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sábado, 16 de outubro de 2021

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21473: Agenda cultural (759): Apresentação do livro “Nunca digas adeus às armas (Os primeiros anos da Guerra da Guiné)”, por António dos Santos Alberto Andrade e Mário Beja Santos, Edições Húmus, dia 26 de Novembro de 2020, pelas 18h00, no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de S. Domingos, Lisboa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos, 

As Edições Húmus acabam de publicar "Nunca Digas Adeus às Armas (Os Primeiros Anos da Guerra da Guiné)" de que são autores António dos Santos Alberto Andrade e eu próprio. 

Anexa-se capa da obra e dois textos provavelmente elucidativos da substância do trabalho. Os autores tudo farão para que haja apresentação pública, mas estamos naturalmente atentos à aspereza deste ciclo da pandemia que recomenda as maiores cautelas em participações como seja a apresentação de um livro, haverá que cuidar da segurança de todos. 

Peço-vos a amabilidade de ajudarem os autores na divulgação da obra, tudo começa com um poema popular, a história em verso do Batalhão de Cavalaria n.º 490 de que um dos co-autores foi militar, o outro co-autor descobriu o poema e pôs muita gente na sala de conversa, deliciado, e procurou desvelar as estratégias militares utilizadas pelos Altos Comandos durante este frenético período de ofensiva da guerrilha. 

Tivemos a grata anuência do Sr. General Alípio Tomé Pinto para fazer apresentação da obra, vamos ver o que nos reserva a pandemia. 

Falta analisar em profundidade o período de 1966 a 1968, que se saiba não há trabalhos universitários neste domínio, restam os importantes documentos das campanhas de África da responsabilidade do Estado-Maior do Exército, que se revelam a única documentação rigorosa do lado português. Mas como tem sido insistentemente dito, o aclaramento da verdade sobre os acontecimentos iniciados em 1961 (e mesmo um pouco antes) carecem da consulta minuciosa dos arquivos dos ministérios da Defesa e do Ultramar, empreitada a que, tanto quanto se sabe, ninguém se afoitou.

Um abraço do
Mário

********************

Texto da badana da contracapa:

Um acaso feliz, ter chegado à "Missão Cumprida"[1]

Vasculhar em lugares de venda de livros usados é uma operação que requer curiosidade, paciência e determinação: amar os papéis, sejam livros, revistas ou folhetos, a ponto tal que a paixão não tem limites nem faz férias; saber que há horas de sorte e sair dos estabelecimentos ou das vendas ao ar livre sem nenhum amargo de boca se acaso não se encontrou naquele dia e naquela hora nada do que se procurava; e não ceder descaradamente às grandes tentações de exceder as compras fora do que se procura, sob pena de uma dispersão exaustiva.

Naquele dia e naquela hora, nos baixos do Palácio da Independência, despertou-me a atenção um livrinho de poesia que nem referia a Guiné na capa, houve mesmo que folhear até se perceber que ao autor tinham sido oferecidas grandes aventuras, incluindo a famosa Operação Tridente, em 1964, quando as forças portuguesas procuraram desalojar a guerrilha do PAIGC na Ilha do Como. Houve desalojamento, sol de pouca dura, faz parte das regras do jogo em guerrilha que se bate e foge, e muitas vezes foge-se para de novo bater.

Lido e relido à exaustão o testemunho do bardo, singelo, um rico veio de poesia popular, deu-se uma tormenta que inspirou pôr toda esta poesia numa ampla sala de conversa, Santos Andrade, sem se ter havido nem achado foi posto em confronto com inúmera gente que fez recruta e especialidade, que sofreu emboscadas e flagelações, que padeceu pelos seus mortos e feridos. 

Creio, sem vaidade nem lisonja, que o deixei feliz no produto final desta tormenta; e que o leitor, entusiasmado por estas peripécias que ocorreram entre 1963 e 1965, os primeiros anos da guerra da Guiné, saboreará com tanta gente a perorar numa imensa sala de espelhos, ouvir-se-ão tiros e suspiros de saudade até ao resgate final, quando se perceber que a missão fora cumprida, ainda não se sabendo que haveria, até ao último dia das suas vidas, memória daquela camaradagem, lembrança de naquelas terras todos ali se terem feito homens.

********************

Texto da contracapa:

Guerra da Guiné: não é falsificação, é danoso esquecimento

A historiografia da guerra da Guiné é geralmente omissa (ou estranhamente parcimoniosa) na resposta dada pelas forças portuguesas, na eclosão da guerrilha, logo no início de 1963. Estão identificadas as etapas do levantamento do nacionalismo guineense, os seus atores principais e secundários, a organização do PAIGC na clandestinidade e a metódica preparação que Amílcar Cabral imprimiu aos jovens responsáveis que mandou preparar na China e noutras paragens. Metódica e eficaz, tão avassaladora que deixou estupefactos os comandos militares, tanto na Guiné como em Lisboa. 

Em escassos meses, o PAIGC instalou-se na região Sul, infiltrou-se nas matas densas do Oio/Morés, atravessou o Corubal, de ano para ano passou do armamento incipiente para mais temível, a usar minas anticarro, bazucas e morteiros, não lhe foi indiferente a artilharia antiaérea. 

Era uma guerrilha de gente motivada, que não recuou a intimidar e a aterrorizar os guineenses hesitantes. Em 1964, dera-se uma clara separação das águas, mesmo ao nível das etnias guineenses. A historiografia apresenta por vezes os dois primeiros oficiais-generais (Louro de Sousa e Arnaldo Schulz) como maus condutores da resposta, líderes impreparados para aquela experiência de guerra de guerrilhas face a um inimigo que somava mais vitórias que derrotas. Falamos numa historiografia que reduz a escassos parágrafos o modo como combatemos entre 1963 e 1968, insinua-se mesmo que só se cometeram asneiras.

Os documentos ao nosso dispor revelam que é tudo falso, ou quase. Sabe-se que a mitologia em torno do oficial-general “salvador”, chegado em 1968, assentou numa clara reprovação da condução da guerra até então. Ninguém fala nos meios que foram oferecidos a Louro de Sousa e Arnaldo Schulz que, está historicamente comprovado, informaram rigorosamente Lisboa de tudo quanto se estava a fazer, que pediam muito mais condições para contrariar a avalanche intimidadora da guerrilha. 

De algum modo, aqui se procura, a pretexto de uma genuína poesia popular para contar a história do Batalhão de Cavalaria N.º 490, evidenciar a natureza da resposta e não é difícil concluir que houve sagacidade e lucidez na aplicação dos meios existentes, modestos, postos naquele teatro de operações. Ocupou-se território, ajudou-se as populações, houve um esforço desenvolvimentista dentro de uma economia caótica, nunca se escondeu que de ano para ano a guerra era cada vez mais difícil, e que naqueles primeiros anos se vinha muito impreparado, era tudo um mundo desconhecido, hostil, sem instalações, combatendo com armas antigas.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21134: Tabanca Grande (496): Gonçalo Inocentes, ex-fur mil, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490: de rendição individual (1964/65), natural de Angola, reformado da TAP, escritor... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 810


Guiné > Bissau > Brá > c. 1964/65 > o fur mil Gonçalo Inocentes,  angolano, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423 e pela CCAV 488, entre 1964 e 1965

Fotos (e legendas): © Gonçalo Inocentes  (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem Gonçalo Inocentes, que passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 810

Data: terça, 23/06/2020, 14:47



Luís, encantado com a recepção (*).

Fui mobilizado em rendição individual em Abril de 64 como furriel. Fui direitinho da EPC [, Escola Prática de Cavalaria] em Santarém para a CCAÇ 423 em S. João.

Como eles já tinham um ano de comissão,  eu fiquei e fui a seguir colocado na CCav 488 [Bissau e Jumbembem, 1963/65]. Quando eles cumpriram o tempo, eu já tinha mais de 16 meses,  pelo que  acabei por regressar com eles sem ter cumprido os dois anos. Tive sorte.

Regressei a Angola, onde nasci [, em 1940], para exercer a profissão de Regente Agrícola.

Quatro  anos depois fiz a agulha e passei-me para a aviação. O meu primeiro trabalho foi voar para os quarteis do norte para fazer reabastecimentos. Acabei na linha aérea (TAAG) e, com a descolonização,  acabei na TAP onde permaneci até ser apanhado por um enfarte cardíaco o que me levou para a reforma.

Aí comecei a escrever, editando a história da Escola Agrícola de Santarém. Depois a história da Sociedade Agrícola da Cassequel, onde trabalhei como técnico [, e onde também trabalhou o Amílcar Cabral, em 1956, como engenheiro Agrónomo].

Depois editei a história de um naufrágio, em 1724, na ilha de Porto Santo, de um galeão holandês. 

Editei também um livro de arte e poesia em coautoria com uma artista, bem como um de poesia escrito por um tio falecido. Em espera e já escritos tenho a minha história na aviação, a influência das mulheres no meu percurso de vida, uma viagem desde o mar do Norte até Vilamoura em veleiro de 10 m, o restauro de um veleiro clássico. 

Assim, meio resumido,  aqui vai o meu percurso.

Como página do meu livro da Guiné, atendendo ao período que estamos agora a passar, envio um bem curioso, sem qualquer tiro.

Quanto a livros podem ser vistos alguns no Google em Gonçalo Inocentes (Matheos).

Como fotos segue uma da Guiné tirada no quartel de Brá e outra actual.
É bom ficar abrigado na grande tabanca.

Outro alfabravo
Gonçalo


2. Comentário do editor LG:

Camarada Gonçalo, depois de um primeiro poste (*), e da manifestação da tua vontade em ficar "abrigado" sob o nosso poilão (simbólico, as fraterno, mágico, protetor...), cabe-me completar a tua apresentação à Tabanca Grande, conforme mail que já te enviei ontem,

Passamos a ser, contigo, 810, os camaradas e amigos da Guiné... 10% infelizmente já não estão, fisicamente, entre, são aqueles bravos que já partiram para a última viagem...

Camaradas são os de armas, amigos são familiares de ex-combatentes (viúvas, filhos, irmãos), e alguns guineenses ou gente especialmente interessada pela Guiné e pela guerra de 1961/74 (investigadores, etc.). 

Temos gente das 3 armas, e da grande maioria das unidades que passaram pelo CTIG. Partilhamos memórias (e afectos). Temos algumas regras, simples e consensuais, que é pressuposto aceitares tacitamente

Faço a tua apresentação, com os elementos que me mandaste, incluindo o pequeno excerto do teu livro ), que reproduzo abaixo).

Vai dando notícias e manda mais colaboração: se achares oportuno podemos abrir uma série para ti, com pequenas histórias / memórias de 1964/65... Ou outras, que achares por bem, de "outras guerras".

Boa saúde, boas escritas, e que os bons irãs da Tabanca Grande te protejam,
Luís Graça


PS - O alferes miliciano  e escritor Armor Pires Mota, é também da tua da CCAV 488. Natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada, onde nasceu em 1939, honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande onde tem quase uma centena de referências, Lembras-te dele?

O alferes Santos Andrade escreveu, em verso, a história do BCAV 490. Podes encontrar no blogue muitos postes com excertos do livrinho, cuja capa se reproduz (, imagem à direita). Lembras-te dele?

Temos apenas meia dúzia de referências à CCAÇ 423... Mais de 3 dezenas à CCAV 488. Vais gostar desta foto, abaixo reproduzida, que eu presumo tenha sido tirada em Jumbembém


Guiné > Região do Pio > Jumbembem > CCAV 488 (Bissau e Jumbembem, 1963/65) > Emblema da CCAV 488, desenhado com "garrafas de cerveja"... Foto do 1º cabo  Augusto Mota,  especialista em material de segurança cripto, hoje a viver  no Brasil,  que, pelas funções no QG, nunca saiu de Bissau (***)... Tinha um amigo em Jumbembém  a quem enviava jornais e revistas.

Foto (e legenda): © Augusto Mota (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Pormenor da capa do Gonçalo Inocentes (Matheos),  "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (ModoCromia, no prelo).



Brasão do BCAV 490  (Bissau, Como e Farim, 1963/65)


3. Excerto do livro"O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65"

A Diarreia

por Gonçalo Inocentes (Matheos)

As diarreias,  Senhor!

As diarreias são um desequilíbrio que nos deixa completamente desequilibrados porque é como se estivéssemos a desfazer-nos de dentro para fora.

São péssimas quando aparecem e quando aparecem em certos lugares e ocasiões são simplesmente demolidoras.

Há diarreias singulares e surtos epidémicos.

Agora imagine-se um surto de epidémico de diarreia num grupo de combate, no decorrer de uma acção militar nas matas da Guiné. É surreal.

É surreal de facto. Homens caminhando em duas linhas, afastados como é norma, de arma aperrada prontinha a disparar e no silêncio da mata quando nem os bichos se manifestavam, há uma voz sumida que diz: “é agora!”.

Toda a coluna estaca, joelho no chão e o infeliz

 afasta-se um metro para o lado, despe as calçasrápido porque não há tempo, observa bem não vá haver uma cobra por ali e, descarrega.

Não há papel e muito menos higiénico, mas há folhas de plantas que usadas com cuidado limpam e não deixam lá formigas.

E segue-se outro e outro, mais outro correndo a vez a todos mas diga-se: o inimigo nunca nos apanhou com as calças em baixo.

Vivi isto nas matas de Quinhará e deixámos para o inimigo um rastro diarreico, malcheiroso, desagradável até para os formigueiros. Autênticas minas que quando pisadas não matam, mas desmoralizam pra caramba.

E lembrei-me disto, porquê? De facto, desde a dita Guerra da Guiné que terminámos de forma vil, que a nossa Governação se tem caracterizado por uma diarreia epidémica e crónica. Quando a coisa é boa para o povo, arruína as contas do estado, logo é efémera. Quando ajuda o orçamento é penosa para os mesmos de sempre, logo é perene.

Até dá a sensação de que houve uma praga pregada que, quanto mais corrermos mais nos borramos e quanto mais pararmos, mais nos dói. (p. 49)

____________


(**) Último poste da série > de 21 de junho de  2020 > Guiné 61/74 - P21097: Tabanca Grande (495): Acácio Fernando da Silva Mares, ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72) (Porto Gole, 1972/74), 809.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

(***) Vd. poste de 6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16452: Tabanca Grande (493): Augusto Mota, grã-tabanqueiro nº 726... Especialista em material de segurança cripto (Quartel General, CTIG, Bissau, 1963/66), gerente comercial da Casa Campião em Bissau, agente do Totobola (SCML), agente e correspondente do "Expresso" e de outros jornais e revistas, livreiro, animador cultural, português da diáspora a viver no Brasil há mais de 40 anos...

sexta-feira, 27 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Com o fado do regresso, o bardo e este seu companheiro despedem-se desta estranhíssima lide, que vale a pena recordar como tudo começou.
Um dia, num alfarrabista, encontrei esta "Missão Cumprida", irresistível não a ler num serão, e pronto começou a germinar a ideia de republicar a obra, peça a peça, gerando formas de diálogo, associações imaginárias, tudo a propósito da ida à tropa, a recruta, a especialidade, a formação do batalhão, todo o corolário do período operacional.
Há bastantes anos que me acicatava a curiosidade de descer ao fundo deste poço do início da guerra, tão escarnecido ou detratado enquanto crescia a mitologia spinolista, aquilo é que era fazer a guerra, conversando com o povo, tornando a guerra avassaladora, e o muito mais que todos sabemos, tudo apresentado como soluções que rasuravam um passado de insucessos, os generais que tinham antecedido aquele guerreiro de monóculo não tinham sido mais que dois mal enjeitados. Ora nada foi assim, embora os mitos continuem a pairar na atmosfera, a despeito da documentação publicada que revelam, por A mais B, que era uma evolução imparável que se prendia com uma vontade humana irrefragável de ficar independente, como veio a acontecer, deixando, felizmente, os dois povos em relação fraterna, e espera-se que para todo o sempre.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (51)

Beja Santos

“Depois de penar na guerra
eu voltei à minha terra
para meus pais abraçar.
Ao ver-me, a minha mãezinha,
com alegria, coitadinha,
abraçou-se-me a chorar.

Muita lágrima deitou
o tempo que demorou
seu filho no Ultramar.
Passando muita agonia,
ela, coitada, pedia
a Deus para me salvar.

Tive então essa sorte
e Deus me livrou da morte
e à nova vida voltei.
Ficou-me de recordação
a grande satisfação
quando meus pais abracei.

Lutando com os africanos
passei então os dois anos,
hoje estou já descansado.
Já me vejo ao pé dos meus
posso dar graças a Deus
de tudo me ter livrado”.

********************

Assim culmina, com este fado do regresso, a grande ode que o bardo dedicou às gentes do seu Batalhão. Compôs e recompôs, seguramente que pediu escrutínio a algum censor, seguramente de juízo benevolente, não se podia imprimir em letra de forma, ainda por cima para o grande público, algo que pudesse revelar os itinerários daquela guerra a que o Estado Novo tratava com discrição, chamando-lhe ações de policiamento, ora toma. No cômputo da literatura da guerra há finais lancinantes, avultam lágrimas, são regressos em que o lugar muitas vezes não mudou mas quem chegou sabe de antemão que vem mudado.

Aqui quero ombrear com o bardo, e a todos dar conta do meu dia de chegada, naquele agosto de 1970, o navio Carvalho Araújo meteu-se pelo Canal do Geba e foi direito ao oceano, houve uma primeira paragem na Ilha do Sal, para largar cabo-verdianos sorridentes que nem olharam para trás, tinham a terra à vista, bem como as famílias em plena agitação, à sua espera. Dali se seguiu para Mindelo, o viandante guarda bilhete-postal que enviou à mãe, dizendo-lhe que não havia diferença entre o que estava a ver ali e talvez o centro de Mortágua ou Oliveira do Hospital, o casario tinha afinidades inequívocas, com coreto e jardins, e bem impressionante era avistar, a curta distância, Santo Antão, negro e escalvado. E continuou a viagem até Ponta Delgada, a receção mais comovente nunca assisti, estou no convés e o navio aproxima-se do porto, o silêncio é sepulcral entre a multidão que espera e a mole humana dependurada pelos varandins. Súbito, ouve-se um grito, como se um ser humano estivesse a ser retalhado, nada disso, foi mãe que avistou filho, irrompeu uma gritaria medonha, aquela mole humana vestida de preto estava a deitar fora o luto, era a plena alegria da chegada.

Também fui bafejado pelos amigos que me esperavam e que me obsequiaram com um belo jantar, acontecimento inesquecível, guardo-o com esta memória fotográfica com que Deus me privilegiou. E rumámos até Lisboa, chegámos pela noitinha, foi uma vigília com gritos estrídulos, gente desorientada, gente bem bebida, era Lisboa iluminada à vista, com a mesma Ponte Salazar antes do cais da chegada.

Muitos anos depois, quando decidi pôr tudo em letra de forma sobre a minha vida na Guiné, finalizei a obra com o texto que se segue, e que consta do livro “O Tigre Vadio”, 2008:
“Comemos o pequeno-almoço à pressa, há quem esteja à mesa com os seus pertences à volta, não vá chegar aí uma ordem para regressar à Guiné. Saímos de roldão, quem vem em unidade militar tem de controlar as emoções, a gente da rendição individual foge para as saídas, indiferente à gritaria dos diferentes administrativos a quem compete indicar aonde nos devemos apresentar. Fico a saber que as minhas caixas seguem para um quartel na Calçada da Ajuda, informam-me que tenho uma entrevista com um major da unidade na manhã seguinte, o Exército pretende fazer um contrato comigo. Saio desabrido por aquele Cais da Rocha do Conde de Óbidos onde embarquei na manhã de 24 de Julho de 1968. Visto a farda n.º 2, com a calça comprida, não tive dificuldade em conseguir um táxi, quando me instalo, com a mala bem pesada e a arte guineense atada por cordas, posta nos meus costados, parece que estou a dar ordens para partirmos para o Xime ou o Xitole. Faço perguntas, oiço comentários, identifico sítios, assombro-me com algum edifício desconhecido.

O táxi passa pelo Cais das Colunas, esta é a minha Lisboa, pareço um gaiato a apontar para o Castelo de São Jorge, banzado com os cacilheiros, o trânsito da Baixa, a imponência quieta da Avenida da Liberdade. Passamos pelo Saldanha, só faltou acenar ao Monumental, onde fui tantas vezes ao cinema e teatro. É uma manhã de Agosto quente, mas não sinto a humidade da Guiné, incendeia-me o entusiasmo de querer avisar meio mundo que cheguei a Lisboa e que tenho planos para recomeçar a minha vida. O táxi parece voar, é a vez de o chofer fazer perguntas, tem um filho a fazer recruta, quer saber se a guerra da Guiné é tão dura quanto por aí dizem à boca calada. Dou respostas assépticas, hoje não quero que o senhor chofer tenha maus sonhos. Passamos pelo Campo Grande que conheço a palmo, o jardim está a definhar, talvez seja do calor do Verão, tem pouco a ver com o verde viçoso e os lindos canteiros de flores que sempre conheci em miúdo. De repente, lembrei-me da felicidade que senti, tinha eu 11 anos, quando achei uma nota de 20 escudos dentro do jardim e ofereci à minha mãe. O táxi vira à direita e entra na Avenida do Brasil, pára ao lado da Garagem Dragão, tinha sido esta a referência que a Cristina me dera ao telefone, estava eu em Ponta Delgada.

Tiro a custo o malão pesado, a arte guineense chocalha com tanto movimento, os mirones param na rua com este quadro insólito. Toco à campainha, oiço a declaração de alegria da Cristina. À porta de um sexto andar gritamos e beijamo-nos. Arrasto o malão para a entrada, a Cristina freme de entusiasmo, quer mostrar o espaço organizado: a salinha com alcatifa em tom azul-marinho, depois um quarto ainda vazio, a cozinha com a mesa já posta para o almoço, é daqui que avisto uma Lisboa com arranha-céus até ao Sheraton, vou fazendo perguntas, a Cristina procura responder. Depois o corredor faz um cotovelo, há uma casa de banho e ao fundo o nosso quarto com janela tendo o Júlio de Matos como fundo. É um ambiente cheio de ternura, a Cristina foi uma grande artífice com os poucos tostões disponíveis.

É no momento em que lhe estou a pegar nas mãos e lhe procuro agradecer tudo quanto tem feito por mim que sinto um rugido medonho, as paredes estremecem, sinto um pânico, estendo os braços com as mãos viradas para a frente, sinto-me em Missirá, procuro um morteiro 81 cercado por bidões cheios de terra e cimentados, preparo-me para gritar, quero todos a postos para reagir contra as gentes de Madina. São segundos de total desencontro, os olhos procuram orientar a melhor resposta para aquele ataque ao fim da manhã. A Cristina apercebe-se de que estou a viver aquilo que ela já lera em relatos sobre quem chega da guerra: um simples estampido de um carro põe um ex-combatente à procura do inimigo, deitado no chão ou lançando-se sobre as pessoas. A Cristina serena-me: “Estamos na linha do aeroporto, dentro de dias estás completamente habituado a este barulho. Acalma-te, Mário, a guerra acabou. Olha, tens ali uma carta do Ruy Cinatti. Vou acabar o almoço, tenho sardinhas no forno, como tu pediste.”

Lago do Campo Grande

Cineteatro Monumental, na Praça do Saldanha

Finais destas histórias são infinitos, na impossibilidade de dar voz a tanta eloquência e emoção das chegadas, finda a guerra, festeja-se este mano-a-mano com que convivi com o bardo com uma bela página de “sairòmeM, Guerra Colonial”, de Gustavo Pimenta, com data de 2000, é um encontro universal que não pode deixar indiferente qualquer velho combatente que passou pela experiência:
“A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio. As mesmas cores esmaecidas, em particular o amarelo das portas e janelas, o mesmo soalho corrido com tábuas carcomidas entremeadas, aqui e ali, por novas impecavelmente aplicadas, a motorizada logo à entrada do corredor e, ainda, a mesma cortina encobrindo o cubículo das garrafas de gás.
Meu pai acabava de me abrir a porta num abraço raramente acontecido: que me lembrasse, em adulto, era a segunda vez que estreitávamos os ossos. Com ele, diluíram-se num ápice os mais recentes dois anos da minha vida. A guerra parecia não ter acontecido: eis-me, de novo, naquele ambiente seguro e certo, inamovível, que sempre me foi a casa de meus pais”.

É com pesar que me despeço, gostei imenso de me ter atravessado na vida de um poeta popular que contou a sua vida no início de uma guerra que continua por ser escrita em linhas mais direitas, esclarecedoras. Cheguei à Guiné nos finais de julho de 1968, o Brigadeiro Spínola subia os degraus do pódio da mitologia e do estrelato, pelo tempo que se seguiu sucediam-se os rumores que ele estava a pôr a casa no sítio, os generais que o precederam tinham andado às aranhas, num perfeito descaminho, implantando destacamentos ao acaso, vendo a guerra agravar-se de ano para ano. Era assim, com comentários mordentes, que estes oficiais eram postos num banco dos réus, como que incriminados pelo crescimento da guerra. E como aqui se procurou desvelar, não foi nada assim, felizmente que documentos neutrais como a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, nos volumes dedicados à Guiné, mostram à saciedade que se procurou agir e travar a guerrilha. Só que esta se revelou imparável, por diferentes fatores que não se prendiam diretamente com a liderança ou mesmo a bravura do soldado português. Quem se sublevara era portador de ideologia, havia um histórico de insubmissão, um pouco por toda a colónia da Guiné, o líder da guerrilha prepara com conta, peso e medida a insurreição, tinha jovens quadros, com os anos o armamento tornou-se muito mais sofisticado e um dia os oficiais portugueses aperceberam-se que não havia solução militar e que se avizinhava uma tremenda humilhação, mais um desvario a averbar ao delírio de querer perpetuar um império colonial. Não foi por acaso que esta Guiné onde o bardo e este outro autor passaram a mocidade se tornou a chave, e até a fechadura, que levou ao fim do império.
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Notas do editor

Poste anterior de 20 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20752: Notas de leitura (1274): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (50) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20763: Notas de leitura (1275): "O Adeus ao Império", organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira; Nova Vega, 2015 - Das guerras em África à descolonização, diferentes olhares, quarenta anos depois (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20752: Notas de leitura (1274): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (50) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Estamos no penúltimo movimento da grande ode que o bardo dedicou ao BCAV 490. Ele agradece comovidamente as venturas maternais, e aqui me ocorreu alancear a recordação até às mães que perderam os seus filhos, e daí a memória à mãe do meu mais querido amigo da juventude, Carlos José Paulo Sampaio, falecido em combate, em Mocímboa da Praia, norte de Moçambique, houve que violentar o pudor para recordar o que foi visitar, mal chegado a Lisboa, aquela mãe com as dores em carne viva e entregar-lhe a última carta que aquele filho escrevera, coisa tão misteriosa, para mim tão vaticinadora de promessas para a vida fora, uma carta que trombeteava sobre o nosso futuro, os sonhos a realizar, findas as nossas guerras. E nesse encontro foi-me dado perceber, de viva voz, porque é que aquela mãe detalhava, esmiuçava ao segundo, os últimos instantes da vida do filho, de acordo com a versão que apurara. Enquanto a ouvia, percebia então perfeitamente porque é que um pai, insistentemente, me pedira para lhe contar os últimos instantes de vida do seu filho, soldado em Missirá, mas que morreu na explosão de uma mina anticarro, a meio caminho entre Finete e Missirá, num local que dá pelo nome de Canturé, ao anoitecer de 16 de outubro de 1969.
São narrativas que nos aliviam, de antemão sabemos que a dor profunda é incurável.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (50)

Beja Santos

“Trouxe-me no colo deitado
minha mãe do coração.
Hoje sou um homem criado,
não me esqueço do passado,
devo-lhe essa obrigação.

Mãezinha, p’ra me criar
andei nos braços seus.
Meu pai sempre a trabalhar,
quando a velhice apertar,
deitar-se-á então nos meus.

Há quem dê pouco valor
a quem à luz nos lançou.
Pois não há outra flor
que nos tenha tanto amor
como a mãe que nos criou.

Deve o fado compreender
quem tenha visão na vida.
Pois é bom de perceber
no mundo não pode haver
quem iguale a nossa mãe querida.”

********************

Quando li a veneração do bardo pela sua mãe logo me ocorreu uma canção largamente difundida na Guiné pelo Conjunto Oliveira Muge, vi gente rendida àquela voz suave, bem soletrada e plangente que irradiava das ondas hertzianas:

“Mãe, tu estás tão longe de mim
Mãe, sinto que estás a chorar
Não chores a minha ausência
Eu hei de voltar
Não chores e pensa agora
Que o tempo passa depressa
Pede a Deus que te tire esse tormento
Que te abrande o sofrimento
Desse teu formoso rosto.
Mamãe, não chores
Eu volto, Mãe.”


Havia as tatuagens de “Amor de Mãe”, os iletrados tanto pediam que se escrevesse ao pai ou à mãe, mas era sobre esta que recaía a adjetivação mais emocionante. E as recordações volteiam para aquelas lágrimas locais, à partida para destino incerto. E a cogitar na alegria do bardo, ternamente agradecido, ciente do sofrimento que a minha mãe passou, dirigi a lembrança para as mães que não voltaram a ver os seus filhos, aliás o bardo a elas dedicou versos de comiseração e agora acompanho-o, lembrando a mãe daquele que foi o meu maior amigo da adolescência, Carlos Sampaio.

Carlos José Paulo Sampaio, falecido em Moçambique, 2/2/1970.

Remexo nos escassos papéis que restam. O que ele escreveu e que levei nos meus haveres para a Guiné, extinguiu-se o essencial numa flagelação, em 19 de março de 1969. O resto guardei, era lido com profundo afeto. Antes de partir para a Guiné, vi-o chegar a Mafra, fui tendo sempre notícia do seu percurso até partir para o Planalto dos Macondes, também em 1969. Era uma amizade de colégio, de faculdade, de serões diários, eu ia até à Praça Pasteur, n.º 9, carregava na campainha do 2.º andar, ele ou uma das irmãs ou a própria mãe me recebiam sempre com um grande sorriso. Uma casa repleta da pintura de Fausto Sampaio, já falecido. No seu quarto, o retrato que o pai lhe fizera, o Carlos ainda muito jovem. Quando chegava o correio ao Cuor ou a Bambadinca era prontamente identificado o que ele me escrevia pela cor da tinta, verde. E aconteceu que a sua última carta me foi destinada, tem a data de 30 de janeiro de 1970, é uma carta voltada para o futuro, ele projetava trabalhar como livreiro e contava comigo. Longa missiva, com letra miudinha, muito regular, tudo decifrável, despede-se, está a ser organizada uma coluna até Mocímboa da Praia, suspira pelo fim da sua comissão, está fisicamente abalado. Saberei mais tarde que nas férias que passou na Anadia destruíra todas as suas pinturas, que eu conhecia, uma a uma. A notícia da sua morte, quando abri uma carta e dela saltou aquela notícia da necrologia que bem conhecíamos, encimada por uma fotografia e pelo Crucifixo, foi tiro que me derrubou, desatei aos urros, tudo se passou no quarto, estava lá um outro camarada, o meu amigo Abel Rodrigues, ficou especado com aquela gritaria alucinante, procurou acalmar-me, que lhe contasse o que se estava a passar, eu tartamudeava, entre baba e ranho. Lavei a cara, aliviei as feições congestionadas, havia muito que fazer depois de almoço, assim se foi atamancando o sofrimento.

Fausto Sampaio, “Autorretrato”.

“Pescadores – Costa Nova”, Fausto Sampaio, 1940, uma pintura a óleo que estava na sala de jantar da Praça Pasteur.

E quando regressei, em agosto desse ano, telefonei à sua mãe, pedindo-lhe para a visitar, com caráter de urgência, entreguei-lhe o espólio das minhas recordações, o único quadro que sobreviveu à destruição, pois ficara em minha casa, em cima de um móvel do meu quarto, entreguei a correspondência, assim se carpiram lembranças, e enquanto aquela mãe, tão magoada, me repetia os últimos momentos de vida do filho, o único filho que tinha, numa picada onde pisara minas antipessoal, os depoimentos que ela pudera colher, não me saía da cabeça a carta que um senhor chamado Jesuíno Jorge, de Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, me enviara, em resposta à carta que eu lhe dirigira comunicando-lhe o falecimento do filho, ele pedia-me insistentemente que descrevesse o mais pormenorizadamente possível o que se passara nos últimos instantes de vida. Coisa terrível, saber que certos pormenores substituem a visualização de um corpo, e eu sentia-me incapaz de explicar àquele pai e seguramente aos restantes membros da família, que Manuel Guerreiro Jorge tinha o corpo desarticulado, os membros inferiores desfeitos, que no meio de um pandemónio de viatura com o focinho demolido, de cuja caixa saltaram bidons, sacos e caixas, que felizmente amorteceram os ferimentos de muita gente, sobressaíam os gritos lancinantes de alguém que cedeu ao estado de choque e daí ao estado moribundo, partiu da vida numa morança em Finete, com o médico do batalhão de Bambadinca a seu lado. E de forma atropelada tudo isto foi contado a um pai, procurando passar uma esponja pelos termos, eliminando todos aqueles que pudessem fazer supor ossos à mostra ou restos de membros junto dos pedais, por exemplo. E eu assim ia ouvindo o que se teria passado naquela picada que levava a Mocímboa da Praia, um ritual de corpo presente, confirmava que o mesmo tem poder taumatúrgico, aplaca dores, é um alívio temporário mas obrigatório. E depois visitamos o quarto do Carlos, lá estavam as cadeiras em que conversávamos. E horas volvidas, enxutos os olhos, a mãe do Carlos surpreendeu-me à despedida oferecendo-me uma samarra que pertencera a Fausto Sampaio, usei-a anos a fio, era aconchegadora, uma bonita gola de pele, uma lã de corte perfeito, e Deus sabe que para além daquele aconchego dos dias álgidos era como se o Carlos me desse presença, continuasse a sonhar o futuro tal como ele o escrevinhara em letra verde, na sua derradeira carta.

Que o bardo me perdoe eu não endereçar o meu pensamento à madre fundadora, foquei-me em todas aquelas que à partida já vestiam de luto e de luto ficaram, por muito tempo. Há muita literatura da guerra que fala das mulheres, das noivas, das namoradas, das irmãs, mas não será certamente por acaso que as mães têm um papel primordial. Em “sairòmeM”, Gustavo Pimenta diz algo de muito belo: “O beijo de minha mãe durava uma eternidade”. Quando regressei a Lisboa, fui conhecer o meu novo lar. Nessa mesma tarde bati à porta de minha mãe e lindo foi o reencontro. Insistia em mostrar-me o que havia de diferente, imagine-se, os cortinados, as sanefas da sala. Em cima da mesa da sala de jantar estavam as joias que tinham saído da casa de penhores, ali tinham ficado para se arranjar dinheiro para os tratamentos do cobalto, com que atrofiara um tumor de origem maligna na hipófise. Deu-me a mão e levou-me ao meu quarto, tudo intocado, como eu esperava irrepreensivelmente limpo, o chão luzidio, ela gostava muito de ver o madeirame bem encerado. Tê-la-ei surpreendido agradecendo-lhe a educação que me dera, fora tónica permanente nos meus aerogramas, todo aquele ensino precoce de autonomia, de cooperação a uma avó inválida, a sapiência de viver com o dinheiro contado ao tostão e de saber diferir a satisfação de necessidades para um momento mais azado. Um processo educativo que tanto me ajudara a ultrapassar as rusticidades, as carências e as faltas absolutas que são as tónicas constantes de viver numa guerra. E agora curvo-me respeitosamente diante do bardo, “Pois não há outra flor/ que nos tenha tanto amor/ como a mãe que nos criou”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 13 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20729: Notas de leitura (1272): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (49) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20729: Notas de leitura (1272): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (49) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
O bardo despede-se da guerra, seguir-se-ão duas alusões sentimentais, é um dedilhar da guitarra com acordes de saudade, recorda a Mãe e canta o fado do regresso.
Impossível não se comentar aqui o que de mais relevante aconteceu no teatro de operações neste último ano da comissão do BCAV 490. Coisa curiosa, é manuseando estes diferentes volumes que a "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África", dedicados à Guiné, que se atina na verdadeira dimensão da atividade operacional, nas melhorias instaladas no campo das infraestruturas, no apoio às populações. Há muito caminho ainda a desbravar para que fique convenientemente iluminado todo este contexto em que germinou e se desenvolveu a guerra da Guiné, nestes anos correspondentes à presença do BCAV 490, de 1963 a 1965, trabalho de investigação em arquivos onde jazem papéis decisivos para a compreensão da atuação tanto do Brigadeiro Louro de Sousa como do General Arnaldo Schulz. Para acabar de vez com a crítica infundamentada de que estes dois oficiais-generais não foram altamente competentes, resolutos e determinados, e que não estiveram à altura da situação crítica que viveram, houvera que depositar todas as esperanças num salvador que chegou à Guiné em maio de 1968.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (49)

Beja Santos

“Fui à Guiné, fiquei maravilhado
ao ver os batuques a tocar
com os africanos a dançar,
eu fiquei entusiasmado.
Voltava-me para qualquer lado
via grupos dançando contentes,
diversas raças patentes
rolavam uns baixos outros de pé.
Vi na Província da Guiné
coisas bárbaras, transcendentes.

Outros costumes, outras gentes
nesta Província vim ver.
Fiquei também a conhecer
o que foi pisado pelos antecedentes.
Tivemos homens valentes
que deixaram nome gravado.
Actualmente no mato cerrado
ainda se distinguem muitos companheiros
contra o grupo de bandoleiros
do povo negro esturrado.

Vi homens de cornos armados
a imitarem bois guerreando
e outros com caraças também imitando
diversas feras e veados.
Alguns de flechas formados
mantinham-se muito prudentes.
Estavam equipados como os combatentes
de há séculos atrasados
de quando se faziam bravados
a desafiar espaços, continentes.

Vi mulheres nuas, peitos pendentes
e coisas de diversos aspectos.
Vi os filhos dos insurrectos
rasgados, descalços e inocentes.
Aqueles homens divergentes
se nos tornam endiabrados
por eles somos espiados
a qualquer hora do dia.
Mas só têm cobardia
os rebeldes famintos, esfarrapados.

O tempo está acabado,
vou fechar as poesias.
Despeço-me de todas as Companhias
que eu tenho aqui publicado.
Este tempo foi passado
com grande descontracção.
No resumo do Batalhão
passaram-se muitas amarguras
e houve muitas aventuras,
amigos do coração”.

********************

Confesso que me toca muito este derradeiro abraço em que o bardo envolve os seus camaradas. Estamos em 1965, impõe-se apresentar algumas notas sobre o pano de fundo daquela guerra, e o que se previa para o ano vindouro. Consta na “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 6.º volume, Aspectos da Actividade Operacional, Tomo II, Guiné”, 2014, que o ano de 1965 foi dominado por uma evolução da organização das FARP – Forças Armadas Revolucionárias Populares, o movimento das unidades das forças portuguesas foi enorme. Em 12 de agosto, partiu o BCAV 490 com as CCAV 487, 488 e 489, além do BCAÇ 512 e 513, dias depois regressava também à metrópole o BCAÇ 600. Iluda-se quem continue a supor que este período da governação de Arnaldo Schulz teve quebras na dinâmica ofensiva e esclerosamento na quadrícula. Estão descritas operações em Bula, Mansoa, Farim, Tite, Buba, Catió, por toda a colónia, e com grande regularidade. O PAIGC ripostava, sobretudo no Sul e no Centro-Norte. Na época ainda havia operações que levavam à destruição de várias tabancas em pontos dados de acesso extremamente difícil, caso das tabancas de Chinchim Dari, Salancaur Fula, Salancaur Jate e outras próximas. Sucedem-se as Diretivas do Comandante-Chefe, mostra-se polarizado por desarticular o inimigo na região do Oio (quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá), havia indícios no seu reforço nos últimos tempos; sabia-se claramente que a região da margem direita do Corubal, situada entre Ponta do Inglês e a povoação do Xitole, continuava a ser peça fundamental da linha de comunicações. Havia a pretensão de dificultar a utilização da região de Ponta do Inglês – Xitole como base intermediária da linha de comunicações do inimigo, foram previstas várias operações, ia-se às bases, destruíam-se acampamentos, eles iriam ressurgir ali bem perto. Centrou-se igualmente a atenção na região entre o rio Canjambari e a estrada de Banjara – Mansabá, sabia-se que era uma passagem obrigatória da guerrilha. Tomaram-se medidas para um melhor controlo e defesa de Bissau. Propuseram-se novas medidas de ação psicológica. No final do ano, através da sua Directiva n.º 26/C, Schulz dá conta da situação da guerra, escreve obviamente para que o governo em Lisboa tire as suas elações, a pretexto de a Directiva ser canalizada para os três ramos das Forças Armadas na Guiné.

É uma narrativa sem ilusões, seria impossível não tirar dela conclusões merecedoras de grande preocupação:
“Apesar dos golpes sofridos no decurso dos últimos anos, a virulência político-militar do inimigo não tem diminuído. O inimigo conta com o apoio decidido dos países do bloco comunista, da generalidade dos países da OUA e de alguns países ‘não alinhados’. Um factor novo relativamente recente – o aparecimento de brancos, em especial cubanos, como instrutores, conselheiros ou especialistas – vem demonstrar a extensão deste apoio.
No aspecto exterior, as facilidades cada vez maiores que vêm sempre concedidas pelo Senegal ao PAIGC, as quais foram objecto de acordo formal entre o Governo Senegalês e aquele agrupamento subversivo e estão-se traduzindo, designadamente, no estabelecimento progressivo de grupos armados ao longo de toda a fronteira norte da Província, na organização de bases fronteiriças de certo valor, em liberdade condicionada de trânsito de pessoal, armamento e abastecimentos”.

Volumes da “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África” referentes à atividade operacional da Guiné.

O documento enfatiza o aperfeiçoamento da propaganda do PAIGC, a melhoria dos seus quadros políticos, técnicos e militares, o aperfeiçoamento da organização e apetrechamento de militares quanto a equipamento, transmissões, fardamento e apoio sanitário; era dado como seguro que melhorara substancialmente o controlo do PAIGC sobre os núcleos populacionais, com destaque no Sul. E detalha-se igualmente os termos como se estava a processar a expansão do PAIGC pelo Interior. Considerava-se que a partir de setembro de 1965 o PAIGC progredia para a região dos Manjacos; havia uma notória acumulação de meios inimigos ao longo da fronteira do Senegal, desde Saré Bacar até Susana, por enquanto não havia motivo de séria preocupação, mas não se excluía, a prazo, a tentativa de reforçar os meios existentes no interior da Província com a finalidade de envolver Bissau. E escreve: “Atribuo uma grande importância à possibilidade de ataque súbito e maciço a algumas das nossas posições fronteiriças que pode ter lugar em prazos muito curtos que dificultem grandemente o ocorrer, em tempo oportuno, das nossas reservas”.

A sul do Geba e a oeste do Corubal, a organização político-militar do inimigo estendia-se um pouco por toda a parte e mostrava-se particularmente evoluída nas regiões de Quitafine, Cantanhez e Como. A ligação técnica, política e económica entre as diversas zonas controladas pelo inimigo faz-se com relativa facilidade. “Considera-se, no entanto, que os principais núcleos inimigos não têm possibilidade de evitar uma desorganização sensível das suas estruturas, se atacados sistematicamente e com decisão com meios de fogos terrestres, navais e aéreos e sujeitos com frequência a acções terrestres, anfíbias ou aerotransportadas de objecto limitado. É admissível que Schulz apelava para uma continuação da guerra subversiva em moldes mais ofensivos, a que o governo de Lisboa multiplicasse efetivos e recursos de toda a ordem, era impossível fechar o corredor de Guileje, a riqueza agrícola do Sul garantia a subsistência dos efetivos do PAIGC na região, aliás, previa-se uma maior agressividade das forças do PAIGC nos nossos aquartelamentos e sobre a zona do Forreá. E advertia: “Admito que o inimigo poderá tentar uma ou mais acções de surpresa lançadas a partir de território estrangeiro, do Cantanhez ou de Quitafine, sobre algumas das nossas posições mais expostas, em especial Guileje, Gadamael, Cacoca e Cameconde”.

Imagem retirada do Arquivo do Correio da Manhã, com a devida vénia.

O Leste continuava a resistir à subversão, houvera que evacuar populações de certas zonas transfronteiriças, mas no Boé intensificara-se a presença do PAIGC.

É prematuro, até porque não está estudado o acervo documental entre o Comandante-Chefe e os Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, dizer abertamente que Schulz, chegado em maio de 1964 à Guiné, e que a encontrou em perfeito tumulto, porque era completamente incerto por onde o PAIGC procurava consolidar-se e irradiar, havendo milhares de guineenses em fuga para as regiões fronteiriças do Senegal e da República da Guiné, povoações queimadas, inúmeras populações sujeitos a duplo controlo, com o esforço de guerra centrado em apagar fogos e espalhar os efetivos militares, e tudo o mais que se sabe, atribuir-lhe responsabilidades na condução da ofensiva contra a luta armada. Naquele período, o PAIGC consolidara-se, expandira-se, posicionara-se estrategicamente em pontos de dificílima acessibilidade, gozava progressivamente de apoio internacional, o seu armamento, inicialmente tão precário e antiquado, melhorara substancialmente.

Schulz obtivera a garantia de apoios, iniciara a africanização da guerra, instituíam-se aldeamentos, os bombardeamentos eram incessantes, as lanchas da Marinha patrulhavam os cursos de água; recebeu algum dinheiro para fazer infraestruturas, melhorou bairros, deu-se ênfase à educação e às infraestruturas de saúde. Proteger as populações, procurar subtraí-las ao duplo controlo, significava derramar os efetivos militares em destacamentos, com todos os riscos inerentes e as exigências de patrulhamentos, com a realização de operações que demoravam escassos dias, queimar um acampamento de guerrilha, capturar população e trazer material tinha que se fazer em curtíssimo espaço de tempo, o inimigo estava já preparado para reagir, emboscando nos pontos mais imprevistos.

Amílcar Cabral com o lendário comandante “Manecas” dos Santos, algures na Guiné, enquadrados pela Segurança que os acompanhava pela Guiné, imagem retirada do blogue Notícias da Guerra, com a devida vénia.

Em 1965, Amílcar Cabral é já um líder altamente cotado na esfera internacional, é o ideólogo de proa das colónias africanas de língua portuguesa; a colaboração cubana ainda é ténue, será muito maior quanto Fidel Castro lhe der um impulso, no ano seguinte; os quadros combatentes, como Nino, Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Rui Djassi, e muitos mais, revelam motivação, conhecimento do terreno, são de uma enorme fidelidade ao líder fundador.

O quadro de fundo antevisto por Schulz para o ano de 1966 conhecerá mudanças sensíveis com o apoio externo, com o desenvolvimento da propaganda do PAIGC. Nota curiosa, basta ler a “Resenha Histórico-Militar” referente a esse ano, 1966 salda-se num tempo de equilíbrio precário, o PAIGC irá acomodar-se a uma toada ofensiva marcada pelas forças especiais, é ano de contenção, de compasso de espera.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 6 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
O bardo já está em jeito de despedida, recapitula coisas que todos nós vivemos, como a chegada do correio, as obras nos destacamentos, a pulsão sexual e a chegada daqueles meninos que hoje são gente crescida e procuram o pai.
É o momento azado para pegar na "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África" e enquadrar a estratégia militar, a atividade operacional, a ação psicossocial, a formação de tropas nativas, entre outros aspetos. Recordo-me de quando cheguei em finais de julho de 1968, vivia-se a euforia dos novos tempos, criticava-se asperamente o passado, agora é que era, íamos ter guerra a sério, os oficiais incompetentes já estavam a ser recambiados, o homem providencial visitava ao amanhecer os aquartelamentos, inteirava-se das dificuldades e exigia mudanças. Saberemos mais tarde que exarou um lote de instruções, introduzia mudanças. O homem providencial, como é de todos sabido, foi valeroso, mediático, avergou imensa esperança, isto enquanto o PAIGC era confrontado com os novos instrumentos da "Guiné melhor" e com aquela incómoda referência até aí esbatida, da existência de uma raiva surda entre guineenses e cabo-verdianos. E ao longo destas décadas tem sido possível, por múltiplos fatores, deixar no limbo, apoucar, denegrir, culpabilizar Louro de Sousa e Schulz pelo estado em que Spínola encontrou a Guiné quando aqui chegou, em maio de 1968.
Felizmente que as fontes falam, são papéis que precisam de ser lidos com equidistância. E ainda estamos no princípio de se chegar a uma outra visão prismática de como foi conduzida a guerra de 1963 a 1968. Recordo que ainda estão por consultar os arquivos do Ministério do Ultramar e do Ministério da Defesa Nacional. É bem possível que outro galo venha a cantar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (48)

Beja Santos

“Para a avioneta aterrar
trabalhava-se com resignação.
Quando o correio se esperava,
às vezes não vinha avião.

Enquanto estivemos aquartelados,
nos arredores de Farim,
passou-se o bom e o ruim
mas hoje estamos descansados.
Houve o regresso de uns refugiados
e o chefe dos CTT se deixou apanhar.
Depois de muito se lutar,
Canjambari se ocupou
e uma pista se arranjou
para a avioneta aterrar.

Na piscina de Farim se ia nadar
e ia-se dançar na Morocunda e Nema
e de vez em quando se via cinema
e a Kadi se ia visitar.
Bichas se chegaram a formar
e uma teve um filho do Batalhão.
Ficou-nos de recordação
os bons e maus tempos passados
no mato contra os malvados
trabalhava-se com resignação.

O pão em Jumbembem era jogado
a qualquer hora do dia
e muitas vezes caía
fora do sítio marcado.
O correio também era lançado
e às mãos dos rapazes chegava.
Uma vez um saco se desatava
e o correio se espalhou,
e muita desilusão se passou
quando o correio se esperava.

Uma vez fomos visitados
pela RTP e Emissora Nacional,
vieram de Portugal Continental
para sermos entrevistados.
Contámos-lhes os factos passados,
durante esta missão.
Passámos muita preocupação
com coisas de diligência,
e esperando sempre correspondência,
às vezes não vinha avião.”

********************

O bardo recapitula nestes versos episódios que se tornarão recorrentes para outras unidades militares, seja qual for o teatro de operações nas três colónias em guerra: a espera ansiosa do correio, a reocupação de tabancas que irão ficar em autodefesa ou conjugadas com destacamentos; a vida sexual espúria, de que irão resultar aqueles filhos que continuam à procura do seu pai; as emissões radiofónicas e televisivas que culminavam, tantas vezes, com uma frase que ficou icónica: “adeus, até ao meu regresso”.

Impõe-se consultar a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, procurar escavar e apurar alguns dados elementares da evolução do conflito. Seria redundante, meramente repetitivo, matraquear o leitor com a caraterização do território, o surto da luta nacionalista, como se afirmou o PAIGC e foi anulando toda e qualquer forma de concorrência. Igualmente o leitor já possui um enquadramento dos efetivos e qual o dispositivo das nossas tropas até ao início de 1963. Fizeram bem os organizadores desta Resenha em referir o que se sabia e como se procurava agir a partir de Lisboa para sustar as ondas de guerrilha. Os efetivos foram crescendo até 1963, em março desse ano é estatuída a Carta de Comando para o Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o Sul já está em polvorosa, e no terreno não se faz a menor ideia como será possível ir dispondo o dispositivo, responde-se à bolina, praticamente em cima dos acontecimentos, chegam as informações em catadupa das populações em fuga, de incêndios, de toda a sorte de destruições. O PAIGC procura instalar-se no Quitafine e no Cantanhez. Regista-se nesta atividade operacional que em fevereiro de 1963 já se patrulha entre o Poindom e Ponta Varela, houve uma batida de Enxalé ao Saltinho, população Fula acompanhou o destacamento militar. Há ocorrências ao norte de Cacheu, o aquartelamento de Bigene é atacado em maio, a região do Xime está manifestamente em pé de guerra em meados desse ano, atacam-se embarcações no Corubal.

Brigadeiro Louro de Sousa
O que os documentos revelam é que o Comandante-Chefe reage em cima dos acontecimentos, produz Directivas a partir de abril que são verdadeiramente concomitantes com os focos de sublevação, impossível que o teor destas Directivas, aliás comunicadas para o Ministro da Defesa, não correspondessem a um acompanhamento da evolução da guerra. No segundo semestre de 1963, a guerrilha está presente no Norte, em Fajonquito, mas também no Oio e no Morés, de que resta uma fotografia do Brigadeiro Louro de Sousa com o Comandante e militares do BCAV 490, no Morés, a bandeira portuguesa está hasteada. Em outubro, o Ministro da Defesa, o General Gomes de Araújo, visitou a Guiné, o mau tempo impede certas deslocações, revela-se devidamente informado e pelo menos não ficou registado ter havido quaisquer discordâncias quanto ao seguimento das atividades operacionais. No final do ano, a Diretiva N.º 7 do Comandante-Chefe não ilude o que se está a passar: o PAIGC alcançou o controlo efetivo de regiões preponderantes do Sul, criou insegurança no Centro e já mantinha o controlo das duas margens do rio Corubal; o aliciamento de uma parte da população parecia inevitável; havia críticas à condução da guerra, como ficou escrito:
“A maioria dos órgãos de Comando não faz um planeamento cuidado das operações e não lhes dão continuidade lógica. Verifica-se que a execução das operações depara sempre com dificuldades várias e que o impulso inicial se vai perdendo. (…) A missão tem que ser cumprida até ao fim e, por isso, permitir que as tropas desistam durante a acção conduz ao abandono e à desmoralização”.

A informação que seguiu também para Lisboa clamava por mais efetivos, e falando do futuro apareciam como missões fundamentais a preocupação de evitar e impedir infiltrações em todas as fronteiras, a necessidade de atuar sobre as linhas inimigas do reabastecimento, procurar isolar o inimigo da parte não subvertida da população, intensificar a vigilância dos rios, entre outras. Nesse mesmo mês de dezembro, a Defesa Nacional comunica a necessidade de efetuar uma operação de limpeza e ocupação do Como, assim nasceu a “Tridente”, que já fora prevista em agosto por Louro de Sousa. Nas vésperas de Natal, a Diretiva N.º 8 esboça detalhadamente aquela que será a maior operação conjugada dos três ramos das Forças Armadas no decurso da guerra.


Quando certos autores apoucam as medidas de política seguidas por estes comandantes que antecederam Spínola, acusando-os mesmo de não terem uma visão nítida para a ação psicossocial, seguramente que não consultaram os documentos que começaram a ser emanados a partir de setembro de 1963. São de inegável importância para se entender a lógica que se pretendia imprimir para a autodefesa das populações e quais as etnias com que se podia contar.

A Resenha dá conta da nova organização militar do PAIGC, à luz das decisões tomadas no Congresso de Cassacá. O PAIGC incrementou a sua atividade, havia cada vez mais material bélico, cresciam os eixos de infiltração. O efetivo das nossas tropas aproximava-se no início de 1964 dos dez mil militares, em meados do ano formavam-se Companhias de Milícias e iniciou-se o primeiro curso de Comandos, dele saíram os grupos de Comandos “Os Camaleões”, “Os Panteras”, e “Os Fantasmas”. No vasto elenco da atividade operacional, encontramos ações do PAIGC e operações das nossas tropas, logo a partir do início de janeiro. Rafael Barbosa que fugira com Constantino Teixeira e outros quadros do PAIGC em 9 de janeiro, foi capturado no dia 12. Nos bairros de Bissau sucedem-se as rusgas. Mas é a Operação Tridente que vai ter a fatia de leão na documentação carreada. Em fevereiro desse ano, o Ministro da Defesa Nacional envia uma Instrução Pessoal e Secreta destinada ao Comandante-Chefe, não há ilusões sobre o aumento da capacidade ofensiva do PAIGC, a tentativa de extensão da guerrilha, toma-se a sua presença na região de Xime - Ponta do Inglês como perigosa, pois facilitaria a ligação entre as guerrilhas que atuam no Sul e no Oio. Envia o Ministro as suas prioridades e adverte que a Metrópole não pode aumentar indefinidamente os efetivos e outros meios, são feitas sugestões para a remodelação do dispositivo.

E o documento termina de forma eloquente, o Ministro recorda uma reunião havida em Bissau em 14 de janeiro de 1964:
“As guerras só se ganham com a eliminação física ou moral do inimigo. Ora se essa eliminação, mesmo com um inimigo que não fuja ao contacto, só se consegue pelo seu envolvimento, fruto da manobra, com mais forte razão esta é essencial na guerra do tipo da que fazemos, em que o inimigo evita o contacto”.
Gen Arnaldo Schulz
E deixa bem claro que a informação é pedra angular da manobra. As chamadas forças de reserva deviam ser entendidas como forças permanentemente em operações, fossem caçadores ou fuzileiros especiais, não deviam permanecer em Bissau à espera dos acontecimentos. Prosseguem as Directivas e as Ordens de Operações, em maio é reconhecido o alargamento da área das atividades do PAIGC, este avançava perigosamente em direção à povoação de Geba. É decidido ocupar Sangonhá, Cacoca e Cameconde, a fim de dar continuidade à progressão para sul e estabelecer ligação com Cacine. Nesta documentação fala-se explicitamente do BCAV 490, a quem cabe assegurar a ocupação territorial e controlo da sua área de responsabilidades, apoiado na população fiel do Leste, em ligação com o BCAÇ 506, segundo os eixos Cambajú - Sitató – Cuntima e Canhamina - Canjambari - Jumbembem; e posteriormente entre a linha Farim - Cuntima e o rio Cacheu. A última Directiva de Louro de Sousa data de 9 de maio, prende-se com a proteção de Bissau, é estabelecida a manobra. Em maio, mais adiante, chega Arnaldo Schulz. A atividade operacional do primeiro semestre espelha a extensão da guerra e não ilude as dificuldades postas às forças portuguesas para coordenar os diferentes Sectores, permanentemente sacudidos por intervenções da guerrilha.

O segundo semestre decorre já sobre a égide de Schulz, elencam-se operações na região de Bissau, Bula, Mansoa, o Oio e o Morés estavam ativíssimos, não obstante as nossas tropas iam destruindo acampamentos e casas; é uma atividade operacional que se estende a Farim, a Bafatá, Buba, Catió e Tite, parece imperar um novo fogo. Surgem novos documentos para a ação psicológica, dão-se instruções para a colaboração dos nativos nas operações militares, estabelecem-se normas para a atribuição de prémios pela captura de material ou inimigo. A Resenha dá-nos em final de 1964 a relação das unidades presentes na Guiné e como se posicionam. Neste momento, a Guiné dispõe de um total estimado superior a quinze mil militares.
Veremos agora o que nos reserva 1965.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20700: Notas de leitura (1269): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Teima-se em tentar eliminar o palco em que se desenvolveu aquele período da guerra, havia mil militares antes de se desencadearem as hostilidades, o número vai crescendo, nesta fase começa a aproximar-se dos 25 mil. Estão lá os três ramos das Forças Armadas, a Armada percorre os rios, tem na Guiné o seu papel crucial, muitíssimo superior ao que viveu em Angola e Moçambique. Indubitavelmente, 1964 é um ano chave pelo alastramento da guerra, pelas populações em fuga, pela compreensível dificuldade em definir uma estratégia com defesa das populações. As forças portuguesas irão vezes sem conta ao Oio, como ao Cantanhez e a outras paragens de luta renhida. Os resultados serão sempre minguados pelo facto de ali não se permanecer mais tempo daquele que dura a operação. Só muito mais tarde, com a operação "Grande Empresa", em 1972, é que se procurará a reocupação do Sul, como se sabe com resultados efémeros pois em 1973 um vendaval de fogo irá comprometer o esforço quase titânico do que foi a criação desses novos estacionamentos.
De seguida, passamos para os documentos da estratégia portuguesa, tal como eles constam na "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África", no teatro de operações da Guiné.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (47)

Beja Santos

“Deixando estas regiões
para Brá se abalou.
A Companhia do azar
em Farim continuou.

Houve boatos daqui e de além
já se sabe o que é a rapaziada
todos queriam abalar da porrada
porque na guerra ninguém estava bem.
Em Farim, Cuntima e Jumbembem
houve muitas aflições
mas deixando as operações
e começando pela 3.ª Companhia
vai o Batalhão de Cavalaria
deixando estas regiões.

Na 488 se aguentaram
até chegar a sua vez
e no dia 13 deste mês
aquela povoação deixaram.
Mulheres e crianças choraram
e tudo à tropa se abraçou.
Em Cuntima o mesmo se passou
quando chegámos à hora de abalar
e deixando tudo a gritar
para Brá se abalou.

Alguns homens do Comando
regressaram de avião
e outros vieram numa embarcação
pelo Geba navegando.
Ao cais de Bissau chegando
em Brá vamos aquartelar.
É lá que vamos aguardar
o dia que mais se ambicionou
mas por enquanto ainda não chegou
a Companhia do azar.

A 487 se exibiu
com mais uma mina que encontrou
o furriel Cravo alevantou
após o Joel que a viu.
Noutra vez que se saiu
mais uma arma se apanhou.
Ao fim da comissão se chegou
sempre arriscados à morte
e a Companhia da pouca sorte
em Farim continuou”.

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Aproxima-se o fim da comissão do BCAV 490, procure-se, em nome da clareza, entreabrir as portadas deste cenário em que decorreram as suas atividades. Há um antes, aquele despertar nacionalista que transita do fim da década de 1950, quando Amílcar Cabral parte para o exílio, ficando ali perto, em Conacri, outros, na órbita de Rafael Barbosa, sublevam no interior da Guiné Portuguesa. Organizou-se o partido e organizou-se a guerrilha, formaram-se guerrilheiros e com o primeiro armamento desencadeou-se a luta armada, surpreendendo as forças portuguesas que esperavam acometidas nas regiões fronteiriças, acreditava-se que se iria reproduzir o que se passara em Angola a papel químico. O BCAV 490, é este o modesto entendimento do companheiro do bardo, vai viver o período crucial da expansão do PAIGC por zonas de onde, ao longo de toda a guerra, só sairá para regressar: nas matas do Sul, em toda a região do Morés, no Corubal. O contingente português vai crescendo, de mil militares chegará rapidamente a dez mil, depois a vinte mil, e crescerá ainda mais. O PAIGC dinamitou a economia, no final de 1964 já pouco restará das serrações e das atividades comerciais da CUF e da Sociedade Comercial Ultramarina. O PAIGC não intimida somente, procura mobilizar as populações rurais, o líder fundador é muitíssimo claro, estas populações são fundamentais para alojar e até para alimentar os contingentes da guerrilha. Há dados seguros sobre este crescimento. Voltamos hoje a referenciar “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional, 1950-1974, o caso da Guiné-Bissau”, o essencial da tese de doutoramento de Leopoldo Amado, IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, 2011. A título complementar, passaremos para a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, os livros dedicados à Guiné.

Leopoldo Amado recorda que a partir de março de 1963 todo o Sul está em sobressalto: destruição de pontões nas áreas de Tite e de Buba, flagelações na península de Empada com corte de acessos à povoação e aos locais de embarque para Bolama, incêndio do barco a motor da carreira Bolama-Ponta Bambaiã, ataques às tabancas, flagelações de Cufar e Fulacunda. E nos meses seguintes chega-se a Cacine, a Gadamael, a Cacoca e Sangonhá. Atravessa-se o Corubal e ataca-se o Xime; e a guerrilha escolhe com sucesso o Oio, o quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá é uma zona de florestas densas e quase sem estradas, melhor refúgio não podia haver. No final do primeiro semestre de 1963 avança-se para Bissorã e Barro, para Binta e Farim, montam-se emboscadas entre Mansoa e Bissorã, destroem-se pontões na estrada Olossato-Mansabá. A destruição económica parece imparável, o principal eixo rodoviário da região, a estrada Mansoa-Mansabá-Bafatá vai ficando inutilizável. No final do ano, o armamento soviético começa a chegar às carradas, as atividades de guerrilha consolidam-se no canal do Geba, há bases que permitem atuar entre Porto Gole, Enxalé, Xime e ao Norte de Bambadinca, o PAIGC instala-se numa capilaridade que vai de todas as bases do Morés até Sambuiá, Sarauol, Belel, alastra a sua atuação em novas direções, para Bula e Binar, procura atingir, ainda que com pouco sucesso, a região dos Manjacos.

Ver-se-á adiante que Louro de Sousa e Schulz, à luz dos meios, da incapacidade de prever a estratégia do PAIGC, foram atamancando, procurou-se expulsar os grupos do PAIGC no Sul, no Norte, impedir os abastecimentos vindos da República da Guiné e do Senegal, só que os efetivos do PAIGC alastravam-se, chegava novo armamento. Em maio de 1964 ocorre a primeira colocação de minas, chegam os morteiros e até as minas de anticarro armadilhadas, o Xime é atacado à bazuca, passa a ser corrente flagelar os aquartelamentos e as tabancas em autodefesa com morteiros e metralhadoras, mais tarde virão os canhões sem recuo. A Guiné, também nos vem recordar Leopoldo Amado, foi o mais importante e o único teatro de operações onde a ação da Armada Portuguesa foi vital, não só em termos estratégicos como táticos.
E recorre a uma citação de um trabalho de António José Telo:
“À volta de 80% de toda a carga ou pessoal movimentado seguia por via marítima ou fluvial, só cerca de 18% seguia por estrada e 2% por via aérea. No final da guerra, quando o transporte por terra era mais difícil, as vias fluviais e marítimas asseguravam cerca de 85% de toda a carga e passageiros. Esse transporte era igualmente vital para o PAIGC, pelo que a acção de interdição e fiscalização da armada era tão importante como a de transporte. Na realidade, podemos dizer que uma das poucas formas de qualquer dos lados vencer militarmente a guerra na Guiné seria ali impedir o uso dos cursos de água com fins logísticos e de transporte pelo outro”.

Louro de Sousa apela aos recursos disponíveis, Arnaldo Schulz receberá muitíssimo mais, e dos três ramos das Forças Armadas, apercebe-se que tem poucos contingentes bem preparados para a natureza daquela guerra, resolve o dilema do número crescente da população sobre duplo controlo recorrendo à disseminação de aquartelamentos, à preparação de milícias e a uma política de tabancas em autodefesa, sob vigilância das forças posicionadas em destacamento, virão forças especiais, desde fuzileiros a paraquedistas, os bombardeamentos atordoarão todas essas matas onde se acantonam os guerrilheiros e as populações suas apoiantes. É fácil acusar Schulz de que não tinha uma ideia de manobra bem definida, veja-se o contexto em que ele chega à Guiné em 1964, há já dois importantes santuários, o Cantanhez e o Oio-Morés. O que se julgava importante no início da guerra, caso da ilha do Como, esvazia-se com as novas preocupações do avanço do PAIGC em direção ao Boé, o corredor de Guileje passa a ter um papel crucial no abastecimento, as forças portuguesas tudo tentarão para expulsar essas linhas de abastecimento, sem êxito algum. Schulz recorrerá à propaganda, às emissões radiofónicas, ao Boletim Informativo das Forças Armadas, uma comunicação com diferentes direções, incluindo a opinião pública em Portugal. Às ações da guerrilha, procurava-se reagir, ensaiava-se um dispositivo militar para reocupar a zona fronteiriça desde a Aldeia Formosa a Cacine e Campeane. O dispositivo de informações do Exército Português era muito elementar, o uso de informadores dava os seus primeiros passos. Daí a surpresa de certos ataques, como aqueles que começaram a surgir nas regiões fronteiriças, no Norte e no Leste. No final de 1964, a luta armada é cada vez mais persistente à volta de Bula e de Teixeira Pinto, de Bissorã e de Mansabá. Nessa altura, Guileje é já um local que o PAIGC pretende reduzir a pó.

E Leopoldo Amado escreve:
“Em finais de Novembro de 1964, o PAIGC atacou por três vezes, e violentamente, o aquartelamento de Guileje, sendo o ataque de 29 de grande envergadura. Iniciado às quatro da manhã, durou cerca de duas horas, período durante o qual os guerrilheiros utilizaram todas as armas novas que possuíam. No dia seguinte, deu-se novo ataque, que provocou novas baixas, demonstrando não somente que o PAIGC teria decidido ocupar em força a povoação de Guileje por ser estratégica, mas também para fazer uma demonstração de força, usando os novos armamentos com que a partir dessa altura já contava: morteiros, metralhadoras ligeiras, espingardas automáticas, minas anticarro de fabrico russo”.

Todo o restante ano de 1964 vai revelando um gradual poder combativo do PAIGC. Para além dos acometimentos sistemáticos em Madina do Boé e Guileje, a maior parte dos destacamentos do Sul são flagelados e prosseguiu a destruição de pontões, dificultando a mobilidade das forças portuguesas. De toda esta evolução, Arnaldo Schulz dará conta aos seus superiores, vai-se instituindo a contrainformação militar, melhorou a ação psicossocial, são aprovados planos de desenvolvimento, como novos alojamentos em bairros de Bissau. E entrarão em cena helicópteros com helicanhões. Trata-se de uma realidade que já não será acompanhada pelo BCAV 490. Como é óbvio, a tese de doutoramento de Leopoldo Amado prossegue até 1974, o que significa que está fora do contexto que analisamos.

O companheiro do bardo socorre-se de belas páginas da obra-prima de Armor Pires Mota, “Estranha Noiva de Guerra”, Âncora Editora, 2010, para se dar o ambiente do que era uma flagelação clássica, nela ainda não são referidos os foguetões e muito menos a aproximação de viaturas, como acontecerá anos mais tarde:
“Um tiro solitário saltitou, estalando fino. Já não tive tempo para disparar outro e outro. As sentinelas abriram, de imediato, fogo cerrado para o mato. O ataque começava. Só tive tempo de enfiar a G3 em bandoleira e as cartucheiras. Correndo, de torso curvado, quase arrasando o chão, fui acaçapar-me em abrigo. A fuzilaria feroz e cerrada vinha de todos os lados, dos morros de bagabaga, de árvores bem copadas, da pista de aterragem, até da tabanca, os morteiros mais ao largo. Via-se que estavam perto. As armas espirravam estrondos, faiscavam pirilampos de fogo devastador, mesmo à boca do mato. As tarimbas rangeram. Em menos de um ámen, todos enfiaram o capacete, as cartucheiras. O ânimo também. Em menos de um ámen, empurraram as armas para o quadril, arrastaram cunhetes de bala e granadas de mão. Alguns, nem sequer tiveram tempo de pensar que iam de berimbau ao léu ou mesmo de cuecas. Tanto fazia morrer nu como vestido (…). Um vulto começou a correr aos ziguezagues na direcção onde eu estava. Os olhos faiscavam. Firmei a arma bem no ombro. Suspendi ainda a respiração. Como se fosse o meu último minuto de vida. Premi o gatilho e abati-o como uma rajada seca de seis tiros. O rapaz dançou no ar, como um boneco de palha. Por outros locais, os gajos tentavam forçar a barreira, vomitando fogo e apostando em fazer das suas (…). O ataque tinha duas partes. Assim, ao recomeçar o tiroteio, verificou-se logo uma intenção mais violenta por parte do IN, a que correspondeu a tropa com fogo nutrido. O pior é que o IN se acobertava e protegia com as casas de tabique da aldeia à nossa guarda e o capitão recusava-se a bater a aldeia com os morteiros. Algumas granadas dos morteiros de calibre 82mm do IN começavam a espirrar com mais força sobre a caserna e a escola. A escola era a messe e a casa de habitação do capitão”.

Em todas as circunstâncias, o contraditório e o complementar são obrigatórios para melhor procurar entender como se ia desencadeando aquela guerra, como reagia a estratégia portuguesa a toda esta carga avassaladora da guerrilha. Por isso se seguirão referências ao que se escreve na “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”. E fica-se rapidamente a perceber que há lacunas fundamentais a preencher para que todas estas peças do caleidoscópio melhor se agreguem para dar uma explicável figura.

(continua)
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Notas de leitura

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Último poste da série de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)