aquela operação Andorra e também escrevi com pormenor o ataque de abelhas em que vocês corriam espavoridos por um lado e os guerrilheiros por outro. Registei aquela ameaça que tu recebeste de Mamadu Jaquité, irás ao seu encontro em 1991, ele era então comandante do Cumeré, transcrevi o teor da ameaça: “Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha pátria. Se quiseres desertar, tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité”.

Vai seguir-se a terrível e desastrosa operação Anda Cá, antes durante um patrulhamento a Quebá Jilã vocês capturaram um jovem que seguirá na operação como guia. A narrativa que tu deixas do estado calamitoso de 300 homens depois da frustração da operação que é interrompida quando tu já avançavas para o objetivo de Madina é quase um quadro de horror, gente no maior sofrimento, a gritar por água e por tratamento dos pés feridos. Segue-se uma operação onde foste a um local chamado Mansambo, pela primeira vez tu entrarás no acampamento abandonado e segues para Bissau para extraíres uma cartilagem formada atrás do joelho direito que praticamente te impedia de andar, é comovente o teu encontro na enfermaria com Fodé Dahaba, não sei se alguém poderá escrever um quadro de dor parecido com o que tu nos dás. E comovente também o facto de o Fodé ter pedido a um enfermeiro para tu ficares numa cama ao lado da dele.

Encadeiam-se mais tragédias. Mal te consegues pôr em pé, vais ao Batalhão de Engenharia, numa localidade chamada Brá e consegues obter muitos materiais para as obras dos teus quartéis. Quando tens alta, a 20 de março e entregas a guia de marcha no Quartel-General, um sargento atira-te a seco uma mensagem há pouco recebida, Missirá fora na véspera atacada, pouco passava das nove da noite, e uma parte muito importante do quartel ou da povoação fica em cinzas. Em estado de estupor, regressas ao hospital militar, à procura de feridos, pois o relato incluía dois mortos, dois soldados feridos e seis civis hospitalizados. Encontras o régulo Malan Soncó numa enfermaria, foram-lhe extraídos estilhaços do peito. Como se fosse o acontecimento mais importante de toda aquela flagelação, o régulo insiste na notícia: “A tua morança desapareceu completamente, só ficaram os ferros da cama. Na tua ausência puseram lá uns cunhetes de granada que aumentaram a explosão. Prepara-te porque não vais encontrar nada”. Consegues, depois de muito insistires, um transporte que rapidamente te leva a Bambadinca e daqui a Missirá. Tu escreves que vai começar um dos momentos mais empolgantes da tua existência, decidiste que em tempo recorde Missirá será construída, disseste isto aos teus soldados e à população, não se pode ler o relato que te fizeram da resistência àquele formidável ataque sem sentir um tremor no corpo, aquela resistência durante horas, as munições já praticamente esgotadas, o pacto de sangue estabelecido entre os soldados, lutariam até ao fim, cada um ficaria com duas balas, se entretanto os guerrilheiros ousassem avançar, receberiam a penúltima bala, a última culminaria na morte do combatente, nunca se renderiam. E quando termina este primeiro trimestre tu dizes que Missirá está a renascer entre a lama e o cimento. É tudo isto que eu estou a coligir para tu depois forjares as tais cartas a que eu vou responder no que tu chamas o romance da Rua do Eclipse. Há momentos, meu adorado Paulo, em que eu me interrogo se de facto a realidade não é mais pujante que a ficção. Como é que foi possível tudo isto ter acontecido? Obviamente tenho lido como toda a gente livros sobre a II Guerra Mundial, aqui bem a sofremos com perseguições, penúria, prisões arbitrárias e até execuções. Há romances notáveis sobre a luta nos guetos, as batalhas na frente russa, as fugas audaciosas de prisioneiros, mas arrepia décadas depois, por causa de uma obstinação em querer ter um império contra os ventos da História, a tua geração ter sido forçada a participar nesta calamidade.

Interrompo por aqui esta narrativa para te contar que eu e vários colegas fomos convidados pela colega Nelly Alter a uma festa em sua casa, numa localidade chamada Saint-Marc, a poucos quilómetros de Namur, um acolhimento formidável e depois do repasto, que se realizou cedo, a Nelly sugeriu que fôssemos passear, não dentro de Namur mas para visitar duas localidades e monumentos que ela muito aprecia. São essas as imagens que te envio, para prazer dos teus olhos.

Renovo a minha gratidão de tudo quanto me ofereces. Hoje sinto-me muito otimista e nada melancólica. Percebi que balbuciavas quando me disseste na terceira semana do mês a reunião da tua Associação se realiza em Florença, acontece que tenho praticamente trabalho todos os dias este mês de janeiro, as instituições comunitárias já estão em pleno funcionamento e tu disseste-me que ainda tinhas quatro dias úteis de férias do ano anterior para gozar e que seriam integralmente passados comigo, em fevereiro. Vou amanhã mesmo falar com o responsável pelo meu calendário de trabalho e ver se é possível em ter uma semana em branco. Telefono-te imediatamente.

Ando com o teu anel, os colegas perguntam-me de onde vem, elogiam-no. “É presente do meu noivo, é anel para toda a vida”. Despeço-me com o maior carinho, com a muita saudade (que é portuguesa e belga), e com os votos de que janeiro passe depressa para eu te ter ao pé de mim, tua, Annette.

(continua)
Fogo de artifício na passagem de ano
Château de Spontin, Bélgica
Basilica Saint-Materne (Walcourt), Bélgica
Fodé Dahaba, a nossa grande perda na Operação Anda Cá
Operação na área do Xime, o Pel Caç Nat 52 participa, à direita António da Silva Queirós, também conhecido pelo 81, segue-se Ieró Baldé, 1.º guarda-costas de alfero, segue-se Serifo Candé, amigo de peito de alfero e o barbeiro Manuel Costa, hoje detentor do blogue A Nova Barbearia Costa, de onde se retirou esta imagem, com a devida vénia.
Festa do Natal de 1970 do Pel Caç Nat 52, imagem herética, como é possível aquele garrafão de vinho junto de bravos Fulas e Mandingas? Mistério insondável
Festa de Natal de 1969 na ponte do rio Undunduma, perto de Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21178: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O arrependimento pós-guerra era inevitável, havia que assumir causas do incumprimento, de pura negligência, de comportamentos menos corretos, atendendo à qualidade daquele capital humano, gente fidelíssima que me seguia no mato, aquela população civil vivia na maior das misérias e que, paradoxalmente, esperava que lhes levássemos outros padrões de civilização, dentro da tormenta da guerra. Aqui se fala de dois casos de arrependimento, havendo mais. Não foi suficiente saber, no regresso, que eu ia acompanhando quem aqui vivia com próteses ou outros infortúnios, e que nessa dimensão se cumpriu bem e deu atenção.
As desatenções ainda hoje me pesam, embora eu sinta algum alívio em dizê-lo publicamente.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette,
Continuo muito comovido com a sua longa carta que chegou ontem, já a li vezes sem conta, gratíssimo fico pelas suas manifestações de ternura. Não se deixe dominar pela ansiedade, dentro de breves dias indicarei a data do meu regresso, estou impaciente pela sua companhia, preciso da viva-voz para lhe falar do que tem sido a minha vida e como a sua companhia me subtrai aos desertos da alma, depois dos meus amores frustrados. Mas continuemos a falar da Guiné, como tanto insiste. Estou a desvelar os primeiros meses, apresento-lhe o meio em que me insiro, sou subjugado à pressão dos acontecimentos: é crucial remodelar o aparelho defensivo, as estacas do arame farpado apodreceram, já lhe falei dos abrigos que têm palmeiras cheias de bichos, é tudo inseguro, o lugar em que comemos, pomposamente chamado messe, é uma imundície, dentro de dias vai começar o trabalho de trolha para cimentar as paredes e ladrilhar o chão, estou ansioso que cheguem os bidões e venha um bom volume de chapas para se renovar o balneário, é para o facilitar para os homens da população civil; falta constantemente arroz, mais ou menos de 15 em 15 dias é necessário fazer uma coluna para Bambadinca e trazer a viatura com sacas, são toneladas; foi-me distribuído um auto de averiguações referente à deflagração de uma granada incendiária que feriu gravemente uma criança, tenho que fazer deprecadas, isto é, contactar oficiais, sargentos e praças de uma determinada unidade militar que aqui esteve há uns anos atrás para procurar apurar a responsabilidade de quem deixou uma granada abandonada num reboque que essa criança acionou; com os meus colaboradores reparto um sem-número de atividades que vão desde o expediente burocrático, à verificação de existências, à elaboração dos mapas de pagamentos, nunca descurando os tais patrulhamentos naquele local chamado Mato de Cão, são 25 quilómetros a qualquer hora do dia ou da noite, com chuvas torrenciais ou a fornalha do sol. E procuro resistir, há quem pense que eu sou insociável, os minutos disponíveis são para escrever aerogramas, ler, ouvir música, recordar quem sou, quais as minhas bases culturais, manter a chama acesa para o que pretendo fazer após a guerra; este agora é o meu território, sou o responsável n.º 1 pela defesa intransigente destes homens, mulheres e crianças. Daí a necessidade de com eles conviver, percorrer o interior de Missirá ou Finete, sentar-me à porta das moranças e conversar, quando é extremamente penoso para o meu interlocutor, só fala crioulo ou mandinga, peço ajuda ao Cabo Domingos Silva para interpretar, ao fim de umas semanas deste trabalho de intérprete perguntou-me se eu vou escrever algum livro sobre estas pessoas a quem pergunto de onde vêm, o que sonham fazer depois da guerra, o que eu devo fazer para as ajudar, o Cabo Domingos Silva andou numa escola de missionários e já me perguntou se eu tinha andado a estudar para padre… Daí voltar a falar-lhe neste Adulai Djaló, valoroso soldado, arranja-me problemas porque é um galanteador infrene e os maridos ou pais não estão pelos ajustes; a fotografia em que eu estou a caminho de uma operação, que como lhe disse, não serviu para coisa nenhuma a não ser para nos moer os ossos, é tanto quanto me recordo a primeira fotografia a cores que tenho desse tempo.

Chère Annette, demorei muitos anos a perceber esse sentimento tão profundo que dá pelo nome de arrependimento. Arrependimento de quê, já que estou a falar da Guiné? De não ter cuidado, nem acompanhado nem manifestar a minha presença a camaradas em provação ou apoiado a tempo e horas quem precisava de mim. Fora deste contexto destes primeiros anos de guerra, conto-lhe só aquilo que mais tarde irá ter um peso enorme do meu olhar sobre a dor e o sofrimento humano, uma mina anticarro que roubou uma vida e feriu sete soldados, escapei milagrosamente, só com o rosto queimado e os olhos em péssimo estado, um oftalmologista em Bissau fez prodígios, recuperei rapidamente.

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

Veja-me nestas obras de reconstrução, a pressão do tempo era horrível, dentro de escassas semanas ia começar a época das chuvas, estávamos a renovar abrigos, aproveitavam-se os tijolos anteriores e usava-se o material novo para a cobertura, cimentando as paredes exteriores, seguiam-se algumas instruções dadas a partir do Batalhão de Engenharia em Bissau. Alguém captou a imagem em que eu conversava com os meus soldados exatamente quanto ao bom assentamento daqueles troncos de palmeiras, eles eram conhecedores da boa técnica. Ao fundo, do lado esquerdo, está o 1.º Cabo Alcino Barbosa, um colaborador como não há memória, muito discreto, ouvindo e cumprindo, responsável por uma secção de um furriel que fazia para se ausentar em consultas médicas, um calaceiro e um verdadeiro biltre, o Alcino trabalhava noite e dia, fora assim a sua vida desde pequeno. Muito mais tarde, Annette, depois dessa mina anticarro que em 16 de outubro de 1969 alterou a vida do Alcino, que ficou com fratura no calcâneo, e depois evacuado para Bissau, jamais procurei saber dele, muitos anos depois escrevi-lhe uma carta, um documento público, expressando o meu arrependimento:
“Escrevo-te pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me tenhas perdoado a incúria de ter esquecido, de não te ter procurado como se tu não fosses o meu caríssimo Alcino por quem eu nutria uma amizade correspondida. Não sei exatamente porque te escrevo hoje, talvez por me ter aparecido uma fotografia da Capela de Bambadinca, e associei que fora junto da sua porta que tu me apresentaste. Busco alívio nesta minha confissão. Vivemos num mundo onde não há barreiras informativas para se descobrir onde tu ou eu estamos. A ver se ganho coragem e te procuro. Mas se acaso tu leres esta carta, ou alguém te falar dela, meu estimadíssimo Alcino, tal como nós dizíamos nos aerogramas, que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade”.

 Durante os trabalhos de reconstrução de Missirá, junho de 1969

Exterior da capela de Bambadinca, imagem do blogue

Continuo a falar consigo sobre o arrependimento. Aprendi que quando se comunica com um familiar a morte de um filho na guerra, há que tentar procurar suavizar a dor, evitando aspetos mais dolorosos, escrevendo sempre que o filho ou marido não sofreu muito. Pois nessa mina anticarro de 16 de outubro de 1969 morreu o condutor, com que sofrimento, praticamente todo desmembrado nos membros inferiores, dava gritos lancinantes, não havia maqueiro nem material para o socorrer, foi transportado numa padiola improvisada até Finete, eu entretanto fui a Bambadinca pedir o apoio médico, nada pôde fazer perante a gravidade das contusões, o helicóptero veio buscá-lo na manhã seguinte, levou um morto. Escrevi ao pai, procurei suavizar a morte do Manuel Guerreiro Jorge. O pai exigiu a clara certidão da verdade, uma descrição cabal dos últimos momentos. Andei vários dias a remoer a história, e quando voltei a escrever de novo menti, fora uma morte rápida, morrera na explosão da mina, e apressei-me a dizer que esperava em breve visitá-lo, no concelho de Ourique. Ele prontamente me respondeu. A vida trocou-me as voltas, não mais nos encontrámos, perpassa uma mágoa de ter faltado ao cuidado, ser solícito com quem estendia as mãos, aquele homem sabia que tinha visto tudo, aquele testemunho era tão importante, ou quase, como a urna lhe entregaram naquele ponto do Alentejo.

Annette, esta foi uma expressão de arrependimento, mas há muito mais para contar, quando, com a sua preciosa ajuda, escrevermos este livro. Ainda não me habituei a tratá-la por tu, não é estranheza, é uma ponta de pudor, vai passar, talvez já com o nosso próximo encontro. Bien à toi, Mário




(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui mais uma porção dos primeiros meses no Cuor, Annette Cantinaux insiste em saber mais pormenores, chegará mesmo ao requinte de pedir informações sobre a fauna e a flora, pede informações sobre Malam Soncó, aquele régulo do Cuor que não se deixou intimidar pelas ameaças do PAIGC, pede ao jovem alferes que lhe descreva o quotidiano, as obrigações, como subsiste a população, não hesita em perguntar a natureza da guerra, faz comentários em função do mapa do Cuor, das movimentações do autor daquelas linhas que ela recebe regularmente na Rua do Eclipse.
Da curiosidade em saber mais, a correspondência já não esconde que aquelas duas figuras da ficção que se acordara num almoço de cantina, na Rue Froissart, meses atrás, estão numa rota de aproximação, não há carta, não há telefonema que mate a sede de um reencontro em Bruxelas, e quanto mais cedo melhor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, fiquei felicíssimo quando ontem à noite me disse que está a pôr num caderno estes primeiros meses da minha vida na Guiné. Já que pretende um registo pormenorizado do que a minha memória alcança, recapitulo e continuo, a todas as dúvidas que subsistirem, a minha querida amada belga de romance pede esclarecimento, que haja toda a transparência na Rua do Eclipse…
Entrei no Cuor em 4 de agosto de 1968, já contei a profunda inquietação de ter dois destacamentos com segurança precária, tanto Finete como Missirá, abrigos apodrecidos, infraestruturas como o refeitório ou o balneário num estado deplorável, não havia gerador de eletricidade, trabalhávamos com petromax para garantir uma curta visibilidade à volta dos aquartelamentos. O régulo do Cuor ofereceu-me uma morança de piso térreo, pôs-se brita, pintaram-se os ferros da cama que tinha pertencido a um eminente cartógrafo que por ali andara a trabalhar em plantações de palmeiras de Samatra, vi o fruto do seu trabalho dias depois de chegar a Missirá, patrulhámos a região de Gambiel e eu vi um palmar paradisíaco, árvores altíssimas, quase justapostas, uma natureza frondosa atravessada pelas águas murmurantes do rio Gambiel, nesse mesmo dia vi uma linda ponte de madeira destruída pelos guerrilheiros, assim se impedindo a possibilidade de circular entre Bafatá, Geba, Missirá, Enxalé, Porto Gole, até Bissau. Foram dias, semanas, direi sem hesitação que foi um período de adaptação que durou cerca de três meses até conhecer o Cuor, ficando a uma escassa dezena de quilómetros de Madina/Belel, região onde vivia um grupo significativo da população civil e, supunha-se, um contingente militar de pequena dimensão, 60 homens com espingardas metralhadoras, bazucas e morteiros. Ninguém me informava sobre itinerários percorridos pelas gentes do PAIGC, demorei esse tempo a encontrar provas que havia circulação para lá do Geba, para localidades que davam pelo nome de Mero e Nhabijões, encontrei trilhos, granadas e carregadores de armas perdidas, e a partir destas provas iria começar um sangrento confronto, com perdas para ambas as partes.

A Annette pergunta-me como é que eu me dava com a população e com os meus soldados. Começo por lhe falar do relacionamento com os meus militares. Como se recordará, o meu Pelotão de Caçadores Nativos e a responsabilidade pelos dois pelotões de milícias estava a cargo de um furriel, com muito boas provas dadas no campo militar, vim a verificar no terreno. Mas entre nós houve imediatamente uma grande tensão.
Zacarias Saiegh
Logo na primeira noite, Zacarias Saiegh convidou-me a visitar o seu abrigo, queria oferecer-me um uísque, eu estava com o estômago praticamente vazio, tinha simulado à hora de jantar uma indisposição, pura mentira, repugnara-me a galinha quase crua e o arroz espapaçado, comera avidamente uma papaia e comprara uma lata de leite achocolatado e um pacote de bolachas. No abrigo de Saiegh deparei-me com uns frascos que me lembraram os nossos laboratórios escolares de Ciências Naturais e de Física, e com o ar mais calmo deste mundo Saiegh explicou-me que gostava de trazer relíquias quando nas operações ficavam guerrilheiros mortos, trazia um dedo, uma orelha… Sem erguer a voz, mas falando-lhe com firmeza, dei-lhe conta que tais práticas tinham acabado neste dia, viera para comandar e combater segundo normas civilizadas, em circunstância alguma consentiria em comportamentos de barbárie. Iniciava-se aqui um estado de afrontamento, passámos a ter relações respeitosas e pouco mais. No final do ano, Saiegh pediu o fim da sua comissão, voltou para Bissau, confessou-me mais tarde que não se adaptara à vida civil, assim que soube que o Comandante-Chefe, Spínola, estava a preparar a criação de uma primeira Companhia de Comandos Africana ofereceu-se como voluntário, foi promovido a alferes, encontrámo-nos várias vezes em Bambadinca, em 1969, essa Companhia de Comandos estagiava em Fá.
A despeito de tudo o que nos separava, chorei amargamente a sua morte, quando soube que tinha sido fuzilado em Porto Gole, creio que em novembro de 1977.

Deslocação na bolanha de Finete, dia de abastecimento, Zacarias Saiegh sentado no capô do burrinho

Durante este período de adaptação, fora das obrigações inquestionáveis, quis conversar com todos os militares, fossem elementos dos caçadores nativos ou das milícias. Chamara-me a atenção alguém dizer que Paulo Semedo, considerado um exímio apontador de dilagrama, era cristão de Geba. Mordido pela curiosidade, chamei-o à minha morança e conversámos. O seu português era perfeitíssimo, era estudioso, revelava uma calma inquebrantável, uma voz ciciante, um olhar direto, alguém cheio de autoconfiança.

Eu quero que saiba, agora que a nossa intimidade vai crescendo, e dado o dever que assumi com a Annette que deve estar completamente informada de tudo quanto se passou, que jamais esquecerei o dia em que o Paulo Ribeiro Semedo se acidentou. A fotografia que tem aí presente é de alguém a quem a cirurgia plástica escondeu horríveis destruições, o que mais avulta na imagem é o olhar do Paulo, houve um milagre da Oftalmologia, um dos olhos perdeu-se irremediavelmente, é aquele olho de vidro que nos olha fixamente, o outro foi sendo recuperado, daquele globo ocular saíram até pedaços de metal. Então o que se passou para ter havido tão tremendo acidente?

1.º Cabo Paulo Ribeiro Semedo
Um dia, durante um patrulhamento de reconhecimento, na região de Chicri, pode ver no mapa que entreguei, não está muito longe de Mato de Cão, ainda por cima num outro local frondoso que lembra Gambiel, com um palmar parece caminhar para o rio Geba e mais à frente uma mata densíssima. Percorríamos um terreno alcantilado quando o meu guia, o Soldado Cibo Indjai, detetou um trilho, começámos a percorrê-lo, a mata a adensar-se, pouquíssima luz entrava naquela floresta de galeria, caminhámos cautelosamente, procurando sinais de vida, ouvir vozes, mas a quietude era total, nem pássaros, nem javalis, parecia mundo abandonado, e subitamente avisto um grupo que caminha em passo estugado, à frente alguém que traz cofió na cabeça e espingarda a tiracolo, fixei a imagem de alguém que veste uma djilaba amarelada, Cibo Indjai e José Jamanca, que seguiam à minha frente, atiram-se para o lado, eu e aquele homem puxamos pela arma, inicio a fuzilaria, outros elementos atrás de mim avançam prontamente, é um tiroteio atordoador, o grupo que viera porventura de Madina dispersou, deixou o chão cheio de esteiras e sacos de alimentos, procurei iniciar uma perseguição, apanhou-se a arma daquele homem que deve ter conseguido fugir, deixou poças de sangue, aguentou os seus ferimentos e é quando estamos a tentar capturar esse e outros feridos que houve um estrondo medonho, seguida de uma enorme algazarra. Paulo Ribeiro Semedo terá cometido a negligência de ter misturado no seu carregador balas reais com balas fulminantes, ao disparar com bala real o dilagrama, não teve morte instantânea por milagre. Não lhe vou contar por carta os momentos horríveis que se seguiram, deu para perceber o ódio visceral entre guineenses e cabo-verdianos, o que é importante agora contar-lhe é que se salvou a vida do Paulo, chegou todo retalhado, crivado de estilhaços a Bissau, perdeu os músculos do braço esquerdo, braço inerte, em Lisboa salvaram-lhe um olho, recompuseram-lhe os traços da face, iremo-nos encontrar muitas vezes, nunca, repito, nunca, iremos falar do que se passou naquela manhã em Chicri. Talvez porque quando atravessamos aquela linha vermelha entre cá e lá, emerge uma atitude de pudor e profundo respeito sobre a vitória à morte, deixou de ter razão debater os comos e os porquês.

José Jamanca
Uma palavra sobre um amigo muito querido, José Jamanca, um jovem ávido de ler, vinha-me pedir livros, queria conversar, aspirava ser professor, prometi-lhe enviar uma carta para Bissau para ele ser chamado para um curso do Magistério Primário, demorou bastante tempo a resposta, o que permitiu cimentarmos uma estima mútua. Com a independência, perdi o rasto das minhas gentes, mais tarde contarei à Annette o meu regresso, vinte anos depois. Concluídos os meus estudos em Lisboa, ingressei no Ministério da Economia e um dia tive a grata surpresa de ser chamado à entrada, o contínuo anunciava que um senhor chamado José Jamanca me queria ver. Que alegria este reencontro! Depois da independência, o Zé conseguira uma bolsa para tirar em Leninegrado um curso de eletricista, era a sua profissão, na Guiné tinha um baixíssimo rendimento, viera para Lisboa, agora emprego não lhe faltava. Visitava-me com regularidade, e um dia desapareceu. Falando deste meu desapontamento a um outro querido amigo que a Annette irá ouvir falar muitas vezes, Cherno Suane, que fora meu guarda-costas por decisão dele, com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Zé morrera tuberculoso no Hospital da Ajuda. Continuo a contemplar esta fotografia que está no meu escritório e só vejo um homem bom, afável, belíssimo conversador, falando comigo de igual para igual, que desejava singrar, estudando afincadamente, era tão pedagógico que me dava detalhes sobre a montagem de uma instalação elétrica de um prédio que estava em construção no fundo da Calçada de Carriche. Todos os nossos amigos são insubstituíveis, é um lugar comum, é por isso que dói muito esta perda de alguém que pausada mas entusiasticamente queria que eu soubesse como é que a eletricidade se instala nos nossos prédios.

Gostava que a Annette fixasse estas duas fotografias que agora deixo. Este homem que sobraça uma bazuca dos tempos da II Guerra Mundial chama-se Adulai Djaló, mas é conhecido por Campino, faz questão de passear nas horas vagas em Missirá com um barrete de campino que alguém lhe ofereceu. A cobiça por um sem-número de objetos extravasa tudo o que a Annette puser na sua imaginação. Um dia bateu-me à porta o Soldado Mamadu Camará que me disse placidamente que gostava muito de uns sapatos que eu ali tinha, já que eu tinha dois pares de sapatos e só usava botas de lona ou botas de cabedal, perguntava se me podia comprar o par de sapatos a prestações, via-se à légua que ambos tínhamos uma patorra enorme. Desatei a rir, levou o par de sapatos de borla.

Quanto à última fotografia, vou a caminho do Xime, não chega o que faço no Cuor, temos que participar em operações. Neste dia, partimos para chegar a um local que dá pelo nome de Burontoni, uma boa estopada, o guia perdeu-se, andámos meio dia debaixo de uma chuva diluviana, a meio da tarde lá da avioneta recebemos instruções para voltar à base. Pela primeira vez na minha vida, subi para a caixa de um Unimog, e mesmo com a viatura aos saltos dormi uma boa soneca.

Minha querida Annette, não sabe a felicidade que me dá perceber que me entende, me quer acompanhar e que tem muitas saudades minhas, em breve estarei aí, permita-me que não lhe diga quanta alegria sinto em estar consigo. Bien à toi, chère Annette, Paulo Guilherme

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21069: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Aqui vos deixo mais um episódio em que a realidade emparelha com a ficção, torce-se e retorce-se tempos, lugares, pessoas e situações, um amplo ecrã que abarca a Guiné, Bruxelas e Lisboa, dois cinquentões que se deixam envolver numa barafunda que, imagine-se, começa numa Bruxelas da II Guerra Mundial, uma criança judia recolhida, hoje intérprete de profissão, filhos já crescidos, ela disponível para amar, e aparece-lhe aquele sujeito que veio com o pretexto de uma insinuante história de amor, com a guerra da Guiné ao fundo, os dois já embarcaram, como por magia, nessa aventura da escrita e nessa aventura dos primeiros encontros, sabe-se lá se não está para aparecer a mais inesperada das paixões...

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, respondo prontamente à sua linda missiva, que li e reli com imenso prazer. Quando olho para estas fotografias que tenho vindo a acumular ao longo dos anos, quando posso calcorrear Bruxelas sozinho ou na companhia de amigos, interrogo esta ironia de frequentar lugares, ao longo de vinte anos, e a Annette a viver ali tão perto. Quando os programas de trabalho me permitem ter para mim um dia de fim de semana, e o tempo está de feição, vagueio por essa Bruxelas que já teve casco histórico e que mudou de pele para tapar o Rio Senne, enquanto se fazia ligação ferroviária entre Bruxelas Central e Bruxelas Midi, eu vejo as fotografias antigas, e posso perceber que se fez implodir uma arquitetura em nome do progresso. As imagens que junto são apontamentos de curiosidade. Na primeira, aparece um antigo armazém de vinhos e as Armas de Portugal, a propósito do Vinho da Madeira, era muitíssimo apreciado neste Norte da Europa; igualmente imagens que bem conhece, têm a ver com os alfarrábios, os CD’s e depois imagens de arquitetura, pormenores que me cativam; e quis o destino que um dia passasse pela Rua do Eclipse, aqui está um edifício que não é muito longe do seu apartamento.



Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Bom Socorro, Bruxelas




Falávamos da minha primeira viagem para o Cuor, eu sentia-me fascinado por aquele caminho frondoso que vai de Finete para Canturé, cheia de poilões e cajueiros, mas ia muito inquieto pelo estado degradado em que encontrei Finete, além disso não apreciara as explicações dadas pelo comandante da milícia, um sujeito vaidosão que rapidamente me apercebi que saía pouco para patrulhar, faltava-lhe genica e sentido de liderança para manter o destacamento altamente seguro, como se veio a comprovar.

Eu não quero perder o sentido cronológico, ele é indispensável para que a Annette me possa ajudar no desenvolvimento da trama do romance, se a história tem pés para andar. Mas conto-lhe um episódio que ocorreu mais de um ano depois de eu viver no Cuor, e é por isso que envio um extrato da carta para se aperceber do teatro em que ocorreu um drama. Eu estava há uma semana em Finete, a acompanhar as obras dos dois novos abrigos, punha-se uma nova segunda fieira de arame farpado, substituía-se a que estava completamente apodrecida, as estacas onde se prendia o arame farpado tinham caído. Levara comigo um conjunto de militares vindos de Missirá. E quando se anunciava o fim da tarde, inopinadamente, como deve ser na circunstância de uma guerra de guerrilhas, informei que íamos montar uma emboscada na região de Malandim, era suposto que os grupos de abastecimento do PAIGC por aqui passassem, vindos da outra margem do Geba, ainda não conversámos acerca das populações sobre duplo controlo, era este o caso, do outro lado havia um local chamado Mero, onde a população de Madina e Belel trocava produtos, obviamente que informações.

Quase no lusco-fusco dispôs-se uma linha de cerca de vinte homens na horizontal, com atiradores nos extremos, a ver nos dois sentidos, fiquei em cima do trilho, anoiteceu, começaram a ouvir-se os ruídos próprios da floresta, movimentos de javalis, o piar das aves, o murmurar das águas do rio Geba. À minha direita estava um bravo soldado, Mamadu Camará, a quem julgo dever a vida, mais tarde contarei a história. Estávamos naquela letargia, aquela infindável espera, tinha anunciado que regressaríamos pela meia-noite, quando, pouco passava das sete horas, Mamadu ergue-se e grita, manda parar, levanto-me e é nesse instante que alguém que vinha seguramente em marcha apressada me abalroa, tinha a espingarda em riste, alvejei, o vulto cai a meus pés, isto enquanto se ouve uma restolhada de gente a fugir, veio-se a apurar que era uma coluna de abastecimento vinda da outra margem, largaram os mantimentos para se escapulirem pela mata. A meus pés, envolta num pano amarelado, jazia uma mulher, estava morta. É nisto que um dos meus auxiliares africanos, homem que fizera estudos em Bissau, sabe-se lá porquê, perdeu as estribeiras e começou aos gritos “Branco assassino!”, “Branco assassino!”, os outros camaradas procuravam acalmá-lo, toda aquela conversação ocorria em crioulo, e aquela acusação feria-me e trespassava-me como ferro em brasa, como era possível alguém que me via todos os dias, inserido num quartel com centenas de civis, procurando cuidar de todos com os modestíssimos recursos ao meu alcance, com as melhores relações com o régulo e com a população em geral, perder a tramontana e vociferar tão descabelada acusação?

Regressamos a Finete, pedi ao meu amigo Bacari Soncó que fosse tratar da recolha do corpo enquanto eu seguia para Bambadinca com o conjunto de homens que trouxera de Missirá, incluindo quem me acusava de ser branco assassino. Na sede do batalhão, os oficiais já tinham jantado, dirigi-me ao comandante, dizendo que se tratava de um assunto grave, precisava que ele tomasse uma decisão urgente, fomos então para o seu gabinete onde expus a situação. Ele tentava fazer uma leitura benévola, era tudo uma questão de nervos, o caso ajeitar-se-ia com o regresso à razão. A minha leitura era completamente diferente, fora desautorizado, não excluía a questão dos nervos, mas aquele homem tinha que ser detido, e prontamente, há normas no comportamento militar inabaláveis, se assim não fosse considerar-me-ia enxovalhado e desautorizado, e se o comandante insistisse na dita serenidade e palmadinhas nas costas no dia seguinte eu regressaria definitivamente a Missirá, tinha perdido as condições de comando. A discussão prolongou-se, ninguém perdeu as estribeiras, e então o comandante tomou a decisão de deter o militar. A Annette não pode imaginar o meu estado de espírito enquanto regressava a Finete e aqui estive. Dias depois, em plena parada de Missirá, tinha ordem de serviço com os dias de prisão daquele militar, sabia ser do domínio público toda aquela ocorrência e queria transmitir quer aos meus militares quer à população que fora insultado, que estava no Cuor para defender aqueles guineenses de todas as idades, e que esperava que nada de semelhante se voltasse a repetir. Anunciei que aquele militar ia regressar ainda naquele dia a Missirá, que o receberia de braços abertos, como manda a camaradagem e que queria que ele fosse muito bem acolhido por todos, ponto final numa história lamentável, todos tínhamos colhido o ensinamento. Como aconteceu, o meu relacionamento não foi afetado, ele foi um dos meus convidados para o meu casamento, em abril de 1970, está bem sorridente no filme que se fez, ao lado do Cabo Barbosa e do médico Joaquim Vidal Saraiva.

A que propósito vem esta história, Annette? Todos os anos, praticamente todos os anos, ele vem a Portugal fazer um tratamento. Esteve cá há dias, telefonou-me, recebi-o em casa, os camaradas merecem o melhor dos acolhimentos, falámos de tudo e está previsto que dias depois de eu regressar de Bruxelas aqui vai acontecer um almocinho de bacalhau para seis velhos combatentes, a velha guarda está firme. Foi a coincidência de datas, o facto de eu ter aqui a imagem dele à mão que me levou a desrespeitar a cronologia, saltei de agosto de 1968 para o presente.

Estou ansioso para me encontrar consigo. Concordo com as suas sugestões, tudo depende do tempo. Estive a pensar na sua proposta de envolvimento da história, já que começou a contar as suas origens, como foi acolhida, com poucos meses, por uma família católica residente em Marolles, ainda havia o espetro dos judeus belgas serem deportados, quando descobertos. Acho curioso para a trama narrativa e para se ir progressivamente adensando o clima passional, nessa altura, penso eu, já se passou por toda a experiência da minha guerra na Guiné, e manda a ficção que estamos disponíveis para um amor verdadeiro.

Penso que vai receber esta carta depois de eu aí chegar, ela tinha que seguir, impetuosa, pelas recordações que me trouxeram, confidências a que a Annette tem direito, já que é cúmplice neste enredo forjado pelas rodas do destino. Afetuosamente, Paulo Guilherme


Mamadu Camará


Há uns anos atrás, quando estava a preparar a edição de História(s) da Guiné-Bissau, tive a dita da fotógrafa Andrea Wurzenberger me ter oferecido um conjunto de imagens soberbas tiradas na Guiné-Bissau. Usei uma delas na contracapa, simbolizava o caminhar para a luz da esperança, aqui se publica uma outra imagem dessa coleção, com o meu profundo agradecimento.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16219: Nota de leitura (849): “A Estrela de Ganturé”, conto de Natal inserido na Revista Liber 25 de Dezembro de 1981 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,

Há surpresas impagáveis e uma delas é um sujeito ficar especado na Feira da Ladra a olhar a capa de uma revista que lhe diz qualquer coisa, não sabe bem o quê, a memória dá as suas mordidelas e, confuso, o sujeito remexe na publicação e encontra uma historieta da sua autoria escrita um pouco às três pancadas em 1981, a lembrança estava totalmente esvaída. O curioso disse tudo a que havia para ali torções e distorções em datas e lugares. Mas aquela criança, que foi possível rever cerca de 20 anos depois, fora mesmo uma estrela, iluminara a vida de um jovem alferes que vivia nos meandros do Cuor disfarçado de sentinela no Geba.

Coisas que aconteceram e assim se demonstra mais uma vez que a realidade supera em toda a linha a ficção.

Um abraço do
Mário


A estrela de Canturé 

Beja Santos

Desta feita, a surpresa deixou-me boquiaberto, folheava aquela publicação que me dizia algo, mas o inesperado de encontrar ali uma historieta minha era demasiado forte para memória tão curta. Comprei a revista e fui revendo todos aqueles acontecimentos que engendraram a minha colaboração. “A estrela de Canturé” terá sido redigida algures em Outubro de 1981.

Carlos Cruz Oliveira telefonara-me para me informar de um projeto sobre cadernos da guerra colonial, fora criada uma editora para tal efeito, Andrómeda. Que eu escolhesse os temas, se quisesse eu podia dar primazia ao consumo, falar das coisas da minha profissão, mas bom seria que escrevesse de vez em quando sobre as minhas memórias da participação da guerra da Guiné. A tudo foi dizendo sim, ao quem dera, logo que tivesse disponibilidade fazia o gosto ao dedo.

Passaram as semanas e os meses, e um dia o Carlos Cruz Oliveira lançou-me um ultimato suave, havia um número praticamente pronto para o fim do ano, insistiam num texto meu. Imprevidentemente, prometi entregar nas próximas 48 horas e dei comigo a pensar: numa revista militar para civis, simultaneamente revista civil para militares, era esta a consigna da “Liber 25”, porque não puxar pelos escaninhos da memória, trouxe-mouxe, e parturejar umas recordações não remíveis, daquelas que latejam intermitentemente para demonstrar que há memórias que não se apagam?

Sentei-me à mesa, e sem papéis de consulta, de um jato nasceu “A estrela de Canturé”:

De Missirá a Gã Gémeos, a água dos arrozais desfez a estrada, estávamos em meados de Novembro. Um daqueles riachos que vai para o Geba empapou o desgastado trilho de Finete a Bambadinca. Ficámos incomunicáveis, os enfermos da doença do sono sem médico, o municiamento ainda mais difícil, estávamos sem farinha, entregues a todas as contingências da chuva, eram colunas pedestres, já que o Unimog não podia vencer o lamaçal. Colunas diárias supliciantes, fardos às costas, cunhetes de granadas em padiolas, os doentes bamboleando-se em cadeirinhas de braço humano. E não nos aliviava saber que muitos outros, noutros sítios, viviam a mesma azáfama dentro da lama.

Foram colunas que se repetiram até àquela véspera de Natal. Para falar verdade, tive a premonição logo ao chegar a Finete, também nosso cordão umbilical até Bambadinca. A Finete que eu recordo estava nas faldas de um outeiro rochoso, outeiro escalvado numa argila dura onde, como dedos gretados de sangue, se erguiam os palanques dos sentinelas, vigiando o mato denso, ouvindo o piar lúgubre dos pássaros negros que remavam em direção ao Corubal.

Condoía-me a resignação de Finete, a sua milícia sustentando aquela posição vital, porque sem aquela retaguarda nem Missirá seria um ponto difuso no mapa, sem Finete não seríamos o tal alfinete vermelho espetado no mapa da sala de operações. Finete era um ponto de passagem antes de nos metermos ao caminho, no trilho enlameado até Bambadinca e regresso, e ajoujados de comida, munições e doentes na caixa do Unimog 404, rumávamos para Missirá.

Vamos então falar daquele menino que me aquecia o ânimo, que me encorajava a prosseguir, Abudu. Abudu era um menino deformado, um rosto lindo, no seu corpo explodira uma granada incendiária. Um dia, Malã Cassamá despiu as vestes de Abudu: dos braços esquálidos prendiam-se enoveladas cordas de pele, impedindo o crescimento natural do corpinho; nas costas, outras camadas de pele, uma teia de costuras descendo até às coxas, pele que se colava à cintura pélvica, dando o recorte ao abdómen disforme, a inchar a pletora, onde caíam regos de costura e carne arrepanhada. Mas é este Abudu o meu companheiro de trilhos alagados, é ele quem me sustenta a náusea da solidão e me incita a vida dentro da circunferência de horrores de que se faz a minha guerra, onde tenho os meus inimigos absurdos e onde há corpos desfeitos que enterramos à enxada. É Abudu quem me persigna dos irãs vingativos, é Abudu o meu último fio de música que me embala, numa véspera de Natal, por quatro quilómetros de lama com vermes, vamos apressados para organizar o dia de Natal.

É a estrela de Finete, o menino dilacerado por uma granada incendiária, que me acompanha no regatear de alimentos, nas idas às transmissões, ao depósito da engenharia, às viaturas, às munições. Abudu é este incêndio nas mãos e aquelas duas pupilas que atravessam o sol quente, saltitando ao meu lado enquanto eu desdobro morosas listas de víveres, munições, ligaduras, cimento, alicates, lençóis e fronha.

Abudu quer ir passar o Natal a Missirá, a mãe consente. E lá vamos no Unimog em direção àquela paliçada em frente a capitosas matas onde, não muito longe, se acoitam os guerrilheiros. Sento-me ao lado do condutor, Abudu por ali perto, o anjo emudecido, o meu rei de presépio, para esta noite. Sacode-me a segunda premonição, é aquele silêncio opressivo na mata, e a segunda premonição vai ser consumada: Manuel Guerreiro Jorge, natural do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, uma criança de olhos mansos, talvez um futuro seareiro, enconcha as suas mãos azeitonadas para acender o seu último cigarro. Porque logo a seguir se desfecha o enredo inextrincável, a picada abre uma garganta de dragão, fazendo estoirar naquele lusco-fusco, na curva de Canturé, um Unimog em fagulhas, corpos em estilhaços, braços dilacerantes, era um embriagado corno da morte, e eu a pensar em Abudu, meu presuntivo rei de um presépio. Quantos minutos ou segundos para eu ficar com Manuel Guerreiro Jorge transformado em tocha ardente.

Quantos minutos, segundos, que castigo para ver e sentir que uns se ferem e outros ferem, que aquele caminho aprazível para antílopes em viagem, ali se frecham irmãos e arroxeiam os corpos? Aos tombos, lá retomámos o caminho para Missirá, deixámos para trás o Unimog agonizante, somos agora uma coluna fantasmagórica, acobertados pela noite tropical num céu estrelado, a razão de ser de uma viagem ficou naquela curva de Canturé. Transportamos um moribundo e sete feridos graves, o arado desta guerra. Tarde e a más horas suplica-se um helicóptero, procura-se amenizar as dores dos feridos. Não há ânimo para a passagem de Natal, cada um recolhe-se à sua alfurja, uma casamata fria. É então que se dá o sonho ou o delírio. Inventa-se uma meia-noite de palha emplumada. A tremelicar, vai avançando para mim uma piroga festiva, Abudu acena-me, é uma estrela candente, e nesse preciso instante fecham-se para todo o sempre os olhos de Manuel Guerreiro Jorge. O que morre nasce, o que me faz estremecer alteia e eu pergunto-me, cheio de mágoa: qual o teu desígnio, Abudu, ao que vens neste teu repasto de consolação?


2. As coisas não se passaram assim, conforme as escrevi nesta historieta. Houve mina anticarro naquela curva de Canturé, mas tudo se passou no fim de tarde de 16 de Outubro. Abudu Cassamá existe, visitou-me em 1991, quando fui cooperante na Guiné. Sempre que via amigos ou conhecidos de Missirá e Finete pedia insistentemente para me trazerem notícias de Abudu. Eu vivia nas instalações da Cicer, e foi aí que ele me bateu à porta, às punhadas. Abri de repelão e dei-me com um desconhecido de cabelo hirsuto, parecia uma juba. Perguntei ao que vinha: “Sou o Abudu de Finete, quero saco de arroz, um rádio e um relógio, a vida está muito difícil na Guiné, tu tens que ser o meu paizinho”.



Pedi-lhe para passearmos, fomos a pé até Bissau, queria saber dos seus estudos, como lidava com o seu sofrimento, o que fazia, onde vivia. Ele ia respondendo aos solavancos, com respostas evasivas, insistia que eu era o seu paizinho, tinha obrigação de o trazer para Portugal, fora uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, em 1966, que lhe trouxera aquela maldição.

Contei-lhe que ele fora o personagem do meu primeiro auto de averiguações, que enviei deprecadas para Portugal continental e ilhas, instei um capitão, dois alferes, não sei quantos furriéis e primeiros-cabos a responder aos meus quesitos, nada se apurou, aquela criança tinha direito a uma compensação. E no grande incêndio de Missirá todo aquele volumoso processo ficou reduzido a cinzas. Recomeçou-se com menos ânimo, transferi o dossiê para o meu sucessor. Abudu Cassamá foi seguramente mais uma das grandes vítimas da guerra. Mas naquela noite, pressionado pelo Carlos Cruz Oliveira, deu-me para transformar Abudu em estrela, fi-lo rei de um presépio, dei-lhe o pleno poder de ser a minha paz navegante. E consegui-o.

Já me tinha esquecido desta estrela de Canturé, nos termos em que a alumiei para a revista Liber 25. Abudu Cassamá está seguro no meu coração, é uma das imagens do horror da guerra, da falta de sentido que premeia um ato negligente de deixar uma granada incendiária dentro de um reboque, numa povoação cheia de crianças.

Regresso da Feira da Ladra a olhar a capa da Liber, há qualquer coisa de familiar naquele desenho, intrigado vou ver a ficha para saber quem é o seu autor: nem mais nem menos de que Rolando Sá Nogueira, de quem fui muito amigo e nos deixou em 2002. Há estrelas que nos aproximam, depois disfarçam-se de cometas que esvoaçam no tempo e depois, inopinadamente, prantam-se diante dos olhos, iluminando passado, presente e futuro. Mal sabia eu em 1981 que 25 anos depois iria pôr em ordem toda aquela escrita e publicar o poema que dediquei a Abudu, a minha estrela de Canturé.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)