sábado, 24 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23914: Os nossos seres, saberes e lazeres (547): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (82): Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Foi um dia em cheio, o do regresso a este ponto do condado de Oxford, que não se visitava depois da pandemia. Deu para recordar e anotar diferenças, os velhos bares afundaram-se , a taxa sob bebidas alcóolicas e o confinamento levaram ao encerramento de casas históricas; o comércio local também vai mudando de natureza, são as cadeias de grande distribuição que presidem agora ao abastecimento, até as caixas de multibanco se sumiram, a entrega do correio faz-se numa loja de jornais, revistas e bombons. É uma zona cada vez mais residencial, faz parte da lógica do viver britânico, estar perto do campo, não viver em prédios; a natureza mantém-se acolhedora, vê-se à vista desarmada que as condições de vida e o poder de compra já não são o que eram, cada conversa desliza rapidamente para o preço do gás e da eletricidade, há quem tema mudanças no aquecimento das casa, fazem-me perguntas, olham-me surpreendidos quando lhes respondo que reforço a vestimenta em casa, aliás dou-me mal com o aquecimento.E agora há que contar o bem que me soube voltar a Oxford, onde as diferenças também são muito grandes, deu-se uma relativa pulverização das lojas de livros e de música, lê-se de outro modo e arrenda-se a música para 3 dias. Aconteceu visitar a cidade em dia de solenes exéquias da rainha, inadvertidamente apanhei um concerto de truz em magnificência de catedral. Eu depois conto.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (82):
Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (2)


Mário Beja Santos

Prometera dar-vos conta de uma visita a Oxford, venho atrás com a minha palavra, com a pressa de alinhar as imagens esqueci outras lembranças de Faringdon, vividas no primeiro dia. A Oxford e ao seu portentoso museu de arte e arqueologia iremos logo a seguir.
A primeira imagem de hoje é de quem foi ao posto de turismo, onde agora se situa o museu local e que no passado era a casa da bomba de água, chegou a ser hospital, tornou-se depois propriedade de Lorde Faringdon que a cedeu à autarquia, é aqui que se pode visitar o museu a que fizemos referência no número anterior. Em frente está uma bomba manual, serviu de fonte, terá sido construída no século XVI e reconstruída no século XVIII, adicionaram-lhe duas lâmpadas de gás. Felizmente que a deixaram de pé, é talvez o melhor agradecimento que se pode fazer àquela que foi ao tempo a principal reserva de água para abastecimento público.

Pump House e o que resta da velha fonte de abastecimento público

Uma das visitas obrigatórias em Faringdon dá pelo nome da igreja All Saints Church, faz parte da história local, Faringdon está perto do Vale do Cavalo Branco, conserva um celeiro do século XIII, ocupou uma posição estratégica durante a guerra civil do século XVII, os fiéis de Carlos I aqui se confrontaram com as forças parlamentares, os adeptos de Oliver Cromwell lançaram umas bombardas para a torre, e o resultado está à vista, ficou uma torre minguada. All Saints Church assenta numa antiga igreja do tempo saxão, a sua nave é tipicamente normanda, obviamente com alterações introduzidas no período gótico, a sua porta é uma preciosidade. Não é a primeira vez que vos falo deste assunto, mas apraz-me frequentar este espaço cemiterial, nada tem de medonho, é uma bela evocação da serenidade que julgo necessária para rememorar entes queridos que nos ficam para trás. Vejam as imagens, não há nada de tétrico, que os mortos estejam em paz neste coberto florestal.
Uma bela porta ao gosto normando
Faringdon foi até ao século XIX uma importante encruzilhada de caminhos, não é por acaso que esta rua de chama London Street, hoje é uma área residencial, está nas rotas do turismo interno devido às suas atrações periféricas (Vale do Cavalo Branco, Buscot Park e Buscot Manor, cuja visita aqui se registará e Kelmscott Manor, casa de verão de um genial artista, William Morris, ligado ao movimento Art and Crafts, algo como a arte nova decorativa britânica). Não esqueço a primeira visita que fiz a Faringdon, e logo aqui fiz referência, um celeiro que dá pelo nome de Great Coxwell Barn, fazia parte de uma abadia, foi construído no século XIV, Morris chamava-lhe uma das mais belas peças da arquitetura inglesa.
Interior do celeiro do século XIV, impecavelmente restaurado
O passeio até à torre Folly é uma exigência para abarcar uma vastíssima panorâmica deste belo ponto do condado de Oxford. Foi-se por esta vereda até se avistar a construção de 1935 proporcionada por Lorde Berners. Toca-nos pela sua elegância, pelo gesto humanitário que lhe está subjacente (ajudar gente desempregada), o edifício tem pouquíssima aplicação, há para ali umas reuniões anuais, mas diga-se o que se disser é o ícone de Faringdon, se o Lorde era excêntrico extravasou na perfeição para o empreendimento a que nenhum turista se furta, e a compensação do desfrute é sempre muito elevada.
Todos os passeios pedestres em tarde ensoleirada maravilham quem gosta de contemplar a natureza. Foi o que se fez, caminhando à margem da estrada que leve a Lechdale, um calor inusitado para a estação, mas aqui também a meteorologia anda às avessas, é um verde sempre muito lavado pelos orvalhos bem gotejantes, os caminhos bem tratados, a natureza pródiga, foi um passeio que deixou saudades.
É aqui que me encontro aboletado, com direito a tratamento familiar, o que se vê desta janela é uma paisagem deslumbrante, sentado olhei para aqueles inesperados reflexos da luz na parede, dou-vos a minha palavra que me pareceu um quadro, foi só puxar pela câmara, creio que resultou, ao leitor cabe decidir.
Aqui se deixa o prenúncio da visita a Oxford, o Museu Ashmolean é uma atração irresistível, espraia-se por cave, subcave e três andares, lá em baixo é o ponto de eleição para levar a miudagem, tem uma organização profundamente didática para ensinar a explorar o passado, a explicar o que é a conservação de um objeto de arte, mostra as sucessivas etapas do dinheiro, da leitura e da escrita e dos têxteis. Sobe-se umas escadarias e entra-se no mundo egeu, no Egito, na Mesopotâmia, na China, na Pré-História europeia, na escultura greco-romana, na Índia primitiva, na Itália antes de Roma e nas artes do império romano. E não digo mais para vos falar a seguir das minhas escolhas. Antes da fachada do Ashmolean que aqui se vê, temos a imagem de uma época de intolerância, no reinado de Maria a Sangrenta esta mandou para a fogueira recalcitrantes religiosos, aqui fica a lembrança de que não se deve brincar com o fogo que é a fé de cada um.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23888: Os nossos seres, saberes e lazeres (546): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (81): Regresso a Inglaterra em plenos funerais de Isabel II (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23913: Boas festas 2022/2023 (10): Mensagem dos nossos amigos nova-iorquinos Vilma e João Crisóstomo


Nova Iorque > Queens > Dezembro de 2022 >  A primeira coisa que fiz ao voltar de Portugal foi dar os devidos "ares de Natal” à minha casa. As luzes são menos este ano, excepto na entrada que está mais ou menos como em anos anteriores.


Nova Iorque > Dezembro de 2022 > Depois dum concerto de  Natal no ‘Carnegie Hall,  fomos ver a árvore de natal no “Rockefeller Center”. "Boas Festas”...



Newark, New Jersey > Dezembro de 2022 > cidade que conheço bem e onde ainda vou de vez em quando, especialmente para me fornecer de coisas portuguesas, como sucedeu na semana passada num dia das compras para o Natal: bacalhau, bolos-reis (para nós e presentes para os amigos),  azeite, vinho verde e tantas coisas que nos ajudam a matar saudades Na foto, a Vilma,  a minha filha Cristina e o meu neto Caton no meio da secção de bacalhau…

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas de Guiné]


1. Mensagem do João Crisóstomo, Nova Iorque, com data de hoje, às 14;44:


Caríssimo Luís Graça e Alice

Era minha intenção telefonar-vos hoje dia 24 (são agora 06.00 AM aqui, mas os fusos horários fazem uma hora já avançada para vocês), mas resolvi antes mandar este E mail.

Ontem ao deitar dei uma olhada pelo Blogue para ver se haviam mensagens de boas festas dos nossos camaradas . Últimamnente tenho andado mesmo ocupado e já há tempos que não tenho visitado o blogue.

E logo deparei com algo que me chamou a atenção e curiosidade : Um conto de natal em que um pobre (Um tal Garrinchas, criado pelo nosso grande Miguel Torga) consoou com a Nossa Senhora e o Menino Jesus). Que coisa linda de ler! Só mesmo um Miguel Torga! E só mesmo um Luís Graca para lembrar, encontrar e ter a ideia de nos enviar um presente destes como presente de natal . Obrigado meu caro. Com certeza muitos outros ( mesmo que não façam comentários) vão sentir o que eu senti. E só por isso já valeu bem o tempo que te levou a escrever este post de natal.(*=

E logo me lembrei que tenho de telefonar ao António Luís Malhado. O Peixeira tinha-me pedido para o contactar, pois não conseguia falar com ele já há bastante tempo. E fui a descobrir que este nosso "camarada da Guiné" vive relativamente perto de mim, em Newark, New Jersey, cidade que conheço bem e onde ainda vou de vez em quando, especialmente para me fornecer de coisas portuguesas, como sucedeu na semana passada num dia das compras para o Natal… (Ver foto: a Vilma , a minha filha Cristina e o meu neto Caton no meio da secção de bacalhau…) 

 Ele, como o meu primo Germano, era do pelotão do Joaquim Peixeira. Gostei de falar com ele e até ficamos de nos encontrar logo que possível. Porque ele usa computador,  vou tentar "aliciá-lo” para entrar para a Nossa Tabanca. Vamos a ver. Entusiasmos e situações semelhantes anteriores não levaram a sucesso. Oxalá neste caso tenha mais sucesso .

Mas o sono não vinha e logo decidi ver mais alguns posts recentes. E vi então muitas mensagens de Natal de camaradas nossos: joaquim Alves, Beja Santos, António Ramalho, Ramiro Jesus e Valdemar Queiroz. 

Mas aos Valdemar Queiroz e Beja Santos, de quem tenho os contactos telefónicos, vou logo que me for possível tentar chamar directamente. A todos os outros, mencionados ou não, que enviaram a sua amizade e saudações — e também outros como o Abel Rei que o fizeram no facebook, == de que tive conhecimento pela minha Vilma que frequenta essas paragens —  o meu Muito Obrigado com a certeza dos meus votos de Boas Festas e a minha amizade também. (**)

A minha “navegação”pelo blogue levou-me ao teu “Arquivo.pt” onde , entre muitas outras coisas fui deparar com muitas fotos, descrições de lugares que "foram meus" antes de "serem teus", como os casos de Bambadinca, Bafatá, Xime, etc, que,  embora na maioria dos casos já tenha visto em posts e ocasiões anteriores, me veio proporcionar relembrar divagar e sonhar uma vez mais nesta "quase véspera" de Natal de 2022/23…

E decidi ler alguns dos comentários aos blogues mais recentes para descobrir entre os comentários ao post P 23905, que "eu este ano, estou como o condenado à morte, da cama para o corredor para a cama, com uma escapadela (temerária) ao portátil, na mesa de trabalho... Apanhei /apanhámos uma virose ou uma gripe daquelas de caixão à cova... E coitadinha da neta que andou a espalhar os vírus, não sei como ela vai conseguir esta noite ir no 'avião grande« para a «Madeira Grande«... Por mim e pela a Alice, o Natal está feito...Faz-me tristemente lembrar as tristes crises palúdicas da Guiné"---

E eu que raramente rogo pragas (mas faço-o quase sem dar por isso quando as razões são fortes) dei comigo a acordar a Vilma e a praguejar contra mim mesmo… "Como é possível passarmos tanto tempo sem telefonar que o pobre do Luís Graca e a Alice estão doentes e nós nem sabemos nada?”

Bom meu caros…mea culpa, mea culpa… Very very sorry to hear this. Oxalá essa virose ou gripe malvada passe depressa. Ficamos “torcendo”,”rezando” ou o que quer que seja seja mais forte e dê mais resultados. Estamos com vocês. Com muita saudade e muita amizade,

João e Vilma
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Guiné 61/74 - P23912: Boas festas 2022/2023 (9): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS; Joaquim Costa, ex-Fur Mil API; José Câmara, ex-Fur Mil Inf; João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil e Idálio Reis, ex-Alf Mil Inf

BOAS FESTAS DOS NOSSOS CAMARADAS


1. Mensagem natalícia do nosso camarada Hélder Sousa, (ex-Fur Mil TRMS, TSF - Piche e Bissau, 1970/72)

Meus caros amigos e camaradas (e outros)
Com estas expressões acima, procuro que as mesmas sejam inclusivas para os "amigos" de diversos graus, ou seja de profundidade de interação, desde os superficiais aos mais profícuos, e também para os "camaradas", sejam os das Transmissões, os de Piche, os de Bissau, os que de mais perto ou de menos perto comungam pontos de vista próximos.
Claro que nesta época de grandes desejos de felicidade, e tendo em conta o meu cognome de "conciliador-mor" pressurosamente colocado faz tempo, não poderia deixar de incluir nestas palavras "os outros", aqueles que não se enquadram nas duas categorias anteriores.
Em épocas recentes acabava sempre por fazer um ou outro "escrito" marcado pela dor do falecimento da minha mãe no dia do Natal de 2012. Agora, passados 10 anos, embora ao chegar "a data" ainda mexa comigo, já consigo o distanciamento suficiente para vos desejar umas "Festas Felizes", ou seja, um "Bom Natal", comemorando o nascimento de Jesus que, embora parecendo um acontecimento intrínseco apenas à Fé Católica, na realidade se trata de algo que veio dar ao Mundo uma nova esperança de vida e de relacionamento entre pessoas, e também um "Feliz Ano Novo", embora se saiba que se trata apenas de um simples desejo, já que tudo indica que não será bem assim.

Então... para todos, "Festas Felizes"!
Hélder Sousa


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2. Mensagem natalícia do nosso camarada Joaquim Costa, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74):


Para o Administrador, Editores e toda a "comandita" do nosso Blogue, um SANTO NATAL e um entrada à P**** em 2023.

São os votos deste sempre Periquito
Joaquim Costa



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3. Mensagem natalícia do nosso camarada José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73):

Caro amigo,
Que o Natal seja passado com muita paz e saúde, sem dúvida a melhor prenda que o Menino nos pode trazer, no seio da família.
Boas Festas e Bons Anos.

Abraço transatlântico.
José Câmara


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4. Mensagem natalícia do nosso camarada João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, CMDT do Pelotão de Transportes Especiais (BENG 447, 1968/71):
Bom dia,
Venho desejar-te os melhores votos de Feliz Natal por email pois perdi o meu telemóvel com todos os contactos.
Continuo porém a acompanhar e ler todos os dias o "nosso" blog.

Até breve,
Um abraço
João Rodrigues Lobo


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5. Mensagem natalícia do nosso camarada Idálio Reis, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835 (Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69):

Festas Natalícias felizes e um próximo Ano vivido em pleno no seio de toda a família.

Calorosamente,
Idálio Reis

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23908: Boas Festas 2022/23 (8): Relembrando a nossa partida para o CTIG, em 22/12/1971, recordando os mortos e desejando melhores dias para os vivos (António Duarte, ex-fur mil at inf, CART 3493/BART 3873, e CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xitole, 1972/74)

Guiné 61/74 - P23911: Conto de Natal (25): Quando o pobre do Garrinchas teve o privilégio de fazer de São José e consoou com a Nossa Senhora e o Menino Jesus (Uma pequena obra-prima de Miguel Torga, do livro "Novos Contos da Montanha, 1ª ed., 1944)


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1997)
Fotos: cortesia de RTP Arquivos e Imprensa Nacional


1. Temos, por tradição, publicar nesta altura um "conto de Natal"... Já lá vão  duas dúzias de contos (*). Mas,  este ano, não sei por que carga de água (não é por falta dela...),  ninguém se lembrou mandar nada, nem uma miniconto de Natal. Que falta cá nos faz, o "alfero Cabral"!... Ele teria tapado o buraco, remetendo-nos um contozinho, passado cá ou lá, no território da Guiné do nosso tempo... 

Tive, portanto, de ir meter a foice em seara alheia para manter a  tradição ou pelo menos tentar salvar a honra do convenento ou, pelo menos, as aparências... Não interessam agora as razões, a verdade é que eu podia ter espicaçado a criatividade e a sobretudo a vontade dos nossos escritores natalícios.

 Mas a semana foi má, com o editor-mor, também de molho, na cama, a largar suores frios com uma virose ou gripe daquelas das antigas que matam os velhos e vergam os novos...

E confesso, aqui, um paradoxo: nunca até hoje ninguém se lembrara de nos mandar o conto "Natal", de Miguel Torga, que hoje vamos publicar. Até como "prenda de Natal", ou com o simples pedido de divulgação do melhor que se faz "para lá do Marão", que a malta às vezes até é briosa na defesa das coisas do seu "chão", não +e Francisco, não é Zé Manel ?!...

Estou-me  a referir, obviamente, aos muitos transmontanos e durienses que se sentam aqui connosco à sombra do poilão da Tabanca Grande, alguns dos quais com créditos firmados nas letras (poesia, ficção, memórias, reportagem): estou-me a lembrar, assim de repente (e seguramente correndo o risco de esquecer de outros), dos nomes dos nossos queridos Alberto Branquinho, Fernando Gouveia,  Franscisco Baptista, Paulo Salgado, Zé Manuel da Régua, etc. Mas ainda podíamos alargar o leque aos vizinhos minhotos e aos de Entre Douro e Minho, como o Manuel Luís Lomba, o José Teixeira, o António Carvalho, o Joaquim Costa, o Mário Leitão, o Luís Jales de Oliveira, a Rosa Serra, o Abílio Machado, o Zé Ferreira da Silva, e por aí fora... Tudo gente, portanto, nortenha dos quatro costados, portugueses de grei e de lei...

A explicação pode ser simples: afinal o conto ("Natal",  de Miguel Torga) é "muito conhecido" (será  assim tanto ? foi no passado, ainda o é hoje ?)... E depois há o problema dos "direitos de autor"... O autor morreu em 1995, e a sua obra só cai no domínio público lá para o ano de 2065, quando todos nós já estivermos na quinta das tabuletas.... 

Mas vamos ao que interessa, para encurtar explicações: tenho andado, nestes últimos tempos, a ler e a reler alguns dos nossos melhores contistas da língua portuguesa, do Miguel Torga ao José Correia de Araújo, passando pelo cabo-verdiano Germano Almeida. Não me levem a mal que destaque, aqui e hoje, o conto "Natal", de Miguel Torga.

Não entro, propositadamemte, em demasiados promenores de análise literária ao texto que acabariam logo por afastar leitores ou por inibir o prazer da descoberta ou da releitura do conto. Dieri só que +e uma curta história (c. 125 linhas, 5 páginas) de um pobre diabo, na véspera de Natal, que tenta no limite das suas forças e dos 75 anos, chegar, à hora da consoada, à sua terra, Lourosa, algures na  mítica "Montanha" ou "Reino Maravilhoso"... 

O "Garrinchas", nome da personagem do conto, de resto a única de carne e osso, é mais uma figura esculpida na pedra, um sem-abrigo, um "pobre-de-pedir", como se dizia no meu tempo, como dizia a minha mãe ou a senhora professora primária, apontando para o "Livro de Leitura da Terceira Classe: havia os pobres (que éramos todos nós) e os mais pobres dos pobres, os pobres-de-pedir, que andavam a mendigar, "pedir esmola", de porta em porta, "a mão estendida à caridade". 

Vinham em bandos, em geral, à sexta.feira, e às vezes de longe, de fora do concelho... Tal o como o  "Garrinchas" que sabia, por experiência própria, que os santos da casa não faz4m milagres , entenda-se, não abrem facilmente os cordões à bolsa, são mais forretas.

Portanto, o leitor é confrontado com um problema social muito grave que se arrastava, há mais de dois séculos, desde as invasões napoleónicas, e se prolonga para lá do fim da Monarquia,  a I República e o Estado Novo, até aos anos 60/70, o da indigência social (no campo e na cidade).  

Sempre houve em Portugal (e na Europa) bandos e bandos de gente a mendigar, "a estender a mão à caridade",,,. Mas este "Garrinchas" é um solitário, perdido nos confins da Terra Fria ou da Terra Quente, não se sabe ao certo,  de Trás-Os-Montes, imaginamos nós.

A magia deste conto (uma pequena obra-prima como quase todos os outros que o autor publicou, e que eu adoro ler e reler) está na importância que o "sagrado" assume, de repente, no final do conto... o "sagrado" está sempre subrepticiamente presente na escrita  de Torga,  ele que não era crente, era profundamente espiritual (uma "animista", diríamos nós na Guiné),  em comunhão com a terra, os outros e os demais seres vivos. 

Que ele, lá no Olimpo dos escritores e artistas, onde finalmente descansa das agruras da vida terrena (e não foram poucas!),  nos perdoe este atropelo ao direito de autor, mas ele saberia compreender e aceitar, se fosse vivo e nos lesse, que é tudo por uma boa causa. 

Por favor, caro leitor, saboreia esta prosa, devagar, de preferência, lê-a à lareira (ou luz da vela), logo à noite, entre o vinho fino (também pode ser uma aguardente DOC da Lourinhã ou um bagaço de Candoz ou um medronho do montado da serra algarvia) e a aletria (ou o arrroz doce)... 

Lê-o, por favor, em voz alta, para os mais novos (e os menos novos que ainda que não tenham  desistido  de aprender e de sonhar...). E depois, escreve-nos,  a dizer se valeu a pena a experiência. Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023. LG

Natal 

por Miguel Torga  (1905-1995)

Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa (#), pior. Ninguém dá nada. 

– Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!

Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo (#) por muito largo conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo  (#), permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. 

O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. 

Aflito, batia-lhe na taipa (#)  do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer?

Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias, queriam dizer. Importava-se lá. E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!

O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa… Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida…

Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha. Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não. 

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. 

 Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. 

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho (#). Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo. 

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava? 

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. 

 É servida? 

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira. 

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga


In: Miguel Torga - Novos Contos da Montanha, 15ª ed. Coimbra, edição de autor, Gráfica de Coimbra Lda, 1991, pp. 121-126 (1ª ed., 1944).

[Seleção, revisão e fixação de texto / Bold a preto / Notas de rodapé, para efeitos apenas de publicação deste poste: LG]
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(#)Notas do editor LG: 

 Lourosa e os demais topónimos /Carvais, Feitais, Loivos..) são fíctícios. Mas ficam na "Montanha", no "Reino Maravilhoso"... 

Como explica o próprio criador: (...) "– Para cá do Marão, mandam os que cá estão!…
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
– Entre!

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.

Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição." (...)

(#) Canelo: canela da perna.

(#) Forno do povo: padaria coletiva nas aldeias de Trás-os-Montes, gerida pelas comunidade, onde toda a gente cozia o seu pão. Havia um sistema de trabalho rotativo. Funcionava também como albergaria para estrangeiros e pedintes de passagem pela aldeia. Estava permanentemente aquecido. Era uma instituições do "comunitarismo primitivo" de que Rio de Onor e Vilarinho das Furnas foram até aos anos 50 os exemplos mais perfeitos.

Imagem à acima, à esquerda: antigo formo do povo de Tourém, Gerés. Cortesia de GR 50 Peneda-Gerês > Forno do Povo, Tourém, Montaleger

(#) Taipa: parede de tabique

(#) Em Trás-os Montes, arcanho quer dizer traste, móvel, utensílio ou objecto considerado velho ou de pouco valor.
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... E depois, caro leitor,  de teres lido o conto, aponta, na tua agenda, uma visita, na próxima primavera de 2023, à Casa-Museu Miguel Torga e ao Espaço Miguel Torga (desenhado por Eduardo Souto Moura), em São Martinho de Anta, Sabrosa, recentemente inaugurados há menos de um ano... E não te esqueças que a terra não é só do Torga, é também de uma  nossas heroínas, a enfermeira paraquedista Giselda Pessoa (Antunes, apelido de solteira)... E depois vê o vídeo Casa Museu Miguel Torga, 27' 25'').

Guiné 61/74 - P23910: Parabéns a você (2129): Fernando de Jesus Sousa, DFA, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Bedanda, 1970/71

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23907: Parabéns a você (2128): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Bigene e Guidage, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Bissau, 1968/70) e Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira, poetisa e declamadora

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora a cerca de metade do livro em que o nosso confrade José Matos é coautor. Deu-se a evolução da FAP de 1961 a 1963, houve melhorias em Bissalanca, o pessoal melhorou a sua capacidade de treino, começou a guerra, que alastrou rapidamente da região Sul para a outra margem do Corubal e subiu até ao Morés. O que aqui se relata é esse primeiro ano das missões da FAP na Guiné. Como observam os autores, os pilotos tinham inicialmente grandes dificuldades com as cartas desatualizadas, procedem ao registo de acidentes e dão conta do estado das aeronaves. É facto que o efetivo das forças terrestres aumentara gradualmente nestes primeiros anos, os comandos militares não dispunham inicialmente de um bom sistema de informações, o corrupio de operações limitava-se a tentar suster as intrusões e a constituição de bases no interior do território, mas desconhecia-se integralmente a questão central da manobra do PAIGC. Quando se vêem historiadores a criticar estes 2 primeiros anos da guerra, estes críticos de bancada não tomam em consideração que era a guerrilha que possuía a iniciativa e o defensor procurava imaginar o que vinha a seguir. Mas foi assim que aconteceu, é manifestamente irrelevante andar a pôr a História em tribunal.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Os capítulos subsequentes permitem-nos ter, mediante processo diacrónico, a evolução dos decisores políticos quanto à formação e equipamento da FAP nos diferentes teatros de operações, e depois o trabalho incide sobre a Guiné, os equipamentos existentes no período que precede a eclosão da guerrilha e as sucessivas respostas para permitir à FAP sucesso na multiplicidade dos desempenhos.

Os comandos militares da FAP na Guiné procuraram prontamente reagir e deter a atividade subversiva, mormente nas regiões fronteiriças, mas se bem que fosse notória a falta de qualidade e atualidade dos mapas aeronáuticos, tudo fizeram para evitar intrusões acidentais, designadamente na fronteira senegalesa, para não haver consequências políticas. Mesmo assim, o Senegal protestou alegando ter havido intrusões no seu espaço aéreo, cortou relações oficiais com Portugal. Em 21 de dezembro de 1961, alegadamente dois F-86 invadiram o espaço aéreo senegalês. Portugal reconheceu a intrusão, mas negou qualquer intenção deliberada, alegou-se que uma patrulha de reconhecimento de rotina sofrera uma falha de navegação e a intrusão não durara mais de 30 segundos. A República da Guiné igualmente protestou contra repetidas violações do seu espaço aéreo. A FAP teve neste período vários danos ou mesmo destruições antes de se terem iniciado os combates aéreos. Um F-86 sofreu um acidente com a colisão de um pássaro em 19 de agosto de 1961, apesar dos danos da colisão o Tenente Teixeira Lobo pousou com sucesso, mas a aeronave ficou inoperável durante várias semanas. A primeira perda aérea operacional da ZACVG ocorreu em 29 de maio de 1962. Nessa data, o Tenente José Cabaço Neves e o Furriel Manuel Soares Matos morreram num acidente de T-6 numa passagem de baixo nível quando investigavam tráfego suspeito nos rios. Outra perda ocorreu em 17 de agosto quando um F-86, no regresso de um reconhecimento, foi destruído num acidente na aterragem causado por fortes chuvas. A aeronave pousou no centro da pista, rolou invertida e explodiu, felizmente o Tenente Barbosa conseguiu escapar sem ferimentos graves. A frota Sabre ficara reduzida a 7, das quais 3 das 4 aeronaves estavam operacionais no início da guerra.

Após o ataque a Tite e as emboscadas na região de Fulacunda, o PAIGC estendeu a sua ação; tempos depois, obteve-se a informação de que a guerrilha dispunha de metralhadoras e passava a usar minas anticarro. Os ataques dos insurgentes, davam-se sobretudo à noite e centravam-se em três tipos principais de alvos: linhas de comunicações (estradas, pontes e transportes fluviais), instalações militares (acima de tudo, os quartéis) e a infraestrutura económica (entrepostos comerciais, outros locais onde estivessem armazenados produtos para exportação). Agrupamentos populacionais, vilas importantes e destacamentos militares foram alvo de ataques, sabotagens, flagelações com espingardas, metralhadoras ou morteiros. Os guerrilheiros do PAIGC também procuraram começar a atacar as aeronaves portuguesas com os meios disponíveis, principalmente armas de pequeno calibre e, usando escandalosamente a propaganda, reivindicaram, no final de 1963, o abate de 17 aviões, incluindo mesmo cinco no dia 21 de fevereiro. De facto, houve uma única perda de aeronave naquele ano. A primeira ação real de ataque aéreo da ZACVG aconteceu em 4 de abril, depois de uma aeronave de observação Auster ter detetado armas de fogo próximo de Darsalame. A resposta foi um ataque de um caça F-86 que pretendia obter um efeito mais psicológico do que real. Naqueles primeiros meses, a FAP pouco melhor podia fazer, dispunha de informações vagas e fragmentadas. “Naquela altura era praticamente inexistente a informação fora das áreas populacionais que nos eram afetas”, segundo o Tenente-General António de Jesus Bispo, que cumpriu três missões na Guiné entre 1963 e 1971. “Não havia uma ideia clara da disposição do inimigo no terreno, pelo menos ao nível dos pilotos”. O sistema de obtenção de informações na FAP foi melhorando à medida que a guerra avançava, mas não faltaram surpresas táticas e estratégicas que acabavam por complicar a operacionalidade no ar.

Em 1 de abril de 1963, o recém-chegado Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro Fernando Louro de Sousa, apresentou a sua primeira avaliação do que se estava a passar em relatório enviado para o Ministério da Defesa: registava com preocupação a escalada da atividade guerrilheira em muitos pontos do território e como estava altamente perturbada a atividade económica e afetados os transportes. Remanescentes do Movimento de Libertação da Guiné, com sede no Senegal, ainda permaneciam nalguns pontos no Norte da Guiné, mas este movimento havia sido quase totalmente suplantado pelo PAIGC. O partido orientado por Amílcar Cabral revelava-se o mais bem armado e preparado dos dois e beneficiou do apoio dado pela República da Guiné, por outros regimes africanos e pelas nações do bloco comunista para além da China. Na opinião de Louro de Sousa, o PAIGC representava “maior perigo para a estabilidade da situação política da província” face ao seu rival menor.

Passados 8 dias de Louro de Sousa ter emitido a sua primeira avaliação para Lisboa, em 9 de abril de 1963, o Governador da Guiné, Vasco Rodrigues, recebeu outra queixa do Senegal, desta vez alegando que 4 aeronaves haviam atacado a vila senegalesa de Bouniak. O Senegal colocou a questão no Conselho de Segurança da ONU, foi adotada uma resolução que deplorava a violação de soberania e pedia às autoridades portuguesas para tomar todas as medidas necessárias para evitar situações como aquela. As autoridades portuguesas reconheceram um ataque ocorrido em 8 de abril de F-86 e T-6 contra a vila de Bunhaque, a 4 quilómetros de Bouniak, mas uma investigação conduzida pelo comandante da ZACVG, Tenente-Coronel Durval Serrano de Almeida, concluiu que não caíra fogo no lado senegalês. Este episódio permanece indiscritível, o comandante posterior, José Duarte Krus Abecassis (1965-1967), reconheceu que a FAP bombardeou e metralhou deliberadamente uma base de apoio inimiga no Senegal, em 1963. O governo português manteve uma política de negar oficialmente tais ataques, enquanto o Senegal convidava jornalistas estrangeiros para examinar os danos dos ataques e os resíduos das armas envolvidas. Krus Abecassis considerava que a recusa de Portugal em admitir tais ataques nos trazia descrédito político.

Com apenas 3 meses de guerrilha, a Guiné entrava na comunicação internacional, chamava a si críticas generalizadas e a condenação na ONU. Durante o ano de 1963, as operações da FAP acompanharam estreitamente o alargamento da atividade militar portuguesa. Em junho e julho, os guerrilheiros de Cabral lançaram ataques nas regiões do Xime e Xitole, o PAIGC atravessara o Corubal e procurava estender-se para o centro da Guiné. A guerrilha implantou-se na região do Oio, o que permitia ao PAIGC estabelecer uma rede de atividades em diferentes direções no interior da Guiné, obteve o apoio da etnia Balanta e dos Oincas nesta região densamente florestada do Morés. O ministro da Defesa português, Gomes de Araújo, admitiu publicamente que a guerrilha “infestara” aproximadamente 15 por cento da superfície do território. Para conter a maré insurgente, as forças portuguesas lançaram uma série de operações terrestres destinadas a repulsar as posições do PAIGC, as contribuições da FAP a essas operações normalmente incluíam incursões preparatórias para reconhecimento, mas também transporte de tropas, apoio de fogo, reabastecimento, evacuação médica.

No entanto, a situação agravava-se. O Ministério da Defesa enviou o General Venâncio Deslandes que chegado a Lisboa elaborou um relatório que começava por dizer que “a situação atual é realmente grave, cerca de um quinto do território dá sinais de insurgência, mais agudos nas regiões fronteiriças e na região Sul”. Alertou ainda a que um ataque a Bissau “seria fácil de executar, com todas as consequências políticas que isso acarretaria”.

(Continua)
Panorama geral de Bissalanca no início da guerra. Nessa época, a FAP dispunha de 30 aeronaves no teatro, incluindo os T-6 (Aquivo Histórico da Força Aérea)
No início da guerra, a FAP na Guiné dispunha de três ou quatro F-86 prontos para combate (Aquivo Histórico da Força Aérea)
Operações do PAIGC entre janeiro de 1963 a janeiro de 1964 (Matthew M. Hurley)
Peça de artilharia antiaérea Goryunov SG-1943 7,62 mm (à esquerda). Foi uma das primeiras armas de defesa antiaérea usadas pelo PAIGC (Coleção Abert Grandolini)
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Notas do editor

Poste anteruor de 16 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23886: Notas de leitura (1533): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (8) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23895: Notas de leitura (1534): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23908: Boas Festas 2022/23 (8): Relembrando a nossa partida para o CTIG, em 22/12/1971, recordando os mortos e desejando melhores dias para os vivos (António Duarte, ex-fur mil at inf, CART 3493/BART 3873, e CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xitole, 1972/74)


Antonio Duarte, ex-fur mil, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, 1971/72, e Bambadinca e Xime, 1972/74). Embarcaram no "Niassa", passaram a Consoada no mar, chegaram a 28. Passaram mais dois natais e ano novo no mato (1972 e 1973).  

Data - 23/12/2022, 10:57
Assunto - Efemérides, partida para a Guiné do BART 3873, em 22/12/1971


Bom dia a todos os camaradas e editores do blogue.

A propósito da quadra que atravessamos e do facto de ontem 22 de dezembro, se terem completado  51 anos da partida (1971) do Bart 3873 (CArt 3492, 3493 e 3494) bem como da Companhia Independente CArt 3521, para a Guiné, a bordo do navio "Niassa", não quero deixar de desejar umas Boas Festas e um Bom 2023 a todos os camaradas que combateram na "nossa" Guiné, com votos ainda mais especiais aos membros das unidades que naquele dia embarcaram, chegando ao destino a 28 de dezembro de 1971.

Recordemos todos aqueles que não regressaram e também todos os que sofreram ferimentos graves e ou traumas psicológicos, com sofrimento para si e para os seus, durante as suas vidas.

Agora que os anos já são muitos, provavelemente com algumas viagens feitas, esta terá sido porventura aquela que mais nos marcou. Foram mais de 2 anos a aturar mosquitos e gerir a ansiedade resultante de operações realizadas e de ataques aos aquartelamentos (Xime, Xitole, Mansambo e Cobumba). Unicamente Bambadinca não foi contemplada com ataques ao aquartelamento (ao tempo do BART 3873).

Quanto à fotografia que anexo, foi feita no Xime, em setembro de 1973, integrado na CCaç 12, companhia do recrutamento local, com a maior parte dos graduados portugueses ditos "metropolitanos". 

Recordo também os camaradas desta Unidade Africana que tanto me marcou, e que tão mal foram tratados por Portugal e pelo poder instituído na Guiné, aquando da independência. Para os que estejam ainda vivos, um forte abraço. Para os que já partiram curvemo-nos perante as suas memórias.

E é tudo por agora. Que a Paz volte breve (não vai ser fácil) e que a saúde acompanhe todos os combatentes e famílias.

António Duarte
Fur Mil. Cart 3493 e CCaç 12
Dez 71 a jan de 74

Guiné 61/74 - P23907: Parabéns a você (2128): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Bigene e Guidage, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Bissau, 1968/70) e Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira, poetisa e declamadora

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23897: Parabéns a você (2127): José Botelho Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557 (Cachil e Bafatá, 1963/65) e José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CCAV 8350/72 e CCAÇ 11 (Guileje, Gadamael e Paunca, 1972/74)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23906: Boas festas 2022/2023 (7): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art; Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf; Antóno Ramalho, ex-Fur Mil Cav; Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art e Ramiro Jesus, ex-Fur Mil CMD

BOAS FESTAS DOS NOSSOS CAMARADAS


1. Mensagem natalícia do nosso camarada Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68:

Boa tarde
Carlos Vinhal, Luís Graça e todos os colaboradores, do blogue muito particularmente e em geral a todos os que fazem parte do mesmo.
FELIZ NATAL em companhia dos nossos familiares e amigos e um ANO 2023 mais alegre.

Um ABRAÇÃO para todos
Joaquim F. Alves
(ZORBA CArt 1659)


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2. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Prenda de Natal: o meu primeiro livro online.
Grato pelos comentários

Envio o link para aceder ao pdf:
https://maisribatejo.pt/wp-content/uploads/2022/12/Livro-Leituras-Inextinguiveis.pdf

Mário Beja Santos



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3. Mensagem do nosso camarada António Ramalho (ex-Fur Mil At Cav da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71):

Boas Festas para todos os meus amigos e familiares.

Um abraço
António Ramalho




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© Presépio José da Silva

4. Mensagem do nosso camarada Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Boa tarde, caros amigos/camaradas.
Desejo-vos, e a vossas famílias, FELIZ NATAL E BOM ANO NOVO 2023 com alguma prosperidade e saúde da boa.

Um grande abraço
Valdemar Queiroz


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5. Mensagem do nosso camarada Ramiro Jesus (ex-Fur Mil Comando da 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73):

Bom dia, companheiros/camaradas darmas.
Aproveito para desejar-vos a vós e respectivas famílias, um óptimo Natal, votos também extensivos a todos os outros membros da Tabanca e desejar a todos que o ano 2023 seja o mais venturoso possível e que, ao menos, seja comedido no "ataque" ao grupo, pois já basta o normal deslizar do tempo para nos confrontar.

Boas Festas
Ramiro Jesus

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23898: Boas festas 2022/2023 (6): As Mães e os anos da guerra... Feliz Natal, queridos companheiros (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014


 Daniel dos Santos,  autor de "Amílcar Cabral: 
 um outro olhar" (Lisboa, Chiado Editora, 2014).
Com a devida vénia ao blogue "Baía da Lusofonnia"


1. Como todos os líderes partidários (e, para mais, revolucionários que optaram pela "luta armada" paar atingir os seus fins), Amílcar Cabral ainda está longe, hoje em dia, de ser uma "figura consensual" (e nomeadamente em Cabo Verde, cuja identidade como Nação e como povo já existia muito antes de Amílcar Cabral ter nascido)

Mas tem o seu lugar na história (pelo menos, na história de África, a par de Nasser, Nhkruma, Mandela e mais alguns) e, como tal, tem que ser estudado, investigado, conhecido, debatido... Naturalmente, que ele tem direito (e todos nós, incluindo os que o combateram de armas na mão) não uma piedosa hagiografia (não foi um santo nem é sequer um herói) mas uma biografia e factualmente rigorosa (como homem e como líder), alicerçada em investigação de arquivo e entrevistas aos seus contemporâneos que com ele trabalharam ou tiveram algum outro tipo de relacionamento.

É difícil saber o que é que ele ainda hoje representa para os mais jovens, nascidos já depois das independências, nos dois países a que ele esteve mais ligado, à Guiné-Bissau, sua terra natal e palco da "luta de libertação", e Cabo Verde, donde era originário o seu pai, o professor primário Juvenal Cabral,  com ascendência guineense (a mãe, Iva Pinhel, era guineense, de ascendência cabo-verdiana). Mas podíamos acrescentar um terceiro país, Portugal, onde estudou agronomia (de 1945 a 1950), sendo o único negro da sua turma),  e onde conheceu o amor da sua vida, a portuguesa, de Chaves, Maria Helena Cabral.

O livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar" (Lisboa, Chiado Editora, 2014) corre o risco de se transformar numa "arma de arremesso político", no pequeno país da morabeza que é Cabo Verde  e que que conheceu 15 anos de ditadura, de partido único, imposta pelo PAIGC (e depois, de 1981, pelo PAICV). 

Com o aconselhável (e indispensável) distanciamento crítico leia-se o essencial da apresentação do livro do Daniel dos Santos,  que reproduzimos quase na íntegra, pelo seu interesse para o leitor português, em 5 de setembro de 2014, na cidade da Praia. É da autoria de  Armindo Ferreira (Antigo Ministro das Infraestruturas de Transportes de Cabo Verde, no governo do MpD, que destronou o PAICV nas eleições livres de 1993; engenheiro de minas, antigo quadro superior colonial,  é um crítico de casos de corrupção na elite política cabo-verdiana, tendo  escrito, em 2003, "A cortina dos milhões,: o caso Enacol". (Praia, edição do autor,  209 pp.)

Esta apresentação complementa a entrevista que Daniel dos Santos deu ao Expresso das Ilhas, em 2014, e de que reproduzimos grandes excertos, em poste recente (*). Há revelações sobre o Amílcar Cabral e o seu papel como líder do PAIGC, que podem ser perturbantes para alguns dos leitores, umas já conhecidsas e debatidas no nosso blogue, outras meramente intuídas ou mal conhecidas, ou não conhecidas de todo. 

Esta apresentação (**) talvez nos ajude a decidir a comprar e a ler o livro, de que o nosso camarada Beja Santos fez em tempos uma recensão (três postes), que se calhar  mereceria mais atenção por parte dos nossos leitores.

Espero que o livro (que ainda não li...) nos ajude a compreender também duas coisas: 
em primeiro lugar, a resistência de muitos cabo-verdianos (e sobretudo da sua elite que e extremamente culta e viajada) a deixarem-se catalogar como "africanos", algo de profundamente redutor, a que não seria estranha a ação nefasta da obra e do pensamento de Amílcar Cabral (que, acrescente-se, nem sequer era cabo-verdiano, nasceu e morreu como português)... E a propósito, lembre-se que Portugal já manifestou o seu interesse em associar-se às comemorações do seu centenário, em 2024.

Por outro, há um outro fenómeno que alguns cabo-verdianos também ainda não superaram,  ao longo das últimas quatro décadas (!), o fim da falsa unidade Cabo-Verde / Guiné-Bissau, com o golpe de Estado de 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980. Para muitos observadores, melhor documentados, essa unidade não passava também de um mito criado pelo "pai da Pátria" (da Guiné-Bissau)... (O escritor, Germano Almeida, prémio Camões em 2018, tem a esse respeito algumas crónicas deliciosas, de que eu quero fazer uma nota de leitura, um dia destes.)


Uma paragem na estrada de regresso de Dakar para Bissau > 1954 > Da direita para a esquerda: Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz,

Preciosa foto do álbum de Clara Schwarz (1915-2016). O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. O nosso querido e saudoso amigo Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949 e morreu em Lisboa, em 2014. [LG]

Foto (e legenda): © Clara Schwarz / Pepito (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas de Guiné]




Texto de apresentação da autoria de Armindo Ferreira que teve lugar no passado dia 5 de setembro de 2014, na Biblioteca Nacional, na cidade da Praia, Cabo Verde, do livro «Amílcar Cabral – Um Outro Olhar» (Chiado editora, 2014), de Daniel dos Santos, jornalista, politólogo e professor universitário.

“Amílcar Cabral - Um Outro Olhar” é um ensaio sério, honesto, que tem na figura de Amílcar Cabral um eixo condutor. O título sugere uma certa biografia. Mas não uma biografia do género "Longa Marcha para a Liberdade" de Nelson Mandela nem “A Face Oculta de Kennedy” de Seymour Hersch. Cito estes dois grandes estadistas e estas duas extraordinárias biografias porque estão uma nos antípodas da outra. A primeira é epopeica e panegírica descrevendo um percurso honroso e dignificante enquanto a segunda é escabrosa e indecorosa narrando os subterrâneos da vida de um político e do seu clã – vergonhosa, imoral e pouco digna.

A obra de Daniel Santos não é uma coisa e também não é outra. Não glorifica nem denigre. Não é isento – não gosto desta palavra porque ela, a palavra, é desprovida de conteúdo, não tem substância, nem é real. Despiria o autor do seu saber, da sua formação, do seu pensar, do seu cunho pessoal. É objectiva, seria a expressão certa para a classificar.

Mas diria mais! Diria que “Amílcar Cabral – Um outro Olhar” é denso, é substantivo, é real, por isso potencialmente polémico. É também equilibrado, porque rigoroso e profusamente documentado.

Escrito numa linguagem simples sem ser simplista, escorreita, desprovida de qualquer gongorismo ou sociolecto, Daniel dos Santos convida o leitor despretensiosamente a uma permanente reflexão. Na verdade faz uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada) centralizada na figura de Amílcar Cabral (AC) em que escalpeliza um homem, um partido e um tempo. Fundamenta-se na vida multifacetada de uma das maiores figuras de África do seu tempo – Amílcar Cabral – para descrever o homem, o político, o diplomata, o chefe militar, bem como social, cultural e historicamente esse tempo – o das independências das colónias portuguesas de África.

O autor divide a sua obra em três partes. O nome que dá a cada uma e as razões que estão na base desta sua organização são explicadas e descritas nas primeiras páginas. Em contrapartida separa a vida do “biografado” em cinco fases cronologicamente estabelecidas, a saber: 

  • Conformista; 
  • Contestatário; 
  • Revoltado; 
  • Nacionalista;
  •  e Revolucionário,
 desfazendo desta forma a ideia de que Cabral “nascera” político, ao mesmo tempo que deixa intuir que ele se tornara político por efeito das circunstâncias e da sua sensibilidade porque na verdade o que ele sonhava era ser um poeta de mérito e um reconhecido engenheiro, segundo confessaria.

Para descrever estas fases, o autor percorre a vida de Amílcar Cabral desde o nascimento em Bafatá, Guiné-Bissau em 1924 passando pelo seu assassínio em Conacry em 1973, indo para além da sua morte com a proclamação da independência da Guiné-Bissau e até quando, diz ele, um grupo declarando-se herdeiro do seu legado político e reivindicando a legitimidade histórica da sua luta, instala em Cabo Verde, (cito-o): “… um modelo de Estado da mesma igualha que o de Oliveira Salazar.” 

E explica (continuo a citar):

 “As semelhanças são enormes: ambos se baseavam no partido único, no chefe, na polícia política, na estatização da economia, na ideologia, no monopólio das forças armadas e dos meios de comunicação social.” (Fim de citação).

Nada escapou ao olhar atento do investigador político e do antigo jornalista. Do país ele aborda com clareza e com rigor científico o seu achamento, o seu povoamento, a sua colonização, o seu “colonialismo”, cruzando e confrontando inteligente e assertivamente teorias, doutrinas e conceitos − jurídicos, sociológicos, históricos, culturais − concluindo convergentemente com Cabral de que Cabo Verde era uma colónia sui generis porque “tecnicamente sem colonização e sem colonialismo”. Cabral diria para culminar uma intervenção a este propósito: 

”Os tugas adoptaram outra política: [Em Cabo Verde] todos são cidadãos.” Isto tudo para enquadrar e distinguir, diferenciar, as razões da luta em Cabo Verde e na Guiné.

Ao percorrer a vida de Cabral, Santos não esquece, antes, realça o facto de AC,  não obstante ser filho de um homem culto e professor,  só ter feito a 4.ª classe aos 13 anos, na Escola Central da Praia. 

Aqui abro um parêntese para um comentário pessoal, extra-livro, e fazer o ingrato papel de advogado do diabo: Juvenal Cabral, pai de Amílcar, teve cerca de 3 dezenas de filhos – 18 com as suas 3 principais mulheres – o que seguramente não lhe dava tempo para cuidar deles todos. Isto deve ter marcado profundamente o menino e depois jovem, e mesmo o homem, Amílcar Cabral, o que o leva a manifestar (poesia e cartas) uma permanente protecção e um exacerbado carinho pela mãe e a condenar com uma violência inaudita, até com alguma deselegância e falta de tacto diplomático, a poligamia, quando diz:

 “Que está de facto, profundamente convencido de que é indigno para a espécie humana um homem ter várias mulheres.”

Ofendia desta forma, pela linguagem que utilizou e não pela condenação da poligamia, o povo do País que o acolheu, o mundo muçulmano e a cultura generalizada de África. Cabral viajava com dois nomes falsos (ambos com passaportes de países muçulmanos, um de Marrocos em nome de Mohamed Benali, outro da Guiné-Conacry em nome de Ousman Keita). Não me vou alargar sobre este facto. Fecho o parêntese.

Pois bem, AC lá fez o Liceu com distinção – 17 valores – no Gil Eanes de S. Vicente para onde se deslocara com os seus três irmãos e a mãe que teve que trabalhar duramente – ganhava 50 centavos por hora na fábrica de conserva de peixe, quando havia peixe – para manter a família monoparental uma vez que o pai durante todo o tempo – 7 anos – absolutamente nada enviara.

Depois de um ano a trabalhar na Praia, segue para cursar agronomia. Daniel dos Santos aproveita com muita oportunidade o tempo em que Cabral se encontra em Lisboa para descrever com suficiente minúcia o ambiente estudantil dos oriundos das então colónias bem como a sua relação com a Casa dos Estudantes do Império – CEI – que dava os seus primeiros passos.

Cabral chegou a Lisboa em 1945 – com 21 anos – pouco mais de um ano depois da criação da CEI. Também fim da 2ª Grande Guerra, que, como se sabe, traria alterações significativas na situação das colónias; ano da criação da ONU. E já agora, acrescente-se – e não é despiciendo – auge da repressão salazarista.

E foi seguindo o seu percurso, as suas relações com a “CEI” e com os principais protagonistas do ambiente estudantil africano do qual Daniel faz uma bem articulada exposição da evolução da “Casa” como espaço criado pelo Estado Novo (Ministro do Ultramar Vieira Machado e Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa Prof. Marcello Caetano – autor dos estatutos da CEI) para integrar e controlar os estudantes ultramarinos – dispersos em inúmeras associações – evolução, dizíamos, primeiro para um centro de consciencialização da cultura africana, isto é, como disse Tomás Medeiros como um local de “busca da re-africanização da identidade e das raízes” ou como avançou Frantz Fanon «quebrar a máscara branca» uma vez que o antilhano considerava que o colonialismo é um processo de alienação que inferioriza o colonizado porque faz dele cópia, em termos culturais, do colonizador e, posteriormente, de politização das consciências.

Assim dito, parece que tudo começou com a CEI. Não, nada disto. E Daniel dos Santos expõe-no com clareza e oportunidade. Vai mais atrás, insere na sua análise toda, e não é pouca, actividade africanista que se dá com a queda da monarquia e o advento da república.

Refere-se ao surgimento de uma actividade político-jornalística intensa e muito abrangente, com a criação de várias associações e organizações que lutam pela igualdade de negros, mestiços e brancos, por uma “Uma África para os Africanos”, aproveitando-se do pan-africanismo de Garvey e Du Bois e dos protagonistas dessas actividades em Portugal e colónias, salientando o papel dos cabo-verdianos Augusto Vera Cruz e dos irmãos Luís e Martinho Nobre de Mello.

A passagem de AC pela CEI não foi relevante. Por um lado porque a princípio AC estava muito mais focado nos seus estudos do que em qualquer outra coisa. E a sua aparição na Casa, diz-nos Daniel dos Santos, só se dá em 1949, quase no fim do curso, pelas mãos de Marcelino dos Santos e depois da chegada de Mário de Andrade (1948). 

A CEI, nessa altura, segundo Mário de Andrade [apenas] se preocupava com problemas que estivessem ligados à geografia, à linguística e à história da colonização. E parafraseando o autor que cita Óscar Oramas: “Amílcar não tinha formação nem preparação teórico-ideológica para rejeitar os valores e a cultura portuguesa”. (Fim de citação).

O surgimento (na clandestinidade) em 1951, do Centro dos Estudos Africanos (CEA)
, na Rua Actor Vale, 37, em Lisboa, veio dar seguimento ao trabalho cultural iniciado na “Casa” e que não podia continuar porque ela era dominada pelos filhos dos ricos colonos, sobretudo angolanos, que, obviamente, não deixavam espaço para essas actividades. 

O CEA era dominado pelo santomense Francisco José Tenreiro que era de entre todos, de longe o mais bem preparado, com obras já publicadas. É este o período em que Daniel dos Santos classifica AC de “contestatário”.

E para terminar esta fase da vida de Amílcar que o autor descreve e analisa de forma exaustiva, não posso deixar de referir, muito rapidamente, como começou, segundo Daniel Santos: 

Amílcar considerou-se sempre Guineense durante toda a guerra para a independência. E os senhores perguntar-me-ão: E não era guineense? Claro que era! Mas só foi estudar porque o reitor do Liceu de Gil Eanes, Dr. Luis Terry, lhe concedeu (discricionariamente) uma pequena bolsa de 350$00 mensais que era manifestamente pouco. 

Chegado a Lisboa, a CEI que tinha na sua direcção Humberto Duarte Fonseca, um cabo-verdiano e a chefiar a sua Secção de Cabo Verde, obviamente, outro cabo-verdiano, Aguinaldo Veiga abriu concurso para uma bolsa para os naturais de Cabo Verde a que Amílcar Cabral concorreu e ficou em primeiro lugar. Era uma bolsa de 450$00 que iria acumular com a de 350$00 do Liceu. Humberto Fonseca ainda faria várias diligências junto do Instituto Superior da Agronomia e do Ministério da Educação para que lhe fosse concedida isenção de propinas que não era compatível com a condição de bolseiro, conta-nos Daniel dos Santos. E foi, graças ao empurrão destes dois cabo-verdianos, e ao seu fechar de olhos à sua naturalidade que ele ganhou condições para fazer o curso tendo depois escolhido a Guiné para começar a trabalhar. Aliás, ele nunca trabalhou em Cabo Verde depois de formado.

Antes de partir, ainda no ano em que se formou, 1952, com 15 valores, publicaria o “Apontamentos Sobre a Poesia Cabo-verdiana” no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação onde estabelece um paralelo entre os Claridosos e os predecessores. Dizia que o advento dos Claridosos tinha tirado a poesia cabo-verdiana dos céus e tinha-a colocado na terra: “Cabo Verde já não era o Jardim Hesperitano mas um país real, de gente com problemas” e, continuo a citar: «onde as árvores morrem de sede, os homens de fome, a esperança nunca morre» … «e o mar a estrada da libertação e da saudade». (Fim de citação)

É ainda nesse ano de 1952 que Mário de Andrade e Francisco Tenreiro publicam “Os Cadernos da poesia Negra de Expressão Portuguesa” que para alguns constitui um marco na afirmação da personalidade africana em terras portuguesas. Foi altura, diz-nos Santos, em que Cabral descobre o Pan-Africanismo de Du Bois e Washington e o Movimento Negritude de Senghor, Césaire, Anta-Diop e outros.

Na Guiné, Cabral desenvolve um extraordinário trabalho técnico merecendo a apreciação do Governo da Guiné do qual teve sempre boas referências. Mesmo depois de tentar fundar uma Associação, espante-se (!) em que exclui cabo-verdianos e europeus. Longe devia estar a ideia da unidade!...

É claro que os estatutos não passaram apesar da simpatia que o Governador Mello e Alvim, um homem de ideias liberais, tinha por ele. Mais: Mello e Alvim tê-lo-ia repreendido e dado conselhos de que Cabral mais tarde agradeceria e dos quais nunca mais se esqueceria.

Cabral deixa a Guiné em 1955, evacuado com paludismo e não expulso como se tenta fazer passar, di-lo e prova-o Daniel dos Santos. Durante o tempo que esteve na Guiné teve oportunidade de assistir a espancamentos, torturas, maus tratos de indefesos «indígenas». Numa palavra: De viver e testemunhar a violência do colonialismo. É a fase de revoltado, segundo Daniel dos Santos, que a explica com pormenores.

Até 1959, esclarece-nos Daniel dos Santos, «a folha de Amílcar Cabral na PIDE estava completamente limpa».

Da Guiné salta para Angola para onde fora trabalhar num projecto ligado ao mapeamento de solos. Ali ele tem contactos com activistas e nacionalistas angolanos, mais politizados (numa fase mais madura) e mais bem preparados. Toma consciência da luta que é necessário travar, merecendo de acordo com a entrevista concedida por Tomás Medeiros a Daniel dos Santos o seguinte comentário (cito): [AC] 

«só começa a falar de independência quando foi a Angola trabalhar em Cassiquel. E Mário de Andrade fez-lhe ver que a «vida não é só solo, é mais qualquer coisa.» E acrescenta Tomás Medeiros: «perdeu as ilusões do solo e passou a perceber que o problema estava na organização e no combate.»

Isto, e explicações mais acabadas que encontramos ao longo do livro desfazem o mito, engendrado e alimentado no seio do PAIGC de que AC esteve na fundação do MPLA. AC nada tem a ver com a criação do MPLA. Ele, AC, politizou-se em Angola, com angolanos e não o inverso como o demonstra Daniel dos Santos. É o período em que o classifica de nacionalista.

Quando se dá a revolta dos estivadores do cais de Pidgiguiti em 1959, Cabral estava em Angola, de regresso para Portugal tendo tomado conhecimento da ocorrência pelos jornais. Visita a Guiné passado um mês, em Setembro, não lhe faltando informações sobre os acontecimentos, uma vez que o seu amigo Aristides Pereira por onde passavam as mais secretas e confidenciais informações era, sempre de acordo com Daniel dos Santos, o homem de confiança do Governador e do Inspector da PIDE.

Pidgiguiti é mais uma das falácias do PAIGC que durante anos o reivindicou como obra sua, sem nada, absolutamente nada ter a ver com ele. Até porque, como se verá ao longo da obra, PAIGC nem sequer existia.

Em Janeiro de 1960, Cabral viaja para Tunes integrado no MAC (Movimento Anticolonial) fundado em 1957 por um grupo de militantes de luta anticolonial – o 1.º compromisso político de AC – para assistir ao II Congresso Pan-africano realizado para os movimentos africanos organizados. Não foram admitidos uma vez que o MAC era uma organização de cidadãos de várias colónias – Viriato da Cruz e Lúcio Lara de Angola, Amílcar Cabral da Guiné, Hugo de Menezes de S. Tomé – e não uma associação de organizações nacionais, como se exigia. 

Foram obrigados por esse motivo a “inventar” o MPLA e o PAI para poderem participar, aliás indo ao encontro dos desejos e das recomendações de Viriato da Cruz. Ao contrário, Holden Roberto era integrado e já conhecido através da UPA, uma organização nacional angolana que ele presidia. Daniel dos Santos fala então da transformação do MAC para FRAIN (Frente Revolucionária Africana Para Independência Nacional das Colónias Portuguesas) depois para CONCP (Conferência das Organização Nacionalistas das Colónias Portuguesas) e explica com pormenores como foram “criados” e não “fundados” os dois partidos – MPLA e PAI.

Quanto ao PAI ele descreve com toda a minúcia a fabricação da data de 19 de Setembro de 1956 como data da fundação do PAIGC. Apenas para levantar o véu e não tirar-vos o prazer da leitura, direi que, dos chamados fundadores – nomes que variam conforme a fonte – não há duas declarações coincidentes. 

Apenas dois exemplos de dois alegados fundadores: Aristides Pereira disse que Cabral achou, no acto da fundação, que não era preciso assinar nenhum papel de compromisso. O seu cunhado Fernando Fortes, ao contrário, não só disse que assinou um documento, como também disse que falou com Cabral sobre a sua militância no MLG. Acontece, porém, que em 1956, pretensa data da fundação do PAI, o MLG não existia. O MLG só foi fundado em 1958. Como podia ser?

Depois da Conferência de Tunes – um marco importantíssimo não só na vida de Cabral como na luta das colónias – em que ele assinara com o pseudónimo de Abel Djassi, um compromisso, não havia mais condições de Cabral regressar a Portugal onde tinha deixado a família e teve que abandonar a clandestinidade e lançar-se na luta.

Chegou a Conacry em Maio de 1960. Já existiam no terreno muitos partidos (MLG, MLGC e UPGB entre outros) pelo que teve de lutar duramente – nem sempre com elegância e elevação (troca de panfletos e de insultos, conspirações, intrigas) com os partidos concorrentes – para que o seu PAI, que acabara de sair de Tunes – sem expressão, sem quadros e sem estruturas – fosse reconhecido como única força representando Guiné e Cabo Verde.

Em 1963, o PAI já PAIGC dá o seu primeiro tiro. É o início da Luta Armada. E os problemas no seio do PAIGC ganham outra natureza. É a fase de Cabral revolucionário. Tinha sido nomeado Secretário-Geral do PAIGC fora do quadro estatutário por uma Conferência de Quadros em Dakar. A partir daí alterou os estatutos como quis, sem nunca convocar um único congresso e foi-se assenhoreando do Partido.

Em 1964, com a “Conferência de Quadros de Cassacá” mais tarde tornado Congresso, do qual se saíra muito bem, mas deixando atrás “um rasto de um número indeterminado de condenações e fuzilamentos de combatentes e de militantes”.

Reforçou os seus poderes e assumiu-se como senhor absoluto do PAIGC. Passou, desde então, a coleccionar inimigos e adversários internos, todos movidos por um único interesse: o de o eliminar.

E à medida que a luta se ia desenvolvendo mais poderes chamava a si. Tornou-se, diz-no-lo Daniel dos Santos, primeiro, uma espécie de semi-deus em que, cito Maurice Duverger citado pelo autor: “toda palavra que sai da sua boca constitui a verdade; toda a vontade que dele emana é a lei do partido”, e depois em próprio deus que decidia da vida e morte dos militantes e em que até os casamentos careceriam da sua autorização.

Diz um documento do PAIGC, reproduzido no livro, que ele estava acima do Partido e podia por este facto aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada por qualquer órgão do Partido inclusive da sua própria Comissão Permanente. Passava a todos, sem excepção, uma certidão de incapacidade e de incompetência.

De tudo isto e do que adiante virá nos dá conta o livro.

Ao mesmo tempo que crescia o seu autoritarismo, o seu absolutismo alegadamente iluminado, engrossavam as fileiras internas dos que o queriam eliminar. Bastas vezes foi posta em causa a sua liderança inclusive pelo seu próprio irmão Luís Cabral, como poderão ver na obra.

Apresento uma lista dos atentados, conspirações, intrigas, intentonas mais importantes de entre os que Daniel dos Santos elenca no seu livro:
  • Revolta de Boé (Junho de 1967); - todos fuzilados. As causas residem, alegadamente, na protecção que AC dava aos cabo-verdianos. Nino estaria envolvido mas recusou-se a comparecer ao julgamento para que foi convocado;
  • Novembro de 1967, um atentado perto de Ziguinchor;
  • Em Dezembro de 1967 são os mandingas que se manifestam devido ao número de baixas que sofriam;
  • Em Janeiro de 1969 um grupo de balantas em Boé recusa-se a combater exigindo a presença de Cabral;
  • Um outro movimento de revolta surge chefiado por Mário Gomes, Braima Sissé e Sena Camará;
  • A 3 de Maio de 1968, 150 mandingas chefiados Injai Bá da região de Oio traçaram um plano de deserção para o exército português; a deserção era punida com fuzilamento;
  • A 30 de Dezembro de 1968, os mandingas e os manjacos juntam-se e criam a Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau com vista a transformar o PAIGC em PAIG; propunha-se eliminar AC e os seus homens de confiança que, para eles, só vivem roubando o partido; a  Junta era dirigida por Mamadu N’Daie, Mamandim Iafa e Bobo Keita, todos Comandantes supremos;
  • Em Fevereiro de 1969 atentado contra Osvaldo Vieira desta vez, (supostamente) à ordem de AC que estava convencido de que Osvaldo Vieira e Lourenço Gomes pretendiam derrubá-lo da Chefia do PAIGC;
  • A 31 de Março de 1969 um militante de nome Jonjon é surpreendido pelo próprio AC no seu Gabinete com uma granada no bolso para o eliminar como mais tarde confessaria;foi fuzilado com os seus cúmplices;
  • Em Outubro de 1969, Malam Sanhá, Seco Baio e outros guineenses reuniram-se em Simbeli com o propósito de urdir um atentado para eliminar AC quando este para lá se deslocasse;
  • Um outro plano para eliminar AC é conhecido em 1969;
  • Em 1972, um ano antes da morte de AC também um conluio (Cabi de etnia balanta e Caetano); tratava-se de uma cilada que consistia em minar a estrada por onde AC iria passar;
  • Carta do Nino Vieira a Rafael Barbosa que foi interceptada e os seus efeitos: Conselho de Guerra para Nino demitido de todas as suas funções e 40 militantes presos para averiguações.Perante esta enumeração (elencagem), que peca por defeito, hoje, podia-se perfeitamente ter pedido emprestado a G. Garcia Marquez o título de um dos seus mais famosos livros: “Crónica de Uma Morte Anunciada”, morte esta que viria a acontecer a 20 de Janeiro de 1973.

O que intriga, e Daniel é absolutamente claro quando o insinua, é que perante os factos e o historial, ainda permaneça em certas pessoas a fixação de que os autores morais do bárbaro assassínio tenham sido apenas a PIDE e o Gen. Spínola quando não faltavam agentes e motivos internos. Ou é comodismo, preguiça de pensar ou é ignorância sobre o que se passava no interior do PAIGC, o que seria natural dada a situação de guerra e natureza estalinista do Partido. Ou então seria mais uma fabricação do real como veremos adiante.

Para chegar ao assassínio de Cabral, Daniel percorre a luta e o Partido de lés-a-lés: a sua génese, o seu desenvolvimento, os seus sucessos, os seus fracassos, as suas estratégias e tácticas, as suas falácias, os seus momentos de elevação mas também de indignidade.

Nada, absolutamente nada, escapa ao olhar de lince, perspicaz, cuidadoso e abrangente do político e politólogo, olhar este que se projecta para além da vida do criador do PAI.

Desde a maneira autocrática, despótica e absolutista como Cabral conduziu o seu Partido, até à criação de um poderoso e bem organizado exército passando pelas intrigas, conspirações, choques, oposições de que atrás falámos.

Daniel dos Santos confronta ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele, de 30 a 40, com a dos cubanos que chega a atingir os 500 no ano de 1967, bem como os mortos em combate2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos cubanos. (...)

Daniel faz também uma oportuna e bem articulada incursão pela História comum de Cabo Verde e Guiné abordando a questão da “fraternidade” entre os dois povos deixando ao leitor a incumbência de concluir que, se os dois povos são irmãos, então são os bíblicos Caim e Abel – os irmãos desavindos, uma vez que se trata de uma relação histórica, como ele próprio observa, entre “dominador e dominado”. 

Daí se poder inferir que a dogmatização da unidade Guiné - Cabo Verde, maquinada e sustentada por Amílcar Cabral ou é um desafio à História que foi sempre adversa a essa solução ou não passou de um instrumento habilmente urdido para a consecução da luta para a independência da Guiné-Bissau.

A questão identitária não foi também esquecida. Sem entrar em grandes pormenores, direi que Daniel dos Santos assume uma posição que considero salomónica, de equilíbrio: Não temos que nos re-africanizarmos nem de nos re-europeizarmos. Somos cabo-verdianos, fruto do encontro dos dois continentes e respectivas culturas.

Lembrando o grande poeta, ensaísta e jurista Gabriel Mariano: Não temos que procurar as raízes, “nós somos as nossas raízes!”

Retomando o conteúdo da obra é importante salientar que o livro de Daniel dos Santos é construído como se de um puzzle se tratasse. Um puzzle cujas peças se encaixam de múltiplas maneiras. Tantas, quantas as conclusões a que cada leitor poderá chegar. Um puzzle em que cada peça que se coloca é um mito que se desfaz na nodulosa edificação construída no aconchego de um conceito marxista-leninista de ideologia que Daniel dos Santos tão arguta e inteligentemente repescou de Mário de Andrade e que consiste na “fabricação do real para fazer passar uma verdade” que se deseja ou que convém. 

É isto, diz-nos Daniel dos Santos, cito: “que serve para explicar, por completo, a apropriação, umas vezes, a falsificação, noutras, de muitos acontecimentos que marcaram a evolução de alguns processos políticos nas antigas colónias portuguesas." (fim de citação).

É neste quadro que situaremos:
  • a falácia da data de criação do PAIGC; 
  • a apropriação da greve dos estivadores de Pidgiguiti; 
  • a mentira do controlo dos dois terços do território; 
  • o embuste do recenseamento da população da chamada zona libertada; 
  • a apropriação da autoria da queda do helicóptero onde viajavam deputados portugueses quando a causa tinha sido unicamente meteorológica; 
  • a teatralização (publicidade enganosa) da audiência pública do Papa Paulo VI tornada privada; a exultação em Conacry dos irmãos Cabral pelo bárbaro assassínio dos três majores portugueses; 
  • a proclamação da independência da Guiné-Bissau pretensamente (há fortes dúvidas do local) em Boé; 
  • e a alegada legitimidade histórica transferida para Cabo Verde por um grupo de cabo-verdianos que lutaram para a independência da Guiné-Bissau,

 entre muitos outros assuntos cirurgicamente inseridos.

Daniel dos Santos é lógico, sem ser silogístico no sentido aristotélico do termo. No geral evitou conclusões.  (...)  Daí que as minhas não são unívocas. Um outro leitor aportará seguramente a outras inferências. Contudo há sempre algumas que se consideram (ou parecem ser) consensuais, não unânimes. E são a estas, sem quaisquer pretensões de estar certo, que me vou rapidamente referir:
  • Amílcar Cabral viveu apenas 10 anos em Cabo Verde – dos 11 aos 21 – anos que, como é lógico, poderiam ter (e terão) sido de algum enriquecimento intelectual e social mas dadas as limitações e as circunstâncias que se viviam é de pouco ou nula relevância social – apenas um ou outro exercício literário. É esta a fase que Daniel classifica de conformismo;
  • Surge [AC] em Cabo Verde, para o povo cabo-verdiano, (não para a elite informada) trazido pelo “25 d’Abril” e pelas mãos de um punhado de homens e mulheres que tinha todo o interesse em endeusá-lo e mitificá-lo para se legitimar como herdeiros do seu alegado “extraordinário” legado histórico colocando-o directa, mas sobretudo convenientemente, no “Panteão” por uma unanimidade imposta e sem um debate sério sobre ele, que promovesse, no mínimo, um consenso; (estatisticamente, a unanimidade é quase sempre uma imposição enquanto o consenso é uma construção).
  • Consenso de que ele não gozava como líder – é bom que se diga – entre os dirigentes guineenses como a obra de Daniel dos Santos revela; e do qual, pelos vistos, só se redimiu com a morte, que o resgatou. Basta ver a quantidade de responsáveis guineenses implicados no seu assassínio.
  • Que a luta desenvolvida na Guiné-Bissau, utilizando as justificações e os discursos de Cabral, tinha muito mais um cunho, um cariz, anticolonialista, de mera luta pelo poder, do que nacionalista – defesa de um ideal, de valores.
  • Amílcar Cabral não teria lugar no Cabo Verde de hoje. A concepção monolítica que ele tinha de poder, da sociedade e da política são absolutamente incompatíveis com a democracia (sem adjectivos), com os valores e as actuais aspirações do povo cabo-verdiano.
  • O livro de Daniel dos Santos reclama de nós uma profunda reflexão sobre a verdadeira contribuição desse homem – Amílcar Cabral – no processo político cabo-verdiano;
  • É também um convite a um debate sério sobre o mérito ou demérito do seu lugar no “Panteão” e sobre a “fundação” de uma nação que há mais de 450 anos existe e que como tal, como nação, fez a 1ª reivindicação dos seus direitos cívicos em meados do seculo XVI no longínquo reinado de D. João III.
  • É (o livro) um desafio à mitificação, ao culto da personalidade, idiossincrático dos regimes totalitários e ditatoriais de que guardamos evidentes resquícios e produzimos primárias e grotescas manifestações;
  • É ainda (o livro) um forte apelo a uma discussão urgente, há mais de 40 anos adiada. Não apenas das teorias ou do pensamento de Cabral mas do seu efectivo papel na independência do País.
Parabéns, pois, a Daniel dos Santos pela ousadia de “Um Outro Olhar” sobre Amílcar Cabral, um olhar que desacomoda, um olhar através deste importante, interessante e, desde já, incontornável documento para o conhecimento da História de Cabo Verde. Uma contribuição que acaba de preencher uma boa parte de uma grande lacuna que teimosamente se tem conservado e que nem o advento da liberdade e da democracia, onde não há temas tabus, nem personalidades ou figuras inquestionáveis, conseguiu colmatar.

É este o livro de Daniel Santos que tenho o privilégio e a honra, e também o prazer, de vos apresentar – uma tarefa difícil dada a sua extensão (quase 600 páginas) e densidade – cuja leitura, a todos, recomendo vivamente. 

Armindo Ferreira – Cabo Verde  (com a devida vénia ao autor, engº Armindo Ferreira, e ao editor do blogue, a prof Ondina Ferreira


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