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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21343: In Memoriam (370): José Ceitil (1947-2020), natural de Vila Franca de Xira, autor de "Dona Berta de Bissau" (Âncora Editora, 2013, 200 pp.), membro da nossa Tabanca Grande, nº 816, a título póstumo (Hélder Sousa / Luís Graça)


Guiné-Bissau > Bissau > Pensão Central > 2010 > Da esquerda para  a direita:  Marta Ceitil, Dona Berta (1930-2012) e José Ceitil (1947-2020)


s/l, s/d > Marta (filha) e José Ceitil (pai)


1. José Ceitil - Homenagem

por Hélder Sousa


O José Ceitil deixou-nos! Notícia dilacerante…. Escreveu um amigo comum, o Joaquim Pedrosa, meu colega de curso na EICVFXira, mais tarde jogador de futebol no Sporting e Académica, dirigente da UDV (União Desportiva Vilafranquense) e também sócio do Ceitil num espaço de Bar chamado “Varinaice”.

Quando uma pessoa morre há tendência para nos elogios fúnebres aparecerem inúmeras virtudes. No caso do Ceitil isso não seria forçado pois as suas múltiplas qualidades e áreas por onde se moveu contribuíram para uma “história de vida” bem multifacetada e recheada de notas interessantes.

De tal modo que será difícil nesta pequena recordação/homenagem fazer referência a todas elas.

De uma entrevista concedida ao jornal “O Mirante” em 2011, e do portal livreiro Wook,  retiro algumas notas biográficas: 

(i) o Ceitil nasceu e cresceu em Vila Franca de Xira em Março de 1947 e eu em Outubro de 1948; é, portanto, cerca de ano e meio mais velho que eu;

(ii)  neto de varinos, também brincava à borda d’água desse rio Tejo como muitos outros; 

(iii) 
na sua terra, fez a escola primária; frequentará, mais tarde, o Liceu Passos Manuel e terminará o secundário na Escola Industrial e Comercial da sua terra natal;

(iv) na EICVFXira tirou o curso de formação de serralheiro, começando depois a trabalhar, aos 16 anos, como desenhador na Câmara Municipal:

(v) foi futebolista do Vila-franquense desde as "Escolas" até aos "Veteranos";

(vi) na Secção Cultural do clube, à época, um espaço de liberdade, estudo e debate de ideias, iniciou-se na militância cívica, aos 15 anos, como colaborador e participante nas atividades que aí tinham lugar:

(vii) fez, como voluntário,  4 anos de tropa na Força Aérea;

(viii) depois da tropa, viajou até  Londres para desenvolver o inglês; aí trabalhou onde era possível (na época os portugueses, italianos e gregos estavam “destinados” a fazer trabalhos domésticos) e assim foi empregado de mesa num restaurante dum hotel, porteiro de discoteca, chefe de uma brigada de limpeza num colégio;

(ix)  entretanto, cerca de nove meses depois, recebeu carta da TAP onde se tinha inscrito após o serviço militar, passou os testes, entrou na Empresa onde esteve por mais 36 anos.

(x) desse tempo ele recordava, em vida,  as situações mais difíceis, como comissário de bordo, da ponte aérea nos tempos da descolonização, em que algumas vezes em Angola esteve perto da morte; considerou que nessa época a capacidade de resposta de Portugal para transportar pessoas para a “metrópole” foi exemplar e que se pode dizer que se trata de um dos grandes feitos da capacidade lusa de resolver problemas.

(xi) em 1974 foi fundador do Cineclube Vila-franquense;

(xii) foi fundador, dirigente e colaborador da APTCA (Associação Portuguesa de Tripulantes de Cabine), onde se iniciou na escrita para as revistas Voo e Aérius;

(xiii) publicou o seu primeiro livro em 2007, a novela "Vidas Simples Pensamentos Elevados", e em 2008 o ensaio "Sejam Felizes".

Ao longo dos anos as nossas vidas foram sendo vividas com pontos de contacto de que mais se destacam as colaborações no Clube da nossa terra, fosse no campo desportivo (ele mais no futebol onde tinha méritos e eu mais ligado ao hóquei em patins) fosse na estreita colaboração na Secção Cultural da UDV, sendo que ele também fez parte Direcção do Cine-Clube Vilafranquense.

Anos mais tarde, agora já no século XXI, houve um apelo ao ressurgimento e assim alguns amigos então retomaram em mãos as rédeas da UDV para tentar recuperar, resgatar e reerguer a colectividade.

É desse tempo que foi criada uma comissão para produzir um “Manifesto da Memória da Secção Cultural da UDV”.

Numa das nossas sessões de trabalho notei que ele estava pensativo, até apreensivo, e após algumas “inquirições” fiquei a saber que isso se devia ao facto da sua filha mais nova, a Marta, ter decidido incorporar um programa de formação e voluntariado na “nossa” Guiné. 

Claro que na ocasião todos os conceitos e preconceitos sobre a Guiné, problemas reais e também alguns empolados, lhe causavam angústia, mas não queria interferir nas decisões que a filha tinha tomado. Tivemos então algumas conversas, procurei relativizar as coisas, deixei algumas indicações sobre como chegar à ONGD AD, do nosso amigo Pepito (1949-2014),  em caso de necessidade.

As coisas foram correndo, geralmente bem, de modo que depois da missão inicial a Marta repetiu e também depois continuou com outras tarefas, que lhe influenciaram de tal modo que ainda hoje se refere à Guiné como a “segunda Pátria”.

O Zé, “intrigado” com tal estado de espírito resolveu ir ver “in loco” e então rumou a Bissau. Deve também ter bebido “água do Geba” pois tendo ficado na “Pensão Central” acabou por escrever um livro dedicado à “Dona Berta de Bissau” (2013).



Capa do livro "Dona Berta de Bissau",
Lisboa, Ãncora Editora, 2013, 200 pp.


Capa do livro do livro "Clube de Futebol Os Belenenses: 
100 Anos de História", Âncora Editora, 2019 , 454 pp.


Capa do livro "Sejam Felizes!"... 
Edição: Tecto de Nuvens, 2008, 152 pp.


Capas de alguns dos livros do José Ceitil, 
disponíveis no portal livreiro Wook (, com a devida vénia...)


Não se poderá dizer que se trata de um escritor de grande produção mas escreveu vários livros, para além desse da Dona Berta, nomeadamente: (i) uma história de “Os Belenenses” de que era simpatizante e associado; (ii)  um livro a que deu o título de “Vidas Simples Pensamentos Elevados”, como que uma orientação para uma conduta séria e responsável, título esse que foi como que uma homenagem a um outro amigo comum entretanto falecido, o Carlos Macieira, que costumava dizer essa frase mas antecedida por “Luta Dura”: (iii. também escreveu um outro livrinho, simples mas muito profundo, como que um legado antecipado às suas filhas, intitulado “Sejam Felizes” e que foi utilizado no passado domingo aquando das cerimónias fúnebres.

Para terminar, que já vai longo, atrevo-me a repetir aqui as palavras que a Marta entendeu por bem colocar no seu “Face” e que se trata duma pequena mas significativa memória do Zé Ceitil.  Escreveu ela:

“Minha filha, a procura do sentido da vida não é para todos. A maioria ou não sabe o que isso é, ou vive tão mal que nem tem tempo para pensar, ou então limita-se a sobreviver sem questionar nada. Agora, como estás a descobrir, a vida nem sempre parece fazer muito sentido! A questão do poder e o seu exercício por oligarcas defensores de interesses particulares sobrepõe-se à organização da sociedade de forma a satisfazer as necessidades essenciais dos povos. Sei que acreditas demasiado nas pessoas e no bem… e isso preocupa-me porque sei que vais sofrer… mas mil vezes assim do que seres céptica. Sem abandonares os valores em que acreditas, os sonhos e as utopias, tens que aprender a viver com estas realidades”

Trata-se da resposta do Zé Ceitil à então consternação e profunda tristeza pela qual a Marta estava a passar pela sua “terra do coração” quando se estava perante a tentativa de golpe de estado (mais um) na Guiné-Bissau em 2010.

Fico por aqui nesta minha homenagem/recordação a este meu amigo.

Hélder Sousa

  

2. O José Ceitil tinha já, à data da sua morte, uma meia dúzia de referências no nosso blogue, nomeadamente como pai da Marta Ceitil,  amigo do Hélder Sousa e autor do livro "Dona Berta de Bissau".

 Não conheci pessoalmente o Zé Ceitil. Mas,  pelo que já antes havíamos publicado no nosso blogue, é um típico representante da nossa geração: um bom homem, uma pessoa que se fez a si mesma, um cidadão proativo, um amigo do seu amigo, e que, além disso, por amor da filha Marta,  se tornou também um amigo da Guiné e do povo guineense.

Agradeço ao Hélder Sousa a bela e justa evocação que faz do seu grande amigo, conterrâneio e colega de infância. De resto, ele lembra-nos que "o Zé Ceitil foi colega do Zé Brás como comissário de bordo da TAP e acho que também ainda foi contemporâneo do João Sacôto".

Apresento à Marta e demais família Ceitil os nossos votos de pesar pela perda do pai e parente. E por tudo o que aquilo que já aqui foi dito, tomo a liberdade de propor a integração deste nosso amigo, o José Ceitil,  na Tabanca Grande, a título póstumo. O seu lugar é o nº 815. O  seu exemplo de vida inspira-nos e honra-nos.

Foto da preparação da candidatura à Direcção da UDV para 2009-2011

 

Foto da Mesa na apresentação pública do “Manifesto da Memória da Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense” em 2011

Fotos (e legendas): © Hélder Sousa (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legedagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor:

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10670: Agenda cultural (235): Lançamento do livro Dª Berta de Bissau, de José Ceitil, no dia 21, 4ª feira, pelas 18h00, na sede da CPLP, em Lisboa, Rua de São Mamede (ao Caldas), nº 27, com atuação do músico Mamadu Baio, natural de Tabatô (José Ceitil / Hélder Sousa)


1. Mensagem,com data de 10 do corrente, enviada por José Ceitil:



Boa noite, Luís Graça
Junto convite e o pedido de divulgação no seu blogue. Seia um prazer contar com a sua presença.

Cumprimentos, José Ceitil.





Página de rosto do blogue Pensão D. Berta Bissau, criado em 21 de agosto de 2008, por uma das suas "netas", a Mónica Rodrigues:

Cantinho da Avó Berta na Net!... Finalmente um ponto de encontro no ciber espaço para todos os que passaram pela Pensão Central da D. Berta e têm saudades da Avó, da sopa de ostras, da cachupa, das omeletes de camarão e do Alves, é claro!!!!! E que querem divulgar a Pensão Central a outros que vão a Bissau!"... 




Guiné-Bissau > Bissau > Pensão Central, da Dona Berta, uma verdadeira instituição, com direito a foto na Wikipedia, the free encyclopedia... Ver aqui a entrevista que a Dona Berta, aos 80 anos, deu, em Cabo Verde, ao Expresso das Ilhas, em 15/8/2010.

2. Comentário do nosso colaborador permanente, Hélder Sousa, com data de 11 do corrente, a pedido do editor L.G.:


Olá,  Luís:
Estou sempre na esperança de 'ter tempo', mas isto está difícil...

Pois, relativamente à divulgação deste evento, a apresentação/lançamento do "Dª. Berta de Bissau", acho que não ferirá muito a sensibilidade dos que reclamam, com alguma pertinência, é certo, haver recentemente muita divulgação de acontecimentos de carácter cultural que, aparentemente, não estariam no que eles entendem ser o âmbito do Blogue.

Não conheço o conteúdo do livro mas sei que pretende ser a história de vida da Dª. Berta, concomitante da "Pensão Central". O título escolhido de "Dª. Berta de Bissau" parece-me feliz e permite 'visualizar' o conteúdo, marcando-o bem.

Nessa perspectiva considero uma justa iniciativa, bem merecida, já que tanto o estabelecimento como a pessoa que lhe dava, e dá ainda, rosto, estão no imaginário de muitos dos nossos camaradas que 'fizeram a guerra', hospedando-se lá, circulando por lá, fosse em regime mais demorado fosse em alojamento de passagem. 

Já depois da independência é a "Pensão Central" um local incontornável no que respeita ao apoio e identificação de muitos que por foram e estiveram em regime de cooperação.

E ainda hoje assim é. O autor, o meu conterrâneo, amigo e colega de Escola Técnica de Vila Franca de Xira, o José Ceitil, é um homem que gosta de retratar a vida que vê desenvolver-se à sua volta. Tem um outro pequeno livro a que deu o título de "Vidas Simples, Pensamentos Elevados", sendo esse título uma homenagem a um amigo comum, falecido precocemente, Carlos Macieira, que deve ter sido colega de curso em medicina, mais ano menos ano, do Caria Martins, e que a costumava usar com uma outra expressão antecedente: "Luta Dura, Vidas Simples e Pensamentos Elevados", preconizando assim um modo de estar, uma fórmula para 'bem viver'.

O Zé Ceitil, pai da Marta Ceitil que já leva mais tempo de vivência na Guiné do que nós nas nossas comissões, naturalmente que foi visitar a filha à Guiné, várias vezes, para ver 'in loco' como a 'caçulinha' vivia e o que a 'prendia' àquele país, mesmo com todas as dificuldades e perturbações que sabemos e daí a conhecer, estar e aprender com a Dª. Berta foi um passo. Se se acrescentar que a sua sensibilidade o levou a entender a importância da "Pensão Central" e o papel da Dª Berta e o levou a passar ao papel esses sentimentos, somado ao facto de também conseguir 'ver' a Guiné com olhos que não exclusivamente os da desgraça, aguardo com expectativa pelo conteúdo do livro.

Abraço
Hélder Sousa





Mamadu Baio, foto do Facebook

(...) "No estilo afro-mandinga, este músico da Guiné-Bissau, traz a tradição de griots e os instrumentos tradicionais (balafon, kora, djambé, dundumbá, etc.) da sua aldeia Tabatô. Mamadu esteve no Mali a gravar um cd de originais, no estúdio Moffou de Salif Keita, com o seu grupo Super Camarimba. Este conjunto dinâmico de jovens artistas de Tabatô utiliza instrumentos e estilos de dança tradicionais, desenvolve técnicas novas que combinam diferentes influências musicais, promove as tradições “Afro-mandinga” dos seus anciãos em atuações na Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Senegal e Gâmbia. Neste momento Mamadu Baio encontra-se em Lisboa por três meses para se desenvolver musicalmente e conhecer outros artistas com quem possa trocar experiências e promover o trabalho dos Super Camarimba." (...) [Fonte: Lisboa Africana, 12/3/2012].

Recorde-se aqui que o João Graça, membro da nossa Tabanca Grande e da banda musical portuguesa Melech Mechaya (, neste momento em digressão por Cabo Verde e Brasil, no âmbito da 20ª edição do Festival Sete Sois Sete Luas),  conheceu, em finais de 2009, a  mítica Tabatô (que é, na Guiné-Bissau, a tabanca que tem mais músicos por metro quadrado) bem como os Super Camarimba, de que o Mamadu Baio faz parte.

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de novembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10664: Agenda cultural (234): Série "A Guerra", de Joaquim Furtado, RTP1 , às quartas feiras, 22h30: os três G, Guidaje, Guileje, Gadamael, em maio/junho de 1973 (Pedro Lauret)

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10136: Cartas do meu avô (12): Décima carta: a casa das Quintãs, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)



Região de Tombali > Catió > 2009 > Meninos de Catió... Muitos anos depois de lá estado o J. LMendes Gomes,  há uma jovem portugesa, cooperante e membro da nossa Tabanca Grande,  Marta Ceitil, que escreve o seguinte sobre a sua estadia  a Catió, em mail de 3 de setembro de 2009:


(...) "Segunda-feira viemos para Catió. A viagem foi tranquila, tinham-nos dito que ia ser horrível que as estradas estavam más... nada disso foi mesmo 'Shanti Shanti'. Catió fica no Sul da Guiné e é lindo, lindo. Aqui sim, sinto e vejo a Guiné que idealizei: paisagem verde, que contraste com o castanho das tabankas. Aqui as pessoas são bem mais calmas, parecem alentejanos. Estamos muito bem instaladas, na Missão Católica. O Padre Maurício (italiano) é uma personagem, muito bem disposto, tem 60 anos, e tirando o meu pai, é dos homens mais charmosos que alguma vez vi na vida (...). , Para além do seu aspecto físico faz umas massas óptimas. Está na Guine desde 1973 e é um espectáculo ouvir as suas histórias. A missa também é qualquer coisa…, primeiro é dada em crioulo e depois a música é tocada com djambés. Segunda-feira começamos a dar a formação aos professores. Este vai ser o nosso maior desafio, mas acredito que vamos dar conta do recado" (...)


Foto: Marta Ceitil (2009)




A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes,  membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos].

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)



B. DÉCIMA CARTA > A casa das Quintãs


>O apartamento de Azurva, embora razoável, era reduzido para a família. Tínhamos três filhos e queríamos ter outro. Sem perder tempo.


Naquele tempo, o custo das casas subia a olhos vistos. Se pensávamos em mudar de casa deveria ser depressa.Punha-se então, um problema. A casa de Azurva continuava sujeita às condições fixadas pela CGA, no primeiro empréstimo. Por mais dois anos, não poderíamos aliená-la livremente.


Comecei a lutar com a tentação de descobrir a forma como poderia dar-lhe a volta, sem ter problemas. Não tinha muitas pessoas com quem me pudesse abrir. Até que ponto a letra daquele contrato,  forjado nos míopes e opressivos tempos salazarentos, sem qualquer justificação actual, consistente e razoável, ainda era tida em conta pela CGA?


À letra, estaria a violar o contrato, se vendesse secretamente e ficasse com o lucro. Obrigar-me a aplicar o lucro na compra de outra habitação, necessária, ainda se justificaria. Perdê-lo em favor da CGA, isso não. Ora eu, como jurista responsável, não podia recalcitrar. Poderia pôr em jogo o meu posto de trabalho, se o fizesse.


Um dia, enchi-me de coragem e liguei para a única pessoa que conheci na CGA, com olhos arejados e que me pareceu homem de confiança. Era um segundo director, que tinha vindo do Banco de Angola,  como retornado.Estava na direcção já havia uns anos. Sabia bem como as coisas funcionavam.




Expus-lhe a questão claramente. Eu não pretendia fazer negócio com o caso. Queria apenas mudar depressa para uma moradia, a nosso gosto. Que desse para a família toda, actual e vindoura. Ele foi claro.
- Ó Mendes Gomes, esteja à vontade. Ninguém vai sobre si. Garanto. Não será o primeiro.


Mesmo assim, tive dúvidas. Era muito arriscado. Pensei noutra saída. Um novo filho vinha já a caminho. Um rapaz. Nasceria em Dezembro de 1980.

Entretanto, calhou que o irmão da nossa mulher a dias , acabava de regressar, de vez, do Brasil, devido à grande insegurança que lá se sentia. Estava farto de ser assaltado, de dia e às claras. Precisava de arranjar uma casa. A irmã, porque sabia, falou-lhe que talvez nós a vendêssemos. Que havia uns problemas mas tudo se poderia resolver.

Ele veio falar-me. Estava disposto a comprá-la , pagando tudo a pronto, se eu quisesse.
- Mas, podemos escrever um papel, o sr. É advogado- sabe bem como. O que eu quero é seriedade. Que não me falhe…Também lhe digo já: seria capaz de lhe dar um tiro na cabeça se faltasse à sua palavra…disse-mo ele naquele jeito próprio dum brasileiro que vinha lá do Rio de Janeiro, onde era pior que viver na selva.

Fiquei a pensar. Com um contrato promessa de compra e venda, poderia satisfazer as condições básicas, sem ofender o contrato. A venda real só se efectuaria daí a dois anos. Até lá, pagar-me-ia por mês uma importância igual à que eu tinha de pagar à CGA e esta importância abateria ao preço fixado.

Todo eu tremia de pavor quando, um dia, assinamos o contrato. Terei envelhecido uns bons anos naqueles dois que se seguiram, apareceram-me os primeiros e imensos cabelos brancos nas barbas e na cabeça, passei muitas horas da noite, em claro, sempre à espera de ser chamado à responsabilidade. Sempre à espera do pior. Que houvesse uma denúncia. Principalmente, quando a Filial era visitada pela inspecção.

Ainda hoje estou para saber se a CGA na sede, teve conhecimento. Penso que sim. Haveria gente na filial bem capaz de me denunciar…e se ufanar com a minha demissão.

Fosse pelo que fosse, nunca ninguém pediu contas. A situação objectiva justificava-a bem. E, não havia ninguém que fosse capaz de me acusar de corrupção, por um único centavo ou minúsculo favor remunerado. Enquanto toda a gente sabia de muitos que o faziam… às claras.

Dum momento para o outro, apareceram carros de luxo, pagos a pronto, não se como…em quem, notoriamente, não ganhava para tanto.
A casa das Quintãs era uma moradia nova, geminada, com quatro quartos, garagem e um bom quintal.  Ficava no meio rural. Rua do Sol  [,Vd. Google > Maps]  era o nome da rua onde ficava.

Certo, na escolha. Ali, os miúdos puderam conviver com outro mundo. Seguiram, sem dar conta às sucessivas tarefas de quem tem de tirar da terra o pão para comer. Desde o lavrar dos campos com tractor, ao pestilento adubar da terra à moda antiga, ao esverdear das searas de milho e ao seu amadurecimento. As carradas de bois, a esbordar de erva ou feno para o gado, o gado a pastar, o leite quentinho a sair das tetas das vacas da vizinha, ao pequeno almoço e a manteiga que dele se tirava... O corropio nas bicicletas à solta pelas veredas, os papagaios multicores, em plástico a voar ao vento...

Enfim um sem número de novas vivências que nunca mais esqueceram. Nela podia receber a visita dos avós, sempre que o quisessem, com muita felicidade para todos nós e p’ra eles.

Ali abri o meu escritório de advogado. Fui procurado por muitas pessoas.Alarguei assim e pus em prática outras vertentes do meu curso. Com proveito material e
imaterial. Os filhos cresceram. Entraram nas universidades e foram à sua vida. J.L.

J. L. Mendes Gomes
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Ponte de Lima > 8º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima > Jardins de Comer 7 de junho de 2012 > Algumas fotos... para se repensar os conceitos de cidade, campo, jardim... e um convite para visitar. Até outubro de 2012. "Há quem veja a árvore / e nunca descortine a floresta; há quem veja a flor / e nunca descubra o jardim" (LG)...

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.

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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9346: Tabanca Grande (317): Anabela Pires, voluntária no projeto Ecoturismo do Cantanhez, nossa tabanqueira nº 536, aqui saudada pelo Hélder Sousa

1. A Anabela Pires [, foto à direita],   mais uma amiga da Guiné-Bissau,  aceitou o nosso convite para integrar a nossa Tabanca Grande, como se depreende do comentário que deixou no poste P9325 (*):


Caros camarigas:


Obrigada, do fundo do coração, pelos vossos votos, pelas vossas cartas/mapas, pelo livro do Jero, que estou a ler.


Ainda nada fiz, só estou para embarcar, com sorte na próxima 6ª feira, dia 13 [de janeiro de 2012, a caminho de Bissau e depois Iemberém, Cantanhez, Região de Tombali].


Quando estava no aeroporto para embarcar, no dia 6, o que não sucedeu, recebi de uma amiga um livro de Paulo Freire, 4ª edição de 1984, intitulado Cartas à Guiné-Bissau (**). Na contracapa li "....o verdadeiro sentido da ajuda, aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente, crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar. Assim, o ato (a ajuda) não se distorce em dominação do que ajuda sobre o que é ajudado."


Terei esta frase sempre presente e a minha ajuda não será, neste sentido, fácil, uma vez que vou trabalhar no projecto ecocantanhez, [da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento]. Há que ter, em primeiro lugar, presente a realidade, os intereses da população mas também a noção de qualidade dos "clientes", provavelmente provindos de culturas bem diferentes. Haja "engenho e arte"!


Bem, ao fazer este comentário, acabei por aceitar, muito antes do que tinha previsto, o honroso convite para me associar à Tabanca Grande! (***)


Um abraço para todos(as),


Anabela Pires


2. Elogio da nova tabanqueira [, nº 536,]   feita pelo colaborador permanente deste blogue, Hélder Sousa [, foto à direita,], em comentário ao poste P9325 (*):


Caros amigos:

Esta notícia que o JERO [, José Eduardo Oliveira, ] nos enviou, com todos os ingredientes que a compõem, bem assim como as achegas que vieram dos comentários, tem várias coisas que são notáveis.

A primeira é, obviamente, a decisão de Anabela Pires em ocupar a sua reforma em algo que lhe é útil (também) mas em que dirige os seus conhecimentos, saberes e força de vontade em algo que enriquece quem toma esse tipo de atitudes e que é o de 'ajudar os outros'. Provavelmente o seu nascimento em África pode ter contribuído para o 'apelo' mas acho que o 'contágio' com a Guiné explica-se através do que foi referido sobre os contactos e os conhecimentos.

Depois, serve também para sabermos como os problemas burocráticos, as necessidades de 'afirmação' de pequenos peões se acabam por agigantar e complicar o que pode ser simples. Nem toda a gente tem a paciência necessária para enfrentar essas contrariedades, o que, felizmente, não é o caso de Anabela Pires.

Saltando por cima de mais algum outro pormenor sublinho agora o comentário que a Anabela faz em que toca exactamente no ponto essencial do que deve ser (ou não) uma atitude correcta em termos de cooperação. É isso mesmo!

Já tinha lido num relatório de actividades da AD alguma posição crítica à forma como algumas 'cooperações' foram feitas e como disso nada resultou e às vezes 'antes pelo contrário' e a chave do sucesso é sempre o que a Anabela acabou por citar. Igualmente o mesmo tipo de conclusão já me tinha sido feito chegar pela a minha amiga Marta [Ceitil] aquando dos seus relatos como cooperante onde se apercebeu perfeitamente dessa situação de troca de conhecimento e de reciprocidade de ganhos.

Do meu ponto de vista a Anabela está no caminho certo, vai ter sucesso na sua actuação e vamos ter conhecimento de várias situações relatadas ao vivo e actuais.

Boa viagem e bom trabalho.

Quanto ao JERO, o mesmo de sempre. Grande sensibilidade, bom 'olho' para os bons valores e sempre aquela disponibilidade desinteressada que o caracterizam.

Abraço. Hélder S.
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Notas dos editores:


(*) Vd, poste de 7 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (JERO)

(**) FREIRE, Paulo  [1921-1997] - Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Sinopse: Escrito e compilado em 1976 e 1977, este livro é o registro do primeiro ano de trabalho de Paulo Freire na construção de um modelo de alfabetização de adultos em Guiné-Bissau, então recém-independente. Através da correspondência trocada entre o educador e a Comissão Coordenadora dos trabalhos de alfabetização em Bissau, o espírito de colaboração e de transformação da realidade que norteia o pensamento de Paulo Freire nos incentiva a olhar para a África, histórica e socialmente tão próxima de nós. [Fonte: Editora Paz e Terra].

Ficha técnica:
Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro 
2011
5ª edição
264 páginas
Formato: 13,5 x 20,8 cm
ISBN: 9788577531899
Brochura
R$ 39,90

(***) Último poste da série > 3 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9307: Tabanca Grande (316): Vasco da Gama foi operado ao coração, mas está já em casa em convalescença

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8470: Em Busca de... (166): Precisa-se de depoimentos para fazer a História da Pensão Central da Dona Berta (Hélder Sousa / José Ceitil)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 24 de Junho de 2011:

Caros camarigos
Em anexo envio-vos um "apelo" que me chegou por um amigo, um vilafranquense, o José Ceitil, pai da Marta Ceitil, jovem cooperante e trabalhadora na Guiné e de que já vos enviei algumas das suas experiências na "terra sabi".

Esse "apelo", como podem ler, tem a ver com a tarefa a que ele se propôs, de fazer a "História da Pensão Central" e para tal pretende obter mais alguns depoimentos de camaradas que por lá tenham passado, que tenham as suas recordações 'em dia' e que não se importem de as partilhar.

Se entenderem que tem cabimento, peço então que o façam ter visibilidade.

Abraço
Hélder Sousa

Era assim a Pensão Central em 1997, fora retocada, pintada de branco imaculado, agora está de azul e há muita ferrugem à mostra. Ainda é possível andar num destes táxis azuis, com um ou até quatro passageiros. Importa não esquecer o bem que aqui se fez a quem chegou com fome e à procura de abrigo, de todas as partidas do mundo (foto retirada do site: www.guinee-bissau.net, com os devidos agradecimentos).


Apelo para contributo para a história da “Pensão Central”

Caros camaradas, amigos e outros
Calculo que não é estranho para nenhum dos que “vivem” ou visitam este nosso espaço que uma figura incontornável da História da Guiné-Bissau, da actual mas e principalmente da ‘do nosso tempo’ é a figura da D.ª Berta, intimamente ligada à “Pensão Central”, em Bissau.

Julgo ser do conhecimento geral que a D.ª Berta se encontra bastante doente, que veio há alguns meses (já este ano, salvo erro) para Portugal, que está em tratamento, que se tem aguentado, embora a ‘lei da vida’ não permita alimentar esperanças de eternidade, pelo menos ‘nesta vida’.

Deste modo, um amigo meu, José Ceitil, de seu nome, que também teve o previlégio de conhecer essa grande senhora em Bissau aquando das visitas que fez à sua filha Marta (da qual já dei conta aqui no Blogue de algumas das suas observações enquanto cooperante e trabalhadora na Guiné) e que ganhou por ela uma estima e consideração notáveis, propôs-se fazer a “História da Pensão Central”, partindo das suas memórias.
O José Ceitil é autor de um livro comemorativo dos 90 anos de “Os Belenenses”.

O objectivo deste apelo é para que todos aqueles que tenham como referência a “Pensão Central”, com a memória de episódios ali vividos, ou o relacionamento com a D.ª Berta, que possam e queiram, que entrem em contacto com esse amigo a fim de se poder considerar o contributo para o conteúdo da “História”.

Para além dos que se voluntariem a fazer esse contacto há, para já, um grande interesse em encontrar o “Comandante Pombo”, de que o José Ceitil me disse a D.ª Berta falar bastante, assim como um tal “Cartaxo”, que não sei exactamente se é nome próprio ou referência à eventual terra de origem.


Guiné-Bissau, 18 de Novembro de 2010 > A Avó Berta e Mário Beja Santos.
 Foto de Mário Beja Santos, com a devida vénia

Para contactar o José Ceitil pode-se usar o mail joseceitil@gmail.com

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8336: Blogues da nossa blogosfera (44): Construção da Ponte de S. Vicente - Guiné Bissau, um Blogue formado por trabalhadores de uma empresa de construção civil, hoje com saudades da Guiné-Bissau (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8442: Em Busca de... (165): Malta do BCAV 757 “Sete de Espadas”, BCAÇ 4514/72 e Pelotão de Caçadores Nativo 64, Bafatá (Mário Fitas)

domingo, 13 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6587: A Guiné aos olhos das actuais gerações (5): Primeira semana de trabalho em Catió (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

1. Mensagem de Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 11 de Junho de 2010:

Caros camaradas
Na continuação dos relatos anteriores da experiência de uma jovem portuguesa envolvida em acção de voluntariado em formação na Guiné-Bissau no Verão do ano passado, aqui deixo agora o resultado da 1.ª semana ocorrida no início de Setembro de 2009.

Podemos apreciar (e talvez avaliar) o choque sofrido quando as formadoras contactaram com a realidade em que tinham que desenvolver o trabalho, a forma superior como resolveram as contrariedades, os ganhos obtidos com as iniciativas.

Um abraço para toda a "Tabanca".
Hélder Sousa
Fur. Mil. TSF

Jovens de Catió

Giovanni


A GUINÉ AOS OLHOS DAS ACTUAIS GERAÇÕES (5)

Primeira semana de trabalho em Catió

Hélder Sousa / Marta Ceitil

No que diz respeito aos relatos das experiências da jovem Marta Ceitil, envolvida com outras três companheiras de aventura (Telma, “Xana” e Andreyna), nas acções de formação desenvolvidas por voluntários no âmbito dos “Projectos de Voluntariado para a Cooperação” (com divulgação no blogue NÔ DJUNTA MON), que na prática é também o veículo de divulgação das acções efectuadas, e que resultam da promoção efectuada pela Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento, o Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária (www.isu.pt), dizia eu que esses relatos levaram-nos até Catió, no início de Setembro do ano passado, local onde se iria desenrolar nova acção de formação.

Dos relatos anteriores tomámos conhecimento de como progressivamente Marta (e presumo que também as outras companheiras) foram tomando contacto com as novas realidades em que estavam inseridas, de como foram reflectindo sobre as suas experiências e de como haviam ganhos recíprocos. Ensinar e aprender.

Isto é sempre assim, se estivermos atentos e despidos de preconceitos. Em circunstâncias dessas, se se quiser, aprende-se sempre. Também como concluímos dos escritos anteriores o êxito dessas acções de trabalho (e de outras, tal como pudemos ler no Relatório da AD), está essencialmente na atitude, não se ser “inter rail” mas sim estar lá de corpo inteiro.

Neste relato das acções de Catió, que a seguir se apresenta, cobrindo a 1ª semana de trabalhos, chamo particular atenção para o choque que representou a descoberta de que os locais de trabalho (o edifício da escola, o quadro, as carteiras) não eram bem como sempre tinham como dados adquiridos (“eram de lama!…”) e a forma, quanto a mim muito criativa, como resolveram e ultrapassaram esses aparentes obstáculos e até os transformaram em motivos de empenhamento dos professores.

Esse relato está datado de 9 de Setembro, e foi o que se segue:

Data: 9 de Setembro de 2009

Assunto: Boletim Informativo de Catió - Marta Ceitil vira quase Balanta!

Olá
Kuma ki bó stá? Portugal sta diretu?


Estamos em Catió quase há duas semanas e parece que já cá estamos há um ano. Catió é lindo de cortar a respiração, mas não se passa nada... Por um lado temos muita sorte por estarmos na Missão Católica, temos água, electricidade, espaço para trabalharmos e comida com fartura, incluindo doces. Por outro, temos regras, horários, muito tempo livre e somos vigiadas 24 horas sobre 24 horas. Sentimo-nos como se estivéssemos numa gaiola dourada. Continuo com o mesmo princípio: propus-me a esta experiência, eu quis isto, estou a crescer a cada dia que passa e por isso mesmo quero tirar o máximo partido de tudo o que estou a ver, a sentir e a aprender. Até porque, infelizmente o tempo está a passar rápido demais, falta menos de um mês para regressar. Quantas e quantas vezes em Portugal, nos picos do trabalho, não pensei: “quem me dera ter tempo para mim”. Pois bem, agora tenho e decidi optimizar este tempo para tratar de mim, corpo e mente.

Na primeira semana que passou estivemos a preparar a formação e a ambientarmo-nos a esta vida. Fomos passear com o Padre Maurício ate a uma Tabanka que se chama Mato Farroba, não quero dizer nenhum disparate, mas acho que no tempo da Guerra Colonial era um sítio privilegiado de esconderijo dos “Turras” (combatentes guineenses). De qualquer maneira vou investigar e depois confirmo. Em Mato Farroba fomos visitar a escola, onde alguns dos professores a quem nos vamos dar formação costumam dar as suas aulas aos alunos de ensino básico. A escola tem duas salas, construídas com lama e com palha a servir de telhado. Os bancos e as mesas também são feitos com lama, e não existe um quadro na sala. Senti um aperto no coração... como é que é possível? Claro que me questionei o que e que eu estou aqui a fazer? Que raio de sentido e que a formação que nós vamos dar tem para estes professores, quando eles precisam bem mais do que pedagogia? Eles precisam de uma sala que não se dissolva com a chuva, precisam de bancos, mesas, cadeiras, quadro, sei lá...precisam de tudo o que eu sempre dei por adquirido e que só hoje dou valor. Passados estes minutos iniciais de choque, de revolta e de confrontos com estas duas realidades, percebi que a nossa vinda aqui faz sentido e que posso contribuir de alguma forma. Como? Só temos de ser criativas. Ok, não há quadro, não há bancos, e então? Decidimos que na nossa formação vamos só usar materiais da terra, mostrar que o que tem podem utilizar recursos didácticos que iram facilitar o ensino dos seus alunos. Nem imaginam o desafio que tem sido..., temos feito coisas tão giras, o nosso mais recente bébé é um ábaco com paus, linha e sementes de pinha, ficou liiindooo!!!

A Formação está a correr bem, os professores estão maravilhados com o que podem fazer com os materiais da terra, e apesar de estarem formatados para darem aulas como se ainda estivéssemos no “Estado Novo”, tem reagido positivamente a nossa iniciativa. Ainda temos mais duas semanas de trabalho com eles e acredito que ainda me vão surpreender muito.

Para além da formação tenho ocupado o meu tempo a tratar de mim, todos os dias vou correr 1 hora. Nunca gostei de correr, mas aqui com esta paisagem no meio das tabankas é brutal. Ao inicio as pessoas ficavam muito surpreendidas, e algumas crianças vinham a correr atrás de mim a dizer: “Curri Branco Pélélé”!!! lolol!!! Mas agora já estão habituadas e não me ligam nenhuma.

Chego a casa e junto-me a elas, Andreyna, Xana e Telma para fazermos Yoga e fazermos a nossa sessão de dança. Todos os dias dançamos uma música tradicional da Guiné.

No outro dia vinha da feira para casa, e aparece um Balanta que me acompanha o caminho todo. Os Balantas são a Etnia predominante da Guiné-Bissau e os Homens balantas caracterizam-se por usarem um barrete encarnado (símbolo que fizeram o fanado que é um ritual tradicional que marca a passagem do jovem adolescente para adulto).

A nossa conversa foi qualquer coisa, ele mal falava crioulo só mesmo o seu dialecto, mas lá nos conseguimos entender. Então, o meu amigo Balanta queria que eu fosse a sua mulher e tivesse 8 filhos. Eu só me conseguia rir, e dizia-lhe que não podia, que já tinha marido e filhos, e depois o que seria deles, coitadinhos sem mim, lol! Depois passámos pela casa dele, e lá me apresentou a família. Afinal já tinha mulher, os 8 filhos, queria só que eu fosse a outra mulher! Mesmo “á lá Guiné!!” Já me estava a imaginar a escrever um livro cujo o titulo seria: ”Casei com um Balanta”! Mãe, Pai, estou a brincar!!

O Giovanni que já cá está há 3 anos, tem-me ajudado a perceber melhor as diferenças e características entre as várias etnias, e por isso já sei algumas palavrinhas, no próximo mail o cumprimento já vai ser em Balanta.

É também Graças ao Giovanni que temos tido momentos no mínimo hilariantes. Ele é completamente avariado da cabeça, e não tem problemas nenhuns com isso, diz, faz o que pensa e quer. No outro dia estávamos todos os almoçar com o Padre, e ele aparece na sala em tronco nu, com uma folha de Palmeira a tapar as partes íntimas a dizer que era o Adão! LOL Surreal!! Este é só um exemplo, isto é assim sempre e a toda a hora.

Bem, acho que este mail já esta a ficar para lá de grande por isso vou-me despedir com muitos beijinhos cheios de saudades.

Mantenhas pa bós
Da vossa Badjuda di Guine
Marta Ceitil

**********

Volto a interrogar-me: que se pode dizer quanto a isto?

Sei que a experiência, em todos os aspectos, foi altamente importante para a Marta. Como já vos disse anteriormente, no fim destas acções de formação a Marta e companheiras regressaram a Portugal mas a Marta (pelo menos) voltou para lá onde ainda se encontra actualmente e cada vez com maior segurança daquilo que quer.

Nesta experiência em Catió teve a possibilidade de reflectir sobre as diferenças entre realidades diferentes, cada qual com as suas características próprias e com ‘janelas de oportunidade’ para se fazer bom trabalho, assim se queira; teve também a experiência do “encontro” com o balanta que queria acrescentar mais alguém ao seu harém; teve a possibilidade de observar a vida da comunidade.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6443: A Guiné aos olhos das actuais gerações (4): Primeiras impressões de Catió e viagem até Bubaque (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6443: A Guiné aos olhos das actuais gerações (4): Primeiras impressões de Catió e viagem até Bubaque (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

1. Mensagem de Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 29 de Março de 2010:

Caros camaradas Editor e Co-Editores
Em anexo vos envio o 4.º relato das experiências de 'formação' de Marta Ceitil, para integrarem, caso entendam, na série respectiva.

Este IV documento relata a ida para Catió, depois das aventuras em Mansoa.
Há um fim-de-semana com viagem até Bubaque, descoberta dos encantos das ilhas e depois a chegada a Catió, com o alojamento na Missão Católica.

Estas são as primeiras impressões... depois virá o trabalho... e as dificuldades e as perplexidades, com as consequentes interrogações e o abalar de 'certezas' adquiridas... mas isso fica para o próximo relato!

Um abraço
Hélder Sousa


Fotos de Catió


A GUINÉ AOS OLHOS DAS ACTUAIS GERAÇÕES (IV)

Primeiras impressões de Catió e viagem até Bubaque


por Hélder Sousa / Marta Ceitil

No seu anterior mail, do final de Agosto, a Marta tinha-nos dado conta como correu a sua experiência em Mansoa. Os avanços sua aprendizagem, os preconceitos quanto à questão de trabalho com jovens ‘militares’, a comovente e inesquecível festa de aniversário que os formandos e amigos lhe proporcionaram. Tudo isto, tendo sempre como base uma atitude que só pode ser classificada como correcta e a única que verdadeiramente funciona: está lá para ensinar mas também muito para aprender.

É essa a chave do sucesso. E é curioso como se pode perceber, pela leitura do “Relatório de Actividades da AD”, na pág. 30, a propósito das actividades das “ong”, como os guineenses entendem certo tipo de ‘colaborações’ e a sua esterilidade, exactamente no sentido do que atrás se disse. Reparem:

“Outro dos aspectos notáveis destes tempos modernos, é o da tentativa de descredibilização da competência dos quadros nacionais, como forma de justificar o envio de rapaziada nova, recém-cursada, sem experiência alguma de terreno, sem dominarem minimamente os conceitos teóricos e práticos do desenvolvimento e que apenas são ouvidos porque ao chegarem ao país, metem a mão no bolso, puxam pela carteira, metem-na em cima da mesa e, do alto da sua sobranceria e deslumbramento, clamam: chegou o Pai Natal!

Vamos distribuir fundos!

É uma rapaziada do tipo “inter-rail”, passeiam pelo mundo inteiro sob o chapéu do subdesenvolvimento, estão sempre de passagem, não chegam a conhecer nada e nada aprendem, convencem-se que o mundo começou com eles, que eles são o big-bang e permitem-se dar aulas técnicas a quem passou a vida a queimar pestanas e que têm a modéstia de reconhecer que o muito que ainda têm de aprender será…com aqueles que sabem.
Afinal, cada tempo tem o seu colonialismo… e o seu combate.”


Não acham que está bem caracterizado? Pessoalmente gostei bastante da classificação da “rapaziada tipo ‘inter-rail’…. que passeia pelo mundo sob o chapéu do subdesenvolvimento, sempre de passagem …. não chegam a conhecer nada e nada aprendem …. e convencidos que o mundo começou com eles”. Um mimo!

Agora, depois da experiência de Mansoa, a Marta vai para Catió. Iremos tomar conhecimento de como o trabalho, a formação, irá decorrer, com as suas vicissitudes e a superação expedita das dificuldades, dos seus ganhos emocionais, mas entretanto ficamos por uma visita a Bubaque e a viagem e chagada a Catió, com as primeiras impressões.

Espero que os camaradas que andaram por Catió possam reconhecer e corroborar as impressões que a Marta nos vai trazer.

Esse mail, datado de 3 de Setembro, foi o que se segue:


Subject: Catio: novas aventuras do sul da Guiné
Date: Thu, 3 Sep 2009 11:45:54 +0000

Olá :)

Kuma di kurpo? Kuma di Galinha? Kuma di trabajo?

Já estamos em Catió e aqui a saudação é ligeiramente diferente. Mais uma vez peço desculpa pelos erros ortográficos, mas estes computadores continuam a ser um mistério para mim, este é italiano, ainda é pior.

No fim-de-semana fomos para as Ilhas, Bubaque. A viagem de 4 horas foi no mínimo surreal: uma “tempestade gigante com ondas do tamanho do mundo”, passei quase todo o tempo enjoada, não sei se pelas ondas, se pelo o cheiro da aguardente de cana que todos os que iam no barco estavam a beber. Tirando esta viagem tudo o resto em Bubaque foi brutal. Comemos muito bem, fizemos praia, fomos sair à noite onde tivemos oportunidade de assistir a um concerto de um músico famoso (não me lembro do nome) mas quem em vez de cantar, faz playback e dança muito…

Já estamos a ficar especialistas na Batida (Kizomba) no Decalé, Gumbé e no Kuduro :)

Segunda-feira viemos para Catió. A viagem foi tranquila, tinham-nos dito que ia ser horrível que as estradas estavam más... nada disso foi mesmo “Shanti Shanti”. Catió fica no Sul da Guiné e é lindo, lindo. Aqui sim, sinto e vejo a Guiné que idealizei: paisagem verde, que contraste com o castanho das tabankas. Aqui as pessoas são bem mais calmas, parecem alentejanos.

Estamos muito bem instaladas, na Missão Católica. O Padre Maurício (italiano) é uma personagem, muito bem disposto, tem 60 anos, e tirando o meu pai, é dos homens mais charmosos que alguma vez vi na vida :) Para além do seu aspecto físico faz umas massas óptimas. Está na Guine desde 1973 e é um espectáculo ouvir as suas histórias. A missa também é qualquer coisa…, primeiro é dada em crioulo e depois a música é tocada com djambés. Segunda-feira começamos a dar a formação aos professores. Este vai ser o nosso maior desafio, mas acredito que vamos dar conta do recado.

Connosco na Missão Católica está um rapaz italiano o Giovanni que é a maior personagem que alguma vez conheci. Tem 26 anos, e está na Guiné há 3 anos. Ficou por Catió e agora ajuda o Padre Maurício na horta. O Giovanni é baixinho, gordinho e parece o Pai Natal. No outro dia fomos com ele de carro ver a Horta, e no rádio começou a dar Madona - Material Girl, o que é que foi aquilo? Parecia louco, a cantar e a dançar como se não houvesse amanhã. Surreal, nem consigo descrever. Na Horta, quisemos ajudar, pegámos nas enxadas e começámos a cavar, não sei bem para quê. Esta minha experiência durou 15 minutos, além de ter ficado exausta tive o meu primeiro encontro imediato com uma cobra. Desta vez não fiquei calma, desatei aos berros e fugi para o carro e só saí lá de dentro quando chegámos a casa.

Enfim... tenho tantas histórias ainda para contar, mas fica para depois. Continuo encantada, e cada vez a gostar mais disto. Sinto-me mais tranquila e de bem comigo própria. Nunca tinha estado assim...em paz. Também estou a gostar de sentir que estou a aproveitar cada momento desta experiência e a tirar o máximo partido dela.

Bem, por agora é tudo, na próxima semana envio mais notícias.
Beijinhos grandes com muitas saudades :)
Marta Ceitil



Que se pode dizer quanto a isto?

Podemos perceber como a Marta emprega sempre um entusiasmo, uma alegria, uma atitude de “gostar do que faz”, em tudo quanto observa e relata. E a franqueza e aparente ingenuidade dos relatos de algumas passagens só dão mais autenticidade às mesmas.

Apenas para que possam compreender como toda esta experiência ‘de Verão’ foi importante, revelo que a Marta depois de ter regressado a Portugal no início de Outubro passado, já se encontra de novo na Guiné, agora desenvolvendo trabalho no âmbito dos “Médicos del Mundo” que não deixaram de aproveitar todo o seu entusiasmo e gosto por aquela terra e aquelas gentes.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6260: A Guiné aos olhos das actuais gerações (3): Estou feliz e estou grata por esta oportunidade (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

domingo, 2 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6299: Ser solidário (66): A minha homenagem à jovem Marta Ceitil, cooperante na Guiné-Bissau (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado* (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 28 de Abril de 2010:

Para a Jovem Marta

Li com muita curiosidade o texto da jovem Marta Ceitil**.
Leiamos, companheiros e camaradas da nossa Tertúlia, com atenção.
A jovem demonstra, como outros jovens que encontrei nas minhas andanças pela Guiné-Bissau depois da guerra, e durante alguns anos, abnegação, coragem, amor, solidariedade, sacrifício. Admiro-os, àqueles que vão em demanda do outro, daqueles que sofrem, mas que sofrem e têm sempre um sorriso de esperança e de gratidão. Vi jovens professores, enfermeiros, psicólogos e outros, caminharem pelas picadas, para Mansoa, Bula, S. Domingos - que sei eu? E no fim-de-semana vinham à capital cheios de canseira, mas sempre com um sorriso nos lábios…e lá estava a D. Berta para os receber como filhos ou netos.


A D. Berta – ela que me perdoe muito, pois fiquei de lhe escrevinhar… não sei fazer história… algumas das sua belíssimas e antigas aventuras e algumas desgraças na terra onde derramou a sua vida e saúde. Para Si, Mãe Berta, Dona da Pensão Central, um abraço…porque sempre recebeu estes jovens com carinho…

Para Si, Marta, a minha homenagem. Por tudo de belo que fez e que viveu. Para os mansoenses uma palavra de muito carinho…
É que me fez lembrar os jovens que comigo calcorrearam as matas e as bolanhas, perdidos numa guerra fratricida, imposta – jovens que gostaríamos de ter ajudado a construir, não a destruir… Ainda que fôssemos generosos, a guerra era terrível…

Marta, já imaginou o que era estar num aquartelamento com algumas dezenas ou centenas de homens que, mal saíam o arame farpado, estavam a levar no corpo, jovens que tinham sangue na guelra e que sofriam… ali num qualquer buraco construído para protecção…

Obrigado pela sua abnegação. Eu sei o que isso representa.

Paulo Salgado
Ex-Alf Mil Op Esp
CCAV 2721
1970-72
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6218: O 6º aniversário do nosso blogue (14): Homenagem ao Blogue e aos Mendes que nos acompanharam (Paulo Salgado)

(*) Vd. último poste de Marta Ceitil de 27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6260: A Guiné aos olhos das actuais gerações (3): Estou feliz e estou grata por esta oportunidade (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

(*) Vd. último poste da série de 28 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6263: Ser solidário (65): Solidariedade não é caridadezinha (Juvenal Amado)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6260: A Guiné aos olhos das actuais gerações (3): Estou feliz e estou grata por esta oportunidade (Hélder Sousa / Marta Ceitil)

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 29 de Março de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores
Em anexo envio o terceiro documento da série que me propus colocar com a experiência da Marta Ceitil em terras guineenses.

Depois de Bissau, agora foram duas semanas de formação em Mansoa.

Acho interessante o relato com os locais e a 'população-alvo' das acções de formação.
É igualmente comovente a forma como conseguiram criar-lhe um ambiente envolvente para o seu primeiro aniversário passado afastado da família.

É curiosa a forma como a aprendizagem e o progressivo (re)conhecimento da Guiné e dos guineenses vai moldando o sentir desta jovem.

Calculo que muitos dos nossos camaradas 'atabancados' tenham igualmente passado por um processo semelhante, em termos de aproximação à terra e às suas gentes, e se revejam agora nestes relatos, com 'histórias em tempos de paz' (relativa, é certo!).

Um abraço
Hélder Sousa


A GUINÉ AOS OLHOS DAS ACTUAIS GERAÇÕES (III)

Estou feliz e estou grata por esta oportunidade


Hélder Sousa / Marta Ceitil

No seu anterior mail, datado de 9 de Agosto, a Marta já tinha tido oportunidade de revelar os avanços da sua aprendizagem, de como eles funcionaram em género de ‘terapia de choque’ e como isso a estava a ajudar a crescer.

Agora vamos tomar conhecimento como correu a acção seguinte, em Mansoa. Chamo a atenção para o tipo de acções de formação, para os temas e para o ineditismo de envolver militares, com sessões no quartel-general e na discoteca. Imaginem isso cá!

Acresce ainda o facto do aniversário da nossa narradora ter ocorrido durante esse período, o que também a marcou de forma indelével, como poderemos constactar.

Esse mail, datado de 25 de Agosto, foi o que se segue:

Subject: Já lá vai quase 1 mês: saudades!!!

Date: Tue, 25 Aug 2009 19:49:07 +0000

Olá :)

Kuma ki bo mansi?? Esta é a minha preferida, significa: como é que amanheceste?

Chegámos hoje a Bissau, estivemos estas duas semanas em Mansoa, que fica no interior a 1 hora de caminho. Mansoa é conhecida também pelo seu quartel militar que é o segundo maior do País. Sempre que acontece alguma coisa na Guiné foi arquitectado em Mansoa.

Políticas e guerras à parte, amei Mansoa. Foi quase uma colónia de férias "à lá Guiné". Estivemos na Escola Nacional de Voluntariado, com 250 jovens de todo o país. Ficámos a dormir com eles em camaratas.

A adaptação aqui custou um bocadinho mais, andávamos a queixar da nossa residencial em Bissau, aqui... bem passámos de um Hotel de 5 estrelas para a tabanka. Não há casas de banho com sanita, é um buraco. Para tomarmos banho, tínhamos de ir buscar água ao poço todos os dias e tomar banho à caneca. A minha adaptação demorou um dia, assim que entrei no ritmo adorei. Gostava do ritual de ir buscar a água com as mulheres e colocar o balde na cabeça (esta parte não me correu bem, não me consigo equilibrar com aquilo), tomar banho ao ar livre é brutal, principalmente à noite sem electricidade. Lavamos a nossa roupa com a água do poço, no primeiro dia em decidimos lavar, foi um acontecimento social: 4 brancas a lavarem a sua roupa, até tiraram-nos fotos e tudo!

Outra parte interessante, é ver a minha evolução em relação aos bichos: todas as noites era eu que inspeccionava o nosso colchão, e rede mosquiteira. Qual baratas voadoras, sapos, ratos, minhocas, qual quê, nada disto me faz impressão. Também ainda não tive nenhum encontro com uma iguana, a ver vamos se mantenho a mesma postura.

Entretanto apanhei outro ‘estaladão’ invisível. Eu tinha um preconceito enorme em relação aos militares, andava na rua e cada vez que via um mudava para o outro lado da estrada e nem sequer olhava ou cumprimentava (na Guiné toda a gente se fala, diz bom dia e kuma?). Pois bem, uma das áreas de actuação da RENAJ (a entidade parceira com a qual o ISU trabalha), é precisamente ‘desconstruir’ esta ideia à volta dos jovens militares e aproximá-los da juventude civil. Neste campo de férias, estiveram presentes 5 mulheres e 10 homens militares. 5 deles foram meus formandos (3 mulheres e 2 homens) e foi brutal ver a minha reacção inicial, desconfiada de tudo, e depois ver como me deixei ir. São pessoas como eu, e como qualquer outro Guineense, pelo menos ali naquele contexto. São mais inteligentes do que alguma vez eu pensei que fossem, e esta nova geração está mesmo empenhada nesta aproximação entre militares e civis, o que para mim faz todo o sentido, e querem ter uma participação activa na sociedade através do movimento associativo.

Em relação à formação, correu bem. Foi dada pelo Evaldo que é um animador em Saúde Sexual Reprodutiva dos Médicos do Mundo. O meu papel aqui foi orientá-lo ao nível pedagógico, trabalhar e preparar as sessões com ele, pensar nos métodos que ele iria utilizar para que os formandos assimilassem bem os conteúdos da formação. No entanto, dado o tema da formação e visto eu ser mulher, acabei por intervir mais do que ao que devia na formação, pois todos queriam que eu falasse da minha experiencia e trouxesse exemplos e comparasse a realidade da Guiné com a de Portugal. Adorei falar sobre este tema, não me senti nada incomodada, no fim de cada sessão ficavam todos à conversa comigo para tirar dúvidas ou simplesmente falar sem tabus. Tivemos uma componente prática: os formandos tiveram de fazer uma campanha de sensibilização para as doenças sexualmente transmissíveis, com especial enfoque no HIV/SIDA, na discoteca de Mansoa junto dos jovens e no Quartel-General junto dos militares. Ambas correram muito bem e mais uma vez ficou o sentimento de: "Missão Cumprida"

Quanto ao meu dia de anos, não quero ferir susceptibilidades, mas este foi sem sombra de dúvida o melhor aniversário de sempre. Os meus formandos e não só, os restantes jovens das outras turmas passaram o dia inteiro a preparar-me uma festa, pois queriam que eu me sentisse em casa, e não ficasse triste por não ter a minha família e amigos ali. Só para contextualizar, nós estávamos numa escola, não há cozinha, a comida era-nos chegada pela Missão católica, pelo que preparar o que quer que seja envolve ir à tabanka e arranjar lá tudo o que for necessário. A minha formanda Emília, passou a tarde toda a fazer bolos para os 250 jovens. À noite preparam-me uma festa que tinha um apresentador, e eu era a convidada de honra. Fizeram-me uma peça de teatro que representa o meu percurso de vida até chegar ali, escreveram-me cartas, dançaram para mim, fizeram um discurso brutal... Claro está que não consegui reter as lágrimas chorei baba e ranho.

Em anexo seguem algumas fotos, estou quase uma preta da Guiné;)

Hoje foi o último dia e foi uma choradeira pegada. Nem quero imaginar como vai ser o dia em que me for embora para Portugal. Mas... uma coisa de cada vez, agora estou aqui.

Bem por agora, é tudo. Até sexta-feira vou estar em Bissau, depois vou para Bubaque, e segunda Catió. Estou sem telemóvel agora, não conseguimos carregá-lo, mas como dizem os guineenses: "Parece que vamos conseguir arranjar uma solução"

Beijinhos grandes com muitas saudades.

P.S - Caso o meu mail não tenho sido claro nesse sentido, deixo aqui o meu testemunho: Estou feliz, nunca, mas nunca tinha experimentado este tipo de realização e estou grata por ter esta oportunidade.

Marta Ceitil



2. Volto a perguntar, o que se pode dizer quanto a isto?

Acompanhando estes relatos podemos lembrar as nossas próprias experiências: o contacto com a fauna (mosquitos, baratas voadoras, sapos, ratos, minhocas, etc.), a aprendizagem do ‘banho à fula’, os sanitários ‘arejados’, enfim, ainda se lembram?

Depois não tenho palavras pare exprimir o que penso que ela deve ter sentido com a situação de passar o seu aniversário longe da família, pela primeira vez, e do que as colegas e alunos fizeram para suprir essa falta, contribuindo com o carinho e o envolvimento de todo o grupo de tal modo que afinal esse aniversário foi tornado inesquecível.

No texto a Marta faz referência ao ISU, entidade de que darei mais indicações proximamente.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF

Mansoa > Escola Nacional de Voluntariado

Mansoa

Mansoa > Aniversário

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Mansoa > ENV > Cantando o hino da Guiné

Mansoa > ENV > Turma de saúde sexual reprodutiva

Mansoa > Escola Nacional de Voluntariado

Mansoa > lavando a roupa

Mansoa > Escola Nacional Voluntariado
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6219: O 6º aniversário do nosso blogue (15): Seis anos de vida! É Obra! Vamos reflectir (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 3 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6099: A Guiné aos olhos das actuais gerações (2): Sinto que estou a aprender e a crescer na Guiné-Bissau (Hélder Sousa / Marta Ceitil)