Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) > s/d > Os camaradas (etimologicammente, os que dormem na mesma "câmara", quarto, camarata, no mesmo "buraco", que dormem, comem, vivem e... morrem juntos), sempre presentes no dia a dia da guerra, vão substituindo a família, os vizinhos, os colegas de escola, os amigos, etc. que ficaram lá longe, na terra... São também companheiros, porque comem o mesmo mão à mesma mesa (do latim, cum + panis, o que partilha o pão connosco).
Foto (e legenda): © Armando Oliveira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Comentário de Luís Graça ao poste P26816 (*):
Há uma coisa que muitos oficiais e sargentos do QP, bem como milicianos (alferes e furriéis) não compreendem (ou pura e simplesmente já esqueceram): as nossas praças (sobretudo o pessoal metropolitano) tiveram que se "desenrascar"... em matéria de comes & bebes.
Comiam "mal e porcamente" (e eu creio que a metáfora do porco não é insulto para ninguém!|)... No mato, nos quartéis do mato (não falo de Bissau)... Mesmo quando "a comida era igual para todos" (nos aquartelamentos das unidades de quadrícula: 1 capitão, 4 alferes, 16 sargentos e furriéis, e o resto cabos e soldados, uns 130/140), as praças comiam sempre pior...
Já não falo nos destacamentos, guarnecidos por 1 Grupo de Combate...onde nem cozinheiro havia, e o reabastecimento (genéros alimentícios, munições, etc.) era sempre um "bico de obra"...
Ninguém é capaz de admitir hoje que "passou fome" na guerra, na Guiné, até por que o "tuga" era sempre capaz de se "desenrascar"...
Fome ?... Talvez, pontualmente, no mato, em operações... Mesmo "intragáveis", as rações de combate que nos fornecia o exército português, ainda tinham uma ou outra coisa aceitável para enganar o estômago, sem provocar uma sede do caraças... (Depressa aprendi a prescindir delas, ou de grande parte do seu recheio!)
Mas as nossas operações podiam durar 24 h, 48, 72 h, no máximo... No regresso ao quartel, havia sempre uma sopa quente, com muita água, pouco azeite e poucos legumes, mas ainda assim quente. E havia, graças a Deus e aos bons irãs, e à Intendência (a quem tiro o quico!), cerveja, muita cerveja, mesmo que que fosse "choca". E coca-cola, e uísque... E até barris de vinho oiu "ãgua de Lisboa"!...
O José Claudino da Silva, cantineiro, em Fulacunda, logo em finais de 1972, requisitava, 12 mil cervejas por mês, com medo do "apagão da Intendência", estamos a menos de dois anos do fim da guerra, num quartel isolado, no mato, a 3ª CART / BART 6520/72, que além dos seus 150 homens metropolitanos, tinha mais um Pel Art (em que as praças eram africanas) e um Pel Mil (também de pessoal africano).
De resto, muitos dos nossos militares, sobretudo oriundos das zonas rurais, do interior do país, de Trás-os-Montes ao Alentejo, foram habituados, desde pequeninos, à "frugalidade":
- quem é que bebia leite ?
- quem é que comia queijo ?
- quem é que sabia o que era um iorgurte ?
- quem já tinha provado fiambre ?
- quem comia peixe fresco ?
- e carne (sem ser da salgadeira) ?
- e bacalhau (sem ser no Natal e na Quaresma) ?
- quem bebia cerveja ?
- e leite com chocolate ?
- e sumol ?
- e café ?...
- (Para não falar da "coca-cola", uma "americanice" que não entrava no Portugal do Estado Novo).
Porra, e ninguém se revoltava !... E a malta aguentuou 13 anos!... Fala-se em sangue, suor e lágrimas, mas ninguém acrescenta a merda, a fome, a sede!...13 nos anos com a canga em cima, a G3, as cartucheiras, as granadas de mão, as granadas de morteiro (ou de bazuca) às costas, mais os 2 cantis de água... Mais os feridos e os mortos em padiola!...
Eu fiz alguns milhares de quilómetros a penantes, na Guiné, com os meus/nossos "pretos" da CCAÇ 12, entre junho de 1969 e março de 1971...Sei do que falo... Mas chegava a Bambadinca, dois ou três dias depois, com 2, 3 ou 4 quilos a menos, tomava um duche reparador... e não me podia queixar da messe de sargentos...
Nunca me faltou o uísque com água de Perrier e duas pedras de gelo!... Nem o gin tónico com limão ou lima!... Não bebia cerveja nem "água de Lisboa", a não ser às refeições...
Mas, porra, dou agora conta, 50 e tal anos depois, que nunca me sentei no rancho geral, para partilhar uma refeição com os meus cabos, que eram metropolitanos, e que tinham uma barriga igual à minha... Em Bambidina, existia o "apartheid", nobreza, clero e povo, devidamente segregados, em termos sociais e espaciais (**)...
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(**) Último poste da série > 16 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26807: S(C)em Comentários (66): Eletrificação - As primeiras redes de energia elétrica na Guiné nas décadas de 1930 a 1950 (Manfred Stoppok)