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sexta-feira, 13 de março de 2015

Guiné 63/74 – P14357: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (7): Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer

1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2015, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), envia-nos mais uma Divagação de um Reformado, no caso o Cor Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Capitão Cav e Comandante da CCAÇ 5 entre 1968 e 1970:

Bom dia
Tive ontem noticias do "meu comandante" e nosso camarigo Pacifico dos Reis.
Junto o texto recebido, depois de complementado com fotos.

Bom Domingo para todos.
Zé Martins

Divagações de Reformado

7 - Vivo num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer


Já estou na idade da “lágrima fácil“. Vivo no entanto num país que não me faz chorar, faz-me enraivecer. Li que 26% dos portugueses não ”mexeriam uma palha” se tivessem que defender o seu País. De quem é a culpa? Deles? Não! Dos muitos pseudo políticos que inculcaram nos jovens uma vida de facilitismo, das famílias que não souberam passar valores à nova geração, dos progenitores que pretendiam que os filhos não passassem as dificuldades que eles passaram.
Nas décadas de 60/70 muitos milhares defenderam o Portugal de então. Nessa altura o nosso Portugal estava espalhado por três continentes. Íamos para o Ultramar com Portugal no Coração. Agora os políticos pavoneiam-se com Portugal na lapela.
Morria-se a defender o País. Neste momento a gente séria morre de vergonha com a catadupa de escândalos de corrupção, lavagens de dinheiro, subserviência ao poder estrangeiro, etc., etc.
À, Eça tanto material que terias agora para as tuas escritas.

Secção de Comando Dragão 
© Foto: José Martins

Por isso prefiro relembrar as saudades que tenho da Guiné e dos tempos que passei em Canjadude, a comandar homens com H grande, guinéus mas portugueses completos, que tinham Portugal no Coração. Sofremos, mas todos em conjunto. Combatemos lado a lado. Sentimos a dor dos feridos (felizmente nunca tivemos mortos debaixo do meu comando) que caíram ao nosso lado.

Prefiro recordar as bolanhas, os espaços livres, a vida simples da população, todo um conjunto de pequenas coisas que sociedade europeia já esqueceu preferindo viver sem valores, formatada pelos grandes banqueiros, secundados pelos políticos corruptos e por um sistema que prepara todo um envolvimento para facilitar a vida a uma corja de privilegiados.

Recordo que muitas vezes saí em operações somente com a secção de Comando (10 homens), todos africanos, sem qualquer problema. Porque eles eram e sentiam-se portugueses. Tinham algo para mostrar ao Mundo. Queriam ser portugueses para todo o sempre. Tinham valores que respeitavam. Muitos depois do 25/4 morreram por manterem esses ideais.

2.º Sargento Enfermeiro Cipriano Mendes Pereira, tombado em 16 de Novembro de 1970, durante um ataque a Nova Lamego 
© Foto: José Manuel Corceiro

Prefiro recordar com saudade o meu Sargento Enfermeiro, também guinéu, que me salvou a vida por duas vezes. A primeira quando adoeci com paludismo cerebral, que geralmente é fatal, mas que conseguiu debelar pelo seu enorme conhecimento das doenças tropicais e grande dedicação.
A segunda quando um dos militares da Companhia se etilizou e meteu na cabeça que queria matar o Comandante. Estava à espera na Parada que chegasse ao pé de mim. Era fundamental para a minha credibilidade na Unidade. Já tinha visto que a Madsen que ele trazia estava em segurança. Não havia perigo iminente. No entanto o sargento Cipriano com risco para si próprio injectou-lhe um calmante que o pôs a dormir.
Este homem bom, cidadão português, corajoso, foi morto em Nova Lamego conjuntamente com a família pelos “libertadores“, já depois de eu ter saído da Companhia

É isto que, já no final desta passagem por este mundo louco, pretendo recordar.
É por isso que nesta ”idade do condor“ esqueço as dores nas articulações e recordo com saudade as dores em todo o corpo ao fim de 4 a 5 dias de operações.
Recordo com saudade a “granada de 60“ vulgo garrafa de cerveja que me vinham trazer mal chegava. Nunca mais bebi uma cerveja tão gelada e tão boa. Recordo emocionado o dia em que retornei a Canjadude para desactivar um campo de minas e toda a Companhia me levou em ombros até ao meu antigo gabinete julgando que ia regressar ao Comando da Unidade. Foi difícil e pungente desenganá-los. E mais tarde, já no ”Puto“, tive o prazer de receber muitos daqueles portugueses africanos que removeram céus e terra para me encontrarem. Muitos com marcas do que sofreram às mãos dos “libertadores”, com histórias daqueles que fugiram e agora eram mercenários noutras terras, aqueles cujas famílias desapareceram, etc..

Tudo isto faz uma vida.
Tudo isto recordo com saudade.

Pacífico dos Reis
Gato Preto
“Faca de Mato “
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 – P6911: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (6): TAP ou TAPioca…? (José Martins)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Guiné 63/74 – P6911: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (6): TAP ou TAPioca…?

1. O nosso Camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968 / 70), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 29 de Agosto de 2010:

Nota prévia

Em carta, como normalmente recebo as “Divagações de reformado” do meu Comandante e Amigo Pacifico dos Reis, foi-me explicada a razão por não receber a revista ASMIR, como habitualmente.

É que o texto que agora se apresenta, e que vem no seguimento de outros publicados no nosso blog, costuma ser antecedido de publicação na revista da ASMIR, como se alude sempre em cada texto, com a indicação do número em que foi publicada.
O presente texto não terá publicação prévia nessa revista, pela simples razão de que o mesmo foi “censurado” pelo parágrafo que refere o “possível futuro Presidente da Republica”, apesar de reflectir, apenas, a opinião do autor no pleno uso dos seus direitos.
Julgo que se trata de um pormenor, uma pequena “gota de água”. Mas há que estar alerta, para que não se transforme num “charco”.

José Martins

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DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

6 - TAP ou TAPIOCA…?
Durante uma recente viagem a Inglaterra, para visita aos netos, utilizei os aviões da TAP, A viagem fez-me divagar até aos longínquos anos de 68. No decorrer da comissão, o mês de licença poderia ser passado na Metrópole e, para o efeito, eram utilizados os aviões da TAP. Mediante o pagamento do próprio, claro.
Nesse tempo a TAP era a TAP. Serviam boas refeições, com talheres de metal (mesmo na turística) vinho à discrição e engarrafado. Era a época da moda da mini-saia e as hospedeiras (na altura) eram uma visão para quem tinha estado desterrado no mato.
No meio dos meus pensamentos, a caminho do UK, um comissário (agora) atirou-me um “tijolo” (pseudo refeição recente da TAP) para cima do tabuleiro e serviu-me copo de vinho de uma garrafa de origem indefinida. Como tenho todas as “doenças da nutrição” confirmei se era o “tijolo dieta” que tinha previamente solicitado. Não era, novamente. Pela 3ª vez tal me sucedia. Reclamei mas também não espero que me respondam, como das outras vezes. Assim anda a TAP, sob administração brasileira. Será que temos TAP ou TAPIOCA?
Após as licenças era sempre difícil recomeçar. O regresso à rotina das operações, dos patrulhamentos e da vida passada nos abrigos, a má alimentação e higiene eram uma crucificação diária. Havia, no entanto, mecanismos psicológicos que amenizavam o ambiente. Um dos meus, eram os bons dias diários que me dava um pequenito negro, de cerca de três anos, que corria para mim mal saía da nossa “caserna armazém de mancarra”. Era um bálsamo que me fazia lembrar os filhos que tinham ficado em casa. Vim a saber mais tarde que tinha falecido, num dos ataques ao aquartelamento, depois de ter saído da Companhia.

O Mamaçal no habitual cumprimento matinal ao “Homem Grande” dos Gatos Pretos.
© Foto Pacifico dos Reis (1968 ?)
A C.Caç 5, como companhia da Província, tinha uma secção de recrutamento e mobilização cujo comando, conforme rezava o quadro orgânico, pertencia a um furriel. Como estivesse em falta, solicitei o recompletamento. Tempos mais tarde, quando regressou uma coluna vinda de Nova Lamego, vieram dizer-me que tinha chegado o furriel para a secção.
Dirigi-me para a coluna, mas não me apercebi que tivesse chegado alguém novo. Perguntei onde estava e, subitamente, reparei num indivíduo magro, como uma radiografia, a sair do meio das pipas e das sacas de farinha. A farda que vestia tinha uns números acima e bailava-lhe no corpo. Era o nosso furriel da mobilização. Mais tarde vim a saber que era um conhecido actor do nosso teatro de revista. O que o pobre sofreu para pôr os papeis em dia.
As emboscadas que sofríamos não eram exclusivamente realizadas pelos turras. Passo a contar: Certa vez seguíamos em “bicha de pirilau” pela mata densa quando senti que todo o pessoal africano da companhia dispersava gritando “baguera, baguera…” Somente os soldados metropolitanos não desertaram. Mantiveram-se no seu posto… mas por pouco tempo. Logo que perceberam que baguera eram abelhas, seguiram atrás dos africanos. Foi a pior emboscada que alguma vez tivemos, pois as abelhas africanas são muito ciosas do seu território e muito democráticas: tanto nos atacam, como aos turras. O que foi trabalhoso foi reunir o pessoal, uns quilómetros mais à frente.
A outra emboscada foi realizada por um bando de macacos. Durante uma coluna a Nova Lamego atravessou-se, no caminho, um bando de macacos cão. Um pequenito macaco, que ficou para trás, foi apanhado por um dos militares da Companhia. Quando regressamos, ao passar pelo mesmo sitio, estava todo o bando de macacos, que nos mimosearam com uma gritaria incrível. Somente quando chegámos ao aquartelamento é que percebi, ao ver o macaquito, que a emboscada à coluna tinha sido efectuada para libertar o pequeno elemento do bando. O mal estava feito e o pequeno ficou como mascote.
De divagação em divagação, vejo como os valores se vão modificando com o passar do tempo. Durante a permanência na Guiné, numa operação, perdi o PSRT (documento cripto). Sendo material secreto dei de imediato conhecimento superior e não houve qualquer quebra de segurança. Mesmo assim fui punido. Agora, quarenta e dois anos depois, arriscamo-nos, nas próximas eleições, a ter um Comandante Supremo das Forças Armadas que se divertia a enviar de Argel, elementos para os turras atacarem os nossos militares. É bem verdade que hoje, em Portugal, o patriotismo se mede pelos decibéis das “vuvuzelas”, e não pela valia nas artes, nas letras, nas ciências ou na disponibilidade dos militares de dar a vida pela Pátria.
Quando chegamos a Canjadude só tínhamos, conforme já referi, um armazém de mancarra para viver.
Tornava-se necessário construir abrigos enterrados, para resistir a previsíveis ataques. Para o efeito cortamos algumas árvores, com a grossura de mais de um metro, que iriam servir de cobertura aos abrigos. Ao mesmo tempo abríamos campos de tiro. Assim construímos os nossos habitáculos que nos iriam proteger e aos que nos rendessem. O agradável nos abrigos era o cheiro que os troncos, recém cortados, emanavam para o interior dos mesmos. Sempre diluía outros cheiros menos agradáveis.
Outras das grandes necessidades era a construção de uma pista para se receber aviões que trouxessem frescos e correio. No intervalo das operações, que eram poucos, conseguimos construir uma pista com a terra dos morros salalé (que me desculpem as formigas) devidamente compactada. Começaram, logo de seguida, a aterrar os DO trazendo material apetecível e perecível. O pior foi quando um piloto mais cauteloso, ou menos experiente, resolver interditar a pista por haver umas rochas no final da mesma. Tínhamos de construir mais cem metros.
Ficamos sem frescos e sem correio. Um piloto amigo e condiscípulo no Colégio Militar prontificou-se a resolver o problema. Tinha lido num manual americano como resolviam estes problemas no Vietname. Embrulhavam os frescos em palha dentro de sacos de serapilheira e lançavam-nos a baixa altitude.
Assim foi feito. O DO passou a rasar a pista e lançou uma série de sacos. Não sei se ele leu bem o manual. O que sei é que andamos a apanhar sardinhas, carapaus e pescada pelas árvores das redondezas. Serviu muito bem para um almoço de caldeirada, pois não podíamos ser esquisitos.
Víamos a vida fluir, durante a nossa permanência naquele pequeno recanto da Guiné, chamado Canjadude. Alguma marca deixámos naquelas terras. Sem dúvida nenhuma fizemos a guerra por amor à Guiné e a Portugal.

Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma

Observação:
Como o autor do texto não se recordava do nome do “pequeno”, solicitei informação ao Corceiro que, além da foto, enviou o texto abaixo:

“Amigo Martins
O miúdo era o Mamaçal, uma jóia de criança, os militares eram a sua família.
Em anexo vai uma foto, tirada no rio junto à ponte, onde estou eu, o Silva atirador mais o Dias, a dar banho ao Mamaçal.
Dá cumprimentos ao Pacífico dos Reis.
Um abraço
José Corceiro
© Foto de José Corceiro.
___________

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Guiné 63/74 – P6779: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (5): Só à pedrada

1. Mensagem do nosso camarada José Martins com data de 19 de Julho de 2010:

Caros amigos e camaradas
Segue mais uma «Divagação de reformado», do nosso amigo e camarada Coronel Pacífico dos Reis.

Um abraço
José Martins


DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

5 - Só à Pedrada

Um dos grandes meios para divagar, nos tempos que correm, é a internet. Não só pelas beldades que vão aparecendo no pequeno ecrã dos portáteis, mas também pela avalanche de informações que nos é debitada todos os dias. No meio dessa catadupa aparece um extenso anedotário figurativo do pulsar social dos diversos países. É o caso paradigmático da estória que ocorreu na “Internete”, em castelhano, que é o reflexo do que se passa na nossa sociedade. Passo a contar, Um ladrão, de cara tapada, abordou um cidadão de “uma certa idade” e exigiu-lhe o relógio. Verificando que era uma imitação barata de um “Rolex” invectivou o ancião e pediu-lhe a carteira. O pobre cidadão deu-lhe a carteira, uma imitação barata de “Pierre Cardin”, com uns míseros cinco euros no interior. O ladrão ia entrando em apoplexia e disse-lhe: - Como é que só tens isto na carteira? O pobre velho respondeu-lhe: “É verdade que tenho pouco, sou coronel reformado!” Ao ouvir isto, o ladrão tirou alegremente a máscara e disse – “Coronel! E de que curso é que tu és?”

Esta anedota corre em Espanha, onde os coronéis ganham três vezes mais do que em Portugal, têm melhores condições sociais e os artigos nos supermercados são muito mais acessíveis que os nossos Continentes, Pingos Doces, Jumbos e similares.

Realmente a nossa geração é bastante azarada. Tivemos uma infância pós-guerra, com todas as limitações daí resultantes. Uma juventude marcada pela pseudo-didatura. Uma idade adulta na guerra do Ultramar. E agora, no final da vida, temos o espectro de ficarmos completamente limitados devido ao estado a que chegou o nosso País, resultante da má gestão, corrupção, falta de profissionalismo de alguns dirigentes que governaram e governam este Portugal. Precisamos somente de profissionais honestos em todos os níveis sociais.

Foto de alguns elementos da força de recuperação. (DR)

Adiante. Passemos às recordações de outros tempos.

Na nossa Companhia, os “Gatos Pretos”, muitas vezes tínhamos uma falta de comunicação, tantos os dialectos que se falavam. Para complicar, tínhamos muitas das vezes que falar em francês pois, devido à fronteira com o Senegal, alguns senegaleses vinham cumprir o serviço militar à Guiné. Tinham farda de “borla”, ganhavam bem comparativamente com a restante população e a guerra era coisa que lhes estava no sangue.

O nosso apontador do morteiro 81 era um caso típico. Como comandante, tive que aprofundar o meu francês, que aprendi no Colégio Militar, para lhe dar direcções de tiro. Sucedeu que, durante uma missão de bombardeamento à zona do Boé, um T6, por falha do motor, despenhou-se a cerca de dez quilómetros do nosso aquartelamento de Canjadude. O piloto foi retirado por meio héli, mas subsistia o problema de recuperação do motor. Recebemos uma mensagem para efectuar, com urgência, a recuperação do motor. O problema que se me deparava no momento resultava da falta de dois pelotões, por terem ido fazer uma coluna de reabastecimento ao Gabu. Assim, logo que chegaram os mecânicos da Força Aérea, arrancamos com duas viaturas e muito poucos militares, alguns até dos serviços de apoio como a secretaria e cantina. Juntei-lhes o apontador senegalês com a sua arma. Ao chegarmos ao local estabeleci o perímetro e coloquei o morteiro no centro do mesmo. No meu melhor francês indiquei os objectivos a bater, nas direcções prováveis de um possível ataque In, que poderia vir explorar a queda do T6. Virei costas e dirigi-me ao avião acidentado para controlar os trabalhos em curso. Ao chegar ao local ouvi uma “saída de morteiro”, indicador certo de que vinha uma granada a caminho. Gritei ao pessoal para se abrigar e pouco depois ouvi uma explosão ao longe. Tal facto surpreendeu-me, porque os “turras” não costumavam falhar quando lançavam os seus presentes de 82. Corri para o nosso morteiro e constatei que o nosso bom senegalês percebera muito bem quanto aos objectivos, só não tinha percebido que tinha de ficar em “stand by”. Claro que tudo se resolveu e conseguimos recolher o motor do T6 em tempo recorde e sem acordar o In.

Foto do motor recuperado, em cima da viatura. (DR)

Esse mesmo senegalês, quando atacaram o nosso aquartelamento e os turras foram ao arame e tentaram entrar pela área da tabanca, conseguiu, sem aparelho de pontaria e fazendo quase tira na vertical, enfiar uma salva de cinco granadas entre as duas fiadas de arame farpado, que os fez desistir do intento. Deixaram alguns restos humanos mesmo junto à fieira de arame farpado, o que demonstrou que ele trabalhava melhor sem as minhas indicações em francês.

Quem nunca esteve na Guiné talvez não compreenda que se possa passar sede. Na zona do Gabu, na estação seca, todas as vias fluviais pequenas desapareciam e a bolanha ficava seca e gretada. A nossa companhia ia buscar água a uma ribeira que passava a cerca de cem metros do aquartelamento. No tempo das chuvas era um rio portentoso, onde até se podiam pescar lagostins, na época seca desaparecia.

Já no final da época seca começamos a fazer racionamento de água. Ninguém tomava banho, toda a água era para beber e fazer comida. No entanto, a estação seca prolongou-se e já nem havia água para fazer comida. Já nem ligávamos ao cheiro que todos emanávamos. O dilema do comandante, sobre se havia ou não de pedir reabastecimento de água por héli, começava a pesar-me. Decidi-me e sentei-me na minha secretária (feita de caixotes de sabão) para redigir uma mensagem relâmpago. Estava a escrever quando ouvi uma gritaria no exterior do armazém de mancarra que nos servia de abrigo.

Saí para o exterior e julguei que estava tudo doido. Só via pessoal em cuecas, com barras de sabão na mão a apontar para oeste. Olhei e vi, com espanto, uma parede negra de água a caminhar em direcção do quartel. Só então me apercebi que tinha começado a estação das chuvas e que ela vinha em nossa direcção. Ainda deu tempo para ir buscar o meu sabão e desistir da mensagem relâmpago.

Agora começo a pensar em tudo o que passámos, todos juntos, e julgo que para nós eramais fácil a nossa missão ser levada a bom termo, por estarmos a defender uma parte integrante do Território Nacional. Ganhávamos mal, tínhamos dificuldade na alimentação, tudo junto com as agruras do clima e depois ainda tínhamos os “turras” para “cuidar”. “Turras” que tinham melhor armamento do que aquele que nós usávamos. Mas defendíamos a Pátria. Todos nós.

Agora é muito mais difícil. Como vamos explicar aos nossos militares que vão para o Afeganistão, Iraque, Líbano, Kosovo, etc, que estão a defender a Pátria? Ainda por cima com um corte orçamental de 40%. Será que vão defender a dita civilização ocidental à pedrada? Haverá dinheiro para pedras?

Notas:
1 – O texto também foi publicado na revista ASMIR de Mar/Abr 10.
2 - Na revista as fotos estão atribuídas ao ex-Furriel de Trms José Martins. Não é possível, já que na altura em que foram tiradas as fotos, o mesmo era o “Comandante de Canjadude” por ser, na altura, o militar com maior graduação no aquartelamento, pelo que as fotos seguem com DR (Direitos Reservados)



RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “RECUPERAÇÃO” EM 22FEV69

01. Situação Particular

A Unidade encontra-se destacada em Canjadude com 02 Grupos de Combate, conjuntamente com a CART 2338, com um efectivo de 03 Grupos de Combate. Tem esta Unidade um destacamento em Cabuca com 1 Grupo de Combate e em Nova Lamego 1 Grupo de Combate.
(1 Grupo de Combate da CART 2339 e 1 Grupo de Combate da CCAÇ 5, assim como as viaturas pesadas, encontravam-se empenhadas numa coluna de reabastecimento a Nova Lamego, com inicio em 22 e termo em 23FEV69, ao fim da manhã)

02. Missão da Unidade
Montar a segurança à equipa da Força Aérea que iria recuperar o motor do T6 em 14151200 A1.

03. Força Executante
a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis

b) 1 Grupo de Combate da CART 2338 – Furriel Grosso
    1 Grupo de Combate da CART 2338 – Furriel Raposo
    1 Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Alferes A. Sousa

c) 3 Grupos de Combate

d) Flanco esquerdo 1 Grupo de Combate da CCAÇ 5; flanco direito 2 Grupos de Combate da CART 2338.

e) 1) 3 Carregadores nativos e 1 guia a cargo da CART 2338.
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 2 elementos com dilagrama por grupo de combate, 1 Morteiro 81 e 1 Metralhadora Pesada BREDA.

3) -----------------

4) Reforço de 3 cunhetes de munições 7,62 mm; 10 cunhetes de Morteiro 60; 10 cunhetes de LGF.

5) -------------------

6) Material de Transmissões:
34 Onkyos
1 PRC-10
Telas

04. Planos Estabelecidos
Fazer uma coluna com os 2 Unimogs existentes com guarda de flanco até à zona onde se encontrava o T6. Nesse local fazer protecção circular ao avião. 1 Grupo de Combate sobre a estrada. 2 Grupos de Combate em redor do avião.

05. Desenrolar da Acção
Partiu-se de Canjadude em 221630FEV69 tendo a coluna chegado junto do avião, que se encontrava a cerca de 10 Km de Canjadude em 230830FEV69, tendo durante o caminho sido feito o que estava planeado. Junto do avião fez-se a segurança conforme estava planeado. O pessoal técnico da F.A. chegou em 220945FEV69, tendo começado a trabalhar na recuperação. Foram recuperadas todas as peças de interesse, inclusive o motor. Às 13H00 fez-se a destruição do aparelho por meio de explosivos. Chegamos a Canjadude em 221430FEV69.

06. Resultados Obtidos
Recuperou-se as peças essenciais do T6 e o motor

07. Serviços
a) 1 Ração de combate;
b) Água da fonte de Canjadude
c) 1 Auxiliar de enfermeiro e 1 maqueiro.
08. Apoio Aéreo
T6 e Helicóptero canhão depois de chegarem os técnicos da FAP, portanto às 09H45. Antes não houve apoio.


09. Ensinamentos Colhidos
Nada.

10. Diversos
Nada.
__________

Notas de CV:

- José Manuel Marques Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado, ex-Comandante da CCAÇ 5 (Gatos Pretos), Canjadude, 1968/69

- Vd. último poste da série de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6395: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(4): Politicamente incorrecto… (José Martins)

sábado, 15 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6395: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (4): Politicamente incorrecto…

1. Mensagem de José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2010:

Camaradas,

Remeto mais um trabalho do nosso amigo e camarada de armas Pacífico dos Reis, hoje Coronel na reforma, com mais uma das suas divagações.

Anexo segue o relatório da operação referida no texto.

Com um abraço de bom fim de semana,
José Martins
Fur Mil, Trms da CCAÇ 5

DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

4 - Politicamente incorrecto…

Realmente a televisão é um veículo de transporte e incentivador das divagações de um reformado. Ultimamente, veio à luz do dia, nos telejornais, a notícia que um conhecido treinador de futebol teria sido hospitalizado por efectuado uma lipoaspiração. Este facto veio recordar-me os bons tempos em que nós fazíamos na Guiné 20 a 30 Km diários em nomadização. Era a nossa lipoaspiração.
Realmente o nosso país está um espanto e perdeu-se a noção da realidade. É a lei do facilitismo. Um indivíduo que devia pugnar pela saúde através do desporto cai na via mais fácil para a perda de alguns “quilitos”.
Durante a minha permanência no T.O. da Guiné, a nossa Companhia tinha directivas do Batalhão para efectuar operações na área a seu cargo, geralmente três a cinco dias por semana. Essas operações eram frequentemente complementadas com outras inopinadas e mais prolongadas.
O nosso “conta-quilómetros” fazia muitas vezes mais de 200 Km por semana. Como atrás referi, era uma lipoaspiração sequencial.
Outra notícia da televisão a que temos direito, chegou através do futebol. Então o nosso país que já foi senhor de meio mundo, passou de seguida ao tamanho da Europa, regressou às fronteiras iniciais (menos Olivença, claro), é neste momento, na boca de um Dunga (nome de anão), como Brasil B.
Interessante para quem se presume de descendência lusa. É uma inversão completa, mas já esperada, depois destes últimos anos de desregramento e corrupção.
Outro assunto que me fez “divagar em velocidade de cruzeiro” foi o casamento entre homossexuais. Tal facto fez-me vir à lembrança a estória que se contava sobre o general inglês que iria abandonar definitivamente a sua pátria natal e explicava: “Dantes era crime contra-natura.
Passou a ser tolerado. Agora casam. Vou-me embora antes que seja obrigatório”. Claro que esta anedota é agora politicamente incorrecta.
Aprendi na Guiné, ao comandar uma Companhia de Africanos, que existem algumas expressões, utilizadas frequentemente durante a instrução de tropas metropolitanas, que são “politicamente incorrectas” junto do pessoal africano.
É a “ovelha negra”, “o caso está preto”, etc. Durante uma prelecção que fazia à Companhia, para realçar o discurso, comecei aquela frase que muitas vezes usava para as tropas metropolitanas: “Eu até pintava a minha cara de preto se…”
Quando comecei a proferi-la – “Eu até pintava… – olhei para as dezenas de faces à minha frente que variavam entre o castanho e o negro retinto e tive um sobressalto.
Fiz uma pausa e continuei:… os meus testículos (em vernáculo, claro) de BRANCO se…”. E respirei fundo.
Uma das imagens de marca da Guiné, são “os gilas”.
Espécie de contrabandistas, vendiam tudo, desde peles de crocodilos e cobra a tecidos e, fundamentalmente, deambulavam por todo o território o território, sendo utilizados pelos dois lados em confronto para recolha de notícias.
Uma manhã entra na tabanca (ficava ligada ao quartel) um grupo de “gilas” proveniente do Senegal, diziam eles.
Após uma breve triagem, detectamos que um dos “gilas”, “homem grande”, tinha uma cicatriz na mão esquerda, definitivamente resultado da passagem de uma bala.
Após prolongados interrogatórios, um dos elementos mais novos informou-nos que a cerca de 15 a 20 km, para leste, os “turras” tinham um acampamento temporário e eles seriam a guarda avançada para colher informações.
Enviamos informação para o COP 5 e pedimos autorização para fazer uma operação inopinada, de imediato. Antes de vir a autorização já a Companhia estava no terreno em direcção ao local.
Quando nos estávamos a aproximar do acampamento começamos a ouvir o ruído característico dum DO e pouco depois a voz do Comandaste do COP 5, no rádio, a solicitar a nossa posição.
Mandei dois berros ao microfone a dizer para sair de cima da posição, mas já era tarde. Quando entramos no acampamento só encontramos material de limpeza do armamento e algumas peças soltas de AK47 numa bancada improvisada junto às cubatas.
Os turras que, não eram deficientes auditivos, puseram-se em fuga, mal ouviram o avião. Só interrompemos a hora de limpeza do armamento e obrigamos a ir dormir para outro sítio por lhes termos queimado as cubatas.
A nossa vida na Guiné não era só operações. Também tínhamos as nossas horas culturais. Nesses curtos interregnos foi composto o Hino da C.Caç 5, que não resisto a deixar para a posteridade:

HINO DOS GATOS PRETOS [a]
I
Nós somos os GATO PRETOS
Somos JUSTOS E VALOROSOS,
No combate contra os turras
Somos os vitoriosos.
Patrulhamentos, colunas
Pelas matas da Guiné,
Somos únicos Senhores,
Desde o GABÚ ao BOÉ!


  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
II
Nós somos os GATOS PRETOS
Pela justiça lutamos,
P’ra desta terra expulsar
Os turras e os cubanos
Europeus e Africanos
Temos o mesmo ideal:
Nós somos a C. Caç 5
Militares de Portugal
  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
Claro que hoje, talvez, nada disto seja “politicamente correcto”, mas era vivido intensamente por todos nós. O isolamento, o perigo, o esforço diário em conjunto, o ideal comum foram a massa que cimentou a camaradagem unindo as diferenças étnicas, rácicas e sociais da nossa Companhia.
E sempre que seja necessário e possível, haverá um GATO PRETO para apoiar outro GATO PRETO.

[a] – Nota inserta no Cancioneiro de Canjadude:
Depois de ter os seus grupos de combate dispersos por Nova Lamego, Canjadude, Cabuca e Che-Che, a Companhia de Caçadores nº 5 reúne-se, em Abril de 1969, no subsector de Canjadude. É a primeira vez, desde a sua criação, que a Companhia de encontra toda reunida.
“Desde que estamos todos juntos” foi o mote para a criação deste Hino, cuja letra, ainda que em voga na época, e de um ritmo de certa forma marcial, desconhecemos o autor,

(o texto também foi publicado na revista ASMIR de Jan/Fev 10)

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LUTA” em 14 e 15MAR69

01. Situação Particular
A Unidade encontra-se a guarnecer o Aquartelamento de Canjadude, sendo responsável pelo mesmo sector.
Acções feitas ao aquartelamento de Cabuca e tabanca de Cambajá Bentem. Em 13MAI69 02 gilas detidas em Canjadude referem a existência de um aquartelamento IN com cerca de 150 elementos localizada no Rio Buoro, a leste de Ganguiró.
02. Missão da Unidade
Aniquilar ou capturar o IN que se vem revelando na estrada Nova Lamego – Piche, apreendendo os materiais que se encontram no presumível acampamento e destruindo as suas instalações.
03. Força Executante
  • a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
  • b) 1º Grupo de Combate – Alferes Gago
    2º Grupo de Combate – Alferes Gomes
    3º Grupo de Combate – Alferes Sousa
    4º Grupo de Combate – Furriel V. Silva
    Secção Comando Dragão
  • c) 4 Grupos de Combate
    d) Secção de Comando Dragão, Comandante, 1º Grupo de Combate, 2º Grupo de Combate, 3º Grupo de Combate e 4º Grupo de Combate.


  • e) 1) 40 Carregadores.
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 3 elementos com dilagrama por grupo de combate.
    3) -----------------
    4) Dotação suplementar, por homem, de 40 munições 7,62 mm. Reforço de 400 munições 7,62 mm por grupo de combate.
    5) -------------------
    6) Material de Transmissões:
    1 CVHP-1
    1 PRC-10
    3 AVP-1
    2 Sharp
    Telas
04. Planos Estabelecidos
  • 1º Fase – dia D – Patrulhamento Canjadude – Canducuré – Ganguiró, montando emboscada em Ganguiró:


  • 2ª Fase – Dia D+1 – Batida da zona que margina o Rio Buoro e Golpe de Mão sobre qualquer acampamento que seja referenciado.
05. Desenrolar da Acção
Partiu-se de Canjadude em 150600MAI69, tendo a força seguido em direcção a Cansamba, para despiste da possível direcção. Depois seguiu-se para Canducuré, tendo a força chegado cerca das 10H00 a Bante (A) onde foi feito um grande alto para almoço.
Pelas 16H00 seguiu a força para Ganguiró onde chegou em 151700MAI69 tendo montado emboscada à entrada de Gangiró na mata densa.
Em 160500MAI69 a força seguiu para a nascente do Rio Buoro (que se encontra seco) tendo seguido em fila indiana pelo Rio Buoro. Mandei pôr dois pelotões em linha de batida, ficando com um pelotão de reserva.
No entanto a marcha tornou-se muito lenta, devido à mata ser muitíssimo densa, tendo o pessoal de rastejar muitas das vezes, para manter a linha de batida.
Cerca das 06H45 foram encontrados paus cortados de fresco. O gila que servia de guia não queria dizer onde ficava o acampamento, mas, à vista dos paus cortados, disse que estávamos em cima dele.
O pessoal entrou no acampamento às 07H30 tendo sido vistas 12 tabancas com camas para cerca de 6 a 8 elementos IN.
Passada revista foram queimadas as tabancas. Foi visto, sobre o trilho em direcção ao Siai, sinais de fuga apressada e recente de três elementos IN.
A força seguiu em fila indiana pelo trilho de modo a tentar apanhar aqueles elementos. Apesar de serem perseguidos durante cerca de 2 a 3 Km não foram vistos.
Foi visto um trilho de gilas do Rio Cumbera para Ganguiró, com sinais de passagem de vacas, deduzindo-se que os gilas estão a fazer o caminho Rio Cumbera – Ganguiró – Nova Lamego, tendo o IN montado o acampamento em Ganguiró para reabastecimento de carne fresca.
Seguiu-se em direcção a Ganguiró onde foi feito reabastecimento de água por helicóptero, seguindo em seguida a força para Canjadude, e por ter cerca de 10 indivíduos desidratados e que já não podiam andar, foram pedidas viaturas ao quartel com água.
A força entrou em Canjadude em 161700MAI69.
06. Resultados Obtidos
  • c) Na revista ao acampamento, foram encontrados: 2 Cantis, 1 lata de óleo de lubrificação, 1 fervedor de seringas, 1 bolsa para pistola, 1 lata de água oxigenada e álcool, 5 marmitas, 2 cunhetes de munições vazios, além de pilhas diversas de origem russa e inglesa, cadernos diários, livros escolares, cartas e diversos papeis.

  • d) Por cansaço o soldado 82º13164 Dauda Mané foi evacuado.
  • e) Segue anexo.
07. Serviços
  • a) 2 Dias de ração de combate,
  • b) -------------------
  • c) 1 Sargento enfermeiro, 1 auxiliar e 1 maqueiro.
  • d) 1 Evacuado de Heli.
08. Apoio Aéreo
  • PVC em DO 27
    T6 em alerta no solo
    Heli em Nova Lamego
09. Ensinamentos Colhidos
  • O acampamento estava feito em mata densíssima que não permitia a batida e onde o pessoal para avançar tinha que rastejar. Acampamento muito bem camuflado, impossível de ser visto pela Força Aérea. Com saídas em direcção ao Siai e Rio Cumbera. Um posto de vigia elevado virado para a bolanha de Ganguiró.
10. Diversos
  • Nada
  • Documentos Anexos
  • 1 – Motivos que originaram o extravio
    Passagem por mata muito cerrada em que obrigava a rastejar muitas das vezes, mesmo à entrada do acampamento.
  • 2 – Relação do material extraviado
    2 Abafos de pescoço,
    1 Cantil m/964.
Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5987: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(3): “Divagações de reformado - 3” É a vida… (José Martins)

sábado, 13 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5987: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (3): É a vida…

1. O nosso Camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos - Canjadude -, 1968/70), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 9 de Março de 2010:

Camaradas,

Aqui vai mais um texto do n/ camarada e meu comandante, Pacífico dos Reis. Segue, também, o relatório da coluna citada no texto.

José Martins


2. Terceira parte das Divagações de Reformado de autoria de Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado que comandou a CCAÇ 5 “Gatos Pretos” (Unidade esta a que pertenceu também o nosso camarada José Martins):


DIVAGAÇÕES DE REFORMADO - 3
É a vida...
É A VIDA [1]
Guiné 12.SET.69



Estrondo surdo, ensurdecedor… O ar saiu-me dos pulmões, sentindo-me sufocar.
Voei no meio do pó vermelho amarelado, parecendo flutuar. A pancada foi dura. Acordei no meio de verde. Capim, só capim. Tentei levantar-me mas tudo me parecia em câmara lenta. Olhei-me e reparei que tinha a perna esquerda com pinceladas vermelhas no meio do camuflado rasgado. Senti-me no meio de um filme de guerra de categoria B. Só devia ser “sumo de tomate”. Tentei levantar-me. Ouvi o alferes da segunda viatura gritar que “tinham morto o capitão”. Berrei para saírem das valetas e tentei ver a situação.
A minha “querida “ GMC, que me tinha transportado em dezenas de colunas, estava desfeita. junto dela espalhavam-se os elementos da minha secção de comandos, feridos com alguma gravidade. “Aquele que derramar o seu sangue comigo será meu irmão”. [2]
Pedida a evacuação demorou pouco tempo. Benditos pilotos e enfermeiras da FAP que em menos de um quarto de hora tinham evacuado os feridos mais graves. Passado algum tempo chegou o apoio vindo da seda da companhia em Canjadude e posteriormente o apoio do batalhão de Nova Lamego. Lá seguimos para o Gabú transportando os feridos mais ligeiros e a viatura minada a reboque.
Era o resultado de se efectuar uma coluna de reabastecimento com desminagem descontínua. Uma autentica “roleta russa”. Ordens do batalhão que tínhamos de cumprir.

É A VIDA
Portugal 08.DEC.07

Estrondo surdo… Esperei todas as sensações que tinha tido na Guiné. Não, a viatura continuou a andar. Quando olhei pelo espelho retrovisor percebi que no meio da A2 estava um cão.
Após os militares da GNR tomarem conta da ocorrência, um deles, rapaz novo, disse-me: - “Meu coronel está cheio de sorte, podia ter sido uma vaca ou um javali. Já tem sucedido.”
Fiquei a saber que além da minas de quatro patas (cão) poderiam aparecer minas anti-carro (vacas e javalis) deixadas plantadas pela Brisa, que deveria zelar pela segurança dos utentes das auto-estradas à sua guarda.
“É a vida,,,”

Para os camaradas que seguem estas letras fica o aviso. Quando entrarem nas auto-estradas não contratem picadores, mas sim um campino ou um caçador por mor das minas anti-carro de “quatro patas”.
Estas linhas tinham como finalidade divagar sobre a Guiné e estou a desviar-me, Julgo, no entanto, o desvio importante e salutar.
Passarei às estórias da história. A minha companhia, a C,Caç 5 “Gatos Pretos”, era uma amalgama de etnias. Praticamente tinha todas e são muitas. Até tinha um felupe completamente deslocado em chão mandinga. Mas não é de um felupe que se trata mas sim de um fula. Certa vez, quando fazia a minha ronda nocturna senti um ruído, como que um gorgolejar, atrás de uma porta. Afastei-a e encontrei sentado no chão um militar africano bebericando uma cerveja. Não resisti e perguntei-lhe porque estava a beber sendo ele islamizado. Depois de se pôr em sentido, dum salto, a resposta veio célere: - “Meu capitão, Alá não me vê atrás da porta”.
“É a vida,,,”

Outro elemento inesquecível da companhia era um soldado metropolitano, agricultor de profissão e vindo das beiras. Não tinha jeito nenhum para a vida militar, tinha um medo, pânico profundo, do mato. Após reunir conselho com os mais directos colaboradores, comandantes de pelotão e secção, atinou-se uma forma de resolver o problema satisfatoriamente.
Chamei o militar e informei-o que o colocaria à frente da nossa “agro-pecuária” com a obrigação estrita de abastecer o rancho de verdes que faziam falta à dieta diária. No dia em que se descuidasse nos seus deveres agrícolas voltaria à linha e consequentemente ao mato. Nunca vi cara mais radiante.
A partir desse dia passamos a ter saladas a acompanhar muitas das refeições.
“É a vida,,,”

A seguir à evacuação de Madina do Boé a nossa companhia foi a herdeira directa do gerador eléctrico e todo o material eléctrico que ali existia. Para fazer a montagem eléctrica do gerador e da iluminação periférica e interna do aquartelamento, veio de Bissau um soldado de engenharia (é mesmo um soldado, não é gralha!).O rapaz era mesmo eficiente. Deitou-se ao trabalho e com o apoio de alguns elementos da companhia, em pouco tempo, tinha tudo montado. Chamei-o, agradeci-lhe o eu voluntarismo e disse-lhe que ia passar a guia de marcha para Bissau. O meu espanto foi quando ele me pediu para ficar mais tempo na companhia. Dizia que gostava de estar no mato e até me pediu para, quando realizássemos uma operação, ir connosco.
Claro que lhe fiz a vontade. O rapaz tinha sido tão prestável que não o podia desiludir.
No entanto não podia arriscar a vida de um elemento que não era da minha companhia e que tinha vindo realizar uma função completamente diferente da de atirador.
Assim, escolhi um patrulhamento para uma zona onde havia pouca possibilidade de haver contacto com o inimigo e levei-o.
No regresso, a felicidade dele era evidente. Quando regressasse a Bissau já tinha uma história para contar.
“É a vida,,,”

É assim que a vida é feita de pequenos retalhos. Cada um os vê pelo seu prisma. Hoje, a quarenta anos de distância, talvez possamos ver com menos nitidez todo o panorama, mas saltam-nos as imagens mais salientes. É dessas memórias que se alimenta a nossa memória.

[1] – António Guterres
[2] – William Shakespeare
(o texto também foi publicado na revista ASMIR de Nov/Dez 09)
RELATÓRIO DA COLUNA REALIZADA A NOVA LAMEGO em 12SET69

01. Situação Particular

  • A Unidade encontra-se a guarnecer o Aquartelamento de Canjadude, sendo responsável pelo mesmo sector, reforçado com o 1 Pelotão de Milícias nº 129.
    Três ataques á tabanca de Madina Xaquili e a destruição de Catalunda, prevêem actuação mais a Norte. Presume-se a entrada de um grupo numeroso pelo sector de Cabuca dirigindo-se provavelmente para este sector ou Nova Lamego.
02. Missão da Unidade

  • Colina de reabastecimento a Nova Lamego trazendo um Pelotão da CART 2479 para defesa do Aquartelamento, enquanto o pessoal se encontra na operação “LIRIO”.
03. Força Executante


  • a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
    b) 1º Grupo de Combate – Alferes Gago
    4º Grupo de Combate – 2º Sargento Farinha
    Secção Comando Dragão
    c) 2 Grupos de Combate, 2 GMC, 2 Unimog 404, 1 Unimog 411.
    d) 2 GMC (Secção de Comando Dragão, Comandante e 1º Grupo de Combate) – 1 Unimog 404 (Transmissões), 1 Unimog 411 e 1 Unimog, (4º Grupo de Combate)
    e) 1) ----------------------------
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 3 elementos com dilagrama por grupo de combate.
    3) -----------------
    4) Reforço de 400 munições 7,62 mm por grupo de combate.
    5) -------------------
    6) Material de Transmissões: 1 AN – GRC-9
    1 PRC-10
    3 AVP-1
    Telas
04. Planos Estabelecidos


  • Coluna com picagem da estrada, descontinuadamente, nos pontos onde houvesse mais possibilidades de serem postas minas (zonas de areia, areão, terra solta). Enquanto de fazia a picagem o 1º Grupo de Combate fazia a guarda de flanco esquerdo e o 4º Grupo de Combate a guarda de flanco direito.
05. Desenrolar da Acção

  • Partiu-se de Canjadude em 120630SET69 tendo a coluna seguido montada até pouco depois de Canjadude onde se começou a picagem, seguindo-se apeado até Uelingará cerca das 08H20. Neste ponto mandei montar e tendo andado cerca de 15 metros, ouviu-se um rebentamento, tendo a primeira viatura (GMC) sido projectada ficando atravessada na estrada. Imediatamente se fez a protecção às viaturas com o pessoal à esquerda e à direita da estrada, tendo-se pedido nessa altura um pronto-socorro e heli para evacuação dos feridos. Chegou cerca das 10H00 pessoal de Canjadude trazendo o Sargento enfermeiro e medicamentos, ficando este e seguindo o grupo de combate, que veio em socorro da coluna, para Canjadude. Fez-se a picagem da estrada tendo sido levantada mais uma mina Anti Carro. Pelas 11H30 chegou a coluna de socorro de Nova Lamego, com o pronto-socorro, tendo chegado pouco depois os helis que fizeram a evacuação dos feridos. Ficou na zona a CART 2479 e as viaturas da CCAÇ 5 seguiram para Nova Lamego com o pronto-socorro onde chegaram em 121340SET69. Partiu a coluna às 15H15, tendo levado o Grupo de Combate da CART 2479, que estava à espera em Uelingará, chegando a Canjadude em 121730SET69.
06. Resultados Obtidos

  • a) ------------------
    b) --------------------
    c) 1 Mina Anti carro de madeira levantada
    d) Feridos evacuados de heli:
    - Soldado (82102264) Iero Jau – feridas na perna esquerda, diversas contusões e escoriações;
    - Soldado (82057465) Tomango balde – contusão na coluna vertebral;
    - Soldado (82061965) – Adama Candé – ferida profunda na perna direita, ferida na cabeça, escoriações e contusões por todo o corpo;
    - Soldado (82022168) Mamadu Samba Djaló – ferida na face esquerda e contusões por todo o corpo;
    - Soldado (82023168) Ensa Mané – ferida no braço direito r pé direito, contusões por todo o corpo;
    - Soldado (82068468) Mumine Balde – contusão na coluna vertebral e bacia;
    -Soldado (82075068) Bobo Djaló – feridas nas pernas.
    - Civis Mamadú Sissé e Galé Conte.
    Feridos não evacuados:
    - Capitão de Cavalaria (50691111) José Manuel Marques Pacífico dos Reis – contusão e escoriações na perna esquerda e braço esquerdo;
    - 1º Cabo (00143167) José Luís Salgado da Silva – contusão na perna esquerda e escoriações por todo o corpo;
    - Soldado (82097564) Mamadú Mané – contusão perna esquerda e escoriações por todo o corpo;
    - Soldado (82152064) Denane Balde – contusões por todo o corpo;
    - Soldado (82053565) Mamadú Candé – contusão face esquerda;
    - Soldado (82039566) Saído Jaló – ferida supraciliar direita, contusões por todo o corpo.
    e) Segue anexo.
07. Serviços



  • a) -------------------------
    b) -------------------------
    c) 1 Enfermeiros e 1 maqueiro.
    d) Meio heli e viaturas
08. Apoio Aéreo

  • T 6 e evacuação heli.
09. Ensinamentos Colhidos

  • Talvez se tornasse conveniente fazer a coluna em dois dias seguidos para se conseguir fazer a picagem de todo o percurso. Devido ao pouco tempo que se dispõe para fazer a coluna, ida e volta e para se fazer o carregamento, tem-se de fazer picagem em pontos descontínuos e nos sítios mais perigosos.
10. Diversos

  • Pessoal
    - É de frisar o estoicismo dos feridos que foram evacuados que aguentaram o tratamento e o tempo de espera dos helis sem um queixume;
    - É de salientar o sentido de camaradagem do 3º Grupo de Combate que, comandados pelo Furriel Miliciano Carvalho, levou medicamentos e o Sargento Enfermeiro num Unimog 411, tendo que ir a maior parte do pessoal a pé e a correr atrás da viatura, fazendo o percurso de cerca de 12 km em pouco mais que uma hora e meia.

  • Material:
    - Ficaram bastantes granadas de LGF danificadas e perigosas no seu manuseamento.
    - Ficou uma granada dentro do tubo do LGF que, devido ao seu manuseamento perigoso e não poder sair, teve se ser destruída com o tubo.

  • Documentos Anexos
    Material extraviado e danificado:
    1º Causas que motivaram o extravio ou danificação:
    Rebentamento de uma mina anti carro debaixo de uma viatura GMC, atirando estilhaços a mais de 100 metros, sobre outras viaturas
    2º Relação do material extraviado ou danificado:
    • 6 Calças de campanha – danificadas;
    • 4 Barretes de campanha – extraviados;
    • 3 Camisas de campanha – danificadas;
    • 2 Pares de botas de lona – danificados;
    • 2 Dólmen de campanha – danificados (pertencentes aos soldados nºs 82057465 Tomango Balde – 820232168 Mamadu Djaló – 82102264 Iero Jau – 82075068 Bobo Djaló – 82068468 Mumine Balde – 82061965 Adama Candé – 82023168 Ensa Mané)
    • Lança Granadas Foguete Modelo M2o 8,9 cm com o número 236304 – completamente danificado e partido em duas partes, uma delas com a granada de LGF metida na parte posterior. Esta parte teve de ser destruída por não oferecer condições de segurança no seu manuseamento – distribuída ao Soldado 82023168 Mané;
    • Espingarda automática G 3 – 7,62 mm nº 054255 – partida no delgado, falta do guarda mão, ponto de mira com cano partido e todo o conjunto empenado e a bandoleira estilhaçada – distribuída ao Soldado 82061965 Candé;
    • Espingarda automática G 3 – 7,62 mm nº 053946 – partida no delgado, o manobrador da culatra avariado, cano empenado e a bandoleira estilhaçada – distribuída ao Soldado 82075068 Jaló;
    • Espingarda automática G 3 – 7,62 mm nº 054319 – manobrador da culatra empenado – distribuída ao 1º Cabo 04241768 Malhada;
    • Espingarda automática G 3 – 7,62 mm nº 001963 – coronha partida e falta de madeira na mesma – distribuída ao Soldado 82061965 – Candé;
    • 2 Carregadores para G 3 – danificados – distribuídos ao Soldado 82061965 Candé e ao 1º Cabo Malhada;
    • 8 Carregadores para G 3 – extraviados, 4 porta carregadores m/964 – extraviados, 2 cinturões m/973 – extraviados, 2 cantis m/964 – extraviados – distribuídos ao Soldado 82057465 Tomango Balde e ao Soldado 82022168 Mamadu Semba Jaló);
    • 5 Granadas Lança Granadas Foguete anti carro de 8,9 e 4 Granadas explosivas de Morteiro 60 – com moças gerais e empenagem amolgada. Foram destruídas por não oferecer segurança o seu manuseamento.
    • Auto T.G 2,3 Tons – 17 GMC 6x6 mA/82 EVA MG-88-97:
    1 Porta traseira completa – destruída,
    1 Veio de transmissão de loco de apoio traseiro – destruído,
    1 Veio de transmissão diferencial intermédio – destruído,
    1 Tubo flexível travão de trás – destruído,
    1 Tubo metálico para travão – destruído,
    2 Rodas completas – destruídas,
    2 Pneus – destruídos,
    2 Câmaras-de-ar – destruídas,
    1 Caixa de carga – estilhaçada,
    1 Taipal traseiro – empenado e destruído,
    2 Bancos da caixa de carga – partidos,
    2 Taipais de madeira da caixa de cargo – partidos,
    1 Chave de fendas média – extraviado,
    1 Chave de velas com manípulo – extraviada,
    1 Alicate universal de 7” – extraviado, pertencente a colecção de ferramentas do Unimog 411 ME-49-86;
    • 1 Bolsa de enfermeiro m/964 – destruída;
    • 1 Seringa de vidro de 10 cc – destruída;
    • 2 Termómetros clínicos – destruídos;
    • 2º Pensos individuais – destruídos;
    • 1 Tesoura recta – extraviada;
    • 1 Secção de antenaMS-117 – danificada;
    • 1 Secção de antena MS-118 – danificada;
    • 1 Estaca GF-27 B – extraviada.

    Aditamento ao material extraviado e danificado:
    • Espingarda automática G 3 7,62 mm m/963 nº 003002
    Bandoleira partida,
    Coronha partida,
    Guarda-mão partido.
    Distribuída ao Soldado 82063067 Baldé.
    • Espingarda automática G 3 7,62 mm m/963 nº 053819
    Parafuso de fixação da bandoleira extraviado.
    Distribuída ao Soldado 82055466 Esuto Baldé.
    • Espingarda automática G 3 7,62 mm m/963 nº 054093
    Mola de fixação do dilagrama extraviado
    Distribuída ao Soldado 82064866 Jaló.
Um abraço Amigo,
Pacífico dos Reis
Cor Cav Ref (comandou a CCAÇ 5)
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 2 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5194: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(2): Mofunado ou não na Guiné de 68 (José Martins)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5194: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (2): Mofunado ou não na Guiné de 68

1. Segunda parte das Divagações de Reformado de autoria de Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado que comandou a CCAÇ 5, Gatos Pretos, Unidade a que pertenceu o nosso camarada José Martins, ex-Fur Mil, que nos enviou estes textos em 23 de Outubro de 2009.


2 - DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

Mofunado ou não na Guiné de 68
Por Pacífico dos Reis
Coronel de Cavalaria Reformado

Andando a navegar na televisão encontrei, num dos canais a que temos direito, umas entrevistas nas quais era perguntado qual o maior desejo que as pessoas tinham. No meio das respostas, apareceu um menino borbulhento que declarou, em tom enfático era que a Espanha tomasse conta de Portugal.
Nessa altura, D. Afonso Henriques ter-se-á revolvido no túmulo e os conjurados de 1640 terão tido uma apoplexia ectoplasmática. No entanto, tal desejo, terá feito a felicidade de alguns políticos que ainda se lembram da União Ibérica programática, conjuntamente com a extinção do Colégio Militar, Pupilos do Exército e Instituto de Odivelas. Vinha tudo no mesmo programa político, foi para dentro da gaveta, sempre pronto a sair e ser utilizado.

Na continuidade do divertimento de reformado, a TV brindou-nos com a actuação da equipa de todos nós. O resultado fez-me pensar na minha passagem pela Guiné em 68. Quando um Capitão chegava a uma Companhia de Naturais, como foi o meu caso, começava a ser escrutinado pelos militares. Estes desejavam saber se o capitão era mofunado (azarado) ou não. Se não fosse seguiam-no para todo o lado e tinham o dobro da vontade de vencer. Se fosse mofunado na primeira ocasião viravam-lhe as costas. Assim me parece ser o seleccionador nacional. O rapaz tem mesmo azar. Esperemos que arranjem alguém menos competente, mas com mais sorte.

Quando cheguei à minha Companhia, a CCaç 5 os “Gatos Pretos”, fui recebido por um Capitão que, posteriormente vim a saber, era considerado mofunado. Ele não tinha culpa pois tinha a Companhia toda desmembrada. Um Pelotão em Cabuca, outro no Cheche, outro em Canjadude e o Comando em Nova Lamego (Gabu). O Comandante somente geria a crise e via passar os dias. As ordens que levava era concentrar a Companhia em Canjadude. Assim se fez, tendo no início o apoio da CArt 2338, uma vez que se mantinham na mesma posição os Pelotões de Cabuca e do Cheche, até se fazer a evacuação de Madina.

As palavras e as recordações são como as cerejas. Saltam todas ligadas umas às outras.
Os dias passavam-se em Operações contínuas para preparação da Companhia para ficar a responder sozinha pela defesa do Corubal. Já se sentiam os fumos da evacuação de Madina do Boé.
Logo que tal se passasse, Canjadude ficaria na linha da frente dos ataques terroristas. Assim estavam sempre dois Pelotões fora do aquartelamento em Operações, a cobrir a área que tínhamos de controlar. No quartel fazíamos prelecções como forma de levantar o moral. No meio delas recordo-me de lhes frisar que nem G3 precisavam, “Nós agarramos os turras à mão”. Bravata pura, mas que iria resultar futuramente.

A primeira vez que recebi o rótulo de não mofunado está ligado directamente com a evacuação de Madina, que recentemente apareceu descrita na RTP. Tornava-se necessário levar para o Cheche, todos os anos, duas pirogas enormes, para fazer a cambança do Corubal e assim reabastecer Madina. Este ano, no entanto, as pirogas iriam servir para a evacuação e não para o reabastecimento. A nossa missão, da CCaç 5 com o apoio da CArt 2338, seria realizar a coluna para transportar as pirogas e reabastecimentos para o Cheche.

Na noite anterior informei o meu pessoal daquilo que se pretendia executar e qual o desenrolar da acção. Era minha intenção montar emboscadas, durante o deslocamento, na zona chamada de Minas Gerais onde geralmente os turras montavam minas e emboscadas para, no regresso do Cheche, flagelarem a coluna. Em boa hora se fez a tal acção, pois um bigrupo inimigo começou a plantar minas mesmo em frente de um dos nossos Pelotões emboscados e foi completamente varrido pelo fogo.

No regresso, mais descansados, ainda tivemos tempo de, utilizando os meios ao nosso alcance, salvar uma auto-metralhadora Fox do Esquadrão de Bafatá que estava abandonada inoperacional devido a rebentamento de uma mina. Foi muito gratificante para os “Gatos Pretos” saberem que, dois meses depois, a montada estava de novo a circular nas estradas da Guiné.
Claro que este ronco fez-me entrar no estatuto de não mafunado e a partir daí foi ouro sobre azul.

Já muito depois da evacuação da Madina, na qual os “Gatos Pretos” também foram parte integrante, recebemos a missão de patrulhar a margem direita do rio Corubal, pois havia uma noticia, pseudamente A-1 que referia a existência de grutas onde se escondiam os turras. Comecei a indagar, cautelosamente, junto da milícia e população onde estariam essas grutas tendo sempre como resposta que não havia grutas na nossa zona de acção. Bem, assim seria, mas noblesse oblige e lá fomos patrulhar a zona. Estávamos nós quase a chegar ao local onde supostamente estavam referenciadas as grutas. Quando se ouviu o barulho inconfundível dum heli.

Rapidamente montamos segurança e segundos depois aterrou o aparelho. Dele saíram o Comandante-chefe General Spínola e o seu Ajudante de Campo Capitão Bruno. Claro que, para o pessoal da Companhia, foi um revigorar anímico receber o Homem Grande no meio do mato. O pior veio a seguir quando o heli regressou a Bissau. Continuamos a Operação e, cerca de meia hora depois, demos de caras com uma força inimiga que, julgámos nós, vinha ver o que se passava alertada pelo barulho do helicóptero. Não sei como foi, mas subitamente só se ouviu um berro uníssono “Gato Preto agarra à mão!” e toda a Companhia galopou em direcção ao turras. Claro que estes só pararam quando se sentiram em segurança, tendo até largado armas e material na fuga talvez para irem mais leves. Foi neste momento que interiorizei que as palestras e instrução ministradas tinham resultado, como também era a afirmação definitiva que o comandante não era mofunado.

Para finalizar, e para apoiar o que antes está referido, não resisto a contar que num patrulhamento, ao deslocarmo-nos num trilho impossível de rodear, indo logo a seguir ao homem da frente, reparei que no chão estavam umas caixas de madeira abertas. Concentrando melhor a vista reparei que eram minas anti pessoal russas. Tinham sido retiradas do terreno por um bando de macacos cão. Ainda hoje agradeço aos benditos macacos o serviço de desminagem.
Nós, os Africanos, parafraseando um dito em voga em alguns painéis propagandísticos actuais, sofremos bastante, mas deixamos o coração e todos os nossos sentidos inseridos nas extensas plagas da Mãe Africa, naquelas terras imensas que nos dão tanta saudade e relembramos com amor.

(O texto também foi publicado na revista ASMIR de Mai/Jun 09)

Algures na Zona do Burmeleu (Sul de Canjadude)
General Spínola ser cumprimentado pelo Capitão Pacífico dos Reis
Foto José Martins


Cap Pacífico dos Reis, Fur Mil José Martins e Fur Mil Martins (CART 2338)

Canjadude – Material capturado ao IN
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Nota de CV:

Vd. o primeiro poste da série de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5189: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(1): Ida para a Guiné (José Martins)

domingo, 1 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5189: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (1): Ida para a Guiné

1. Mensagem de José Martins (1) (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2009:

Caros camaradas
Junto envio textos do "meu capitão" e amigo Coronel Reformado Pacífico dos Reis, que já estão publicados na revista da ASMIR.

O mesmo teve a gentileza de me enviar cópias da revista e, posteriormente, ter telefonado dando-me liberdade de os enviar para o blogue.

Já tem textos publicados:
P839 de 04 de Abril de 2006 - O valente Sargento Cipriano (2)
P4028 de 13 de Março de 2009 - Do Colégio Militar a Canjadude (3)

Segue, também, um curriculum, de minha responsabilidade, sobre a sua estadia em África - Guiné e Angola.

Um abraço e bom fim de semana.
José Martins


2. José Manuel Marques Pacífico dos Reis
Coronel de Cavalaria reformado.


No seu curriculum, e no que respeita à "Campanhas de África 1961-1974", consta:

Comando Territorial Independente da Guiné

Companhia de Caçadores n.º 5 – Recrutamento local

Capitão de Cavalaria, NM 50991111, foi aumentado ao efectivo da Companhia em 8 de Julho de 1968, assumindo o Comando da mesma.
Foi sob o seu Comando que se processou a transferência do Comando e os Serviços da Unidade para o então Destacamento de Canjadude, em Agosto de 1968,
Em 12 de Setembro de 1969, foi ferido em combate num perseguição ao IN junto de Uelingará na estrada Nova Lamego – Canjadude.
Foi abatido ao efectivo da Unidade em Setembro de 1969, por ter sido transferido para o Centro de Instrução Militar / CTIG.

Da História da Companhia de Caçadores n.º 5 – Os Gatos Pretos de Canjadude [compilação de José Martins]

Centro de Instrução Militar – Bolama

Comandante da Companhia de Instrução – 1.º Turno de 1970. A Escola de Recrutas foi realizada entre o dia 26 de Janeiro e 26 de Abril de 1970, data em que os Recrutas Juraram Bandeira, em Bissau. A instrução da Especialidade teve início em 27 de Abril de 1970, tendo terminado em 13 de Junho as Especialidades de Atiradores, Apontadores de Metralhadora e Transmissões e continuando os Corneteiros e Clarins até 27 de Junho, e os Escriturários até 04 de Julho de 1970.
Foi desta Escola de Recrutas e Instrução de Especialidades, que saíram os militares que, em conjunto com os Oficiais, Sargentos e Praças especialistas da Metrópole, constituíram as Companhias de Caçadores n.ºs 17, de etnia Balanta.

Do Relatório sobre a Instrução, elaborado pelo Capitão de Cavalaria Pacifico dos Reis, Comandante da Companhia de Instrução.


Região Militar de Angola

Comandante da Companhia de Policia Militar n.º 3524, mobilizada no Regimento de Lanceiros n.º 2, em Lisboa, tendo embarcado em Lisboa em 4 de Março de 1972. Permaneceu em Luanda até 1 de Maio de 1974, data em que efectuou a viagem de regresso.

Do volume 13 de OS ANOS DA GUERRA, edição do Correio da Manhã, 2009.

(José Martins)


3. DIVAGAÇÕES DE REFORMADO - 1
Por Pacífico dos Reis

Ultimamente julgo ter desempenhado com total zelo, competência e espírito de missão a minha função de reformado. Ir às compras a mando da mulher, tomar conta dos netos (não tanto como desejaria), tratar das colecções, almoçar com a tertúlia de amigos (extensão da má língua), desporto, rever documentos deixados pelos ancestrais, ler muito, ver televisão e remoer recordações.
Também se passeia, quando o tempo permite e a crise financeira permite.

O visionamento da televisão está a ser, ultimamente, extraordinariamente depressivo e deixa um travo de azia após os telejornais, bastante elucidativos da crise que grassa pelo país. Por isso fiz umas caminhadas até às farmácias para comprar Vingel (medicamento para a azia) tendo constatado que o mesmo se encontra esgotado. Com a breca! Querem ver que todo o país tem azia pelo mesmo motivo!
A secção de TV fornece-me, também, uma brilhante amostra de como os americanos prezam as suas Forças Armadas, em séries como “Mulheres de armas”. Tal e qual como cá. Cada vez mais, os políticos e outros tentam dissociá-las do povo Português.

Na secção de desporto já só faço marchas e extensões. Enquanto marcho vou-me entretendo a ver os papéis de publicidade que os imigrantes distribuem pelos limpa-vidros dos carros. Elucidativos! No ano passado viam-se anúncios a moradias, restaurantes, centros de lazer, etc. Agora vejo propaganda a lojas de penhores e empresas de empréstimos. Teremos que estar preocupados com a nossa Pensão?

Na secção de leitura dediquei-me a ler dois livros que me agradaram. “Tempos africanos naquelas longas horas em sete mandamentos” de Manuel Barão da Cunha e “A filha do capitão” de José Rodrigues dos Santos. Tratam de duas guerras e de duas visões. Uma recente com um escritor experimentado na guerra ultramarina e outra antiga sendo o seu escritor ausente temporariamente dela, mas com cuidadosa vivência de muitos documentos.

Foram estes livros que me fizeram remoer recordações e tentar passar para o papel algumas situações do dia-a-dia de uma epopeia ultramarina recente, para que, futuramente, alguém se possa apoiar nestes despretensiosos manuscritos e pôr mais uma pedra na construção da verdade histórica sobre a guerra do ultramar, com casos e soluções diferentes em cada um dos teatros de guerra.

Quando da minha comissão na Guiné, em 68, fui mobilizado em rendição individual para comandar uma Companhia de Cavalaria (CCav), pelo que passei pelo Depósito de Adidos, tendo recebido Guia de Marcha para embarcar no “Ana Mafalda” no cais de Alcântara.
Na data marcada, fardado a rigor, apresentei-me no cais e comecei a procurar o navio. Corri todo o cais e nada. Fiquei a remoer, pois tinha vindo em vão, pensando que o navio já tinha zarpado. Dirigi-me a um carregador do cais e solicitei-lhe informação sobre o paradeiro do “Ana Mafalda”. Está ali, disse ele, apontando para um hiato entre diversos navios acostados. Aproximei-me da borda do cais e qual não é o meu espanto quando velo um barquinho lá em baixo. A maré vazia era a causadora do truque de prestidigitação que fizera desaparecer o navio cufista.

Apesar do tamanho do navio, a viagem foi óptima quanto a condições atmosféricas. Os alojamentos eram modestos para oficiais e sargentos e deficientíssimos para as praças que tinham de partilhar as casernas improvisadas nos porões. E a situação foi-se agravando à medida que nos aproximávamos dos trópicos. Os nosso militares suportavam com estoicismo os dias de viagem no meio do cheiro nauseabundo das convulsões gástricas.

A chegada ao cais de Pijiguiti libertou-nos do cheiro do navio mas atirou connosco para um bafo de calor e um cheiro entediante a dejectos de morcego. É um cheiro que não sai das narinas. O cheiro de morcego.

Depois de tratarmos do alojamento na messe, todos nós, oficiais que tinham embarcado como rendições individuais, fizemos a nossa apresentação no Comando Militar para receber as guias de marcha para a nossa futura vida durante dois anos. Chegámos, cinco ou seis capitães maçaricos, com grandes ideais e vontade de cumprir com total zelo e competência todas as missões que nos fossem confiadas. Depois do Comandante Militar desfiar um rosário de chavões destinados, pensava ele, a elevar o nosso moral possivelmente afectado pela mudança de situação geográfica, passou à fase das nossas colocações. Claro que a minha colocação já tinha sido determinada na Metrópole (pensava eu) e estava descansado pois ia comandar a minha gente, uma CCav. Quando chegou a minha vez o homem grande olhou fixamente para as enormes espadas poisadas sobre a minha boina e sentenciou:

- Olhe senhor Capitão, como é da mesma arma do senhor Comandante-chefe (Gen Spínola), vai comandar a CCaç 5 que é uma Companhia Nativa que tem andado a fugir aos turras. Neste instante qualquer coisa caiu no chão, ainda estou para saber o quê!

E foi assim que, de Comandante de uma Companhia de Cavalaria passei a comandar uma Companhia de Caçadores Nativos.

(O texto também foi publicado na revista ASMIR de Abr/Mai 09)


Nota retirada da página da Asmir:

ASMIR - O que é?
Trata-se de uma Associação sem carácter político ou religioso onde têm lugar todos os militares na reserva e reforma, desde que respeitem os princípios éticos que caracterizam a Instituição Militar.
A nossa Associação é reconhecida e mantém um relacionamento de colaboração e respeito mútuo com as Chefias Militares e com o Poder Político. O reconhecimento e a boa ligação existentes não põem em causa nem a sua independência nem o seu rigoroso apartidarismo político.

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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 30 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5184: Controvérsias (33): Carta Aberta ao Senhor Ministro da Defesa Nacional (José Martins)

(2) - Vd. poste de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P839: O valente Sargento Enfermeiro Cipriano, da CCAÇ 5, morto em Nova Lamego (José Martins)

(3) - Vd. poste de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4028: FAP (17): Do Colégio Militar a Canjadude: O meu amigo Tartaruga, o João Arantes e Oliveira (Pacífico dos Reis)