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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26035: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte II e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III


Belmiro Tavares

Vamos transcrever, agora, um texto da autoria do nosso médico, Alfredo Barata, onde ele relata as peripécias de duas viagens que ele fez a Farim, em dias consecutivos, para “apanhar” o avião que o levaria a Bissau; dali, seguiria para Lisboa em gozo de merecidas férias.
Apreciemos a sua escrita e o conteúdo!



A MINHA IDA À GUERRA

“Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitei o transporte da LDM; resolvi deixar a bagagem em Farim e voltar, rio abaixo, até Binta. A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que, na margem, escolhiam poiso para aquela noite. No dia seguinte, de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole. Desta vez ia só, sem o bulício da véspera. O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos que, pouco a pouco, se ia desvanecendo com o romper da claridade. No interior do barco, a tripulação tomava o seu café. Em cima, o piloto olhava, atento, o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para encurtar caminho.

Encostado à torre da peça desguarnecida, eu passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo: – Aqui é a foz do Caúr, mais adiante Tambato Mandinga. Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens… Se não me engano… Que deixa ver as moranças da tabanca… Sim, é ali. (Já lá tínhamos chegado e, com efeito, era ali). De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.

Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo "deitar" das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão. As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia passaram no espírito, desapareceram rapidamente; logo verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.

Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro. O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre de 20 mm "calou" o tiroteio inimigo. Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estar os terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da "operação", não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta. A lancha voltou ao seu primeiro rumo e continuou, Cacheu acima, a caminho de Farim. Fez-se o balanço da situação. Quando souberam que tinha sido atingido de raspão, os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois, me apercebi que provinha das minhas feridas. Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazuca, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem… para "ronco". Os malandros tinham visto um oficial, a 80 metros, de pé, isolado na cobertura da lancha, feito "pato" com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.

Pouco depois desembarquei em Farim. O "Dakota" já tinha chegado e, quando alcancei o Comando, já o avião se preparava para descolar. Ainda não era dessa vez que ia para Bissau. Teria de esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite, dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha”.


********************

Vamos agora narrar uma mão cheia de acontecimentos da sua vida que são – pensamos – dignos de registo e devem ser do conhecimento dos vindouros. Vamos começar, precisamente, pelo mais antigo.

Após o seu nascimento, o senhor seu pai, deslocou-se à Conservatória do Registo Civil para proceder ao registo do seu nascimento. Após ligeira conversa, o funcionário público, ciente do seu papel, informou que ao neófito não podiam ser atribuídos quatro sobrenomes:
- Mas está certo! – respondeu o pai da criança, acrescentando: - O Meu filho chama-se Alfredo Roque e tem apenas três sobrenomes – Gameiro e Martins Barata.

E elaborou-se o registo!

O nosso bom João Semana não seguiu uma das carreiras dos seus pais, aliás como fez o mano mais velho que não descarrilou, seguindo arquitetura.

Graças a Deus! O nosso mui ilustre amigo, Dr. Alfredo Barata, não seguiu a tradição. Assim, a Medicina Portuguesa e a nossa CCaç 675 ganharam um grande médico sempre pronto a dar tudo pelos seus feridos e doentes.

Concluído o curso de medicina já casado e aprovado no COM (Curso de Oficiais Milicianos) em um dos primeiros dias de maio de 1964, apresentou-se, no RI 16, em Évora, sendo logo incorporado na CCaç 675. No dia 8 de maio, muito compenetrado, partiu connosco, no navio Uíge, rumo à Guiné longínqua e… maleitosa.

Em meados de 1965 apareceu, de surpresa, na vila de Farim, uma senhora loira que, muito confusa e perdida, no meio daquele emaranhado de itinerários variados, procurava o caminho mais curto que a conduzisse em segurança, até à aldeia mais badalada da Guiné. Talvez se falasse tanto de Guilege como de Binta mas por motivos bem diversos. Recorreu aos serviços do BCav 490 que, logo, enviaram uma mensagem via rádio a anunciar a presença de tão ilustre senhora, naquela vila. Tratava-se, apenas, da mui dedicada esposa do nosso preclaríssimo amigo, o dr. M. Barata. Como, ali, (em Farim) não havia transportes públicos (e privados também não) uma coluna de viaturas militares, partiu, imediatamente, para trazer, até Binta, a mui digna esposa do nosso conceituado médico.

Podemos afirmar que todos, sem exceção, deram o seu melhor para que aquelas férias (algo forçadas) fossem, minimamente, agradáveis; ficou hospedada, com o marido, num hotel 5 estrelas super e ninguém ousou cobrar-lhes qualquer verba pela luxuosa estada – serviço distinto… à moda da CCaç 675.

Lamentamos! Mas nem sempre foi possível evitar à ilustre veraneante um ou outro momento de certa confusão ou até aflição mas ela não se preocupou porque… o seu marido estava por perto. Era quanto lhe bastava!

O nosso médico gostava de se divertir com certas brincadeiras, mesmo que “picantes” e até com certas traquinices, mas, neste caso, apenas com graduados (oficiais). Que o diga o alferes Tavares! Este oficial sofreu de uma otite bilateral; o nosso bom Galeno tratou dele com lavagens que chegaram a ser bidiárias. Em uma destas lavagens, o dr. Barata usou, propositadamente, água fria. O Tavares sentiu umas tonturas inclementes e o Dr. Barata ria que nem um desalmado. Logo ele pediu desculpa ao seu paciente e continuaram a ser bons amigos, como teria de ser. Ele terá herdado esta veia “cómica” ou brincalhona da senhora, sua mãe.

Ele contou que na primeira vez que levou a namorada (a tal jovem loura) a jantar em casa dos seus pais, a senhora, sua mãe, serviu a sopa a todos mas, no prato da futura nora, colocou uma barata. A jovem candidata a esposa do nosso médico nada disse; pensava como haveria de sair daquela embrulhada. A senhora, mãe do nosso médico, apercebendo-se da enorme confusão que iria naquela cabecinha loira retirou o prato da sua frente e comentou:
- Apenas pretendia averiguar se gostava mesmo de Baratas!

O nosso excelente médico gostava de disputar uma sempre agradável partida de xadrez; acontece que na CCaç 675, apenas o Moura, o primeiro-cabo operador cripto, n.º 2542 (vulgo Cifra) tinha arcaboiço para o enfrentar mas… não dispunha tempos livres para aquele desporto muito especial. Aliás, ele ainda hoje participa em campeonatos de xadrês lá na sua terra natal.

O doutor Barata decidiu” viciar” o Tavares e ensinou-lhe as regras básicas daquele desporto; durante cada jogo, ele corrigia os erros e sugeria a melhor saída. Era um bom ensinador, o dr. Barata! Um belo dia, iniciaram a partida e, pouco depois, precisamente, ao terceiro lance, o Tavares alertou, contente:
- Xeque ao teu rei!
O bom do nosso médico olhou, fixamente, para o tabuleiro e, volvidos uns largos segundos perguntou escandalizado:
- Sabes o que fizeste?
- Dei xeque ao rei! - Respondeu o Tavares, eufórico.
- Não deste um xeque qualquer! Tu deste xeque-mate! Como ocorreu ao terceiro lance, chama-se “xeque Pastor”! Nunca pensei que tal pudesse acontecer-me, principalmente, com um principiante! Isto não pode repetir-se!

O Tavares nunca tinha ouvido falar em “xeque Pastor” mas… ficou entusiasmado. Com certa frequência, brindava-o com este dito:
- Olha que eu dou-te um Xeque Pastor!
Ele respondia:
- Isso nunca mais acontecerá!

Mas foram sempre bons amigos e durante a viagem de regresso, a bordo do já velhinho Uíge, passaram largas horas com o tabuleiro entre eles.

Em 1969, o Tavares pediu ao dr. Barata que o ajudasse a escrever os envelopes para a convocatória da confraternização daquele ano. Como ele tinha uma vida bastante ocupada, sugeriu que o Tavares se deslocasse ao Instituo do Cancro, durante certa noite, porque ele estava lá de serviço. Escritos os envelopes, lá mataram o vício jogando umas partidas de xadrez. Era já alta madrugada quando o Tavares saiu daquele Instituto. Foi, cremos, a última vez que se digladiaram, um de cada lado dum tabuleiro de xadrez. Nesta época, o Tavares já não era o tal principiante; no Colégio Militar havia muitos e bons xadrezistas.

Ainda em Binta, aquando do aparecimento da luz elétrica (finais de setembro de 65) cada um comprou, em Farim, uma ventoinha. Ambos defendiam que a sua soprava mais e melhor que a do outro. Para solucionar o diferendo “inventaram” um anemómetro “made in Binta”: um fio pendurado no teto da sala, com as ventoinhas frente a frente e à mesma distância do fio (medições com régua e esquadro) ligavam-nas, e em simultâneo mas… o diferendo continuava.
Alguém passou rente à janela e, ao aperceber-se daquele aparato, terá comentado:
- Coitados! Até são bons rapazes! Mas… já estão “apanhados do clima”! Se o nosso capitão não prepara para eles uma daquelas duras batidas, lá para as bandas de Sanjalo, aqueles dois ainda vão parar ao HM 241, em Bissau. Acabarão a comissão… antes do tempo!

Apesar de tudo, não chegaram a uma conclusão digna.
Decidiram, então, defender a “honra das ventoinhas” com cortantes espadas mandingas, meio ferrugentas, na mão. Alguns diriam que foi apenas para a fotografia; mas existem mesmo fotografias que comprovam que houve luta renhida mas… inconclusiva; no entanto, esqueceram-se de nomear “padrinhos”! Ficou provado que nenhum deles tinha queda para a luta com espadas… tão ferrugentas.

Um dia, o dr. Barata teve de assistir a um parto difícil; uma jovem africana (etnia mandinga) encontrava-se em sérias dificuldades para dar à luz, pela primeira vez. Dentro da “morança”, o dr. Barata tinha, à sua direita, o fur. mil. enf. Oliveira; à sua esquerda, encontrava-se uma “parteira” nativa, pronta a cortar o cordão umbilical com um ferruginoso facalhão que, só por si, infundia profundo respeito. A certa altura, o Oliveira segredou ao seu chefe:
- A sua “colega” está com ar compenetrado! Mas o seu “bisturi” mete respeito!

Todos terão rezado cada um ao seu Deus para que tudo corresse bem! Mãe e filho salvaram-se! Era o mais importante! Binta precisava de aumentar a população ativa!

O soldado n.º 2227, Henrique Cambalacho (mais conhecido por Sorna perdido e achado… estava a dormir) era um dos nossos guarda-redes. Um dia, ao fazer uma “espantosa” defesa, a bola bateu-lhe com força na cara, ou ele bateu com o pescoço no poste. Foi logo tratado e mandaram-no repousar… não fosse ele o Sorna. Acordou com grandes dificuldades para respirar e gritou por ajuda. Ninguém lhe deu troco, porque se tratava do “Sorna”. Logo, alguém se apercebeu que a cavidade bocal era demasiado pequena para uma tão grande língua. Foi levado, à pressa, para a enfermaria. O dr. Barata mal teve tempo de o submeter a uma traqueotomia… de emergência. Safou-se, à tangente!

O dr. Barata, apoiado por uns tantos voluntários, foi o responsável pelo projeto (não proviesse ele de uma família de arquitetos) e construção de um posto de socorros para os nativos, nossos vizinhos e um parque infantil para a miudagem de Binta. Entretanto, já vinha a preparar um grupo de jovens africanos que sentiam ganas de ser enfermeiros. Quando entendeu que estavam devidamente preparados, autorizou-os a dar “picas”… ao pessoal da tabanca. Inicialmente, eram supervisionados pelos nossos enfermeiros mas, em breve, passaram a trabalhar sozinhos. Sempre que se deparavam com casos mais intrincados… “passavam a bola” à nossa equipa de eficazes enfermeiros.

Há tempos, já acamado, segredou-nos que gostava de voltar à Guiné com a CCaç 675 para reviver aqueles tempos gloriosos, os anos de 1964/66.

Tinha tantas e tão admiráveis qualidades, o nosso médico! Até era saudosista, também!

E por aqui nos quedamos! Temos pressa de “chegar” aos nossos companheiros de todas as horas. Esperamos que ninguém esqueça que a Gloriosa CCaç 675 está acima de tudo e de todos.

Ninguém a esquece, a CCaç 675 merece!

Nota: Acrescentamos aqui as duas “baixas” ocorridas este ano:
- Sold. at. 2328, Joaquim Ferreira Martins, natural de Santo Tirso;
- Sol. eng. Joaquim Nunes Sequeira, natural de Sintra.

Agosto de 2024
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Nota do editor

Vd. post de 10 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III

Belmiro Tavares

2024

No dia 12 de maio de 2024, organizámos a nossa confraternização anual para os nossos antigos combatentes da zona norte. Reunimos em Águeda e éramos 35 convivas. Tudo (quase tudo) correu bem! O almoço estava otimo e foi bem servido. Tivemos direito a uma sala só para nós o que é deveras importante; estávamos, absolutamente, à vontade e não incomodámos os vizinhos.

Para esta reunião, tivemos em devida conta, facilitar a vida aos companheiros, principalmente, os que vivem a norte do Douro mas, segundo parece, a benesse não foi bem entendida. No entanto – cereja no topo do bolo – a irmã e o sobrinho do furriel Mesquita (dr.ª Teresa Mesquita e dr. - Francisco Mesquita) bem como três familiares do soldado n.º 2336, Jerónimo Justo (o filho, José Luis, a nora Maria de Lurdes e o neto, Tiago) fizeram questão de nos brindar com a sua benigna presença. 

Além disso, estes participantes anunciaram que estarão presentes também na confraternização do sul, em Benavente, no dia 22 de setembro do ano corrente. O nosso mui querido general, o Tavares, o C. Figueiredo, o Frade, o Luis Moreira e o Santo Marques percorreram mais de duzentos quilómetros para cada lado; o Gabriel Rosa e o M. Cariano palmilharam cerca de duzentos quilómetros na ida e na volta.

Caros minhotos! Tenham em devida conta que todos nós (os elos da nossa robusta corrente) nos sacrificámos imenso, durante aqueles dois longos anos de bruta guerra para criar e alimentar, até ao dia de hoje esta amizade enorme que nos une; esperamos que ninguém pretenda deitar por terra o esforço, a ousadia, a enorme coragem e a amizade que tem unido todos os robustos elos da nossa corrente. Pensem nisso! Esperamos, sinceramente, que todos pretendam que a Gloriosa CCaç 675 se mantenha viva durante muitos anos. O Tavares defende que sempre foi muito bem recebido pelo nosso pessoal do Minho – em boa verdade nunca foi mal recebido pelos antigos combatentes, em parte alguma! Pretende-se que assim continuemos por muitos e bons anos.

O comandante desta tropa especial continua a ser o nosso General Tomé Pinto que se mantém duro como o aço - se, como ele afirmou, no dia 12 de maio de 1965, em Binta, “Com tais soldados (os da CCaç 675) é fácil ser vencedor. Nós diremos que com tal comandante será impossível não ser vencedor; com ele ao nosso lado, tudo era fácil e, todos juntos, vencemos o que parecia impossível. Teremos de continuar a ser vencedores!

Mudando de rumo!
Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017)


Até ao dia de hoje, não temos notícias dignas de registo acerca do nosso pessoal. Assim sendo, vamos falar de uma figura ímpar da nossa CCaç 675. É certo que não pode haver comparações pois, a sua especialidade era única. Referimo-nos, claro está, ao nosso mui distinto médico, dr. Martins Barata.

Sabemos que provém de uma família de arquitetos e pintores. O seu “mano velho” também foi arquiteto; foi ele quem projetou o emblema da CCaç 675 que veio a ser considerado o mais original (e diferente) de quantos apareceram naquela Guiné tórrida e inclemente. O nosso era, na verdade, simples e simbólico: “CCaç 675 Nunca Cederá” sobre as cores da Infantaria.

Damos como certo que não vamos falar do médico porque não temos cabedal para tanto. Mas podemos afirmar que era um bom médico (muito bom mesmo) e sempre presente onde e quando necessitávamos dele. Nunca virou a cara à luta… à sua luta… que era também a nossa!

Pelo menos nos primeiros tempos de mato, ele foi muito assediado por alguns dos nossos soldados para se livrarem de uma ou outra patrulha mais assustadora. Não constou que alguém tivesse beneficiado de tais artimanhas. O nosso bom Galeno confiava nos seus alargados conhecimentos e experiência de vida e, assim sendo, não seria fácil demovê-lo ou enganá-lo.

Ainda em Bissau, os soldados lamentavam que ele receitava apenas comprimidos LM (Laboratório Militar) e que “os mesmos” serviam para debelar todos os males que os assolavam. O bom do nosso médico foi incansável a explicar que os comprimidos que usávamos eram todos preparados no mesmo laboratório mas tinham finalidades e valências próprias. Conseguiu levar a água ao seu moinho! Tudo ficou esclarecido.

Na primeira quinta-feira que passámos em Bissau, ele mandou distribuir a cada militar, à hora do almoço, um comprimido (“daraprim”, um antipalúdico, se bem me lembro); espalhou-se entre os nossos soldados (nas outras unidades terá acontecido o mesmo) que se tratava “apenas” de um remédio “para combater ou diminuir o “apetite sexual”. Foi difícil combater tal boato entre os soldados, defendendo que se tratava apenas de uma proteção contra o paludismo – uma doença tropical, ainda muito ativa na Guiné e não só. Não evitaria que se contraísse tal maleita mas, quem tomasse aquele comprimido preventivo, não seria tão fortemente atacado.

Com o tempo, tudo entrou nos eixos, devidamente, - o nosso doutor passou no exame – e, lentamente, começou a ser admirado e respeitado (sem imposição) pelos nossos soldados; aliás, ele merecia toda a admiração, consideração e respeito de todos nós.

O doutor Barata gostava de ir connosco para o mato… de vez em quando. O nosso conceituado mestre da guerrilha não gostava (mas não o proibiu) que ele se expusesse, desnecessariamente, e alegava:
- Se o doutor vier connosco de uma patrulha e se tivermos um ferido grave, o senhor não estará nas melhores condições para o tratar como estaria se tivesse ficado no quartel.

O nosso bom Galeno ouviu as palavras sensatas do nosso venerável capitão e terá reduzido o número das suas saídas para o mato… talvez.

Constou que os nossos adversários (os nacionalistas) se assustaram, fortemente, ao ver um militar da CCaç 675 com uma arma tão estranha (uma máquina fotográfica); terão pensado que se tratava de um “lança misseis” e/ou um “drone” e deram corda às sandálias; com o rabo entre as pernas, rumando aos seus esconderijos, como, usualmente, faziam.

Acontece que, no dia 28 de dezembro de 1964, dia em que fomos, severamente, atingidos por uma potente mina anticarro (foi a primeira de seis); o nosso médico estava lá – demos graças a Deus! – caso contrário, os danos poderiam ter sido bem mais graves. Ele manteve-se calmo, atuante e dominou a situação; ia aconselhando os dois cabos enfermeiros, ali presentes, os quais se comportaram como deviam. Naquele dia, de triste memória, nem o fur. mil. enf. Oliveira se encontrava entre os operacionais mas os dois cabos enfermeiros fizeram maravilhas; como soe dizer-se: das tripas fizeram coração! Seguindo o exemplo do seu chefe, iam acorrendo a todos os “focos de incêndio” e… eram tantos, meu Deus!

Sinto vontade de recordar, aqui e agora, as ousadas palavras do mui ilustre “inventor do quadrado móvel” da CCaç 675:
- O soldado português é o melhor soldado do mundo! Ele é corajoso, voluntarioso, valente e ousado. Poderá não morrer pela Pátria ou pela Bandeira, mas, de bom grado, dá a vida pelo seu chefe ou pelo companheiro do lado.
E acrescentava:
- Será que ele – “doa a quem doer”! Será que ele tem as chefias que merece?!

Nota: as palavras em itálico e entre aspas são acrescento nosso.

Voltemos ao campo da verdade!

O dr. Martins Barata conseguiu, no meio daquele inferno medonho e sem os meios adequados, elaborar diagnósticos completos e perfeitos acerca de cada sinistrado.

Agora, será de bom tom lembrar, também, a extraordinária atuação do soldado nativo n.º 108, Mamadu Bangoran (etnia fula), um soldado com muitos altos e baixos. Naquele dia, de triste memória, não fora a sua inaudita coragem e o seu arreigado portuguesismo e teríamos mais mortos, certamente, ou feridos mais graves, ainda. Ele arriscou, literalmente, a sua vida, entrando no meio daquelas chamas alterosas para retirar dali alguns feridos que, por si só, não conseguiriam livrar-se daquele inferno. Reentrou no meio daquelas chamas impetuosas para recolher espingardas, capacetes, carregadores, cantis, etc. para que não fossem parar às mãos dos independentistas vorazes. Não temeu sequer a mais que provável explosão do depósito de gasolina.

Depois disto, juntou-se aos companheiros que enfrentavam, corajosamente, os adversários que desencadearam uma severa emboscada, logo após o rebentamento da desastrosa mina. Escondidos entre o capim alto e denso, iam fustigando a nossa tropa, que, com eficácia os colocou em fuga desvairada.
Era mesmo assim, aquele jovem fula! Naquele dia, portou-se como um herói!

Que será feito de ti, companheiro, Bangoran?! A CCaç 675 fez de ti um homem e não te esquece! Tu também não nos esquecerás, certamente!

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17527: Tabanca Grande (440): Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017), ex-alf mil médico, CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66), nosso grã-tabanqueiro nº 747... Mais um camarada que não queremos que fique na vala comum do esquecimento


Cartoon > Homenagem ao ex-Alf Mil Médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, da CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66), por parte do seu irmão, arquitecto, pintor e ilustrador José Pedro Roque Gameiro Martins Barata.

(Cortesia  do autor e do JERO -  José Eduardo Oliveira, ex-fur mil enf, da CCAÇ 675)


1. Aqui fica um comentário à morte do ex-alf mil  médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, da CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66),  e uma sugestão, por parte do nosso editor-mor,  Luís Graça,  para que o seu nome passe doravante a figurar e a ser honrado na lista alfabética da nossa Tabanca Grande (*)... 

Pois que assim seja: o Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017) passará a ser o nosso grã-tabanqueiro n.º 747. (**)


JERO: antes de mais, aceita os meus votos de pesar pela morte, sempre prematura, de mais um bravo da Guiné. À família enlutada, transmite a nossa homenagem e o nosso apreço por este camarada, veterano, como tu, da CCAÇ 675, bem como o nosso pesar pela sua perda. 

Os furriéis enfermeiros como tu e os alferes médicos como o Alfredo Roque Gameiro Martins Barata,  a par dos 1.ºs  cabos aux enf que andavam connosco no mato, tinham, na Guiné, uma elevada cotação e eram camaradas particularmente respeitados e estimados. Sempre soubemos contar com vocês, pessoal de serviço de saúde militar, nas horas difíceis.

A vossa família maior, a CCAÇ 675, também está de luto. E com ela a Tabanca Grande. A ti, que és um talentoso escritor, e o porta-voz dos bravos da CCAÇ 675, já com perto de 140 referências no nosso blogue, deixa-me dizer-te que li, deliciado, este naco de prosa de primeira água que é a aventura e desventura da ida do Martins Barata de Binta até Bissau para apanhar o avião, e gozar as merecidas férias de um mês na metrópole. É um texto de antologia.

A preservação da memória do Martins Barata fica, deste modo, acautelada. Mas, na qualidade de fundador, administrador e "editor-in-chief" deste blogue, eu vou propor ao nosso incansável e sempre atento Carlos Vinhal que acrescente à lista dos nossos 746 grã-tabanqueiros o nome do Martins Barata. Vai diretamente para o nosso panteão onde estão já todos aqueles de nós que "da lei da morte se foram libertando". Penso que estou também a interpretar corretamente os sentimentos de toda a nossa Tabanca Grande. 


De resto, e como nós gostamos de dizer, com o nosso humor de caserna, "Não é o Panteão Nacional, é melhor, é... a Tabanca Grande"...

Carlos e Jero, são seis da manhã, estou na Madalena, Vila Nova de Gaia, e justamente também a ultimar a escrita da "oração fúnebre" que vou postar na página da família, "A Nossa Quinta de Candoz", e que gostaria, em nome da nome da família Carneiro, de eventualmente poder ler, no Tanatório de Matosinhos, a um sobrinho da minha mulher que morreu este fim de semana num brutal acidente na A41.  O Jorge Dinis (1962-2014), economista, gestor de empresas,  deixa viúva e duas filhas, estudantes, de 18 e 16 anos... e uma legião de amigos que iam desde o mundo da moda ao desporto automóvel.


Em suma, já não estamos em guerra, mas a morte continua a fazer parte das nossas vidas. Vamos ter que saber continuar a olhá-la, olhos nos olhos, ontem como hoje, e a tentar fintá-la. Mas quando cairmos, que haja sempre um ou mais camaradas que não nos deixe enterrar na "vala comum do esquecimento". Alguns dos "provérbios" que usamos aqui, reforçam a nossa vontade de continuar a lutar contra o esquecimento da nossa geração que soube fazer a guerra e a paz (***)
  • Ainda pior do que o inferno da guerra, é o inverno do esquecimento dos combatentes. 
  • Camarada não tem que ser amigo: é o que dorme no mesmo buraco, na mesma cama, no mesmo abrigo. 
  • Camarada, que a terra da tua Pátria te seja leve! 
  • In Memoriam: para que não fiques, pobre camarada, na vala comum do esquecimento. 
  • Não deixes que o teu espólio de memórias vá parar à Feira da Ladra. 
  • Não fazemos a História com H grande, mas a História não se fará sem a nossa... pequena história. 
  • O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! 
  • Para que os teus filhos e netos não digam, desprezando o teu sacrifício: "Guiné? Guerra do Ultramar? Guerra Colonial? Não, nunca ouvi falar!"... 
  • Sempre presentes, aqueles que da lei da morte já se foram libertando. 
  • Tabanca Grande: onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa 
  • Tuga, que Deus te livre da doença do... alemão.

PS -  O nosso camarada Alfredo Roque Gameiro Martins Barata  era um dos 4 filhos o casal de artistas plásticos Jaime Martins Barata e Maria Emília (Màmia) Roque Gameiro, filha do pintor e e desenhador Alfredo Roque Gameiro
___________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17511: In Memoriam (299): Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017), ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 675, Binta e Guidaje, 1964/66 (José Eduardo R. Oliveira)

(**) Último poste da série > 18 de junho de  2017 > Guiné 61/74 - P17484: Tabanca Grande (439): João Cerina, ex-Fur Mil da CCAV 1615/BCAV 1897, passou à disponibilidade em 1972 como Segundo-Sargento Miliciano, vive na Guiné-Bissau e é o 746.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia