1. Em 1973, em Maio/Junho, Gadamael era um dos três G de que toda a gente falava: Guidage, Guileje, Gadamael... Sobre Gadamael temos mais de 170 referências no nosso blogue, já tendo nós publicado diversos depoimentos em primeira mão, relativos à chamada batalha de Gadamael (em finais de maio e princípios de junho de 1973), desde o J. Casimiro Carvalho ao Pedro Lauret, do Carmo Vicente ao Victor Tavares, do Luis Paiva ao Manuel Rebocho, do Jorge Canhão ao João Seabra, sem esquecer o Manuel Reis, o Constantino Costa e outros "piratas de Guileje" ...
Qualquer destes três G têm suscitado e continuarão a suscitar as mais diversas versões, não necessariamente contraditórias, seguramente parcelares e complementares, umas mais polémicas, apaixonadas e acaloradas do que outras.
Alguns de nós, como é o acaso do nosso camarigo António Graça de Abreu (AGA), assistiram aos acontecimentos de Gadamael a uma distância relativamente confortável (desde Mansoa ou de Cufar). Para quem não estava lá, em meados de 1973, no TO da Guiné, não deixa de ser interessante ler as referências a Gadamael no diário do AGA, e ficar a conhecer as reações que a evocação do topónimo provocava nas NT... Lembro-me do mesmo temor e respeito que nos inspirava, em meados de 1969, a evocação de outros topónimos como Gandembel ou Madina do Boé, quando desembarcámos em Bissau e começamos a deambular pelas 5ªs Rep, ávidos de notícias, boatos e histórias da guerra.
Pois aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné onde encontrei referências ao topónimo Gadamel. Recorde-se que há uma edição comercial do livro, e que este pode ser comprado nas livrarias ou na feira do livro que está a decorrer em Lisboa. Referência completa: António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa:
Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)
Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14....
Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados
Mansoa,
22 de Maio de 1973
O PAIGC parece
que vai declarar a independência, mas isso não modificará o rumo da guerra. O
que tem abalado os portugueses nestes últimos meses é a quase ausência da nossa
aviação, o armamento cada vez melhor, em maior quantidade e melhor utilizado
pelos guerrilheiros e, acima de tudo, o estado anímico e psíquico da tropa
portuguesa. No entanto, continuo a acreditar que esta guerra está longe de se
resolver no campo militar e terá, só Deus sabe quando, uma solução negociada,
política.
Creio que
continuamos em vantagem sobre os guerrilheiros, dominamos os centros urbanos e
as maiores povoações da Guiné, existem aquartelamentos espalhados por todo o
território e temos muitos mais militares do que eles. Se em vez de quatro ou cinco
Fiats tivéssemos vinte ou trinta aviões mais modernos, se contássemos com
blindados capazes para este tipo de guerra, se a tropa portuguesa estivesse
moralizada e decidida, as NT voltariam a manejar quase todos os cordéis com que
se tece a guerra. Mas onde ir buscar dinheiro para tanto material militar –
parece que as guerras em África consomem quase metade do orçamento de Estado, –
e fundamental, como mudar estes nossos homens, descrentes, cansados, confusos?
Os senhores
que nos governam ou estão cegos para a realidade ou fingem estar, querem que os
pobres soldados portugueses continuem a “defender a Pátria” até ao impossível. (...)
O meu coronel [, Cor pára Rafael Durão, comandante do CAOP1] anda lá pelo sul, (...) Guileje, Gadamael
aquartelamentos junto à fronteira que
têm sido atacados quase sem interrupção. Ele já tem cá o seu “periquito”, o
substituto, outro coronel pára-quedista que parece ficará em Catió, no sul,
onde se diz que será criado um CAOP 3. (...)
Mansoa, 28 de
Maio de 1973
O outro “Gui”,
Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os
melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente
flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela
primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um
aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à
fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do
Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o
que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto
afiançado. (...)
Mansoa, 19 de
Junho de 1973
Chegou
anteontem a Mansoa uma companhia nova de pessoal destinado a Angola. Só dentro
do avião souberam que vinham para a Guiné. Aconteceu o mesmo a três outras companhias
de 180 homens cada, com outros destinos, que também foram desviadas para a
Guiné. Estes vêm substituir uma companhia do Batalhão 4612, aqui estacionado em
Mansoa e que, com oito meses de comissão, parte amanhã para reforçar Gadamael, ao
lado de Guileje já evacuado há um mês pelas nossas tropas. Ontem os rapazes
desta companhia estavam desesperados face ao futuro incerto que os espera, mais
incerto do que o meu. Eu vou para pior, não propriamente para um matadouro.
Esta companhia, ai, que Deus os proteja!...
A grande
maioria dos mortos em combate na primeira quinzena de Junho, vinte e quatro no
total, registou-se no sul, na região de Gadamael-Cameconde onde os
guerrilheiros tentam conseguir o mesmo que em Guileje, obrigar os portugueses a
abandonar mais um aquartelamento. Contam-se histórias tenebrosas sobre
Gadamael. (...)
Hoje, às oito
da noite estávamos os oficiais a jantar quando, diante da messe, surgiu quase
toda a companhia velha em marcha fúnebre, com arcos e velas acesas sobre umas
tábuas que pareciam caixões. Formaram e queriam oferecer uma garrafa de whisky ao capitão, o comandante da
companhia, um homem do QP, competente, respeitado e determinado. Saiu da messe,
perfilou-se, fez continência aos seus homens e mandou-os dispersar. Obedeceram
logo. Depois houve grandes bebedeiras. Estive no bar de oficiais até cerca da
meia-noite. Alguns alferes da companhia que segue para Gadamael, cheios de
álcool, partiram garrafas e cadeiras. Não se tratou de insubordinação, apenas o
extravasar de recalcamentos e medos. (...)
Cufar, 25 de Junho de 1973
Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. (...). O que se passa lá mais para sul, em Guileje, há um mês abandonado pelas NT, em Gadamael, que esteve quase a ser evacuada, em Cameconde ou Cacine, só indirectamente tem a ver com a zona onde me encontro. Embora perto de Cufar, uns trinta quilómetros em linha recta, são regiões geográfica e militarmente diferenciadas da nossa. Lá os guerrilheiros estão a exercer uma enorme pressão mas, pelo que conheço deles, não me parece que tenham hipóteses de repetir a ocupação de qualquer aquartelamento NT. No extremo sul da Guiné eles atacam muitas vezes a partir do outro lado da fronteira. Dispõem de uma base grande em Kandiafara, uns quinze quilómetros já dentro da Guiné-Conacry, para onde regressam após emboscadas e flagelações. (...)
Cufar,
27 de Junho de 1973
De
Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas. Fala-se
em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a
população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael,
abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN.
Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa.
Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa
procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry,
no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade,
começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado. (...)
Cufar, 2 de Julho de 1973
Catió
“embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume
caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a
maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da
manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que
voltei a adormecer. Era Gadamael. (...)
Cufar, 21 de
Setembro de 1973
Tenho o cabelo
um pouco mais crescido, mas os meus superiores não me chateiam com críticas ou ordens
para o cortar. Também deixo crescer o bigode embora não me pareça que fique
mais bonito. O bigode dá-me um certo ar rufia, um aspecto de mafioso italiano
ou grego, de facalhão à cinta. Cortá-lo-ei em breve. Para um oficial
usar bigode é necessário fazer um requerimento ao ministro do Exército. Não fiz
nada disso, estou no sul da Guiné, quanto maior é o “buraco” em que estamos
metidos, mais se ultrapassam os regulamentos. Os tipos do Chugué, Jemberém,
Gadamael usam bigodes, barbas, cabelos de meses, estão-se cagando para os
regulamentos. Os tipos do ministério do Exército que venham cá até ao sul da
Guiné, até este esplendoroso torrão de solo pátrio, mandar vir com os soldados
barbudos e cabeludos!... Eles são capazes de lhes meter uma bala nos tomates. (...)
Cufar, 8 de Novembro de 1973
Os dias
fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies
que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da
menina dos olhos.
De madrugada,
Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122
disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na
fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da
noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação
cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?
As bebedeiras,
cerveja, vinho, whisky, o álcool a
circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo. (...)
Cufar, 11 de Novembro de 1973
Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.
Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água. (...)
Cufar, 21 de
Novembro de 1973
Guerra todos
os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba,
estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram
das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e
como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de
lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo
a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve
sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os
“periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.
Hoje
foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito
mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez.
Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais
valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve
consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia.
O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi
uma brincadeira.
Em
resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda
lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A
aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí
de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os
rebentamentos secos das bombas a cair.
Só
desejo que este embeber doloroso na guerra, este permanente estado de
insegurança, este saber que a meu lado todos os dias morrem africanos e
portugueses, não entre demasiado por dentro de mim e me marque a ferrete, com
ressacas complicadas para o futuro. Não sou um tipo medroso, nem fraco. Procuro
manter a cabeça fria e fazer estes jogos de guerra mantendo-me vivo e seguro.
Mas custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados. Os soldados
parecem crianças com todos os defeitos dos homens. Bebedeiras conscientemente
procuradas, reacções sem nexo, o medo escondido a crescer.
Em
mim, acho que quero, posso e mando. Às vezes, embora eu diga que não, a guerra
afecta-me, e muito. Tento criar calo, uma armadura onde as sensações mais
fortes batam e façam ricochete. Há o futuro, o desta gente, negros e brancos, e
o meu. Faltam-me apenas quatro meses para terminar a comissão. É aguentar, e
peito firme! (...)
Cufar, 4 de Dezembro de 1973
Mais
foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso
aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem
consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos
a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez
projécteis explosivos disparados durante quinze minutos. (...)
Cufar, 21 de
Janeiro de 1974
Cumpriu-se
um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui
na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique,
Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (...)
Cufar, 31 de
Março de 1974
Prometi que só
regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois
agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze
dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente
destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque
eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o
na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado
abalado com a vinda para o mato, - disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e
tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)
________________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 23 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)