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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido... 

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Se tens galinha pedrês, não a  mates nem a dês

por Luís Graça

Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho. 

Ou que, de saco à cabeça, ia levar o grão de centeio ou de milho à azenha, lá longe, no Porto Antigo onde abicavam os barcos rabelos, depois de vencidos os temidos cachões do rio Douro, até então indomável.

Seguia, a pé, pela linha férrea do Douro, feita senhora, a Leonora, mas não segura... Com o comboio a apitar ao longe, e a avisar que já tinha chegad0 ao Juncal. E que a barragem do Carrapatelo haveria de trazer um dia a luz, a civilização, o emprego, a paz, a ordem e o progresso.

E que abria as pernas, depois, ao seu homem e senhor, seu amo, no meio do campo de milho.

Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística,  desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade. 

"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...

Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar.  E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira.  E "na casa deste home, quem na trabalha na come"- 

E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial,  e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")... 

E mais a costeleta de Adão e as criadas de lavoura que eram violadas em cima da meda da palha de centeio. Enquanto os bois gemiam e babavam-se, sob a canga,  e estrumavam a terra,  as rodas do carro chiavam, e o varapau voltejava no adro da romaria, sob o efeito  estonteante do vinho e dos foguetes,  e o senhor abade praguejava: "freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las". 

Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres,  que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor"  e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão  à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho  na eira e  não em lençóis alvos e castos e bentos de linho. 

"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.

E ela levava, com a sua licença, a vaca, ao boi do povo para a emprenhar, E, com a sua licença, o porco à feira para, com sorte, no regresso trazer uns vestidinhos de chita, por meia dúzia de reis, para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa,  quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas,  de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.

E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.

E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".

Quinta de Candoz,
setembro de 2008, 
versão revista em 5/10/2023
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

domingo, 14 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21075: Manuscrito(s) (Luís Graça) (185): por favor, não destruam o que resta da caixinha de Pandora, porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal


Estátua de Pandora (1861), 
de Pierre Loison (1816-1886). 
Paris, palácio do Louvre. 
Cortesia de Wikimedia Commons





A Caixinha de Pandora


por Luís Graça


Os deuses criaram a primeira mulher,
e puseram-lhe o nome de Pandora.
Diziam os gregos antigos que fora por castigo,
como presente envenenado,
oferecido aos homens,
a quem Prometeu, o titã, tinha dado o fogo,
roubado aos céus.

Na sua fabricação,
à imagem e semelhança dos deuses,
trabalharam Hefesto e Atena,
sob as ordens do próprio Zeus,
e com o auxílio do resto do Olimpo.

Cada dividindade se esmerou
e lhe deu uma qualidade:
a graça,
a beleza,
a meiguice,
a paciência,
a compaixão,
a persuasão,
a generosidade,
a inteligência emocional,
a sensibilidade,
a sensualidade,
o sexto sentido,
a graciosidade na dança,
a arte da sedução,
o erotismo,
o talento para a cozinha,
a destreza para os trabalhos manuais,
o amor maternal…

Porém Hermes, o pérfido

inocolou, às escondidas,  no  coração de Pandora,
(, quiçá com a cumplicidade do próprio Zeus,)
o vírus da traição,  da mentira, da intriga, do ciúme e da intolerância.

Zeus, o colérico e vingativo pai dos deuses
e de todas as demais criaturas,
mandou então a sua obra-prima
para a terra, qual cavalo de Tróia.
Epimeteu, irmão de Prometeu, estava por este avisado:
- Do céu nunca virá nada de bom!
Nunca aceites nenhum presente divino…

Deslumbrado com a sua beleza,
Epimeteu tomou Pandora como esposa.
Em casa, ele tinha uma misteriosa caixa
que outrora lhe enviara o céu.
Pandora fora instada a nunca a abrir,
em circunstância alguma.
Mas a curiosidade feminina foi superior às suas forças.
Outros dizem
que era... o seu dote de casamento,

um presente envenenado.

… Lá dentro, na caixa de Pandora,
estavam todos os males,
todos os cavaleiros do apocalipse
a fome, a guerra, a morte
 e todas as doenças
a começar pela peste, a pior das doenças,
que haveriam de afligir a humanidade,
até ao fim dos séculos dos séculos…
sem esquecer todas as sementes do mal:
a estupidez, o fanatismo, a intolerância, o ódio, o racismo. 

Mas, no fundo da caixa, ficou ainda
um resto do recheio original,
o único elemento que não se chegara a libertar,
porque Pandora, assustada,
ainda conseguira fechar a tampa,
na derradeira fracção de segundo …
E esse elemento era… a Esperança,
disfarçada de mal !

Apesar do erro, terrível,  irreparável,
Pandora vai permitir aos homens,
empunhar com orgulho o archote de fogo
que lhes dera Prometeu,
manter acesa a luz ao fundo do túnel,
manter vivo esse outro fogo do conhecimento e da paixão,
dominar alguns dos piores males
que estiveram prestes a destruir a humanidade,
todos os holocaustos e pandemias,
conquistar o direito ao futuro,
lutar contra a doença e a morte,
alimentar a esperança,
combater o fatum, a condenação ao absurdo,
levá-los, enfim, aos seres humanos
a superar as limitações da sua condição animal...

Com Pandora, não somos definitivamente criaturas divinas,
nem obras-primas da criação,
somos assumidamente seres livres,
humanos,
frágeis,
vulneráveis,
mortais,
bons e maus,
fortes e fracos,
mas donos do nosso destino.

Com Pandora, tornámos irrisórios os deuses,
libertámos criadores e criaturas,
deixámos a suburbanidade do Olimpo,
humanizámos a vida,
hospedámo-nos no sistema solar,
começámos a escrever a história, 
com muitos erros e crimes, é verdade,
mas escrevemos,
e  ganhámos a terra como nossa casa comum,
conhecemos a vertigem e o sabor
da aventura e da liberdade...


Pandora, nossa mãe negra, branca, amarela, vermelha...
mãe de todas as cores do arco-íris,
Não, Pandora, não és a fonte de todos os males,
não és o pecado original,
és afinal “a que tudo dá",
em grego.


Com Pandora somos fogo e estopa,
mas já não vem o diabo... e assopra!
Para quê o diabo,
se voltámos a ter, de volta,
a caixinha de Pandora,
agora domada e explicada às criancinhas,
e outrora mortal brinquedo dos deuses ?

Por favor, não destruam 
o que resta da caixinha de Pandora,
porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, 
a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal...


Lisboa, 8/3/2010. 
Versão 2, Lourinhã, 13/6/2020

__________

quinta-feira, 8 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18390: Blogpoesia (557): No Dia Internacional da Mulher - "Mulher", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor do BCAÇ 3872

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > Beldades de Fulacunda: bajudas biafadas... Pensando nas mulheres, em todas as mulheres do mundo, e em especial, neste Dia Internacional da Mulher, de todas aquelas que são (ou  foram) vítimas da Guerra, Mutilação Genital Feminina, do Casamento Forçado, da Rapto e da Violação, do Assédio Moral e Sexual, da Violência Doméstica, da Discriminação com base no género, na idade e na cor, da Intolerância Política e Religiosa, etc., etc., etc.

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em mensagem de ontem, 7 de Março de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos este poema, a propósito do Dia Internacional da Mulher que hoje se celebra.

Olá Carlos e Luís,
Aproxima-se o Dia Internacional da Mulher. Aqui vai um apontamento. 
Celebrar a mulher é um prazer e não sabem aquelas culturas que a segregam, que a querem menorizar como individuo, a grande alegria que elas nos dão com a sua companhia e partilha. 
Há dias a Sara Tavares disse que o sorriso era a parte mais bonita do corpo humano. Como podem em certos países obrigar a esconder esses sorrisos? 

Um abraço
Juvenal Amado


MULHER 

Mostra um lindo sorriso 
Põe uma flor no cabelo 
Veste o teu melhor vestido 
Solta a rebeldia 
Grita bem alto a tua condição 

Esquece as dores nas pernas 
As mãos maltratadas 
O transporte público incómodo 
O assédio na fábrica 
Ri-te com desprezo de quem não te respeita 

Porque o teu rosto nos ilumina 
Mostra o teu poder 
Não deixes que te ignorem 
Sai para a rua 
Reclama-a como tua 

Assume-te de corpo inteiro 
Canta aquela canção em voz alta 
Celebra que este é o teu dia 
Tu és a alegria dos nossos dias 
Exige que eles sejam todos teus 

E salta para o palco da vida 
Dança como uma bailarina em pontas 
Salva-nos com a tua magia 
Mostra-nos o teu sorriso 
E transforma o cinzentismo em vibrante cor 

Juvenal Amado 
8 de Março 2018
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18377: Blogpoesia (556): "Devasso minha alma...", "Moinho de vento", e "As regras...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16889: Agenda cultural (533): "Buruntuma: algum dia serás grande", coleção "Fim do Império", livro de fotografia, a lançar oficialmente em janeiro ou fevereiro de 2017... 10 pp de texto, 100 pp. de fotografia. Autor: Jorge Ferreira, ex-alf mil, 3ª CCAÇ (Nova Lamego, 1961/63)


Cartaz de divulgação do livro do nosso camarada Jorge Ferreira, "Buruntuma: um dia serás grande", edição no âmbito do Programa Fim do Império, da Liga dos Combatentes, e que conta com o apoio do nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné, Tabanca Grande


1. Mensagem do nosso camarada Jorge Ferreira, com data de 20 do corrente:


[Foto à esquerda: Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ, tendo estado em Buruntuma com o seu pelotão (20 metropolitanos e 20 guinenses) entre novembro de 1961 e julho de 1962; a 3ª CCAÇ estava sediada em Nova Lamego, tendo mais tarde dado origem à CCAÇ 5, "Gatos Pretos"] (*)

Caro Luís

Na sequência da nossa conversa telefónica, junto além da Capa,  como sugeriste,  outros elementos que poderão interessar para uma 1ª divulgação do livro no teu /nosso Blogue. (**)

Relativamente à Sinopse  deixo ao teu critério as alterações que entendas por bem fazer.

Reitero os meus Votos de um Santo Natal e de um Novo Ano, pleno de alegrias e muita saúde.

Um Abraço de Amizade e os meus agradecimentos pela confiança  depositada.
Jorge Ferreira



Capa do livro

S I N O P S E 

“BURUNTUMA – algum dia serás GRANDE …” é um Livro de Fotografia, uma Reportagem Fotográfica (Páginas: texto: 10; fotos: 100; dimensões: 22 x 22 cm) sobre um Pelotão misto (20 militares guinéus e igual número de metropolitanos pertencentes ao Esquadrão de Cavalaria 252) que durante 11 meses (1961 / 62) esteve destacado naquela povoação fronteiriça [vd. mapa abaixo da Guiné-Bissau].

Através de imagens “velhinhas” de mais de 50 anos, pretende-se testemunhar a actividade militar desenvolvida naquela Região “Chão Fula” a que chamámos nomadização e traçar um retrato das gentes que o habitavam e que constitui um verdadeiro MOSAICO HUMANO .

Recuperando as nossas MEMÓRIAS, inserimos nesta 2ª PARTE – MH - um pequeno texto “Enquadramento Socio-Cultural do Povo Fula” baseado nas múltiplas conversas estabelecidas com as autoridades gentílicas da Região e com o Régulo Sene Sane, autoridade máxima do Regulado de Canquelifá que abrangia o triângulo Buruntuma – Bajocunda – Piche, área da nossa intervenção.

Relativamente às imagens de Jovens Fulas ostentando os seios descobertos, em MOSAICO HUMANO, manda a Verdade e Realidade Antropológica e Cultural do Povo Fula não lhe atribuir qualquer manifestação de erotismo, pondo de parte os princípios e convenções  da nossa tradição judaico-cristã.

Não se pode ignorar que a Mulher, entre os Fulas, tem como principais actividades o trabalho nos campos e a procriação. O homem terminada a sua higiene matinal recolhe-se sob a sombra de uma árvore frondosa, cavaqueando com os seus patrícios, dedilhando o Masbaha / Misbaha, similar a um Rosário com 39 ou 99 contas, e mascando noz de Cola, e assim vão passando os dias.

Mesmo as actividades relacionadas com a astorícia são os “meninos” que as desempenham.

Assim, não será de estranhar que a Mulher Fula assumindo os trabalhos mais árduos e para fazer face aos ardores do Sol impiedoso desnude o tronco e de quando em quando se refresque recorrendo à água dos poços (poças) disseminados pelos campos de cultivo.

Naturalmente que a nudez do tronco também funciona como factor de sedução, pois um casamento com um Régulo, Chefe de Tabanca ou proprietário abastado, libertará a “eleita” dos trabalhos mais pesados.

Exactamente, por isso, muitas dessas fotos foram recolhidas a pedido dos próprios familiares das jovens com o propósito de as enviarem para parentes que habitavam não só o “Chão Fula” como também os territórios vizinhos do Senegal e da República da Guiné-Conakry.

Preocupados com o rigor das nossas memórias, não deixámos de as confrontar com o trabalho de investigação “Fulas do Gabu”, 1948, do Secretário de Administração José Mendes Moreira.

Por último, foi nossa intenção manter a autenticidade das imagens inseridas, não recorrendo a qualquer manipulação apesar dos sinais de velhice que ostentam.[Vd. aqui algumas dessas velhas fotos de Buruntuma, no blogue de fotografia do autor, Jorge da Silva Ferreira.]

A todos os que me acompanharam nesta Missão, metropolitanos e guinéus de quase todas as etnias, dedico, em particular, esta reportagem fotográfica.

Jorge Ferreira

INFORMAÇÔES GERAIS

Preço: 12,5€ + Portes (disponíveis a partir de 20 de dezembro de 2016)

Lançamento formal: Jan / Fev 2017

Encomendas: jorgeferr@netcabo.pt

Mapa da Guiné-Bissau: posição de Buruntuma,  região de Gabu
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16502: Tabanca Grande (495): Jorge Ferreira, ex-alf mil, 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego e Buruntuma, 1961/63), nosso grã-tabanqueiro nº 728...

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

1. Mensagem do nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com data de 22 de Julho de 2016:

Amigo Carlos
Aí vai mais um conto, rigorosamente verdadeiro, de alguns que escrevi e publiquei há vários anos, e que considero um dos mais belos poemas que me aconteceram na vida.

Adão Cruz


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

2 - Cadi

Cadi era uma mulher esbelta. Uma verdadeira Balanta-Bravo. Não tão bonitas como as Futa-Fulas, as balantas tinham um corpo de fazer inveja a quaisquer outras. A Cadi era o ver-dos-olhos de soldados, sargentos e oficiais. Mas apenas o ver-dos-olhos. Mais do que isso Cadi não permitia. Nós vivíamos dentro de uma cerca de arame farpado, de onde só se podia sair, praticamente, de avioneta. Uma companhia militar e uma população rondando os mil e oitocentos negros. Não é de admirar que qualquer mulher pusesse “os olhos em bico” aos militares. Cadi sabia-o muito bem, e, com uma postura digna e distanciada, contrabalançava a sua condição de negra. Cadi sabia que todos gostariam de “fazer conversa gira” com ela (fazer amor), mas tinha grande orgulho em não deixar que lhe tocassem. Eu admirava muito a maneira de ser da Cadi, que assim se valia do que a natureza lhe dera para impor a sua dignidade de mulher, ainda que negra, faminta, e rudemente colonizada pela “supremacia” branca.

Um dia, começou a constar na tabanca que Cadi não era normal. Cadi “ca tem catota, Cadi ca suma outra mulher”. Na mais rudimentar tradução à letra, isto queria dizer que Cadi não era igual às outras mulheres, pois não tinha “buraquinho”, e, por conseguinte, não podia “fazer conversa gira” nem ter filhos. O boato explodiu como uma granada, e, em pouco tempo, a Cadi transformou-se em “avis rara”, vítima da vingança dos que nunca puderam tocar-lhe e da chacota dos que, mesmo assim sendo, gostariam de o comprovar pessoalmente.

Como as neuroses e as depressões não são apenas doenças de brancos e ricos, Cadi começou a andar muito triste e cabisbaixa. Não parecia a mesma, aquela que todos os dias atravessava a picada com ar garboso, peitos erectos, cabeça erguida e um menear de ancas capaz de provocar desmaios

O meu amigo e Chefe de Posto, cabo-verdiano, numa daquelas conversas que nos ajudavam a matar as intermináveis horas que faziam o eterno tempo de guerra que éramos obrigados a viver nestas paragens do norte da Guiné, disse-me com ar pesaroso:
-Doutor, ando chateado com aquele problema da Cadi. Coitada da moça, quer ir embora, quer ir viver para Binta. Sente uma grande vergonha por aquilo que dizem. Não seria possível fazer alguma coisa por ela? Por exemplo o doutor examiná-la? Ela aceitaria imediatamente. Apesar dos seus vinte anos e de nunca ter saído daqui, é uma rapariga com mentalidade evoluída e uma personalidade admirável.

Combinámos o dia e a hora do exame. Exigi a presença do Chefe de Posto e do meu enfermeiro, o qual, apesar de ser electricista de profissão, foi dos melhores enfermeiros que tive na Guiné.

O exame ginecológico da Cadi era absolutamente normal. Tinha “buraquinho” no mesmo lugar do buraquinho das mais famosas artistas de cinema, e com todos os demais apetrechos com que a natureza dotou as mulheres, brancas ou negras. Cadi podia fazer “conversa gira” com quem quisesse e podia ter filhos.

No dia seguinte, o Chefe de Posto reuniu, debaixo do mangueiro que ensombrava o pátio da sua pequena casa, todos os “Homens Grandes” da tabanca. Eram mais de dez, vestindo a túnica branca de cerimónia, e ostentando o turbante que a sua origem muçulmana impunha. Com ar grave, compenetrados da importância da sua presença, ouviram a comunicação em crioulo que o Chefe de Posto lhes fez.

Não sou capaz de reproduzir na íntegra, e tenho pena, mas posso dizer que foi das coisas mais bonitas que ouvi na minha vida de médico e de homem:
- Homem Grande de tabanca, toda gente conhece Doutor. Doutor ser aquele homem que cura meningite de tanto menino, que ensina maneira certa de parir, que faz fanado limpo de infecção, que levanta de noite toda hora para acalmar sezões. Doutor ter palavra sagrada. E Doutor disse: "Cadi suma outra mulher, Cadi ter catota suma outra mulher, Cadi pude fazer conversa gira e ter filho”.

Os “Homens grandes” da tabanca desfizeram-se em vénias e Cadi foi reabilitada. Ganhou até uma certa auréola de heroína, não só entre a população negra como entre os militares.

Eu tinha um jipe muito velho, quase só rodas e chassi. Com ele costumava ir ver o pôr-do-sol na orla da floresta, junto do arame farpado. Embora a distância não fosse grande, cerca de oitocentos metros, dava uma certa ficha e era motivo para entreter a pequenada em gincanas à volta da tabanca.

Já o sol se havia posto há muito. Demorei-me um pouco mais com a ternura desta gente negra e com as carícias que um velho cego de noventa anos me fazia, todos os dias, à volta da cara e nos cabelos, quando desligava o motor frente à sua palhota, onde me esperava sempre à hora do crepúsculo. Na pequena subida para a povoação, já fora da zona das palhotas, em contraluz, vi um vulto de mulher em estilo de aparição, com os pés na terra mas bem desenhado no céu, que parecia querer falar-me. Aproximei-me o mais possível e parei. Com o seu rosto de diamante negro espelhado de orgulho balanta, envolto num lenço negro como ele, eu tinha na minha frente a Cadi.

- Cadi, que surpresa!
- Dôtô, Cadi manga de satisfação, Cadi feliz, Cadi ca sabe como agradecê, dôtô tudo merece. Cadi mist conversa gira.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

quinta-feira, 19 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14386: Blogpoesia (404): No dia do pai, um poema escolhido pelo camarada Armando Faria, "Ter um Pai", de Florbela Espanca (1894-1930)

1. O camarada Armando Faria (ex-fur mil inf minas e armadilhas da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74) mandou-nos este poema de Florbela Espanca (1894-1930), para comemorar o dia do pai, uma tradição em Portugal que hoje ainda se mantém, e que está associado ao  calendário litúrgico da religião católica (dia 19 de março,  dia de São José, marido de Maria, mãe de Jesus Cristo).

Na mensagem que nos mandou traz uma dedicatória aos nossos pais (na maior dos casos, já falecidos) mas também aos pais que hoje somos (em muitos casos, duplamente pais e avós): "Com um beijo, um abraço ou uma simples oração"... 

É também, segundo o entendimento dos nossos editores,  uma homenagem a uma grande mulher portuguesa, e uma grande poetisa, nascida em Vila Viçosa, e que em  Matosinhos, aos 36 anos, pôs termo à vida... Uma morte de(a)nunciada!...E, claro, é ainda uma homenagem à nossa bela e amada língua: foi em português que aprendemos a dizer, pai e mãe...

Um pormenor histórico-biográfico siobre a grande Florbela Espanca:  foi registada, de acordo com o código civil da época, com a infamante designação de "filha ilegítima de pai incógnito"... Seu pai, João Maria Espanca só a haveria de perfilhar 18 anos depois da sua morte... Este facto pode ajudar-nos a entender melhor o poema
"Ter um Pai". [Ler aqui a sua biografia, no sítio "Vidas Lusófonas"].



Ter um Pai

Florbela Espanca (1894-1930)

Ter um Pai! É ter na vida 

Uma luz por entre escolhos; 
É ter dois olhos no mundo 
Que vêem pelos nossos olhos! 

Ter um Pai! Um coração 
Que apenas amor encerra, 
É ver Deus, no mundo vil, 
É ter os céus cá na terra! 

Ter um Pai! Nunca se perde 
Aquela santa afeição, 
Sempre a mesma, quer o filho 
Seja um santo ou um ladrão; 

Talvez maior, sendo infame 
O filho que é desprezado 
Pelo mundo; pois um Pai 
Perdoa ao mais desgraçado! 

Ter um Pai! Um santo orgulho 
Pró coração que lhe quer 
Um orgulho que não cabe 
Num coração de mulher! 

Embora ele seja imenso 
Vogando pelo ideal, 
O coração que me deste 
Ó Pai bondoso é leal! 

Ter um Pai! Doce poema 
Dum sonho bendito e santo 
Nestas letras pequeninas, 
Astros dum céu todo encanto! 

Ter um Pai! Os órfãozinhos 
Não conhecem este amor! 
Por mo fazer conhecer, 
Bendito seja o Senhor!

Florbela Espanca 

In: Obras Completas de Florbela Espanca, vol. II, Poesia (1918-1930), prefácio de José Carlos Seabra Pereira, 4.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1992.
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14344: Blogpoesia (403): o meu mar da Ericeira (J. L. Mendes Gomes)


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14257: In Memoriam (217): Britt-Marie, esposa do nosso camarada José Belo, faleceu no passado dia 12 de Fevereiro

1. Mensagem dirigida ao nosso camarada José Belo, publicada hoje no sítio da Tabanca do Centro, a propósito do falecimento de sua esposa e companheira Britt-Marie: 
  
É sempre muito difícil escrever para dar notícias terrivelmente tristes.

Mais difícil se torna quando envolvem um amigo a quem não podemos abraçar fortemente nos nossos braços, por se encontrar milhares de quilómetros longe.

Não há modos mais suaves ou melhores de dar estas notícias.

Em escassos três meses, depois de diagnosticada uma doença do foro oncológico, faleceu a Britt-Marie, mulher do nosso camarigo José Belo, que vive longe na Suécia.

Como Português que é, a distância do seu Portugal, da sua língua materna, não ajuda nada a viver estes momentos dolorosos, que eu nem calculo o que sejam.

Podia escrever aqui um “tratado” de palavras doces, de conforto, de solidariedade, mas tenho, por experiência própria, que nestes momentos as palavras são escusadas e que o melhor é o beijo na face, o abraço forte, apertado, de tal modo que ele sinta que os nossos corações batem no mesmo compasso do dele.

E é isso que aqui te queremos dar, José Belo, querido camarigo, um abraço que envolve todos nós, mas um abraço de tal modo que sintas que estamos contigo agora e sempre.

Joaquim Mexia Alves
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2. Em nome da Tertúlia da Tabanca Grande, aqui deixamos ao camarada José Belo, a seus filhos e demais familiares, o nosso abraço solidário e o profundo pesar pelo falecimento de sua esposa e mãe.

Caro amigo Zé Belo, que vos sirva de consolo saber acabou o sofrimento da vossa ente querida e que apesar de vos ter deixado fisicamente, ficará para sempre no vosso coração.

A Tertúlia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14100: In Memoriam (216): Rui Romero (1934-1966), cap mil inf, 1º cmdt da CCAÇ 1565 (1966/68)... Finalmente... a Verdade (Ana Romero)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14041: In Memoriam (212): Ana Paula G. Pires Dias (1962-2014), esposa do nosso camarada Armando Pires (jornalista da rádio reformado, ex.-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/71)

Armando Pires, nosso querido amigo e camada,
fotografado pelo Manuel Resende, no último convívio
da Magnífica Tabanca da Linha, em 14/11/2014.
Já visivemente preocupado com a evolução da doença
da sua companheira Ana Paula. A sua última esperança era o
transplante, conforme como me confidenciou... (LG)
IN MEMORIAM

A doença e a morte não escolhem idades, e cada dia somos confrontados com o desaparecimento de amigos e familiares. Mesmo sendo uma coisa que se entende como natural, na hora em que enfrentamos a triste realidade, ficamos sem palavras e sem jeito.

Ontem chegou-nos ao conhecimento a notícia brutal do falecimento da esposa do nosso querido amigo e camarada Armando Pires. A Ana Paula, ao fim de muito sofrimento, não resistiu mais e partiu para o Eterno Descanso.

Mais não podemos fazer se não, neste doloroso momento, dar um abraço apertado ao nosso amigo Pires e algumas palavras de conforto.  Nestas horas, a presença física dos amigos é uma prova de solidariedade. 

Para quem quiser e puder, de alguma maneira, estar junto deste nosso amigo, aqui ficam algumas informações:

O Corpo da nossa amiga Ana Paula estará em Câmara Ardente na Igreja de Linda-a-Velha, concelho de Oeiras, a partir das 18h00 de hoje.

Amanhã, dia 18, pelas 14h30, será rezada Missa de Corpo Presente nesta mesma Igreja. 

O funeral sairá de seguida para o Cemitério de Barcarena (, também no concelho de Oeiras), onde, pelas 16h00, o corpo será Cremado.

Embora de viva voz já tenha manifestado o nosso pesar ao Armando Pires, pela partida da sua esposa, aqui fica a renovação da nossa solidariedade e o envio dos nossos sentidos pêsames ao resto da família.

Os editores

PS - O telemóvel do Armando Pires está disponível na sua conta no Google: 962 938 817. Os seus camaradas e amigos mais íntimos mais íntimos, mesmo à distância, podem e devem dar-lhe a palavra de conforto que qualquer homem precisa quando de perder a sua companheira de uma vida ou de parte de uma vida (, como era o caso na Ana Paula).

Recorde-se que o nosso camarada, que trabalhou na Antena 1 como jornalista,  foi fur mil enf da CCS/BCAÇ  2861, Bula e Bissorã, 1969/71 [, foto à esquerda[]. É presença habitual na Magnífica Tabanca da Linha.  Tem sido, além, disso, um ativo colaborador do nosso blogue. (LG)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14035: In Memoriam (211): Manuel Jorge Martins Gomes, ex-alf mil at art, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74 (António J. Pereira da Costa)

domingo, 5 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11529: Blogpoesia (336): Suadê, nome de mãe (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada , 1968/70), com data de 23 de Abril de 2013:

Caríssimos editores.
Aproxima-se o DIA DA MÃE.
Estarei na Guiné-Bissau, talvez no Centro Materno-Infantil de Elalab que a Tabanca Pequena ajudou a construir para apoiar as mães de hoje.
Gostava que colocassem no blogue este poema que escrevi em memória daquela mãe que no dia 14 de Janeiro de 1969 viu a sua bebé morrer ficando ela gravemente ferida no corpo e no espírito ao ponto de desejar a morte o que me dificultou imenso a sua estabilização.


Fevereiro, 1969 / Buba / 20 

 ...Tive muito que fazer na Enfermaria. Um dos feridos da população mais graves foi a mãe da menina que morreu. Tinha o corpo cheio de estilhaços, felizmente não foi atingida nos órgãos vitais e deve recuperar. O seu sofrimento interior impressionou-me. 
É seu hábito dormir com a criança amarrada às costas para poder levá-la para o abrigo subterrâneo quando o IN ataca. Como já era de manhã desamarrou-a pouco antes do ataque se dar. Quando ouviu o fogo correu para o abrigo e só nessa altura é que se apercebeu que a bebé estava a dormir na tabanca. Saiu a correr, mas foi atirada ao chão pelo rebentamento da granada de canhão que caiu em cima da sua casa e lhe matou a menina....


Suadê, nome de mãe. 

Estava viva, 
Estava morta, 
Pobre mãe preta, 
Desesperada, 
A morte bateu-lhe à porta, 
No sopro de uma granada. 
Chorava lágrimas de sangue, 
No seu corpo dilacerado. 
Dos olhos vítreos e secos, 
De tanta lágrima corrida, 
Um grito soava ardente. 
Não tenho direito à vida. 

Era alta madrugada, 
Quando a guerra eclodiu, 
E aquela mãe assustada, 
Da morte, a correr fugiu. 
Sua filhinha dormia, 
Dos justos, um sono forte, 
A granada explodiu, 
E com ela veio a morte. 

Chegou à porta do abrigo, 
Em noite de mau agoiro, 
E para trás voltou, apressada 
Na esperança de salvar, 
O seu mais valioso tesoiro. 
A razão do seu viver. 
E viu sua filha amada morrer 
Sem lhe poder valer. 

A mesma granada, 
Que sua filha matou, 
No calor do incêndio que lhe esmagou a alma 
Seu corpo cruelmente dilacerou, 
Prostrando-a no chão, inanimada. 
Num misto de sofrimento e dor. 
Que dor, pobre mãe, 
Tu viste tua filha morrer, 
A razão do teu viver. 
Sem lhe poderes valer. 

Já não choras mãe.
Esgotaste o cloreto de sódio, 
Teus olhos espelham ódio, 
À vida que teima em soprar. 
Queres morrer, 
Desaparecer. 
Ir ao encontro da tua amada, 
Que partiu, para não voltar. 

 Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11515: Blogpoesia (335): Estamos à espera de quê ?...(J. L. Mendes Gomes)

sexta-feira, 8 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11214: Blogpoesia (326): No dia Internacional da Mulher, que deveria ser todos os dias... um poema (António Eduardo Ferreira)



1. Em mensagem de hoje, 8 de Março de 2013, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos este poema subordinado à data hoje se comemora, o Dia Internacional da Mulher:


O dia da mulher deveria ser todos os dias, mas como isso por enquanto ainda não é possível que haja pelo menos um...

Ela era assim,
Mulher que soube sofrer em silêncio,
Mulher que sabia ouvir,
Escutava, mesmo que fosse apenas ruído…
Nunca dizia não, quando alguém necessitava de ajuda,
Exigente, apenas para consigo,
Sabia sorrir, mesmo quando o seu coração chorava;
Na maternidade com o filho, viu o esposo partir,
Enviava correspondência sem lamentos…
Mulher que não sabia como era África.
Mulher que de guerra pouco ouvia falar,
Tinham medo os que dela falavam…
Mulher que sofreu com a ausência,
Mulher a quem o filho perguntava pelo pai
E a resposta tantas vezes era uma lágrima apenas.
Por favor, guerra nunca mais,
As mulheres não merecem a guerra.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11212: Blogpoesia (325): No dia Internacional da Mulher, um poema dedicado à minha irmã, à mulher africana e a todas as mulheres do mundo (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P11212: Blogpoesia (325): No dia Internacional da Mulher, um poema dedicado à minha irmã, à mulher africana e a todas as mulheres do mundo (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso irmão guineense Cherno Baldé, com data de 8 de Março de 2013:

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Com os mais respeitosos cumprimentos a todos os Editores e Grã-Tabanqueiros da nossa bela e hospitaleira Tabanca Grande, envio algum material tirado do baú do meu tempo de estudante que pomposamente intitulei de poemas de juventude.

Claro que não custa muito adivinhar d´onde vem a inspiração.

Por ocasião do dia 8 de Março que será celebrado amanhã em todo o mundo, num dos ficheiros poderão encontrar um poema dedicado à minha irmã, à mulher africana e, de certa forma, à todas as mulheres do mundo que trabalham e lutam diariamente para um mundo mais justo e equilibrado e onde o respeito pela dignidade humana de todos os membros da sociedade não será um simples slogan politico.

Também aproveito esta abertura para vos enviar outros poemas que poderão sempre publicar quando houver disponibilidade e interesse em o fazer.

Um grande abraço,
Cherno Baldé



DOS POEMAS DE JUVENTUDE DE CHERNO BALDÉ:


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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 7 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11209: Blogpoesia (324): Sinopse Lúdico-Histórica da CCAÇ 2444 (João Rebola)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11060: Do Ninho D'Águia até África (50): A mulher e o conflito (Tony Borié)

1. Quadragésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (50)





A foto com que o Cifra inicia este texto, veio-lhe parar às mãos, na região do Oio, na então província da Guiné, nos anos de 1964/66.
Não sabe se são mesmo guerrilheiras, ou se é somente uma foto para impressionar, mas ambas mostram uma cara com alguma angústia, também não sabe se foi o Cifra que a tirou, nas suas andanças de fim de mês, na entrega de material classificado de cifra, pela região onde estavam as forças militares que pertenciam ao seu agrupamento, que estava estacionado em Mansoa. O Cifra acredita que foi ele que a tirou, mas não sabe em que situação ou em que lugar, ou se estava mais algum militar com ele nesse momento com máquina fotográfica, sabe que foi na região do Oio, e talvez em Mansoa, Mansabá, Bissorã, Olossato, Cutia, Nhacra, Encheia, ou qualquer outro lugar, na região do Oio ou próximo. As armas que elas seguram são parecidas com as que as milícias usavam, e que acompanhavam os militares, servindo de guias tradutores. Se os antigos combatentes, que nessa altura lá se encontravam e souberem a sua proveniência, por favor contem a história, o Cifra e os demais agradecem, oxalá que ainda estejam vivas, e esta fotografia, é uma homenagem de respeito e apreciação, pelo seu sofrimento e pela sua coragem, não só delas, como todas as mulheres africanas que de uma maneira ou de outra estiveram envolvidas no conflito, e é assim que deve ser vista.


Agora vamos ao texto:

O Cifra, entende que nos relatos em que lembramos as nossas memórias, os homens, antigos combatentes, sempre falam de si, contam isto e aquilo, às vezes até criam um certo protagonismo. E então as mulheres, não estiveram por trás dos homens, não sofreram, não sentiram a ausência, não ficaram viúvas, não ficaram sem noivos, namorados, filhos, irmãos, netos, não choraram a ausência do marido, não ficaram sozinhas, às vezes com filhos bebés? E não foram só as mulheres dos militares europeus, foram também as mulheres africanas, das famílias dos guerrilheiros, isto é uma verdade, que alguns de nós, mas infelizmente poucos, ainda lembramos. Somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que não desejo, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas vou mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde o Cifra fala da mulher, portanto cá vai:

“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cinta para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.

Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”.

E agora, outro relato tirado de outro texto:

“Em Portugal, o Cifra, visitou a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia: 
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”.


Estes relatos exprimem dor, angústia e sofrimento, da mulher, tanto africana com europeia, e o Cifra acredita, que não existe nenhum ser humano, por mais estudos e experiência que tenha, que esteja qualificado para analisar o que ia na mente destes seres humanos, que perderam os seus entes queridos.

Só para terminar, o Cifra fez o arranjo desta foto que é uma simples homenagem À MULHER, que de algum modo, esteve envolvida no conflito, tanto africana como europeia, que colocou frente-a-frente, os militares de Portugal contra os guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.

O Cifra fez um arranjo com uma cara jovem, não expressando muita alegria, porque nós também éramos jovens, quando lá nos encontrávamos, e a nossa família, tanto a que ficou na Europa, como a que vivia em África, sabendo que os seus estavam envolvidos num conflito armado, como era de prever, também não expressavam muita alegria.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11044: Do Ninho D'Águia até África (49): Eram guerreiros (Tony Borié)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7781: Blogpoesia (113): Mulher, minha irmã (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa* com data de 12 de Fevereiro de 2011:

Boa-noite, editor e amigo Carlos Vinhal!
Junto envio um pequeno poema, que provém da minha análise ao comportamento humano.
Apesar de já ter idade para saber, que o ser humano é assim mesmo diverso e complexo, não entendo os porquês comportamentais.
Deve ser preciso ser-se assim, para que haja mudança, evolução, mas, porque é preciso que seja sempre tudo resolvido pela força em vez do diálogo?

Um Abraço Fraterno
Felismina Costa



Mulher, minha irmã!

Mulher, minha irmã
Na alegria e na dor
No desencanto e no amor
Na fraqueza e na coragem!
Mulher, do passado e do presente,
Que semeaste contente,
Esperançosa, enquanto crente,
Sementes de felicidade
Nos quatro cantos do mundo!
Quiseste sempre o sorriso,
E ainda mais do que isso…
Uma total liberdade,
Onde crescessem felizes
Os filhos que semeaste!
Mas, a tua crédula esperança
Regista cedo a tardança
Desse querer que lideraste!
Cansaste os anos na espera.
Acreditaste que era possível
Converter a negação,
Porque… era lógico o teu querer!
E arriscaste!
E continuaste, semeando a esperança
Sem desistir de lutar.
Sem desistir de gritar,
Que a liberdade, é um direito de todos!
Que ninguém, é de ninguém.
E que as vidas que arriscaste
São um todo, supremo bem,
Iguaizinhas para ti
Porque és… a sua mãe!
Mulher, minha irmã
Na alegria e na dor,
Porque foi que tu deixaste
Que alguns dos que criaste
Ignorassem a dor,
Que a mãe sente
Quando um filho, trata o irmão… sem amor?

Felismina Costa
Agualva, 8 de Fevereiro de 2011
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7578: Blogpoesia (103): Em ti meu amor (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7772: Blogpoesia (112): Quando os ventos sopram em Assuão (Luís Graça)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7217: O Nosso Livro de Visitas (102): Parabéns pelo vosso fantástico projecto (Maria João Rocha)





Guiné > Zona Leste > Geba > CCART 1690 (1967/69): Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista e realizadora Diana Andringa visitou Geba e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma peça pungente, no Público,de 10 de Junho de 1995... Terá sido a "pedra de Geba" que motivou a realização do documentário As Duas Faces da Guerra (em co-autoria com o guineense Flora Gomes; filme, em duas partes, disponível no portal A Guerra Colonial).

 A esta martirizada companhia pertenceu o nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes.


Foto: © A. Marques Lopes (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de uma nossa leitora, Maria João Rocha, com data de 29 de Outubro último... É mais uma voz no feminino a fazer-se ouvir no espaço aberto, heterogéneo e plural da nossa Tabanca Grande... Sabemos que muita gente, homens e mulheres, nos lê e nos vê, sem dar (nem ter que dar) a cara... Reconforta-nos, anima-nos e motiva-nos saber que o nosso  blogue também atinge outros segmentos de público, para além da sua população-alvo, natural, que são os antigos combatentes... Gente do teatro, do cinema, da cultura, das artes, das letras, da ciência...Tratando-se de um mail pessoal, enviado ao editor L.G., transcreve-se apenas o excerto que pode interessar aos amigos e camaradas da Guiné que se sentam sob o poilão da Tabanca Grande e, por extensão, a todos os nossos leitores. Muito obrigado, Maria João. Boa sorte também para os seus projectos  (LG) (*)

Caro Luís Graça:

Muitos parabéns pelo seu FANTÁSTICO projecto. Visito-o muitas vezes por curiosidade histórica (sou licenciada em História), por necessidade de relembrar o passado (tenho 60 anos) e também por alguma afinidade com a Guiné, onde estive, em 95, a realizar um documentário da autoria da Diana Andringa. Foi com ela que visitei e filmei o quartel de Geba (já li, neste blog, alguém falar de um texto que ela escreveu sobre isso) e lá me emocionei, não só com o memorial aos mortos mas também com as pinturas murais, com o silêncio que impera no local e com o "peso" da memória colectiva que lá perdura (**).

A passagem por aquele quartel foi um momento impressionante na minha vida. Nunca imaginei que um exército se alojasse em instalações tão pequenas, quase parece uma aldeia com pequenas casinhas. E o estado de degradação é arrepiante... Quantas vidas... Parece um local paradisíaco... (...)

Com os meus melhores cumprimentos.
Maria João Rocha
Lisboa

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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > ;27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7043: O Nosso Livro de Visitas (101): "O pobre camarada de Crestuma" (José Campos, presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, Vila Nova de Gaia)

(**) Vd. poste da I Série do nosso blogue > 23 Junho 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 [Diana Andringa]

(...) Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.


Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).

E esta pedra caída, tumular.

Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.

A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.

De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?

Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.

"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.

Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-

Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.

Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória. (...)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6474: Casamento dos oficiais do Exército discutido, em 1941, na Assembleia Nacional (Carlos Cordeiro)

1. O Carlos Cordeiro, que é membro da nossa Tabanca Grande e professor de história (*), mandou-nos este texto, que agradecemos e  publicamos:

Data: 24 de Maio de 2010 03:19

Assunto: Casamento dos oficiais do Exército discutido, em 1941, na Assembleia Nacional

Caro Luís,

Na sequência do e-mail em que me falaste na possibilidade de mandar um poste sobre o casamento dos oficiais do Exército, envio-te este texto. Sei que está grande, mas fiz o mais pequeno que pude. É só para dar um certo tom da situação.

Propositadamente não entrei em análises críticas (à excepção de uma ou outra expressão). Parece-me que as transcrições falam por si. Estás, como não podia deixar de ser, à vontade para fazeres do texto o que achares melhor, até porque não sei se se trata de um trabalho adequado à natureza do blogue.

Um abraço (também para ti, Carlos)

2.Texto de Carlos Cordeiro:


 Caros camaradas:

O poste de José Belo sobre o casamento dos oficiais do Exército (P. 6440, de 20 de Maio) fez-me pensar e querer saber um pouco mais sobre o assunto. Nos comentários que fiz ao poste forneci as indicações das páginas da Internet que podiam ser consultadas para nos elucidar sobre a questão. Aí vai um pequeno resumo dos postes que consultei.

O Decreto-Lei 31107, publicado no Diário do Governo de 18 de Janeiro de 1941, que regulamentava o casamento dos militares, foi submetido à Assembleia Nacional para ratificação. A discussão prolongou-se por duas sessões (5/2/41 e 6/2/41) e gerou grande celeuma.

Note-se que a legislação em vigor para o Exército datava de 1851 (Decreto de 10 de Dezembro de 1851), que exigia, para os oficiais, a idade mínima de casamento de 30 anos, excepto se o requerente provasse que o casal tinha um rendimento líquido anual de 300.000 réis de bens do carácter dotal.

A legislação para a Armada constava do Decreto 16349, de 1929. Era exigida a idade mínima de 25 anos, ou de 21, caso o militar provasse que, além dos respectivos vencimentos, o casal tinha um rendimento anual mínimo de 6000$00 resultantes de bens próprios.

As questões suscitadas nas intervenções na Assembleia Nacional são, fundamentalmente, as seguintes:

(i) A exigência da idade mínima de 25 anos e o posto de tenente.

(ii) A obrigatoriedade de prova de que ambos os membros do casal possuíam rendimentos condizentes com o respectivo posto.

(iii) A proibição do casamento do oficial com divorciada, sendo, porém, permitido ao oficial casar-se, mesmo que fosse divorciado.

(iv) A demonstração de que a noiva era “portuguesa originária”, “filha de pais europeus”.

(v) A consideração, para que o casamento fosse autorizado, da “situação social da mulher, do seu passado e de sua família”.

Um primeiro grupo de deputados é fortemente crítico ao articulado, mas note-se que nem sempre numa perspectiva “progressista”, se assim se pode dizer. Alguns, por exemplo, ao abordarem o divórcio, referiam-se à “igualdade”, mas não entre os sexos, mas sim entre os oficiais da Armada (que podiam casar­‑se com divorciadas) e do Exército, ainda que outros deputados levantassem o problema na perspectiva da igualdade perante a lei.

Relativamente à exigência de a noiva ser filha de pais europeus, o deputado Belfort Cerqueira afirma mesmo que tal lhe parecia “conter um sabor pronunciadamente racista, e por isso mesmo divergente da ortodoxia mais corrente das nossas tradições cristãs”, ou, como dizia o deputado Botto de Carvalho, porque iria “de encontro a toda a política de unidade do Império”.

Quanto ao facto de a noiva ter de possuir meios de subsistência compatíveis com o posto do futuro marido, isto significaria, como salientaram alguns deputados, que os tenentes, no caso, não tinham um salário compatível com a constituição de família e, portanto, a solução seria outra.

Nesta mesma sessão interveio o deputado Padre Abel Varzim que fez uma importante intervenção em defesa da família e da dignidade da mulher:

“[…] A minha discordância não provém deste ou daquele ponto de regulamentação do casamento dos militares. Aquilo que me repugna, a mim, à minha consciência de católico, e à consciência dos católicos é, fundamentalmente, a regulamentação das condições económicas ou sociais do casamento […].

Durante dezassete ou dezoito séculos a consciência dos católicos travou uma batalha e conseguiu, vencê-la ainda há bem pouco tempo; e neste ponto operou a revolução mais igualitária que se fez em toda a história: perante o casamento não há distinções de classes, de idades, de condições, de raças, de sangue; todos têm o direito fundamental de contrair matrimónio. Esse direito foi-lhes dado pela natureza, ou, melhor, por Deus, e não pode o Estado ou qualquer poder do Estado restringi-lo. E é nesse sentido que me repugna aceitar este ou qualquer outro decreto que venha dificultar a constituição da família segundo aquele princípio da liberdade fundamental da pessoa humana […].

O problema deveria ser posto de uma maneira diferente. A dignificação da família faz­‑se pela dignificação da mulher, pela recondução da mulher ao seu lar. E é universalmente aceite que é o homem quem deve granjear o sustento da família […].

Se queremos dignificar a família não devemos exigir, para que ela se possa constituir, que ambos os esposos, ou um só deles, tenham meios financeiros para a sustentar; o que é necessário - e é por isso que este movimento humano que se chama catolicismo luta há dois mil anos - é que sejam dados ao homem os meios suficientes para o sustento da família que o seu trabalho, a sua profissão, lhe garantam o poder de acudir aos encargos normais do seu lar. O nosso pensamento é o de que o Estado e a economia devem garantir a todos os trabalhadores intelectuais e manuais um salário suficiente para as suas necessidades familiares. E, portanto, para salvaguarda da família para dignificação da vida militar ou de outra qualquer para prestígio e garantia da categoria social dos militares, parece-me que uma só medida seria de aconselhar: a de que eles começassem a ter soldo maior medida que iam aumentando os seus encargos familiares […]”.

A contraposição a estas e outras críticas acérrimas ao Decreto-Lei iria estar a cargo de vários deputados, principalmente, de Carlos Borges, interrompido constantemente com comentários e apartes. Trata-se de uma intervenção que me abstenho de classificar, bastando, para que se conheça o seu teor, transcrever uma ou outra passagem.

Referindo­‑se à questão do racismo aflorada pelo deputado Belfort Cerqueira, diz Carlos Borges:

“O legislador não pôs no decreto, relativamente à ascendência europeia, aquilo que porventura queria exprimir. O que se quis foi evitar aquilo que não quero dizer […]. Mas não se trata de um vago (Cerqueira falara em “pronunciado”) sabor de racismo, mas de manter um certo número de preconceitos, chamemos-lhe assim, que não são inteiramente vãos. Foi isto decerto o que o legislador pretendeu. Não está assim no decreto? Estes ‘pais europeus’ podem significar outra coisa? Nós podíamos emendar o que cá está, traduzindo-o por outras palavras. A forma pode mudar, mas a essência fica a mesma”.

E, para terminar, veja-se esta “pérola argumentativa” relativamente à impossibilidade de casamento de oficiais com divorciadas:

“O legislador viu e pensou que se a mulher foi a ré na acção do divórcio e mostrou que não possuía a honorabilidade e as qualidades morais necessárias para constituir família não está indicado que possa casar com um oficial do exército. Há agora o caso da mulher honrada, da mulher que teve uma conduta irrepreensível, mas que pediu o divórcio contra o marido, e então o legislador pensou: esta mulher é impecável no seu passado, mas não teve a resignação necessária não soube suportar as vicissitudes e tormentas do lar, isto é, não soube manter-se; embora com sacrifício. […]

Neste caso o legislador pode pensar que se a mulher não teve resignação para aturar o primeiro marido é de supor que igualmente o não tenha com relação ao segundo, e é por isso que não distingue um caso do outro e é talvez esta a razão por que vem tal disposição no decreto”.

O problema é que isto se passou em 1941 na Assembleia Nacional de Portugal e o Decreto­‑Lei foi aprovado com 30 votos a favor e 28 contra!

Fonte: http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=r2.dan

Um abraço,

Carlos Cordeiro

PS - Em próxima oportunidade enviarei algumas citações do Decreto de 1960 sobre o mesmo assunto.

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Nota de L.G.:

(*) Resposta ao meu pedido para o Carlos Cordeiro abordar aqui este tema, com o rigor, a competência e a seriedade que são seu apanágio:


Ok, Luís. Irei trabalhar o assunto, com calma, pois estamos no fim do ano lectivo e há toda a questão de avaliações, exames e o diabo a quatro. Por deformação profissional, mandei só as indicações dos documentos. A minha posição enquanto professor de história é a de possibilitar aos alunos o prazer da descoberta - o contacto directo (quando possível) com os documentos. Digo-lhes sempre que eles têm tanto direito de interpretar um documento como os grandes intelectuais.


Mas, tens razão: o melhor será mesmo apresentar (com citações abundantes) todo o processo (talvez em "episódios"). Os debates na Assembleia Nacional são mesmo impressionantes: absolutamente elucidativos e mesmo chocantes. Não propriamente pelas implicações directas na vida dos militares, mas, sobretudo, pelas "mensagens" ideológicas subjacentes ou mesmo expressas. Trabalho bastante com os debates parlamentares, mas sobretudo nos períodos da monarquia constitucional e da I República.


Quanto à legislação anterior, irei tentar ver. Nos debates citam sempre um lei de 1850 (ou por aí) que tinha caído em desuso. Os militares da marinha tinham legislação de 1936 (julgo), diferente dos do exército.


Só mais uma questão: o decreto-lei de 1960 amnistiou os militares que tinham sido condenados com base na lei de 1941. Assim, um oficial pediu ao Supremo Tribunal Administrativo (há pouco tempo) que lhe contasse como de serviço o período em que tinha sido demitido e depois reintegrado pela lei de 1960 e o tribunal não aceitou!!!


É a vida, como diria o outro.


Um abraço,


Carlos