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segunda-feira, 8 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25725: Os bravos que foram esquecidos (1): Pelotão de Canhão s/r 3080 (Catió e Gadamael, nov 71 / set 73), comandado pelo alf mil inf Mário João Almeida Rocha




Fonte: Manuel Vaz (2019) (**)


I. Dois comentários, já antigos, ao poste P1877 (*)

(i) Anónimo:

O pelotão de canhões s/r 5,7 nº 3080 esteve em Gadamael em 1973,  comandado pelo alferes Rocha, tinha 2 furriéis, um o Arinto,  de Coimbra,  e o Milheiro, de Idanha A Nova; tinha 5 cabos, o Justo, o Caetano, o Lucas, o Costa e o Balbino. 

Tinha mais 31 soldados. Destes elementos nenhum fugiu, quando foram os dificeis dias de maio de 1973 em que quase todo o pessoal da aquartelamento fugiu para a bolanha e para Cacine. Estes mantiveram~se ao fundo da pista com os seus canhões virados para a estrada da fronteira da Guiné Conacri. 

Sentiram-se magoados com o esquecimento a que foram votados pelos elementos que depuseram no episódio da guerra do Joaquim Furtado (Documentário, " AGuerra", Episódio nº 10, de 18,  2012, 70 minutos), e que tinham vindo de Guilege, e que certamente não se aperceberam daqueles que estavam ao fundo da pista de aviação.

9 de janeiro de 2013 às 19:01

(ii) António Arinto:

Como o meu nome foi mencionado num comentário no vosso Blogue, tenho a dizer o seguinte:

1- O Pelotão de Canhão  s/r 5,7 3080 esteve em Gadamael,  vindo de Catió,  com 18 meses de comissão,  desde abril de 1973, onde instalou 3 canhões.

2- A missão era também instalar 2 canhões em Guilege, não foi feito por falta de tempo, pois entretanto começaram as flagelações em Guilege e depois em Gadamael com os resultados catastróficos e traumáticos conhecidos.

3- Que os nossos homens aguentaram tudo, nenhum fugiu, corremos o risco iminente de ficarmos isolados e sozinhos, não tendo acontecido, pensamos nós, devido à chegada do capitão 'comando' Ferreira da Silva que  teve uma actuação muito boa, orientando as evacuações dos feridos e mortos e acalmando os poucos que não tinha fugido. Depois chegaram os paraquedistas (o BCP 12, o batalhão completo).

4- Que a disciplina,união, coragem, espírito de sacrifício, e disponibilidade total dos nossos homens,já na parte final da comissão, fartos de levar porrada em Catió,  se deve especialmente a um Homem,  alf mil Rocha. Educado, humilde, bem formado, simples, camarada, bom condutor de homens. Com o seu exemplo, soube incutir, em todos nós, as qualidades necessárias para conseguirmos chegar ao fim sem qualquer baixa mortal, de consciência limpa, com a certeza absoluta que fizemos muito mais do que nos treinaram para fazer.

5- Que revolta, tristeza, ingratidão, toda esta mistura de sentimentos senti, ao ouvir declarações de militares que estiveram em Gadamael no programa da RTP1,  "A Guerra", não referindo uma só palavra sobre estes homens dos Canhões que tudo aguentaram.

6- Que as Companhias tanto a de Gadamael como a que veio de Guileje passados uns dias foram substituidas e os homens dos Canhões só foram rendidos em setembro de 1973,  com 23 meses de comissão.

7- Fomos levados para Cacine só com a roupa que tinhamos vestida, mais nada, estivemos quase um mês em recuperação alimentar e de saúde (tal era o estado em que estávamos).

8- Fomos para Bissau e embarcámos para a Metrópole no Navio (não me lembro o nome) em outubro de 1973.

Este é o meu desabafo e revolta que sinto depois de tantos anos

Abraço, António Arinto.

11 de janeiro de 2013 às 03:10

II. Comentário do editor LG:

Com mais de 102 mil comentários no nosso blogue, em 20 anos, estes dois, que aqui reproduzimos, estavam "esquecidos", na caixa de comentários, na "montra traseira", do poste P1877 (*). 

Fui relê-los ontem, depois de descobrir que o alf mil Rocha, era nem mais nem menos do que um velho conhecido meu, com família aqui na minha terra, Lourinhã.  De seu nome completo, Mário João Almeida Rocha, costumava passar as férias grandes, na infância e adolescência,  na Praia da Areia Branca. Estava longe de imaginar que também tinha "penado", como eu, na Guiné, e que é um dos heróis da batalha de Gadamael (maio, junho, julho de 1973).  É hoje arquiteto (, licenciado pela Escola de Belas Artes de Lisboa, tendo trabalhado como arquitecto na Administração Pública, no Ministério da Justiça,  e na acividade privada, e estando hoje reformado, segundo a imformação nos deu o irmão mais novo, o dr. José Rocha).

É mais que justo dar a devida visibilidade ao desempenho daqueles homens naquela batalha medonha que fez parte dos 3 G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (maio / junho / julho de 1973)..E é para isso que o blogue serve: para partilhar memórias (e também afetos) entre os antigos combatentes daquela  guerra,  já praticamente esquecida por todos, portugueses e guineenses.

Quem me levou a reler aqueles dois comentários foi o irmão do Mário João, o José Gabriel Almeida Rocha, advogado, e que últimamente tenho reencontrado mais vezes, na associação a que ambos pertencemos, o VIGIA - Grupo do Amigos da Praia d Areia Branca. O José Gabriel tem casa aqui e em Paço de Arcos. 

O dr. José Rocha colega e amigo do João Seabra, membro da Tabanca Grande, ex-al mil, da CCAV 8350, os "Piratas de Guileje" (1972/74). Temos também como amigo comum o novo membro da Tabanca Grande, José Álvaro Carvalho (ex-alf mil art, Pel Art / BAC, 8.8, 1963/65, que esteve adido 14 meses adido ao BCAÇ 619,  Catió, 1964/66).

Temos mais duas referências ao Pel Canh S/R 3080: postes  P19559 (**) e P23403 (***).

É particularmente elogiosa a referência que faz o nosso historioógrafo de Gadamael, o Manuel Vaz (**) a esta subunidade de armas pesadas de infantaria, aos seus homens e ao seu comandante, o alf mil Rocha, que esteve em Gadamael desde abril a setembro de 1973.



Fonte: Excertos de Manuel Vaz (2019) (**)

Sabemos que o Pel Canh SR 3080 foi aumentadado ao efetivo do CTIG em 24 de novembro de 1971, fazendo parte em 1 de julho de 1972 do Grupo de Artilharia n° 7 (GA7), e estando localizado em Catió. Um ano depois, em 1 de Julho de 1973 continuava fazer parte do GA7, mas estava já colocado em Gadamael (desde abril).

Após a retirada da guarnição de Guileje (22Mai73), a guarnição de Gadamael Porto (Sector COP 5) tinha a seguinte constituição:

  • CCaç 4743/72 |  2 GComb/CCaç3520 |  Pel Canh SRc 3080 (5 armas) | e Pel Mil 235. 
  • Vindas de Guileje: CCav 8350/72 | 15° Pel Art (14 cm) a 3 bocas de fogo | Pel Rec "Fox" 3115, apenas com 1 VBTP "White" e 1Sec (+)/Pel Mil 236 (o restante pessoal estava ausente ou havia sido baixa em combate).
 O capitão inf "cmd" Manuel Ferreira da Silva assumiu o Comando do COP 5 em 31 de Maio de 1973, em substitiução do maj art Coutinho e Lima (1935-2022).

Sobre Gadamael temos 418 referências:

E Guileje tem 581:

Retomaremos oportunamente esta série "Os bravos que foram esquecidos".Infelizmente, estas subunidades ( Pelotões de Canhões S/R, mas também Pelotões de Caçadores Nativos, Pelotões de Morteiros, Pelotões de Artilharia,etc.) não tempo de elaborar as respetivas "histórias de unidade" (composição orgânica, atividadade operacional, baixas, louvores, etc.)... E depois tinham poucos graduados metropolitanos, sendo as praças, em geral, do recrutamento local. 

Agradeço ao dr. José Rocha ter-me oprotunamente abordado, ontem no VIGIA,  e falado do injusto esquecimento a que foram votados os bravos do Pel Canh s/r 308, na batalha de Gadamael. 

Por sua vez,  o seu irmão (e nosso camarada) Mário Jorge Almeida Rocha está à vontade para nos contactar e usar o blogue para esclarecer tudo o que bem entender. Ele e a malta do seu antigo Pelotão. Um especial alfabravo para ele e para o António Arinto (Coimbra).

(Seleção de excertos, edição de foto, revisão / fixação de texto dos comentários, negritos e itálicos: LG)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)


João Seabra, hoje advogado;  foi alf mil, CCAV 8350 (1972/74). Tem apenas 15 referências no nosso blogue, para o qual entrou em 3/2/2009.


1. Carta ao Director do Público, enviada pelo João Seabra, advogado com escritório em Lisboa, ex-alf mil, CCAV 8350 (Guileje, 1972/73); não sabemos se chegou a ser publicada naquele jornal, nem quando. 

Ele facultou-nos uma cópia, que publicámos em 27/1/2009, sob o poste P3801 (*). Por ocasião da morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935 - Lisboa, 2022), justifica-se plenamente voltar a dar a conhecer, sobretudo para os mais novos, alguns dos acontecimentos de maio / junho de 1973, relatados na primeira pessoa do singular por aqueles que os viveram. No próximo ano comemoraremos os cinquenta anos da chamada batalha dos 3G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (**).

Escusado será lembrar as regras do nosso blogue: as opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, assinados, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o proprietário e editores do blogue e demais colaboradores permanentes. Mantemos o subtítulo original: "Cobarde num dia, herói no outro"... E quem o ler percebe que é um documento para a história, desassombrado,  frontal e corajoso.. 

Senhor Director,

Tendo lido as peças de Eduardo Dâmaso “A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos” e “Ninguém entregou a condecoração ao coronel”, publicadas no “Público de 26/6/2005”, achei conveniente pôr à sua disposição as tardias considerações que se seguem, às quais dará o destino que bem entender.

Fui alferes miliciano na CCav 8350, retirada de Guileje, em 22/5/73, por sensata decisão do comandante do então COP5, sr. major (coronel) Coutinho e Lima.

Nunca estive a bordo da “fragata Orion” (não seria uma LFG – lancha de fiscalização grande?), pela simples razão de que nunca me ausentei de Gadamael na sequência dos ataques dos dias 1/6/73 (uma quinta-feira) e seguintes.

Escreve-se numa das peças em causa: “os três ou quatro soldados que sobraram da tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva, ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem posto de rádio ...”.

Não foi assim. Para além de mim próprio, permaneceram no interior do destacamento, o alferes Luís Pinto dos Santos, comandante do pelotão de artilharia do Guileje e o alferes Rocha, comandante de um pelotão de canhões sem recuo 57 mm (e já vão três oficiais), e ainda, pelo menos, um furriel, e algumas (poucas) praças desta mesma unidade e da CCaç 4743 (a companhia originariamente de guarnição a Gadamael).

Além disso, encontravam-se em patrulha próxima do aquartedamento um pelotão da CCaç 4743 (com o seu alferes) e outro da CCav 8350 (alferes Reis).

Sou portanto uma das raras pessoas, que reúne em si a dupla qualidade de “cobarde” que, sob as ordens do major (coronel) Coutinho e Lima, retirou do Guileje,  e de pretenso “herói” de Gadamael. Nesta última condição fui louvado por despacho do General Comandante-Chefe de 28/8/73.

E não saímos de Gadamael por razões de decência básica (havia mortos e feridos que não podiam ser abandonados) e de elementar sensatez (uma retirada, devidamente comandada, é uma manobra militar, mas não consigo imaginar nada de tão perigoso como uma debandada).

Acontece que, na situação que se gerou em 1/6/73, só por comodidade de expressão se poderá falar em “tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva”.

Para o perceber, há que retroceder às peripécias que determinaram a retirada de Guileje, e às que se lhe seguiram.

Ao contrário de Guileje, Gadamael era uma posição sustentável, com poços de água potável muito próximos do perímetro exterior do aquartelamento, dotada de um cais acostável, acessível por via fluvial através de LDM, que na praia-mar navegavam sem dificuldades no braço do rio Cacine em cuja margem se situava.

Já Guileje era um destacamento absurdo, necessitando de organização de colunas escoltadas para reabastecimento de água a 3,4 Km, dependente, para o seu aprovisionamento, de complicadas colunas rodoviárias múltiplas, de e para Gadamael, com uma pontualidade que poderia servir de exemplo à CP, e que ficava completamente isolado na época das chuvas.

O inimigo (termo convencional pelo qual designarei a entidade que nos pretendia matar, estropiar ou capturar, e a quem, se tivéssemos oportunidade, faríamos outro tanto) conseguiu conjugar duas vastas operações, praticamente simultâneas, ao norte sobre Guidage e ao sul sobre Guileje.

A primeira dessas operações, quase esgotou a chamada reserva do Comando-Chefe, em tropas especiais.

Os meios utilizados pelo inimigo, tanto em artilharia como em infantaria, eram quantitativa e qualitativamente muito superiores aos das nossas guarnições de quadrícula.

A este propósito, tem interesse a leitura do artigo, publicado no Público, de 26/7/2004, pelo comandante Osvaldo Lopes da Silva do PAIGC, se bem que a desenvoltura com que este oficial transita da astronomia para a geografia e da geografia para a topografia, me sugira não ter sido ele o autor do plano de fogos na operação sobre Guileje.

Seja como for, dada a prioridade à defesa de Guidaje, Guileje foi isolado mediante a interdição dos seus acessos rodoviários a Gadamael e à água potável, através de emboscadas permanentes, por unidades de infantaria do inimigo, numerosas e dotadas de superior poder de fogo, minagem em profundidade dos itinerários, e sujeito a contínuo bombardeamento por todas as armas pesadas de que o inimigo dispunha.

Retirada a guarnição, e população, de Guileje, através de um itinerário ainda não reconhecido pelo inimigo, foi recebida em Gadamael, pelo então coronel (agora brigadeiro na reserva) Rafael Durão 
 [Comandante do CAOP 1, e não 3 (lapso do autor) ], com sede em Cufar). Esclarecido oficial, cuja primeira medida consistiu em promover uma formatura da CCav 8350, para ademoestar os respectivos oficiais, sargentos e praças, em bom vernáculo militar. O major Coutinho e Lima foi enviado para Bissau, onde permaneceu detido, pelo menos até ao 25/4/74.

Ainda hoje estou para perceber por que razão, confirmada a sua evacuação, o aquartelamento de Guileje não foi imediata e intensivamente bombardeado pela Força Aérea. Provavelmente havia quem acalentasse a fantasia de uma reocupação imediata. Certo é que o inimigo continuou a flagelar a posição após a nossa retirada, e só nela entrou dois a três dias depois (como diria Alves a C.ª: “ que coisa prudente é a prudência!”).

Dir-se-ia que, naquela conjuntura, se afigurava, pelo menos, bastante provável que o inimigo procurasse balancear, sobre Gadamael, os abundantes e sofisticados meios que tinha reunido para a operação de Guileje.

Nessa eventualidade – e sem prejuízo do indispensável patrulhamento em profundidade – eram necessárias providências urgentes.

Antes de mais – porque em Gadamael não havia obras ou abrigos adequados a uma guarnição entretanto duplicada – impunha-se a necessária actividade de organização do terreno, fortificando o destacamento, reforçando os espaldões de armas pesadas, abrindo trincheiras eficientes, enquadrando as subunidades, dotando-as de postos de combate defensivos bem determinados e interligados entre si e com o comando.

Em vez disso, o pessoal da CCav 8350 foi caoticamente disperso, em alojamentos de ocasião, pelos cerca de 40.000 m2 do aquartelamento, sem contacto com os seus oficiais e com o comando. Não se iniciaram quaisquer obras defensivas.

Por iniciativa de alguém que não consigo identificar, nas semanas anteriores operou-se uma radical alteração do material à disposição dos pelotões de artilharia de Guileje e Gadamael: as peças 114 mm (Guileje) e 105 mm (Gadamael), foram substituídas por obuses de 140 mm.

Ora, tanto as peças de artilharia de campanha como as próprias armas pesadas de infantaria, quando instaladas numa dada posição, necessitam de regulação do tiro, mediante a observação dos respectivos pontos de impacto, geralmente através de observação aérea, que já se sabia ser impraticável a partir do momento em que o inimigo passou a dispor de misseis solo-ar Strela-SA7.

As causas da desregulação são variadas, tendo a ver, designadamente, com choques sofridos pelas armas durante o serviço, com as condições meteorológicas, com insuficiências de cartografia, etc..

Os nossos obuses 140 mm (modelo 1943), tinham portanto a interessante função de fazer barulho e, nos casos em que abriam fogo de noite, de fornecer indicações de ajustamento do tiro do inimigo.

Nesta prometedora situação, o coronel Durão – certamente a benefício do brio e da disciplina – pôs de parte qualquer trabalho de organização defensiva, determinando um patrulhamento que se pretendia agressivo e que envolvia, em permanência, dois a quatro pelotões de entre as duas companhias.

De tal actividade resultaram dois contactos com pequenos grupos de reconhecimento do inimigo (os quais, por definição, evitam empenhar-se em combate), a quem foram capturadas três espingardas automáticas Kalashnikov.

No dia 31 de Maio de 1973 (uma quarta-feira), de manhã, o coronel Rafael Durão, retirou-se para Cufar, tendo chegado à lúcida conclusão que o inimigo, em consequência dos nossos “sucessos”, tinha retraído o seu dispositivo, sendo improvável um esforço sério da sua parte sobre Gadamael. Tratou-se evidentemente de uma bazófia só comparável com a sua idílica ignorância das intenções e do sistema de forças do inimigo.

Em sua substituição deixou o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva. Nesse mesmo dia, à tarde, iniciou o inimigo uma forte flagelação sobre Gadamael, utilizando, sobretudo, morteiros 120 mm, mas também foguetões Katyusha de 122 mm e peças de 130 mm, com uma qualidade de tiro surpreendente.

No dia 1 de Junho, o fogo da artilharia do inimigo intensificou-se qualitativa e quantitativamente e, entre as 10 e as 13 horas, uma área de 20.000 a 30.000 m2 do destacamento de Gadamael encaixou, seguramente, entre 350 e 400 impactos de morteiro 120 mm, provocando consideráveis baixas na guarnição.

Os dois capitães (comandantes, respectivamente, da CCaç 4743 e da CCav 8350), foram evacuados entre as 10,30 e as 11,00 horas, e não “ao princípio da tarde”.

Apercebendo-me de que se estava a gerar uma debandada, tentei impedi-la, pelas razões acima expostas, com resultados muito limitados.

O pessoal estava completamente entregue a si próprio e a falta de condições de comando era total: só conseguíamos transmitir ordens a quem nos passasse ao alcance da voz.

Dois dos três espaldões das peças de artilharia receberam granadas de morteiro 120 mm, que feriram, mataram ou dispersaram a totalidade das respectivas guarnições.

O pessoal que ia debandando dizia-me que o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva tinha dado ordens para se “sair do quartel”.

Dirigindo-me a uma das posições da artilharia, encontrei o alferes Luís Pinto dos Santos, que sobreviveu, com ferimentos ligeiros, e resolvemos ambos procurar o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, para lhe perguntar se tinha ordenado a evacuação do aquartelamento. Respondeu-nos que tal não era a sua intenção, tendo apenas recomendado ao pessoal que se deslocasse temporariamente “para fora do arame”, isto é, para o exterior do perímetro do destacamento, uma vez que o seu interior estava a ser intensamente batido pela artilharia inimiga.

Fizemos-lhe saber que tal “deslocação temporária” tinha degenerado em debanda incontrolável.

O alferes Pinto dos Santos, com a minha ajuda, conseguiu improvisar um mínimo de serventes (entre os quais o furriel de transmissões da CCav 8350) para activar um dos três obuses 140 mm, à cadência de um tiro de quarto de hora em quarto de hora.

Tudo visto, recolheram-se os mortos, evacuaram-se os feridos por via fluvial, e garantiu-se, com fogo esporádico de obus 140 mm, de morteiro de 81 mm e de canhão sem recuo de 57 mm, uma aparência de capacidade de reacção que dissuadisse um eventual reconhecimento em força por parte do inimigo (que aliás não se mostrou muito afoito).

Enfim: o trivial. As munições para as armas pesadas eram transportadas do paiol em uma viatura Berliet temerariamente conduzida por um cabo escriturário (Raposo) da CCaç 4743, o qual, na volta, também transportava feridos para locais de embarque.

Nesse mesmo dia 1 de Junho à tarde:

Reentraram no quartel os dois pelotões que estavam em patrulha exterior; desembarcaram, de helicóptero, dois oficiais de confiança do Comando-Chefe (capitães Caetano e Manuel Soares Monge) e o coronel Rafael Durão (pessoa dotada de coragem física em proporção inversa à do respectivo discernimento).

No dia 3 de Junho (Sábado), desembarcou a companhia 122 de paraquedistas (capitão Terras Marques), e no dia seguinte a 123 (capitão Cordeiro).

Uns dias mais tarde chegou a companhia de paraquedistas nº 121 (comandatada pelo então tenente, e hoje tenente-general, Hugo Borges), o que significa que foi deslocado para Gadamael um batalhão completo de paraquedistas (BCP 12).

Entre sexta-feira, dia 2/6/73 e o domingo seguinte, a presença do major Pessoa, do BCP 12, pôs termo ao efémero comando do capitão (coronel /dr.) Ferreira da Silva) no, assim chamado, COP5.

Um verdadeiro e próprio comando das forças de Gadamael foi estabelecido no domingo (4/6/73) na pessoa do tenente-coronel Araújo e Sá (comandante do BCP 12).

Nesse mesmo dia – por razões que, para mim, permanecem obscuras – o major Pessoa (era o 2º comandante do BCP12) retirou-se de Gadamael.

Apesar de não figurarem habitualmente como “heróis de batalha de Gadamael”, as operações das diversas companhias paraquedistas, em cerca de duas semanas, desarticularam o dispositivo inimigo, sofrendo baixas moderadas (uns 25 a 40 feridos, na maior parte ligeiros, com estilhaços de RPG 7).

Nunca será demais sublinhar a qualidade destas tropas de elite. Recordando os contactos que mantive com os seus oficiais (designadamente os capitães Terras Marques e Cordeiro), anoto, como curiosidade, que se mostravam extremamente críticos (no limiar do humor negro) em relação aos fundamentos e à condução da guerra, sendo a sua considerável eficiência, fruto exclusivo de um extraordinário brio profissional.

O corpo de tropas pára-quedistas – das melhores que se poderiam encontrar, inclusivé a nível da NATO – foi destroçado, como unidade combatente, em 1975. Ao que me consta o brigadeiro Rafael Durão e o major Pessoa tiveram, nessa meritória obra, a sua função, cada um do seu lado, respectivamente, no “11 de Março” e no “25 de Novembro”.

Não sei se o tenente-coronel Fabião tinha condecorações para atribuir. Recordo que o alferes Pinto dos Santos e eu próprio fomos ouvidos como testemunhas num processo de averiguações para atribuição de condecoração militar ao capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, pelo major (brigadeiro) Manuel Soares Monge, no quartel general do Comando-Chefe, em Bissau.

A nenhum de nós dois pareceu que fosse caso de condecorações a propósito do que se passou em Gadamael no dia 1 de Junho de 1973 (excepção feita ao cabo Raposo, atentos o seu posto e especialidade).

Recordo-me que, na altura, o então capitão Caetano me disse que tinha chegado a “fase dos baldes de plástico” (brinde comercial muito apreciado à época). Temíamos o aproveitamento de tal “fase” para transformar o capitão Ferreira da Silva numa espécie de contra-exemplo, em relação ao major Coutinho e Lima.

A serem atribuídas condecorações, deveriam elas ser, obviamente, atribuídas a oficiais, sargentos ou praças das tropas paraquedistas.

A partir da chegada do BCP 12, a CCav  8350 e a CCaç 4743 não tiveram qualquer actividade operacional de relevo.

Aliás nem poderiam ter, uma vez que não tinham treino, nem armamento, para se defrontar com a infantaria inimiga em reconhecimento avançado, do que foi feita a (desnecessária) demonstração no dia 4 de Junho, quando um pelotão da CCav 8350, reduzida a uma dúzia de elementos, caiu numa emboscada a menos de 1 km do aquartelamento, sofrendo quatro mortos (entre eles o respectivo alferes) e cinco feridos graves.

Será a este episódio que o dr. Ferreira da Silva, por equívoco, se quererá referir quando alude a “seis paraquedistas mortos no mesmo dia” (os cadáveres foram efectivamente recuperados por um pelotão de paraquedistas).

O objectivo desta pretensa patrulha era o de “descongestionar” o aquartelamento da sua, por assim dizer, densidade humana, face à eficiência do tiro da artilharia inimiga. Em suma: a CCav 8350 e a CCaç 4743 tinham passado a desempenhar a proverbial função de carne para canhão.

Note-se que a nossa tropa de quadrícula (companhias tipo caçadores), nem sequer estava dotada de uma metralhadora ligeira decente (a nossa inacreditável HK-21 encravava ao fim de cinco ou seis tiros).

As tropas especiais usavam as metralhadoras ligeiras MG 42 e, em considerável quantidade, equipamento capturado ao inimigo: metralhadoras ligeiras Degtyarev, lança granadas RPG 2 e RPG 7, espingardas automáticas Kalashnikov. Excelente material que, ainda hoje, está ao serviço, do Iraque ao Afeganistão, do Sudão à Libéria.

Tive a inspiração de selecionar, de entre os meus pertences, que carreguei de Guileje, um grande livro: Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert.

Quando saí de Gadamael, faz agora trinta e dois anos, tinha chegado a uma passagem célebre: “alors une faculté gênante se développa dans leur esprit, celle de percevoir la bêtise e de ne plus pouvoir la tol
érer.” [“então uma faculdade embaraçosa se desenvolveu em suas mentes, a de perceber a estupidez e não mais ser capaz de tolerá-la.” [tr. do editor LG ]

Dê a este enfadonho relato, Sr. Director, o destino que bem entender.

João Seabra

Antigo Alferes Miliciano da CCaV 8350 (1972/74)

P.S. - Porque, em certos aspectos factuais, confirma algo do acima relatado, junto segue extracto da minha folha de matrícula. 

[Revisão e fixação de texto / Negritos , para efeitos de publicação deste poste: LG]



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1969 > Álbum fotográfico do João Martins > Foto nº 135/199 > O temível obus 14... mais um elemento da guarnição africana do Pel Art ali destacado.

Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012).   Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

__________

Nota de L.G.:

 (*) Vs. poste de 
27 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

)**) Último poste da série > 21 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23431: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (9): relatório, de 15 pp., da Op Dinossauro Preto (BCP 12, Gadamael, de 2jun a 17jul73) - Parte I


Guiné > Bissau > Bissalanca> BA 12 > BCP 12 (1972/74) > O ex-fur mil paraquedista Manuel Peredo é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do 2º sargento Carmo Vicente e do furriel mil Fernandes, cabo-verdiano, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74). Estes dois elementos também estão equipados com armamento capturado ao PAIGC. Em junho de 1973 (e até 25 desse mês, com BCP 12 destacado em Gadamael), o Carmo Vicente era também o cmdt do 4º Gr Comb / CCP 122 (comandado pelo cap pqdt Terras Marques).

O Peredo viveu (ou ainda vive) em França; tem 8 referências no blogue que integra desde 27 de julho de 2008. Disse-nos na altura que foi pela mão do Carmo Vicente que chegou ao nosso blogue. O Carmo Vicente, DFA - Deficiente das Forças Armadasa, é autor de vários livros (incluindo poesia, memórias e contos), com destaque para "Gadamael" (1ª ed., 1982; 2ª ed., revista e aumentada, 1986, edições Caso) (Vd. postes P2915, de 4 de junho de 2008, e P2917, de 5 de junho de 2008).(*)

Foto (e legenda): © Manuel Peredo (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto do álbum do Rodrigues Delgadinho (**), na altura fur mil parquedista, da CCP 123 / BCP 12, força de elite que conseguiu travar a ofensiva do PAIGC contra aquele aquartelamento de fronteira. Gadamael faz parte dos três famosos G - Guidaje, Guileje, Gadamael... "Tremeu mas não caiu"...

Foto (e legenda): © Delgadinho Rodrigues / Manuel Peredo (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Manuel Peredo [ ex-fur mil paraquedista, CCP 122 / BCP 12, Bissalanca, 1971/73, vive em França, ou vivia até há uns anos; tem 8 referências no nosso blogue: integra o nosso blogue desde 2008](***)

Data - 7 jul 2022, 19h00
Assunto - Gadamael

Olá, camarada Luís Graça.

O blogue tem relançado o tema dos três G (*) e não me parece que esteja a despertar grande interesse, o que é pena. A mim foi o que mais me marcou dos dois anos de Guiné.

Aqui há anos, quando o tema foi muito comentado e discutido e alguns já estavam saturados de tanto falar sobre Gadamael, também dei o meu contributo. Um dia o João Seabra enviou-me por email o relatório da atividade do meu batalhão, o BCP12, onde tudo está descrito ao pormenor.

Para mim tem muito valor este documento,mas não sei se terá algum interesse para o blogue e se alguma coisa poderá ser publicada. Envio o ficheiro PDF,mas talvez fosse melhor perguntar ao João Seabra se não há nenhum inconveniente em ser publicado.

Boa leitura e um abraço para o Luís Graça.

Manuel Peredo,
ex furriel pára da CCP 122.


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Manuel Peredo, por nos teres facultado cópia do relatório da Op Dinossauro Preto (onde em 15 páginas se conta a odisseia do BCP 12, na defesa de Gadamael, entre 2 de junho e 17 de julho de 1973).

Sei agora, ao ler o documento, que foste ferido (mas também louvado) em Gadamael nesta altura (veremos isso na Parte III). Se mais razões não houvesse, esta bastava para reproduzir o documento que nos mandas, no todo ou em parte, no nosso blogue.

Não há problema em fazê-lo, o documento foi, em devido tempo, desclassificado, de acordo com os carimbos nele visíveis, na cópia que o João Seabra obteve diretamente do Arquivo Histórico-Militar. 

O João Seabra, hoje advogado, foi alf mil, da martirizada CCAV 8350, "Piratas de Guileje" (Guileje, 1972/73), é também merecedor da nossa gratidão por ter-te feito chegar, em tempos, esta cópia que tu agora partilhas com a Tabanca Grande. (O João tem 14 referências no nosso blogue, é pena que não nos dê notícias há muito, tal como outros "Piratas de Guilje").

Devido à sua extensão (15 páginas), vamos publicar o documento em 3 ou 4  partes. Um parte já foi transcrita no Poste P23415, a partir dos excertos da CECA (2015) (**). 

Nas primeiras cinco páginas do rekatório, verifica-se que falta, no entanto, a página 4 (relativa ao período entre 14 e 18 de junho de 1973, em que se realizaram a Op Bisturi Negro e a Op Diamante Preto), informação essa que se reconstitui aqui, a partir dos excertos da CECA (2015) (**):

- Operação Bisturi Negro - 14 e 15jun

A CCP 121 saiu em patrulhamento apeado, rumo Leste, flectindo para NWe depois para Norte. Em Cacoca 6E4.94 foi flagelada durante 45 minutos com armas autom, LGFog RPG-2 e RPG-7, canh s/r, por um grupo lN estimado em 80 elementos que se deslocavam na direcção Leste/Oeste.

As NT sofreram 1 morto (guia) e 2 feridos ligeiros. Da batida efectuada verificou-se que o lN sofreu 4 mortos confirmados e elevadas baixas prováveis dada a forma como procurou reter as NT com uma segunda linha de fogo com nítida intenção de retirar mortos e feridos, o que foi confirmado por sinais de arrastamento de corpos e abundantes rastos de sangue.

Foram referenciados elementos de tez clara e o lN utilizou esp autom G-3, metr lig HK-21 e dilagramas.

A CCP 121 regressou a Gadamael Porto para evacuar os feridos. Dois GComb voltaram a sair, rumo Leste flectindo depois para Norte. Montaram uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN.

- Operação Diamante Preto - 17 e 18jun

A CCP 122 a 3 GComb saiu em patrulhamento. Em Cacoca 6F8.65 foi detectado um grupo lN estimado em 20 elementos ao qual foi montada uma emboscada imediata. O lN sofreu 1 morto confirmado e feridos prováveis; foi recolhida uma pá articulada, uma pica e uma granada de LGFog RPG-2 com carga.

Reiniciada a progressão o agrupamento foi flagelado do lado da fronteira com 3 granadas de canh sr/, sem consequências.

Foi montada uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN
.


3. Relatório de Operações nº 16/73 | Operação Dinossauro Preto | Período: 2jun73 - 17jul73 | Região: Cacine / Gadamael | Referências: Carta [Cacoca] 1/50.000 | Exemplar nº 4 | BCP 12 | Bissalanca| 31jul73| 15 pág. Assinado: Sílvio José Rendeiro de Araújo e Sá, ten cor paraquedista.

Documento desclassificado. Cópia proveniente do Arquivo Histório-Militar. Cortesia de Manuel Peredo / João Sebra.

De assinalar a observação, na pag 1, ponto 3e: "Alteração à organização regulamentar: 2. Armamento: Utilizados LGF RPG 2, RPG 7, Met Lig Dectyarev, Esp Aut Kalashnikov e Mort 60"... Os páras reconheciam que o armamento do PAIGC era melhor que o nosso... Ou era "fetichismo" ? Afinal, os tipos do PAIGG também não desdenhavam da G3, dilagrama, HK 21 (capturado às NT)... 

Como diz o povo, "a galinha do vizinho é sempre melhor que a minha"... A "kalashnikovmania" é um velho tema aqui debatido no blogue...





Falta a página 4 (vd. comentário do editor LG, ponto 2, acima)



(Continua) 
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de junho de  2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (100): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > c. 2011 > Restos do Memorial à CCAV 8350 (1972/1974) e ao alf mil Lourenço, morto por acidente em 5/3/1973. De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica.  

Outra das baixas mortais da CCAV 8350 foi o alf mil art Artur José de Sousa Branco: foi morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73, era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Foram duas das 9 baixas mortais dos "Piratas de Guileje" e dois dos 75 alferes que perderam a vida no CTIG.

Foto: © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > c. 1973/74 >  "Dos poucos momentos que passei em Bissau... Junto às LFG Orion, Lira e Argos (da esquerda para a direita)"

Foto: © J. Casimiro Carvalho (2017). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada Francisco Godinho [, foto  à direita] recuperou, muito a propósito e oportunamente, em 24 do corrente, na sua página do Facebook, um texto do J. Casimiro Carvalho, que merece ser reproduzido no nosso blogue.

O J. Casimiro Carvalho, o nosso "ranger", ex-fur mil op esp, CCAV 8350, "Os Piratas de Guileje (Guileje, 1972/73),  é membro sénior da Tabanca Grande, e tem já cerca de 8 dezenas de referências no nosso blogue.

Publicámos, em tempos, as suas "cartas do corredor da morte" mas há lacunas de informação sobre o período em que esteve em Gadamael (e onde foi ferido).  Desde sempre o tratei, e muito justamente, como "herói de Gadamael". Nunca teve, ele e os outros "heróis de Gadamael", o devido reconhecimento público...

Não sei qual é a origem deste texto que o Francisco Godinho "recuperou".  Trata-se, em todo o caso de um relato dramático, na primeira pessoa, da uma saída para o mato, nas imediações do quartel de Gadamael, sitiado por forças do PAIGC, que acabou tragicamente para 5 dos 12 integrantes da "patrulha fantasma". Temos o dever recordar, mais uma vez, a sua memória e a trágica circunstância da sua morte... (LG).


O J. Casimiro Carvalho administra, desde 2/2/2014,  a página do Facebook Tabanca da Maia Tertúlia, reunindo já mais de meio milhar de membros, entre militares, ex-militares, familiares e amigos, com residência na Maia e imediações. É um grupo criado fundamentalmente "para convívio e para nos conhecermos" (sic). O grupo reúne-se, em almoço-convívio, no último sábado de cada mês. Além do  administrador (J. Casimiro Carvalho), tem um moderador (António Silva).  "Assuntos proibidos: religião, política e futebol"...


2. (De) Caras > J. Casimiro Carvalho > Gadamael, 4 de Junho de 1973: "A Patrulha Fantasma”

Em Gadamael, a mortandade era tanta, a cadeia de comando rompeu-se e houve fugas para o mato e para o Rio Cacine.

De salientar a bravura do capitão Ferreira da Silva (Comando/Ranger) (*), que avocou a si o comando desse pequeno contingente [, que restava em Gadamael,] e debaixo de fogo coordenou os cerca de 30 ou quarenta, verdadeiros heróis, que até à chegada dos abnegados Paraquedistas [do BCP 12], aguentaram aquele apocalipse!

Não havia condutores, o pessoal andava atarantado... aterrorizado e sem chefias que chegassem. Era assim em Gadamael em 1973.

A enfermaria estava pejada de cadáveres, um cheiro nauseabundo, os mesmos eram constantemente regados com creolina, não haviam urnas, os bombardeamentos eram constantes, as granadas caíam com precisão dentro do quartel, se fugíamos para o rio, elas caíam no rio, se fugíamos para o parque auto, caíam aí, havia coordenação de tiro por parte do IN.

Cheguei a conduzir uma Berliet, dos paióis para as bocas de fogo, de tal forma que,  quando havia saídas de fogo, nós já não as ouvíamos. Comigo andava um açoriano [, o 1.º cabo Raposo] (**), dois autênticos loucos varridos, saltávamos em andamento e, quando acabava o fogachal, voltávamos ao camião e seguíamos com o serviço.

Nessa altura, mais valia estar no mato, estávamos sitiados, e por isso,  quando formaram uma patrulha "ad hoc" onde me incluíram, até fiquei contente. Nessa patrulha ia o alferes Artur Branco, que antes tinha dito que o mandaram para ali, e que ia morrer; iam dois putos que tinham vindo voluntários para a tropa (, dois meninos!), aos quais ordenei que ficassem no quartel, ao mesmo tempo que disse: "Sois muito novos para morrer" (ainda se lembram disso e sempre o repetem aos filhos, dizendo que me devem a vida); ia um negro (o "pica"), o cabo José Neves e os soldados F. Anselmo [Fernando Alberto Reis Anselmo, natural de Macedo de Cavaleiros]; e A. Serafim [António Mendonça Carvalho Serafim, natural do Cartaxo] (um destes soldados nunca saíra para o mato), e outros que desconheço. Era uma “patrulha fantasma”.

Saímos para a zona da pista abandonada de Gadamael, as ordens era para emboscar nessa zona, para prevenir aproximações IN. Fomos em fila indiana ao longo do rio Cacine junto ao tarrafo. Passámos por um sítio, onde se vislumbrava uma pequena clareira, de capim médio, e o pica disse: "Alfero, melhor ficar por aqui, boa zona para montar emboscada"... O alferes Branco retorquiu que as ordens eram ir para a pista velha, pelo que continuámos. Uns 200 metros à frente, o negro disse que a pista estava minada e armadilhada pela tropa anterior. Posto isto, o alferes reuniu comigo e chegámos a consenso: que o melhor era recuarmos.

Recuámos em silêncio e ordeiramente, até chegarmos à tal zona da clareira, e começámos a entrar na mesma, agachados para passarmos por baixo do tarrafo.  Normalmente eu ia em 2.º ou 3.º nas patrulhas, e ao entrarmos nessa clareira, um dos militares deu-me passagem, e eu disse que não: "Ide entrando que 'eles' podem estar aí",  num tom bonacheirão e em sussurro, e assim foi.

Uns seis já tinham passado, quando ouvi uns estalidos e, com gestos e murmúrios, dei a entender que estava ali algo. Todos pararam espaçados e em silêncio. Como mais nada se ouviu, eu disse: “Deve ser passarada, avancemos” .... logo a seguir, outra vez o estalar de ramos e mexer de vegetação. Imediatamente gritei: “Emboscada!”, coloquei a arma em modo de rajada, e atirei-me para o chão, não sem antes ver a cara do alferes desfeita por uma rajada, com sangue e ossos (?), a saltar.
Já no chão e com um fogachal tremendo, próprio de armas russas, com a cara de lado bem rente ao mato, passou-me a vida pelo cérebro, e a mente a pensar na “minha mãe”. Estou neste estertor, pensando se abria fogo ou não, pois iria denunciar a minha posição, imaginando um turra a disparar nas minhas costas, deitado.

Nestas fracções de segundos, ouço uma G-3 a disparar ao meu lado, o som era mesmo nosso, então comecei a dar rajadas de 3 ou 4 tiros, enquanto outro militar dava tiro a tiro, compassadamente. Freneticamente, tirei o carregador vazio e coloquei outro, disparando pequenas rajadas por cima da cabeça, que continuava “colada ao solo”. Ao pegar no 3.º carregador, o tiroteio IN parou abruptamente, quando vislumbro um turra no meio da vegetação que se levantou, e assim mesmo levou uma rajada minha que o “tombou” logo ali, depois uma gritaria infernal, por parte deles, e eu, sozinho com um militar ao meu lado, berrei para o mesmo: "Vamos, ou morremos aqui".

Ele gatinhou à minha frente, passámos pelo cadáver do cabo Neves [José Inácio Neves, natural de Alcobaça] e seguimos para o rio, em direcção ao quartel, sempre a olhar para trás a ver se algum IN nos mirava para nos abater. Larguei cinturão, com a ração de combate e os restantes carregadores, para melhor correr, fugindo da morte certa, levando apenas a G-3 sem carregador nem munições.

Chegado ao quartel, sozinho, o meu corpo colapsou, e todos pensaram que eu morrera ali mesmo.  Fui recolhido por camaradas daquele inferno, tão aterrorizados como eu, e descansei um pouco, bebi água sofregamente, sem saber ao certo quantos morreram.

De seguida, saíram paraquedistas [da CCP 122, um Gr Comb, comandado pelo alf paraquedista Francisco Santos]  e foram ao local (a 1200 metros) da emboscada, onde encontraram aquela cena traumatizante, derivado ao que os turras fizeram aos meus camaradas, que me dispenso de pormenorizar aqui, tal o horror.

Quando regressaram, eu quis ver os meus camaradas, que estavam numa Berliet, e não me deixaram. Peguei numa G-3, meti bala na câmara e berrei: “Ou vejo, ou varro esta merda toda”!... Claro que vi, e essa imagem persegue-me ainda hoje, como fantasmas do passado!

Passados uns dias, noutro bombardeamento, fui ferido, e evacuado pelos fuzos até à [LFG] Orion, para Cacine. No entanto, quando fiquei bom, ofereci-me para ir outra vez para o holocausto, onde os meus camaradas morriam.

Andei 20 anos sem sequer mencionar que andei na guerra, ainda que militar da GNR BT [, Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana].

Hoje, falo abertamente, sofro em silêncio e não só. A minha esposa encontra-me por vezes a chorar convulsivamente e já não diz nada: Ela sabe...

Décadas se passaram, e numa simples conversa, descobri quem era o herói que ao meu lado disparou até ao último segundo (o tal da decisão de viver... ou morrer): era o soldado Borges, da CCAV 8350 "Piratas de Guileje", o qual abracei chorando e soluçando, revivendo aquele tormento.

Por isso, agora, quem me vê, nas comezainas, convívios, com alegria: e a disparar sorrisos para todo o lado, lembre-se, é um hino à Vida e uma forma de esconjurar os fantasmas do passado. (**)

José Casimiro Carvalho
ex fur mil Op Esp

PS - Nunca poderei esquecer a LFG Orion, seus marinheiros, os fuzileiros, que desobedeceram ao Gen Spínola e acorreram aos militares que morreriam sem o seu socorro.

Os Paraquedistas... nem tenho mais adjectivos: os meus heróis.

Um excerto de "A Guerra": Episódio n.º 10 [Episódio 10 de 18]

Em Gadamael, no sul da Guiné, poderia ter ocorrido um grande desastre militar. Perante ataques do PAIGC, quase toda a guarnição se refugiou no rio, ficando um pequeno grupo a defender o quartel. Spínola ameaça afundar um bote com militares em fuga. Também proíbe o socorro dos náufragos, grande parte civis, mas a Marinha e os Fuzileiros não cumprem a ordem.


3. Comentários:

(i) Francisco Godinho [ex-Fur Mil da CCAÇ 2753, "Os Barões do K3)", Madina Fula, Bironque, K3 e Mansabá, 1970/72; é natural de Moura, vive no Seixal]

Não queria voltar a este assunto, nem de "evocar memórias passadas e tristes" e que não quero que voltem a ocorrer na história presente e futura deste País, que é o meu e o vosso, agora que, parece, está "cimentada" a liberdade e a democracia, (às vezes, fico em alerta, mas enfim) neste nosso rectângulozinho, à beira-mar plantado.

Mas, como conheço o assunto, o protagonista e actor principal, o José Casimiro Carvalho, que faço questão e tenho o orgulho em ter como camarada de armas e amigo, e como também, ainda, tenho pesadelos, ainda que não tão intensos como os dele, dada a dimensão dos acontecimentos que ele, o Casimiro, viveu. (Eu terei outros, talvez não tanto dramáticos, mas igualmente marcantes do ponto de vista psico-social-emocional).

Mas, para que a memória dos portugueses/portuguesas, não se apague, não se deixe embalar em "cantilenas", e também porque, de vez em quando, (como ele muito bem diz) é preciso "exorcizar os nossos fantasmas", aqui vos deixo, para reflexão e "amadurecimento de memória", este pungente "relato real" de uma situação vivida por um jovem (tal como eu, na altura) soldado (, somos todos soldados, naqueles momentos) do Exército Português.

Repito, não para nos olharem como heróis, mas para, ao menos nos respeitarem e, principalmente, não esquecerem os sacrifícios e os "custos" que esta democracia, digamos, "impôs", para existir. 

Um abraço tamanho do mundo, José Casimiro Carvalho, e até ao próximo encontro da nossa Tabanca Grande.


(ii) Manuel  [Augusto]  Reis [ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74; vive em Aveiro]:

Fui testemunha "in loco" de tudo o que relata o José Casimiro. Foi de uma violência tremenda essa emboscada e foram bravos esses homens que foram obrigados a efectuar esse patrulhamento. Eram 11 homens, mal equipados e mal armados, que partiram do aquartelamento sob os berros e ameaças do comandante de companhia.

Não calei a minha revolta e indignação pelo sucedido, o que me valeu uma despromoção de 2.º comandante, o que para mim constituiu um prémio. Acabei por ser massacrado com tentativas de aliciamento para depor num determinado sentido, caso fosse aberto um inquérito.

Permanece viva a imagem do alf Branco, chegado há dois dias à companhia e, na hora da partida, olhou para mim, incrédulo, como que a perguntar o que devia fazer. Nada disse, mas apeteceu-me gritar: Não vás! Coube-me a mim partilhar este sofrimento e dor imensa com a pobre mãe. Não gosto de recordar esta situação, mas o José Carvalho merece uma palavra amiga pela sua abnegação e doação ao próximo. Sem a sua bravura ninguém regressaria do mato. Bem hajas. [****)


 (iii) Tabanca Grande / Luís Graça:

O alf mil art Artur José de Sousa Branco, da CCAV 8350, foi morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73. Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado. O grupo cai de imediato numa emboscada e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12, acabada de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, sob o comando do cap paraquedista Terras Marques).

Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco e ainda consegue resgatar os corpos e os sobreviventes. "Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).

Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350 (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade): António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo); Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros); Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém); José Inácio Neves (Alcobaça).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

(**) Vd. postes de:

15 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I) (Luís Graça)



(***) Último poste da série > 14 de novembro de 2017 > uiné 61/74 - P17971: (De) Caras (100): Saia uma sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira, ex-alf mil, CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim / K3, Mansabá, 1970/72; médico reformado, Pombal)

(***) Vd. poste de  2 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P310: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

(...) "Nas reuniões anuais da nossa Companhia muitos falam dos actos de bravura deste furriel, desde, debaixo de fogo, conduzindo uma Berliet se deslocar aos paióis para municiar não só as bocas de fogo de artilharia, como para os morteiros, fazer ainda parte duma patrulha onde morreram vários militares ficando ele e outro a aguentar a situação, até serem socorridos, e ter sido ferido, evacuado para Cacine, o que não invalidou que passados poucos dias se tenha oferecido para voltar para junto dos camaradas no verdadeiro inferno em Gadamael. (...)

Vd. também poste de  17 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16099: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (37): O nosso Blogue e a sua importância (Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350)

domingo, 6 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9859: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (15): Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael...



1. Em 1973, em Maio/Junho, Gadamael era um dos três G de que toda a gente falava: Guidage, Guileje, Gadamael... Sobre Gadamael temos mais de 170 referências no nosso blogue, já tendo nós publicado diversos depoimentos em primeira mão, relativos à chamada batalha de Gadamael (em finais de maio e princípios de junho de 1973), desde o J. Casimiro Carvalho ao Pedro Lauret, do Carmo Vicente ao Victor Tavares, do Luis Paiva ao Manuel Rebocho, do Jorge Canhão ao João Seabra, sem esquecer o Manuel Reis, o Constantino Costa e outros "piratas de Guileje" ...

Qualquer destes três G têm suscitado e continuarão a suscitar as mais diversas versões, não necessariamente contraditórias, seguramente parcelares e complementares, umas mais polémicas, apaixonadas e acaloradas do que outras.


Alguns de nós, como é o acaso do nosso camarigo António Graça de Abreu (AGA), assistiram aos acontecimentos de Gadamael a uma distância relativamente confortável (desde Mansoa ou de Cufar). Para quem não estava lá, em meados de 1973, no TO da Guiné, não deixa de ser interessante ler as referências a Gadamael no diário do AGA, e ficar a conhecer as reações que a evocação do topónimo provocava nas NT... Lembro-me do mesmo temor e respeito que nos inspirava, em meados de 1969, a evocação de outros topónimos como Gandembel ou Madina do Boé, quando desembarcámos em Bissau e começamos a deambular pelas 5ªs Rep, ávidos de notícias, boatos e histórias da guerra. 

Pois aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné onde encontrei referências ao topónimo Gadamel. Recorde-se que há uma edição comercial do livro, e que este pode ser comprado nas livrarias ou na feira do livro que está a decorrer em Lisboa. Referência completa:  António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14....
                                                                                 
Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados



Mansoa, 22 de Maio de 1973

O PAIGC parece que vai declarar a independência, mas isso não modificará o rumo da guerra. O que tem abalado os portugueses nestes últimos meses é a quase ausência da nossa aviação, o armamento cada vez melhor, em maior quantidade e melhor utilizado pelos guerrilheiros e, acima de tudo, o estado anímico e psíquico da tropa portuguesa. No entanto, continuo a acreditar que esta guerra está longe de se resolver no campo militar e terá, só Deus sabe quando, uma solução negociada, política.
Creio que continuamos em vantagem sobre os guerrilheiros, dominamos os centros urbanos e as maiores povoações da Guiné, existem aquartelamentos espalhados por todo o território e temos muitos mais militares do que eles. Se em vez de quatro ou cinco Fiats tivéssemos vinte ou trinta aviões mais modernos, se contássemos com blindados capazes para este tipo de guerra, se a tropa portuguesa estivesse moralizada e decidida, as NT voltariam a manejar quase todos os cordéis com que se tece a guerra. Mas onde ir buscar dinheiro para tanto material militar – parece que as guerras em África consomem quase metade do orçamento de Estado, – e fundamental, como mudar estes nossos homens, descrentes, cansados, confusos?
Os senhores que nos governam ou estão cegos para a realidade ou fingem estar, querem que os pobres soldados portugueses continuem a “defender a Pátria” até ao impossível. (...)
O meu coronel [, Cor pára Rafael Durão, comandante do CAOP1] anda lá pelo sul, (...)  Guileje, Gadamael aquartelamentos junto à  fronteira que têm sido atacados quase sem interrupção. Ele já tem cá o seu “periquito”, o substituto, outro coronel pára-quedista que parece ficará em Catió, no sul, onde se diz que será criado um CAOP 3. (...)

Mansoa, 28 de Maio de 1973

O outro “Gui”, Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto afiançado. (...)

Mansoa, 19 de Junho de 1973

Chegou anteontem a Mansoa uma companhia nova de pessoal destinado a Angola. Só dentro do avião souberam que vinham para a Guiné. Aconteceu o mesmo a três outras companhias de 180 homens cada, com outros destinos, que também foram desviadas para a Guiné. Estes vêm substituir uma companhia do Batalhão 4612, aqui estacionado em Mansoa e que, com oito meses de comissão, parte amanhã para reforçar Gadamael, ao lado de Guileje já evacuado há um mês pelas nossas tropas. Ontem os rapazes desta companhia estavam desesperados face ao futuro incerto que os espera, mais incerto do que o meu. Eu vou para pior, não propriamente para um matadouro. Esta companhia, ai, que Deus os proteja!...

A grande maioria dos mortos em combate na primeira quinzena de Junho, vinte e quatro no total, registou-se no sul, na região de Gadamael-Cameconde onde os guerrilheiros tentam conseguir o mesmo que em Guileje, obrigar os portugueses a abandonar mais um aquartelamento. Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael. (...)

Hoje, às oito da noite estávamos os oficiais a jantar quando, diante da messe, surgiu quase toda a companhia velha em marcha fúnebre, com arcos e velas acesas sobre umas tábuas que pareciam caixões. Formaram e queriam oferecer uma garrafa de whisky ao capitão, o comandante da companhia, um homem do QP, competente, respeitado e determinado. Saiu da messe, perfilou-se, fez continência aos seus homens e mandou-os dispersar. Obedeceram logo. Depois houve grandes bebedeiras. Estive no bar de oficiais até cerca da meia-noite. Alguns alferes da companhia que segue para Gadamael, cheios de álcool, partiram garrafas e cadeiras. Não se tratou de insubordinação, apenas o extravasar de recalcamentos e medos. (...)

Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. (...). O que se passa lá mais para sul, em Guileje, há um mês abandonado pelas NT, em Gadamael, que esteve quase a ser evacuada, em Cameconde ou Cacine, só indirectamente tem a ver com a zona onde me encontro. Embora perto de Cufar, uns trinta quilómetros em linha recta, são regiões geográfica e militarmente diferenciadas da nossa. Lá os guerrilheiros estão a exercer uma enorme pressão mas, pelo que conheço deles, não me parece que tenham hipóteses de repetir a ocupação de qualquer aquartelamento NT. No extremo sul da Guiné eles atacam muitas vezes a partir do outro lado da fronteira. Dispõem de uma base grande em Kandiafara, uns quinze quilómetros já dentro da Guiné-Conacry, para onde regressam após emboscadas e flagelações. (...)

  Cufar, 27 de Junho de 1973

De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas. Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado. (...)

Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael. (...)

Cufar, 21 de Setembro de 1973

Tenho o cabelo um pouco mais crescido, mas os meus superiores não me chateiam com críticas ou ordens para o cortar. Também deixo crescer o bigode embora não me pareça que fique mais bonito. O bigode dá-me um certo ar rufia, um aspecto de mafioso italiano ou grego, de facalhão à cinta. Cortá-lo-ei em breve. Para um oficial usar bigode é necessário fazer um requerimento ao ministro do Exército. Não fiz nada disso, estou no sul da Guiné, quanto maior é o “buraco” em que estamos metidos, mais se ultrapassam os regulamentos. Os tipos do Chugué, Jemberém, Gadamael usam bigodes, barbas, cabelos de meses, estão-se cagando para os regulamentos. Os tipos do ministério do Exército que venham cá até ao sul da Guiné, até este esplendoroso torrão de solo pátrio, mandar vir com os soldados barbudos e cabeludos!... Eles são capazes de lhes meter uma bala nos tomates. (...)

Cufar, 8 de Novembro de 1973

Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.
De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?
As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo. (...)

Cufar, 11 de Novembro de 1973

Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.
Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água. (...)


Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

            Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.

            Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair.

            Só desejo que este embeber doloroso na guerra, este permanente estado de insegurança, este saber que a meu lado todos os dias morrem africanos e portugueses, não entre demasiado por dentro de mim e me marque a ferrete, com ressacas complicadas para o futuro. Não sou um tipo medroso, nem fraco. Procuro manter a cabeça fria e fazer estes jogos de guerra mantendo-me vivo e seguro. Mas custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados. Os soldados parecem crianças com todos os defeitos dos homens. Bebedeiras conscientemente procuradas, reacções sem nexo, o medo escondido a crescer.
            Em mim, acho que quero, posso e mando. Às vezes, embora eu diga que não, a guerra afecta-me, e muito. Tento criar calo, uma armadura onde as sensações mais fortes batam e façam ricochete. Há o futuro, o desta gente, negros e brancos, e o meu. Faltam-me apenas quatro meses para terminar a comissão. É aguentar, e peito firme!  (...)


            Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos. (...)


           Cufar, 21 de Janeiro de 1974


Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (...)


           Cufar, 31 de Março de 1974



Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, -  disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)