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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25164: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (25): A mercearia e a taberna da aldeia (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)



O tempo em que se fumava, e a "arraia-miúda" os "três vintês" (passe a publicidade, que agora é proibida...mas a marac já não exite), um cigarro baratucho, sem filtro,  que ia bem com um "neguinhos" (pequeno copo de tinto,  usado nas tabernas no Norte, vocábulo que ue ainda não foi grafado pelos nossos dicionaristas)... (Cortesia do Joaquim Costa.)

 
Coisas & loisas do nosso tempo de meninos >   A mercearia e taberna da aldeia

por JoaquimCosta  (*)


Ainda o sol se escondia atrás do monte de Nossa Senhora da Assunção, já o Zé tirava a grande tranca da porta da mercearia junto à qual já um grupo de homens,  com o cigarro "três vintes" a queimar-lhes os dedos,  o esperavam para o mata-bicho da manhã. Dois copinhos de "cachaça".

Uns de bicicleta e a maioria a pé lá abalavam para mais uma jornada de trabalho, vomitando fogo dada a pureza da aguardente branca das uvas verdes.

Da minha memória de infância tenho bem viva a importância da mercearia da aldeia, que rivalizava com a da igreja. Antes da missa, um "neguinhos" para apaziguar a tosse e depois da missa para encontrar o caminho para casa.

Eram as duas instituições mais importantes da aldeia: uma alimentava a alma e a outra o corpo (A César o que é de César a Deus o que é de Deus!). Razão pela qual o padre e o dono da mercearia eram as pessoas mais respeitadas na terra. Mais do que a do próprio regedor!

Havia mesmo uma grande cumplicidade entre estas duas instituições ao ponto de a festa da Páscoa entrar na taberna dando a cruz a beijar aos mais renitentes e o dono da mercearia ser sempre convidado para mordomo da festa em honra do santo padroeiro da terra.

Ainda muito novo me dei conta da miséria que reinava na maioria das famílias, assistindo com um nó na garganta às lágrimas das mulheres suplicando ao Zé fiado para um naco de pão, um naco de bacalhau e uma mão de arroz para o almoço que levavam aos maridos que trabalhavam numa pedreira de extração de granito. O Zé,  sempre dizendo que não, dada a dívida acumulada, mas sempre cedendo.

Tivesse ele recebido todas as dívidas que constavam no livro dos "assentos" e hoje eu seria um homem rico.

Durante a tarde a mercearia parecia um galinheiro (dizia o Zé), dado a algazarra que faziam as mulheres.

Para além do trabalho,  havia muitos momentos de diversão com as conversas sem filtro de todo aquele "mulherio" ali reunido, em que muitas vinham comprar o que não precisavam só para participarem naquele extraordinário "fórum".

A partir das 19horas chegavam exaustos os homens e aí confraternizavam, jogando as cartas (e bebendo), jogando dominó ( e bebendo),  cantando ao desafia (e bebendo), e às vezes zangando-se, lutando e depois fazendo as pazes bebendo. Regressavam a casa com um (ou muitos) grãos na asa, mas recompostos de mais um dia de trabalho. Este "fórum" era muito mais difícil de controlar...

Aos domingos, depois da missa das sete, aqui se juntavam todos os homens da aldeia dispersando-se pelas diferentes tarefas: 

  • uns faziam fila junto do engraxador para limpar os sapatos de domingo; 
  • outros faziam fila no barbeiro aparando o cabelo e o bigode; 
  • outros participavam na reunião do clube da terra – os mais jovens carregavam os seis paus e abalavam para o campo da Bela (terreno baldio) para o treino da equipa da aldeia; 
  • outros jogavam a malha e às vezes ao galo com setas de pressão de ar;
  • outros participavam na reunião semanal da "Caixa dos vinte amigos" (no fundo era uma réplica de um banco onde cada um pagava uma quota mensal, e onde os mais abastados depositavam determinadas quantias pelo qual recebiam juros; em função do valor em caixa faziam-se empréstimos a juros negociados; na época ainda a D. Branca não tinha nascido!)

Era aqui, na mercearia/taberna onde tudo acontecia. Era a vida da Aldeia.

Aqui não havia lugar para advogados e juízos, todas as desavenças eram resolvidas com muita gritaria, zaragatas – larga-me que eu vou-me a ele!  – e decididas em última instância pelo dona da mercearia ou pelo "supremo", o padre.

Numa das desavenças mal resolvidas, um habitante frequentador assíduo da taberna, consumidor de "neguinhos" (pequenos copos de vinho), enquanto todos bebiam em canecas de porcelana com uma cinta metálica, resolveu ir à vila ouvir a opinião de um entendido sobre leis. 

A consulta teve lugar num café onde não se vendia vinho pelo que (em Roma sê romano), pediu café. Por cada cigarro "três vintes",  pedia um café, tal como  se fossem os "neguinhos" da tasca. Bebeu tantos cafés quantos os cigarros do maço. Obviamente o organismo rejeitou o produto que desconhecia, pelo que teve de ser levado de urgência ao hospital para uma lavagem ao estômago. 

Regressou na ambulância tendo indicado a tasca como sua residência, e convidando no fim os bombeiros para beberem uns "neguinhos" consigo...


(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem mais de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) , e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar  (EG nº;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão , vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;

(vii) tem página no Facebook.


(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

Quim, escangalhei-me a rir com essa  cena dos "três vintes", dos cafés e dos "neguinhos"... É humor de cinco estrelas!... Tens graça, sem achincalhars ninguém, muito menos a gente trabalhador e humilde da tua terra..  

E, olha, os putos de etnografias, sociologias, antropologias, etc.,  bem podem aprender contigo a fazer "observação-participante"!... É uma peça de antologia: partindo do prncípio que tenho "carta branca para, de vez em quando,  te trazer "ao colo" até ao blogue, achei que esta pequena pérola não era para os "porcos", fica aqui também registada na série onde já tens colaborado, "Coisas & loisas do nosso tempo de meninis e moços" (**)... 

Quim (agora avô babado e "feicebuqueiro" de sucesso...),  há coisas que não voltam mais!... Cheiros, sabores, odores, lugares, personagens, palavras, expressões, cenas pícaras como estas... E que têm de ficar registadas para os nossos netos... 

Uma delas é essa "instância de socialização" que era a venda, nas nossas aldeias, de Norte a Sul, misto de taberna e de mercearia e nalguns casos "posto dos correios"), com espaços segregados conforme o sexo... 

A mim a tasca cheira-me sempre a sarro, a serradura,a lexívia e a fritos..Que Deus e os santos não te tirem a inspiração, a motivação e o talento para contar estas micro-histórias!... O "nosso alfero Cabral" vai também escangalhar-se a rir, lá na sua "suite" celestial...  Boa terça feira gorda, meu amigo e camarada!

_____________

Notas do editor:

(*) Reproduzido com a devida vénia da página do Facebook de Joaquim Costa, 3 de janeiro de 2024, 11.57  > Memórias "boas" da minha infància >  A mercearia /taberna

domingo, 17 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24968: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (24): O meu natal minhoto (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


As rabanadas. Foto: LG (2023)


É NATAL NO MINHO!

por Joaquim Costa


É o pinheiro “roubado”,
Os penedos tosquiados,
O azevinho sagrado
Da linda moura encantada.

É bonecada que renasce,
O musgo que lhe dá chão,
A manjedoura que se aquece,
É o presépio que nasce.

É as sopas que o vinho aquece,
É a doçura sem doces,
Mexidos com padre nossos,
É o milagre que o pão tece.

É o cheiro que a canela enaltece,
O milagre do esparguete em doce,
Rabanadas que embebedam
E vinho fino que enobrece.

É da salgadeira p’ra devinha
O porco que alimentei,
Bacalhau do miudinho,
Mais espinha que lombinho.

É noite das lamparinas
Nunca mais é amanhã,
Correndo para a chaminé,
Chocolate e tangerinas.

É o rapa, depois a missa,
Para os pezinhos beijar
Beija uma, beija duas,
Beija até o galo cantar.

É a roupa velha quentinha,.
Como eu gosto, meu Deus!
Pena que seja a “girândola”
A anunciar... o ADEUS.

Joaquim Costa

Com votos de um santo e feliz Natal DE 2023 para todos.

_________________

Nota do editor:

Ultimo poste da série > 30 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22499: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XV: Férias em julho/agosto de 1973... e o teste da cerveja


Foto nº 1 > Guiné > Meados de 1973 > Não é uma  Dornier, uma DO –27.  mas um Cessna CR-GBE... Foi numa aeronave destas que o Joaquim Costa deixou Aldeia Formosa, "com a adrenalina (boa) nos limites a caminho de férias"...  
Mas esta foto não é dele, nem dos seus companheiros de viagem que alugaram uma avioneta civil para chegar a Bissau a tempo de apanharem o avião da TAP e poderem gozar a tão merecida de licença de férias na Metrópole. 

Esta foto é do  Luís Nascimento, aqui  o mais alto, o segundo a contar da esquerda, membro da nossa Tabanca, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533 (Canjambari, 1969/71).A avioneta era TAGP - Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa (voos internos), mas cada um dos 3 viajantes transportam já um saco de viajem de mão, oferta da TAP. No núcleo museológico da Tabanca dos Melros, pode ver-se um exemplar deste saco, oferta do nosso camarada Carlos Silva.

Foto (e legenda) : © Luís Nascimento (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > c. 1972/4 > Imagem do Cessna, vermelho, pilotado pelo Comandante Pombo, dos Transportes Aéreos Civis da Guiné (TAGP) em que o nosso camarada Álvaro Basto fez várias viagens entre o Xitole e Bissau, nos anos da sua comissão (1972/74). Se calhar foi na mesma aeronave ecom o mesmo mítico piloto, que o Joaquim Costa viajou até Bissau para apanhar o avião da TAP.

Foto (e legenda): © Álvaro Basto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)

Parte XV - Férias... e o teste da cerveja


Passado pouco tempo depois de todos estes acontecimentos extraordinários (a entrada em Nhacobá, a morte de um soldado e o ferimento grave de um camarada alferes, queda de Guileje, etc, …) chegou a minha vez de gozar as tão esperadas férias.

No dia anterior à partida para Bissau, com a ansiedade nos limites, procuro a minha “mala de cartão”, que trouxe de casa, para analisar o estado da minha roupa de civil. Ao retirá-la debaixo da cama de ferro, fico na mão apenas com a pega. Reparo que a mala praticamente desapareceu, assim como a roupa e outros haveres. Estava tudo podre da humidade. Dado o pouco tempo que estaria em Bissau já tinha assumido que teria de viajar com a roupa militar. Felizmente houve tempo e lá consegui comprar umas calças e uma camisa.

A pressa de partir era muita, pelo que não dava para esperar pela coluna Aldeia Formosa - Buba, e o avião da TAP tinha dia e hora marcada, pelo que, com colegas de outras companhias, “fizemos uma perninha” e alugamos uma avioneta civil, dos TAGP,  para nos levar de Aldeia Formosa a Bissau.

Viagem inesquecível, dada a loucura do piloto tudo fazendo para nos colocar em pânico com manobras estilo campeonato mundial da “Red Bull Air Race”, argumentando, contudo, que tais manobras, visavam apenas evitar veleidades ao IN em nos atingir com a sua nova arma: o míssel terra-ar Strela. (**)



Já dentro do avião da TAP constatei que afinal havia hospedeiras (bem giras e simpáticas...) e tratamento VIP com direito a uma malinha muito “catita”  (, parecida com a da foto acima, cortesia do Núcleo Muselógico da Tabanca dos Melros; foto: LG) e whisky de borla.

A chegada ao Porto, já que em Lisboa apanhei logo avião para a Invicta (sempre ouvi dizer que o melhor de Lisboa era a autoestrada para o Porto, embora para mim continuem a ser os pasteis de Belém), foi uma sensação que jamais conseguirei descrever: poucas horas depois de sair daquele inferno encontro um país sereno, despreocupado, falando de futebol, jornais sem uma única referência ao que se estava a passar em África.

Mergulhei nesta nova realidade, aproveitando ao máximo estes 30 dias, tropeçando aqui e ali no processo de reaprender a viver na dita civilização.

Na primeira noite em casa, depois de um dia bem passado com amigos, deitei-me cedo com a sensação de me deitar numa nuvem protegido por anjos celestiais... e sem rede mosquiteira: - Dorme, “meu anjo”, que hoje com toda a certeza não haverá flagelação nem ataque ao arame e nós estamos aqui para te proteger…

À meia noite, já em sono profundo, ouço rebentamentos muito perto, dou um salto na cama e estilhaço o candeeiro de mesinha de cabeceira à procura da minha G3. Havia festa numa aldeia perto com o tradicional fogo de artifício à meia noite. A minha mãe vem ver o que se passava, muito preocupada, enquanto eu já refeito, tentava acalmá-la inventando uma desculpa esfarrapada para os estilhaços do candeeiro no chão. Não obstante aquele aparato, foi uma sensação tão agradável saber que afinal estava em casa, em segurança, com a proteção dos meus anjos celestiais. Dormi como um justo.

No Minho, durante o Verão, todos os fins de semana há festa, pelo que lá me fui adaptando... tendo partido só mais um candeeiro...

Fui reaprendendo a viver na dita civilização e a matar saudades da maravilhosa gastronomia Minhota (fazendo esquecer o arroz com estilhaços e as rações de combate) : Bom cozido à portuguesa (feito pela minha santa mãe); boas feijoadas (na tasca da Sara Barracoa,  em Famalicão); uns rojões à minhota (no Tanoeiro, em Famalição); bom cabrito à Serra D’Arga e o “Pica no chão” (em Viana); uns magníficos rojões com arroz de sarrabulho (na magnífica Vila mais antiga de Portugal - Ponte de Lima); um Polvo assado na Brasa (na Bagoeira, em Barcelos). intercalado com um bom bife com batas fritas onde calhava...

A praia: o picadeiro da Póvoa de Varzim, cheio de emigrantes falando francês (mas os palavrões eram em português!), onde visitei, a seu pedido, a casa do nosso colega e amigo alferes de artilharia (o homem do fogo amigo) levando-lhe um “miminho” da mamã.

Ainda deu tempo para uma incursão pelo alto Minho: Viana, a bela Caminha, Cerveira (terra adotiva do escultor José Rodrigues e um dos fundadores da Biemal em 1978), e a maravilhosa praia do Moledo (muito frequentada pelas elites, como Vitorino de Almeida, o grande percursor dos festivais de verão, como o mítico festival de Vilar de Mouros e mais recentemente de Durão Barroso, ainda à procura, com uma lupa, das armas de destruição maciça no Iraque).

Esta incursão pelo Alto Minho terminou (aliás, era o objetivo principal), num baile de garagem junto à praia do Cabedelo , em Darque, Viana do Castelo, local onde nasceu (em 1974) a discoteca mais badalada no país e em Espanha - a mítica Luziamar.

Depois do regresso da Guiné fiz de Viana a minha segunda casa (comprando um andar no edifício mais mediático do país – o Prédio do Coutinho), onde a ida ao Luziamar era obrigatório. Esta mítica discoteca, hoje em ruínas, faz parte das minhas boas memórias.

Umas incursões à Invicta: rever amigos nos míticos cafés da cidade (o Estrela, o Piolho, o Magestic, o Ceuta…), cinema (relembrando as sessões duplas do tempo de estudante - uma “Coboyada” para o “macho” e um romance para a “garína”), um magnifico fino, com um pratinho de bolachas salgadas na antiga fábrica da cerveja e no final do dia umas tripas no restaurante Abadia ou na Casa Aleixo (Ramiro, o seu último proprietário, foi do meu pelotão nas Caldas da Rainha, fazendo também o caminho das pedras da Guiné, bem retratado na sua correspondência de guerra exposta nas paredes do restaurante), uma referência da cidade que não resistiu à pandemia. Felizmente o Abadia ainda existe e recomenda-se.

E, ainda, assistir a um jogo de futebol no estádio das Antas, descarregando todo o stress de guerra.

O meu grande problema surgia sempre que pedia uma cerveja, a primeira porção do líquido era lançado ao chão (gesto “pavloviano”) para certificar se esta estava em bom estado (obrigatório na Guiné este teste,  dado que grande parte das cervejas chegavam já estragadas - se fizesse espuma estava boa,  se não fizesse estava estragada). Lá me desculpava ao proprietário com a chegada recente da Guiné, que nunca convenci. Embora gostasse de beber cerveja da garrafa, comecei a intercalar com finos para evitar problemas.

Quando estava já a habituar-me a esta nova vida (já não me perturbava os fogos de artifício e já não deitava cerveja para o chão, já não assustava os meus amigos com saídas inopinadas da mesa de um café após um foguete), chegou a hora do regresso à Guiné.

O meu conselho aos camaradas que estavam a preparar-se para também partirem de férias era: não façam isso! É muito doloroso, mesmo, mesmo muito doloroso o regresso, sabendo o que nos espera, muito diferente da primeira partida. Sem sucesso, claro!

Continua...
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22482: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIV: " Bora lá... para a nova casa, Nhacobá" (Op Balanço Final)

(**) Em mail que nos enviou ontem, às 16h47, esclarecendo algumas dúvidas do nosso editor, o Joaquim Costa escreveu:

"Luís, obrigado pela ajuda. Tens toda a razão. Obviamente a avioneta era dos TAGP e só podia ser um Cessna.

"Quanto ao piloto sei que era alguém muito conhecido na altura, com uma grande pedrada, pelo que, de acordo com o que me dizes só pode ser o Pombo.

"A foto da malinha claro que não é a da época mas foi a que encontrei mais aproximada.

"Quanto às minhas férias foram em 1973, no mês de Julho/Agosto (?). 

"(,,,) Uma vez mais obrigado pelo toque profissional que sempre dás aos meus postes.

"Um grande abraço e até ao dia 11 de Setembro, na Tabanca dos Melros." (...)

domingo, 29 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22495: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (30): Bacalhau com couves no forno, à moda da minha avó Maria, que era do Minho (Valdemar Queiroz)

Foto: Cortesia da página do Facebook da Academia do Bacalhau de L.I.


1. Já o verão vai a caminho do outono e, depois, do inverno... Aliás, há um aforismo (da metereologia popular) que diz, "Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno",,,

Tenho pena de quem não fez praia, por mil e uma razões, se calhar a primeira das quais é a constatação de que o tempo também já não é o que era... Ora o céu está nublado,  ora a nortada corta a respiração, ora o banheiro não mandou ligar o aquecimento central,  ora as marés roubaram a areia à praia, ora a senhora Covid-19 é que passou a ditar a moda...

Confesso que este ano não fiz praia. Já não o fiz, o ano passado. "Fazer praia",  para mim significava, desde há uns anos largos, fazer umas boas caminhadas, ao longo do areal, na maré vazia, de preferência de manhã, em praias com rocha e muito iodo... Por outras palavras, apanhar logo uma bebedeira matinal de azul, sol, sal e iodo...no "meu querido mês de agosto"... Que não o é mais...

Por agora, limito-me a ficar na esplanada,à beira-margem,  a apanhar sol,  a ler ou a escrever , a blogar,  a ver o mundo s passar a passar e, de tempos a tempos, comer um choquinho frito, à hora do pôr do sol. Há prazeres na vida cujas memórias emocionais a gente vai  levar para a outra vida... Se nos deixarem, claro, passá-las, lá na alfândega que há entre a terra e o céu... Duvido, no entanto,  que deixem passar o nosso contrabando...

Para já não sei quando (nem muito menos se...) posso voltar às minhas caminhadas da Praia da Areia Branca até ao Paimogo, passando pelo Vale de Frades e o Caniçal... E  a "cartografar" as rochas, com  a máquina fotográfica em punho ou a tiracolo... Lamentavelmente, já nem fotografia faço... 

Enfim, espero que o meu ortopedista, esse, sim,  faça um milagre lá para outubro ou novembro... É bom, amigos e camaradas,  acreditar em milagres, mesmo quando se  é um homem de pouca fé...

2. Mas já que falamos do verão fugidio e incerto de 2021, do verão do nosso descontentamento, é de perguntar: e as nossas comidinhas, amigos e camaradas ? 

Desde a primavera que não publicamos um poste da série " No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande"... O último foi o nº 29, com data de 22 de abril de 2021 (*).

A "chef" Alice, cá pelos meus lados, no meu "restaurante favorito", continua a fazer coisas boas, e às vezes muito boas: por exemplo, um arrozinho de lingueirão, há dias,  ou um xarém de ameijoas (, que aqui não há conquilhas), prometido para a próxima semana, a par de um espadarte grelhadinho... Coisas que não tenho publicado para que não me acusem de "favorecimento pessoal" e de "concorrência desleal"... E falo dela, da "chef" Alice, porque eu nem para ajudante  sirvo: sei abrir umas ostras, cortar ao meio um lavagante ou preparar uma sapateira... Ah!, sei abrir também latas; de atum, de feijão, de grão de bico...

Mas, como os nossos vossos vagomestres andam pouco criativos ou falhos de iniciativa, vou ter que arrancar com o material que há... E este é do bom, é do nosso Valdemar Queiroz que, pese embora a sua costela minhota, ainda está de longe nos poder e querer  revelar todos os seus secretos dotes culinários...


3. Escreveu o Valdemar Queiroz, em comentário ao poste P22494 (**);


João Crisóstomo, peço desculpa de, num poste atrasado, ter chamado "Encontros do Bacalhau" à ilustre e internacionalmente famosa "Academia do Bacalhau".

Não há dúvida, o bacalhau faz parte do ADN dos portugueses.

Teria sido o meu conterrâneo navegador-armador João Álvares Fagundes (c.1460-1522), a quem se deve o reconhecimento de parte das costas do nordeste americano, quem começou a comercializar o bacalhau que, depois de salgado e seco, servia de alimento nas grandes viagens dos Descobrimentos e nos períodos de abstinência / jejum de comer carne.

Depois, foi o nunca mais parar, confecionado de 1001 maneiras, e que toda a gente gosta.

Nas minhas várias idas aos Países Baixos, à casa do meu filho, habituei os brabantinos da família (Brabante, Província Neerlandesa fronteira com a Bélgica) a comer bacalhau, que eles chamam "kabeljauw" (lê-se: "cabaliau"), na ceia de Natal e agora atiram-se ao bacalhau para assar na brasa de que também gostam.

Só para dar apetite, vai uma receita que a minha avó Maria (***) fazia, às vezes, em dias de fornada de pão:

Ingredientes:

Bacalhau demolhado
Folhas de couve
Linha grossa
Batatas
Cebola
Azeite
Broa de milho

Modo de fazer:

(i) depois do bacalhau demolhado, passar folhas de couve por água fria; 

(ii) descascar e cozer as batatas;

(iii)  a postas de bacalhau são envolvidas na couve e seguradas com linha grossa para ir ao forno;

(iv) enquanto estão no forno, estando as batatas cozidas, cortam-se às rodelas e alouram-se em azeite na sertã;

(v) as postas são retiradas do forno quando as folhas de couve secarem completamente;

(vi) retira-se a linha, colocam-se as postas numa travessa juntamente com as rodelas das batatas fritas;

(vii) e para finalizar põe-se por cima cebola às rodelas finas e rega-se com bastante azeite;

(viii) acompanha-se com broa de milho... e tinto ou branco do melhor!

E depois vai um 'Vai Acima, Vai Abaixo, Vai a Cima e Bota Abaixo', que deste já não há mais.

Valdemar Queiroz

PS - A receita do bacalhau não era propriamente da minha avó Maria, em várias casas também era assim feito em dias de 'cozedura' da broa de milho. A minha mãe, em Lisboa, fazia no forno a gás. No forno a lenha, sobrava calor para as couves com 'cosedura' em volta do bacalhau a assar.

Mas, como andas de braço dado com uma afamada cozinheira de estrelas Michelin, podes chamar, será a 1002, "Bacalhau da Queiroza à moda da Alice".


4. Eu prometi publicar-lhe a receita, em honra dele, que é um homem "sozinho em casa, resistente e resiliente, que brinca com a sua DPOC, quando ela deixa".... E aqui vai, mesmo não tendo nenhuma foto do petisco (, publico a imagem do emblema da Academia do Bacalhau de Long Island, Nova Iorque), nem sabendo como a avó Maria chamava a este prato, lá do seu Minho, região donde se diz que "não há receita má... nem fome boa":

"Bravo, Valdemar, só preciso de arranjar uma foto à maneira, depois publico a receita da avó Maria na nossa série do "Comes & Bebes"... Este saber gastronómico lusófono (mais do que lusitano), que passa de geração em geração, não pode perder-se!... Bolas, e ainda falta tanto tempo para o Natal!... Luis"

PS - Recordo que a avó Maria era de Afife, Viana do Castelo, onde o Valdemar viveu até aos 9 anos. (***)
_____________

Notas do editor:

(*) Últimas sugestões;

22 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22125: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (29): E por favor nem me enganem, são favas suadas, não são ervilhas, muito menos escalfadas... (Luís Graça)

15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22105: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (28): sável frito com açorda de ovas, à moda da "chef" Alice, inspirando-se na gastronomia de Vila Franca de Xira

10 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22091: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (26): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte III: cozido à portuguesa, para despedida do inverno; frutos do mar, como saudação à primavera

28 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21954: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (23): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte II: Canja de garoupa e pimentos estufados em vinho do Porto

11 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21887: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (19): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte I: ainda não é verão (, mas um dia destes há de ser!), e já me está a apetecer uma saladinha de queixo fresco e uma paelha, com um bom branquinho...

(**) Vd. poste de 28 de agosto de  2021 > Guiné 61/74 - P22494: Tabanca da Diáspora Lusófona (17): A(s) nossa(s) Academia(s) do Bacalhau: Long Island, Nova Iorque: "Gavião do penacho, de bico p'ra cima, de bico p'ra baixo, vai acima, vai abaixo"... (João Crisóstomo)

(***)  Vd. postes de;


27 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21203: Efemérides (331): Os 100 anos de Amália, "o povo que lavas no rio" e Afife (onde vivi até aos 9 anos) (Valdemar Queiroz)

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22070: Os nossos seres, saberes e lazeres (445): A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave, Minho... Uma aventura, até Ermidas do Sado, Santiago do Cacém, Alentejo ! (Joaquim Costa)


Linha do Corgo > Comboio a vapor. Fomte:cortesia de Vivadouro


1. Mensg
em do Joaquim Costa [, natural de V. N. Famalicão, vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros: é engenheiro técnico reformado; foi Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)]

Date: domingo, 4/04/2021 à(s) 01:28
Subject: Os nossos  Seres, Saberes e Lazeres

Meu caro Luís

O post do colega Joaquim Ascensão sobre a sua atribulada viagem de comboio desde a sua terrinha (Leandro), muito próximo da minha (Calendário – V.N. de Famalicão), até ao "odiado" CISMI em Tavira (*), fez-me suar aos ouvidos o distante e saudoso som dos nossos comboios a vapor.

Dando seguimento às minhas memórias de Paz, que podes enquadrar nos nossos seres, saberes e lazeres, envio-te a "crónica" da minha primeira viagem de comboio para alem do Ave, deixando ao teu critério a oportunidade e interesse da sua publicação.

A minha memória está gasta mas continuam intactos, os "frames", que guardam as minhas viagens de comboio:

Fazer a viagem de Famalicão à Póvoa do Varzim, para ir à praia, no comboio a vapor em linha estreita (infelizmente encerrada em 1995 dando lugar a uma ciclovia), onde partíamos de camisa branca e chegavamos de camisa preta;

A viagem do Porto a Chaves, nas magníficas linhas do Douro e Corgo (esta, infelizmente desativada em 2'10, dando lugar, em partes do seu percurso, a uma ciclovia), aqui já contada (P21893), em que a maioria dos passageiros eram cabras;

As viagens diárias para o Porto (quando freqientava ISEP. Instituto Superior e Engenharia do Porto) utilizando a linha do Norte e muitas vezes a linha estreia até à estação da Trindade (infelizmente já desativada);

A viagem para a tropa (Caldas da Rainha – aqui também já contada - P21844), na linda linha do oeste, com o meu saco carregado com 4 "granadas" de Alvarinho;

As viagens de Famalicão até Tavira, Estremoz e Portalegre, com os comboios cheios de tropa que mais parecia o prelúdio da 2ª Guerra Mundial;

A maravilhosa e ternurenta viagem, na companhia do meu saudoso Pai, de Barrimau – V.N. de Famalicão, até Ermidas Sado, em visita ao meu irmão Manuel, ele também um ex-combatente da Guiné.

Como já referi na minha apresentação ao blogue (P21827), o meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), fez parte dum contingente que foi mobilizado "rápido e em força" para a Guiné logo a seguir aos ataques do PAIGC, em 1963, a Tite, Buba e Fulacunda, ou mesmo antes com os ataques da FLING a Susana e Varela em 1962.

 A sua guerra acabou por ser outra numa luta entre a vida e a morte com uma pneumonia que o apanhou logo à sua chegada e o atirou para uma cama do hospital de Bissau. Passado pouco tempo regressou a casa, ainda em convalescença, com passagem à reserva por invalidez

Infelizmente não tenho dados sobre o seu batalhão, mas seria muito reconfortante encontrar algum camarada, que acompanhe o blogue, do mesmo contingente. Apenas sei que o seu batalhão todos os anos fazia a sua reunião anual, na modalidade de piquenique, na região de Viana do Castelo e/ou Braga.

Todos nós, por muito que o neguemos, já olhamos mais para o retrovisor do que para a frente de estrada das nossas vidas. Pelo que é com muita nostalgia e tristeza que vejo grande parte da nossa rede de linha férrea e ser substituída por ciclovias, assim como míticos cafés das nossas cidades, que eram muito mais que a nossa segunda casa, nos tempos de estudante, terem dado lugar a bancos nos anos 80 e a lojas dos chineses nos dias de hoje.

Conto esta história da minha primeira viagem de comboio, para além do Ave, como singela homenagem ao meu saudoso pai e irmão.

Um abraço amigo e grato pela casa que construíste há dezassete anos e que abriga toda esta família do Blogue.

Joaquim Costa

______________


A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave

por Joaquim Costa

No ano da Graça de 1964, após uma mobilização atribulada para a Guiné (onde chegou com uma grande pneumonia, tendo quase de seguida regressado a Portugal, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau) o meu irmão Manuel empregou-se na CP e foi colocado em Ermidas Sado, Santiago do Cacém,  no Alentejo. 

Era uma altura em que os funcionários públicos tinham um ordenado de miséria mas algumas regalias. No caso o próprio viajava de comboio para qualquer ponto do país gratuitamente e os familiares tinham direito a 3 viagens por ano.

Para além de duas viagens gastas na ida à praia na Póvoa do Varzim, depois de muitas reuniões familiares, lá se chegou a consenso sobre o destino a dar à terceira viagem. Tendo em conta todos os afazeres, tais como: manter aberta a mercearia/taberna, a guarda dos cães, dos gatos, dos coelhos, das galinhas, do porco, etc, desta vez aproveitava a viagem, de longo curso, o pai Zé e o puto mais novo, a casa do Manel no Alentejo.

Como seria de esperar os preparativos da viagem estavam ao nível dos preparativos da viagem de Vasco da Gama à Índia.

É impossível descrever a alegria e ansiedade pela chegada do momento: dizia a carta do Manel que,  além de comboio,  tínhamos de andar de barco... Era muito à frente !

Composta a cesta à moda do Minho com o arroz de frango, bolinhos de bacalhau, presunto, salpicão etc, etc, e, o mais importante: dois garrafões de vinho verde tinto de palhinha. Um de 5 litros para o Manel e um pequeno de 2 litros para a viagem.

E aqui vamos nós. Apanhar o comboio das 6 da manhã no apeadeiro da aldeia (Barrimau), mudar em Campanhã com destino a Lisboa. Nenhum incidente, tudo como o programado e o puto maravilhado com o desfrutar de um mundo novo que desconhecia.

Chegados a Santa Apolónia,  começamos a aperceber-mo-nos de que entravamos num mundo novo, e muito diferente da nossa querida aldeia.

Lá continuamos o nosso caminho, o pai Zé com o seu fato e gravata, eu de fato e gravata, completamente desconfortável e já com bolhas nos pés devido aos sapatos (fato e sapatos só os tinha utilizado, uma vez, no casamento do Manel), o meu pai com a cesta a cheirar a bolinhos de bacalhau numa mão e na outra o garrafão de 5 litros, eu com uma pequena mala com roupa numa mão e o garrafão de 2 litros na outra. Toda a gente a olhar para nós e muitos lançando “bocas” trocistas: "Deve ser boa a pinga! Que cheirinho sai dessa cesta!"

O meu pai pergunta como chegar ao Terreiro do Paço. Um taxista oferece os seus serviços. O meu pai negoceia, pergunta que tempo demorava e quanto custava a viagem: 

 Está decidido... vamos a pé.

Aqui vamos nós, a transpirar por todos os poros, com todo aquele aparato de cesta minhota e dois garrafões de vinho, caminhando a pé de Santa Apolónia ao Terreiro do Paço. Não estava nos nossos planos esta receção do povo de Lisboa, todos os carros que passavam apitavam e mandavam todo tipo de piropos.

Chegamos ao Terreiro do Paço,  exaustos, mas felizes por aquela receção. Aqui todos queriam ajudar-nos, levar o cesta, os garrafões … contudo o meu pai nunca largou o dele , nem eu o meu. Foi uma das advertências que o Manel nos fez: Nunca largar nada e sempre com a carteira bem guardada.

Entrado no barca senti aquela sensação de entrar num mundo encantado onde por magia sou possuído de poderes sobrenaturais, voando como uma pássaro sobre as águas. Estava com medo de acordar receando que, afinal, tudo não passasse de um sonho. Via-se ao longe, nas duas margens do rio, os estaleiros para a construção da ponta 25 de abril, com centenas de trabalhadores parecendo formigas em grande azafama.

Chegados ao Barreiro, e,  ao tomarmos conhecimento que só tínhamos o comboio ao fim da tarde, o meu pai arriscou o almoço num restaurante, guardando o produto da cesta para o Manel e para os donos da casa onde habitava, um excelente casal de alentejanos.

Entramos, creio que os dois pela primeira vez, num restaurante. Sentia-se um restaurante frequentado por trabalhadores das empresas locais, contudo, não foi uma entrada discreta, à nossa frente entrou um casal a quem ninguém ligou mas a nossa entrada, com toda a nossa trouxa, fomos logo fulminados com os olhares de todos os presentes com um sorriso irónicO visível nas suas caras.

Abeirou-se de nós o dono do restaurante, com um sorriso trocista, mas muito amigável, metendo conversa: 

 vocês entram-me assim no restaurante com estas duas bombas! 

Logo nas primeiras palavras denunciamos o nosso falar cantado à moda do Minho ao que logo fomos bombardeados com a viagem do homem a Braga e ao Gerês,  criando-se assim um ambiente mais solto para nós que nos sentíamos intimidados com todos aqueles olhares. 

Da conversa sobre o Minho e o vinho verde fomos na sugestão do prato do dia, e único: bacalhau cozido com grão, embora com algum receio de estarmos perante uma brincadeira do homem (acontece que na altura, na aldeia e em toda a região do Minho, o grão não fazia parte dos produtos utilizados na cozinha, quanto muito, por vezes, juntava-se sim, esta iguaria à (b)vianda para os porcos), mas contudo arriscamos.

Convém lembrar, também, que lá em casa, às refeições não havia rações individuais, a panela vinha para a mesa e cada um tirava uma pequena parte e só retirava a segunda vez depois de todos já se terem servido (a velha máxima de que antes de se começar a comer há sempre lugar para mais um - podia-se ficar com fome mas chegava sempre algo a todos), e quando eram batatas cozidas com bacalhau a norma era todos colocarem um pouco de azeite com alho no prato, tirava-se uma batata de cada vez, envolvia-se no azeite, comia-se, a aguardava-se que todos tirassem a sua para, se ainda houvesse, repetir o gesto. 

Como nunca tínhamos comido tal coisa, nem nos passava pela cabeça que fosse comestível, aplicamos a regra de casa: colocar o azeite no prato, tirar um grão de cada vez, tirar-lhe a pele, envolvÊ-lo no azeite e tentar colocá-lo no garfo para o levar à boca. Tarefa nada fácil. Durante toda esta atribulada batalha com o grão, reparamos a galhofa geral na sala. 

Só queríamos fugir dali, já que pensávamos que estamos mesmo a comer (tentar comer) comida para porcos. Só à saída, com grande alívio meu, verifiquei que afinal todo o pessoal comia grão, mas colocado em grande quantidade no prato e, com a ajuda preciosa de uma faca, levavam à boca (com a pele) grandes garfadas de grão. Foi a primeira vez que que constatamos que a faca tinha outras funções para além de cortar presunto e chouriço...

Chegou a hora da partida do comboio para o Alentejo. Entramos, mas já o mesmo estava cheio de trabalhadores e soldados. Tivemos que ficar na plataforma, de pé. Todos os presentes, com um ar irónico mas amável, nos procuravam ajudar na arrumação dos haveres. 

Entretanto, um homem, já para lá da meia idade (de lencinho ao pescoço e chapéu alentejanos), olhando persistentemente para o garrafão que estava à minha guarda, meteu conversa:

 − Então, compadres,  vêm do norte? 

Denunciámos as nossas origens com a pronuncia do norte adocicada com o falar cantado do Minho: 

  ... E o vinho desses garrafões é verde? É branco ou tinto? 

   É tinto  − respomdei o meu pai, − Lá na aldeia costuma-se dizer que vinho branco, pão de trigo e caldos de galinha é para os doentes. 

− Ah ! branco já bebi mas tinto nunca provei. 

Fez-se silêncio, mas o homem, com os olhos vidrados, não deixava de olhar para o meu garrafão, e volta à carga:

  − Então, para onde vão? 

− Para Ermidas d Sado para casa do meu filho que trabalha lá nos comboios: se nos fizesse o favor de avisar quando estivéssemos a chegar ficava lhe muito agradecido  − disse o meu pai. 

− Claro que sim,  compadre, podem ficar descansados que eu avisarei −  disse o homem muito solicito. 

  Agradecido − disse o meu pai. 

Passado uns minutos, o meu pai sentiu uma secura na garganta, fruto do bacalhau do almoço que estava um pouco salgado,  e levou o meu garrafão aos lábios. Ao ver o olhar embebecido do companheiro de viagem ofereceu-lhe um pouco. O mesmo não se fez rogado e lançou com sofreguidão o garrafão aos queixos. O meu pai ficou preocupado porque o homem ficou com os lábios colados ao gargalo. Passado uns segundos, largou, arrotou, e exclamou: 

 −  Mas que grande pomada!


De paragem em paragem o homem aproveitava para meter conversa: 

− Ainda falta, não se preocupem que eu aviso quando estivermos a chegar, ainda há tempo para mais uma prova, Sr. José. 

E zumba, mais uma golada, e assim foi em todas as paragens até à ultima gota do garrafão.


A viagem continuou em silêncio, já que o nosso companheiro de viagem sentou-se num banquinho, rebatível, que vagou, e adormeceu.


Passado mais umas paragens, um outro homem, que acompanhou divertido ao esvaziar do garrafão, com um sorriso nos lábios bateu no ombro do meu pai e disse: 

  Estamos em Ermidas Sado. 

 Apanhamos a cesta, os garrafões (o meu muito mais leve) e abalamos rápido para fora do comboio. O Homem que era suposto avisar-nos quando chegássemos ao nosso destino continuou num sono profundo. Provavelmente até ao fim da linha…

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22063: Os nossos seres, saberes e lazeres (444): Quando vi nascer a Avenida de Roma (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21933: No céu não há disto...Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (21): A Broa de Milho à Moda do Minho... e as sopas de vinho verde tinto (Joaquim Costa, V. N. Famalicão)


A broa de milho à moda do Minho...à moda da minha mãe


Foto (e legenda): © Joquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar:


Data: segunda, 22/02/2021 à(s) 12:53
Assunto: O pão de milho e as sopas de vinho

 
Caro Luís, amigos e camaradas, em resposta à tua sugestão (*), aproveito para dar voz ao pão de milho, moído nas bucólicas azenhas espalhadas por toda a região do Minho, dando continuidade às minhas memórias de Paz.


As minhas tamanquinhas, a broa de milho… 
e as sopas de vinho verde tinto

por Joaquim Costa


Terminado o verão, era altura de preparar o inverno, pelo que a minha mãe me levou com ela à feira para comprar umas chancas novas e uma masseira (recipiente em madeira para dar “Coça” à massa para a fornada de pão) já que a velhinha de várias gerações se estragou.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos que precisavam a bom preço bem como um pouco de divertimento e convívio fugindo, por ,algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:

  • venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas a saltarem de mão em mão (Durante toda a tarde nunca a malga era lavada e todos os amigos que chegavam eram convidados a uma “golada” ; (a Sara era chamada frequentemente para repor o tinto com a frase: "Sara! lave com a mesma água !");
  • se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
  • onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes (um menino que nasceu com 3 cabeças e um homem que matou a mãe à facada e foi morto com uma cornada de um boi em defesa desta);
  • onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
  • onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
  • onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
  • onde não faltava, nos dias de calor, a “águadeira”, com o seu cântaro de barro a vender copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
  • onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.

Antes de irmos às minhas chancas a minha mãe ainda comprou uma “masseira” nova para amassar a farinha para as fornadas de pão que cozíamos no forno caseiro uma vez por semana. 

A Sexta Feira era o dia mais esperado. Dia de cozer uma fornada de pão para toda a semana. Para além de ser o único dia da semana em que se comia pão fresco, era o dia das sopas de vinho (sopas de cavalo cansado), e da bôla com carne. Com o pão a sair do forno quentinho e estaladiço partia-se com a mão, ainda a queimar, para uma malga onde se embebia em vinho tinto. Ficava em descanso durante umas horas e ao fim da tarde era um regalo ver todos os meus irmãos a “lambuzarem-se” com tão extraordinária iguaria.

Eu não ficava de fora e tinha direito a uma pequena tigela, onde deitava um pouco de açucar. Não estava autorizado a beber vinho mas estava autorizado, uma vez por semana, a comê-lo (gostava mesmo daquilo). Eram as sopas de vinho e uma cebola pequena aberta com dois golpes preenchidos com sal e acompanhada com pão de milho quentinho que eu mais adorava.

Outra iguaria que fazia as nossas delícias era uma bôla, espalmada, onde se colocavam pequenos pedaços de carne de porco entremeada. Ia ao forno com a carne onde se derretia a gordura que dava um sabor divinal à bôla.]

Ao contrária dos nosso netos, que julgam que tudo o que aparece nas superfícies comerciais é feito na fábricas, no meu tempo, quando comia um “naco” de pão de milho sabia, melhor do que ninguém, como se chegou e este momento tão extraordinário de saborear esta dádiva da natureza.

A minha casa era rodeada por campos onde se cultivava, alternadamente, milho e centeio, acompanhando, maravilhado, os milagres da natureza:

  • acompanhava o lavrar a terra, ainda com a charrua puxada por uma junta de bois;
  • acompanhava a sementeira manual com gestos precisos e elegantes;
  • abria a janela todos os dias de manhãzinha e ver o que a natureza tinha tinha feito, durante a noite, à sementeira;
  • assistia à rega do milho abrindo e tapando carreiros, com a ajuda de uma enxada, onde passava um pequeno regato de água;
  • caminhava por entre o milho, cortando uma espiga, ainda verde, para assar na lareira da cozinha;
  • fumava os primeiros “cigarros” com as barbas de milho já secas enroladas em papel de mortalha;
  • participava na apanha do milho, fazendo o trajeto para a eira em cima dos carros de bois;
  • participava nas magníficas, e tão esperadas, desfolhadas, com muitas cantorias acompanhadas pelas tradicionais concertinas, muito vinho e presunto. O clímax destes momentos era quando alguém desfolhava um milho rei, com os rapazes em êxtase dando beijos às raparigas solteiras;
  • assistia à malha do milho com gestos preciso, coordenados e elegantes dos malhadores;
  • acompanhava o moleiro carregando sacos de milho do lavrador até ao moinho de água, construído num ribeiro afluente do Ave e acompanhava-o no regresso já com os sacos cheios de farinha;
  • assistia e ajudava ao levar em braços do moleiro até à sua carroça, puxada por um elegante e inteligente cavalo, depois de adormecer, bem jantado e bebido, e, dar uma pancada no cavalo que o levava direitinho até casa, escolhendo o melhor caminho para não acordar o patrão.

Depois, de todas estas tarefas, tudo ficava nas mãos da minha mãe:
  • Amassar a farinha numa masseira de madeira, fazendo uma reza e benzendo várias vezes a massa já devidamente posta em sossego, depois de uma valente coça;
  • Aquecer o forno com caruma e carqueja apanhada nas bouças vizinhas (altura em que as matas estavam sempre limpas);
  • Meter toda a fornada no forno já quente e limpo, utilizando uma gamela de madeira para dar forma à broa;
  • Fechar o forno, tapar todas as frinchas com um material, que me escuso de desvendar evitando ferir a sensibilidade de leitores mais suscetíveis, e mais uma reza e umas benzeduras.

Depois o milagre acontece... com o pão, que “Deus” amassou... na malga embebido em vinho tinto

“Amem"

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21922: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (20): O pão nosso de cada diz nos dai hoje, diz a "chef" Alice... E se for de farinha de trigo de Barbela, do Moinho de Avis (Cadaval, Montejunto,1810), ainda melhor!

sábado, 24 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21478: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Não há bem que não acabe, aqui fica o relatório do último dia em Ponte de Lima, já pairam no ar notícias inquietantes de um vírus, nos noticiários relevam-se termos como pandemia, confinamento, quarentena, é suposto que em breve seja anunciado um estado de emergência. Por aqui deambulo sem palpitações ou receios de me infetar, mas à cautela já nem a mão estendemos a amigos e conhecidos. Foi uma viagem surpreendente, como repetidamente se veio a afirmar, era um dever de amizade e a confirmação de tudo quanto se lia sobre estes pontos do Alto Minho que tanto emocionavam um amigo cego, que vibrava com a história de Ponte de Lima e Viana do Castelo, sobretudo, nestes locais viveu até à adolescência, e muitas vezes regressou, marcado pela paternidade minhota. Há um travo amargo, o que ficou por ver, os arrabaldes, a passagem por Viana do Castelo foi visita de médico, nunca se conseguiu entrar na Igreja da Misericórdia, nem se visitou o esplêndido barroco da Correlhã, mas outros exemplos podiam ser dados. Isto para acentuar que foi uma viagem memorável e que Deus permita que se possa repetir.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12)

Mário Beja Santos

Esta inolvidável peregrinação caminha para o seu termo, hoje é dia reservado a Ponte de Lima, as notícias sobre o coronavírus são cada vez mais alarmantes, vêm aí restrições severas, fala-se em confinamento, logo de manhã, no próximo dia, ruma-se a Lisboa, há uma certa suspeita de que vale a pena passar por Pedrógão Pequeno e encher uma mala com livros, nos noticiários de rádio fala-se em quarentena, ao menos que haja leituras e boa música, o resto virá por acréscimo. Contempla-se este magnífico painel de azulejos, o tema é a Restauração, a aclamação de D. João IV, bate certo neste templo religioso que vem dos confins da Idade Média.
É uma deambulação sem itinerário, voltou-se a visitar alguns parques, estátuas, percorreu-se cuidadosamente a Rua do Arrabalde de S. João de Fora e também a Rua Lima Bezerra, não se esqueceu a Casa de Nossa Senhora de Aurora que se visitou com tanto gosto, com o seu jardim aprimorado, acolhimento de estalo da anfitriã que zela aquele património seja mantido com desvelo, uma casa destas exige restauro permanente, conservação permanente.
E os jardins? Sai-se deste ponto da Ribeira Lima assegurando ao leitor que se cumpriu à risca o guia turístico e o que confere a Ponte de Lima a Rota das Camélias: o passeio ribeirinho, o parque temático do Arnado, com os seus diversificados jardins, o jardim Sebastião Sanhudo, a inevitável Avenida dos Plátanos, o jardim dos Terceiros, e mesmo junto ao edifício da autarquia, o jardim Dr. Adelino Sampaio. Já se anda com os pés a escaldar, mas o dia está magnífico, e o maravilhamento é intenso.
Havia um encontro aprazado com um limiano que é personalidade conhecida da terra pelo denodo com que se bate para que seja respeitada a memória dos combatentes, carteamo-nos regularmente, ele reservara-me surpresa, visitar Ponte de Lima do alto. E que grande surpresa. Começou por me levar a uma elevação onde se desfruta do vale do rio Trovela, as águas que por ali correm vêm dos montes da Boalhosa, passando por Fornelas e pela Feitosa. O que é que há de especial nesta floresta? Uma floresta antiga, ali pontificam amieiros, carvalhos, castanheiros, sobreiros, salgueiros, ainda não entrou a praga do eucalipto, e não constam pinheiros. Antes porém, houve subida ao Monte da Madalena, na freguesia de Fornelos, estamos a 240 metros de altitude, há por ali até um parque em espaço arborizado e aprazível, e está aberto um restaurante, aqui se pode desfrutar uma panorâmica sobre o populoso concelho.
O Mário Leitão insistiu que fôssemos às Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d’Arcos, ele foi um pioneiro para que ali houvesse uma reserva natural, expliquei-lhe que tentara por ali cirandar, quase impossível, os caminhos estavam praticamente alagados, só de galochas, que eu não trouxera. E tranquilizei-o, haverá regresso, iremos os dois a esse paraíso da biodiversidade. Insistiu numa fotografia a dois, e eu fiz questão de mostrar o livro das Lagoas de Bertiandos, um dos motivos do próximo regresso.
Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d’Arcos
No caminho de regresso encontrou-se este espigueiro em bom estado, tão importante património como as casas, pontes, jardins e lagos que me encheram os olhos. Há um lugar icónico, que é o Soajo, em que estes armazéns de cereais assentam na robustez da pedra, o que produz um efeito de ponto fortificado, que não é, terá sido impressão minha, depois de ter palmilhado aquele magnífico Castelo de Lindoso, de perpétua memória.
Procuro uma síntese de tudo quanto me foi dado observar, tanto em património natural como construído: o bucolismo genuíno da Ribeira Lima, as belas veigas e gândaras dos pequenos vales, o rio longo e plácido, aquela ponte histórica, nó viário fulcral desde tempos antigos e também da alvorada da nossa nacionalidade; a vila cuidada, o seu casario que assinala um passado dinâmico; as visitas a Ponte da Barca, Arcos de Valdevez e Viana do Castelo, por haver reporte, a diferentes níveis sentimentais com a pessoa que aqui se veio homenagear, uma vida que se extinguiu em janeiro de 2020, 90 anos há pouco feitos, e que continua a deixar-me inconsolável. Daí as imagens que se seguem, de tempos imemoriais, até uma lápide para mim indecifrável, mas que tanto me comoveu. São imagens de saudade, valem pelo que valem.
Os estudantes coimbrões falam da hora da despedida nas suas baladas, vai anoitecendo, daqui a pouco não me vou poupar ao meu último caldo verde, porque aqui a comida tem fama e proveito, primeiro o dia tem aquela luz ofuscante que anuncia a escuridão repleta; era inevitável que a última imagem fixasse um troço da Ribeira Lima, que associo sempre a todos aqueles jornais que lia regularmente a um cego ávido de informações da terra-mãe. Cumpri o meu voto, espero dobrá-lo e redobrá-lo, por definição toda a viagem é inacabada.
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Notas do editor:

Poste anterior de 17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21458: Os nossos seres, saberes e lazeres (416): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21476: Os nossos seres, saberes e lazeres (417): O que é que isto tem a ver connosco e com a nossa 'guerra'?

sábado, 17 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21458: Os nossos seres, saberes e lazeres (416): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Despeço-me de Viana com nostalgia, foi erro palmar vir por tão pouco tempo, não acontecerá na próxima, impunha-se percorrer todas estas freguesias que conheci durante 14 anos a ler com a maior regularidade o Aurora do Lima, às vezes tropeçava no nome de Lanheses, o meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo corrigia prontamente. Visita de médico, como soe dizer-se, mas que deu para cirandar pela cidade e contemplar alguns dos seus pontos altos como Santa Luzia, a Praça da República, a Praça da Liberdade, calcorrear o beira-rio, confirmar que a Igreja Matriz e a Igreja da Misericórdia têm méritos absolutos para a classificação de monumentos nacionais, as imagens falam por si. Não houve circunstância para ver onde estão pendurados os desenhos de Couto Viana que ofereci à cidade, ficará para a próxima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (11)

Mário Beja Santos

Foi boa a escolha, ainda me ocorreu passarinhar ao acaso pela Viana moderna, mas a Igreja da Santa Casa da Misericórdia é um tesouro inesgotável. Leio no folheto, oferecido com o pagamento da entrada, que em 1526, por deliberação municipal, foi decidido edificar a casa e a Capela da Misericórdia na grande praça que se abria junto às muralhas da vila, então chamada Campo do Forno e hoje Praça da República, face ao novo edifício do Senado, construído cerca de 1505. O caráter de centro cívico desta praça acentuou-se com a construção do chafariz monumental, em 1554. Rapidamente as principais famílias nobres e burguesas começaram também a construir as suas casas nesta praça. Mais se diz que em 1714 a capela original estava num adiantado estado de ruína, foi decidida a sua demolição e a construção desta, o risco foi encomendado ao engenheiro-militar Manuel Pinto de Vila Lobos. A fachada da Misericórdia é extremamente original, mas o exterior da igreja é muito simples, em flagrante contraste com a exuberância do interior. Avança-se e é este espetáculo de riqueza e prodígio barroco.
O retábulo do altar-mor é assim, em talha dourada, classifica-se como Barroco pré-joanino, trabalho situado em 1710, tudo é simetria num belo encaixe de azulejaria.
As paredes desta igreja estão totalmente revestidas de painéis de azulejos, o seu autor foi Policarpo de Oliveira Bernardes, um dos principais nomes do ciclo dos mestres azulejistas barrocos. Representam as catorze Obras da Misericórdia ilustradas por passagens bíblicas (as espirituais do lado do Evangelho e as corporais do lado da Epístola) e, no painel do arco central, apresenta uma magnífica imagem da Senhora da Misericórdia que, com o seu manto aberto, protege a humanidade. O programa barroco desta igreja tem a ver com as talhas, os azulejos e o teto, bem como a fabulosa imaginária. O teto, como se vê na imagem da abóbada, tem medalhões que apresentam a Santíssima Trindade, a Assunção de Nossa Senhora e a Fuga para o Egito. As imagens são notáveis: Sant’Ana e S. Joaquim; A Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel; a Senhora da Boa Morte; S. João Baptista, … Nos nichos laterais sobressai a imagem do Senhor da Cana Verde. Infelizmente, só depois de sair é que atinei na importância do órgão, obra de 1721, em duas caixas, foi tudo fruto da pressa, ainda quero cirandar pelo casco histórico, ver a Praça da Liberdade com obras arquitetónicas de gabarito e despedir-me nessa estação ferroviária que data de 1882, Viana já era então uma grande cidade.
Era inevitável contemplar a Igreja Matriz, outro monumento nacional. Importa dar a palavra a José Hermano Saraiva, na sua obra O Tempo e a Alma: “Podiam pôr lá um letreiro: aqui nasceu Viana. Havia lá um vasto rochedo sobre o qual D. Afonso III mandou colocar a primeira torre; junto dela nasceu a primeira igreja. O que hoje se vê é o templo já grandioso, mandado erigir no século XV quando Viana já era vila notável. O pórtico gótico tem três arquitraves, e os colunelos abrangem seis belas estátuas de apóstolos. O conjunto tem uma riqueza escultórica excecional. Duas espessas torres reforçam o volume monumental do templo”. E o investigador mais à frente fala-nos da comunidade judaica aqui residente, fugitiva da Catalunha, foi próspera e altamente dinâmica, andou pela Terra Nova, negociava entre os portos da Galiza e da Irlanda. Depois, foi aquele desastre que nós conhecemos, a sua expulsão, a irreparável perda no nosso sentimento de tolerância e de ecumenismo, só muito mais tarde reabilitado.
Já se falou no Alto Minho de Carlos Ferreira de Almeida, a descrição do passeio que ele faz dentro de Viana é empolgante. Depois de nos dizer que a cidade é um paradigma no desenvolvimento das nossas póvoas marítimas, medievais e modernas, que aqui se mercadejou vinho e sal, panos e bacalhau, que a cidade está marcada por séculos de História, diz mesmo: “O tecido urbanístico do espaço medieval de Viana, razoavelmente quadriculado em talhões retangulares, mostra uma ordenação que lhe adveio e foi possível pelo facto de ter sido uma fundação nova, projetada para a vida urbana, e que as ampliações do século XIV não descuidaram. Dois grandes eixos a entrecruzam. Um, na direção norte-sul, unindo as respetivas portas, é hoje a Rua Sacadura Cabral, e o outro, entre as saídas da Ribeira e de S. Pedro, é um arruamento dito, à maneira galega ou castelhana, Rua Grande, continuado na de S. Pedro”. O estudioso vai por aí fora empolgado, fala-nos de casas nobres, de igrejas, devoções e depois lança-se sobre os formosos arrabaldes da Ribeira Lima, ao tempo em que publicou o seu trabalho, em 1987, referindo-se à Viana moderna exaltou os estaleiros navais, hoje mundo passado.
Houve tempo de folhear a Rota das Camélias do Alto Minho e ganhar a perceção que há uma Viana florida, os ajardinamentos falam por si. Aqui fica uma imagem da natureza em glória.
Estamos a findar, avança-se para a Praça da Liberdade e toma-se nota do que vem escrito numa publicação autárquica “Viana fica no coração”, referindo que a revista londrina Wallpapper considerou Viana uma Meca da arquitetura, clara alusão à Praça da Liberdade de Fernando Távora, à Biblioteca de Siza Vieira, não descurando o Centro Cultural de Souto Moura. É a Viana com as trombetas apontadas para o futuro, a escultura harmonicamente assente para projetar os edifícios, é o diálogo perfeito entre a Viana do passado e os preparativos do amanhã. Como não se pode ficar insensível ao equipamento de Souto Moura caraterizado pela transparência entre a cidade, o rio e o interior do edifício. Que beleza, percorre-se este chão de futuro e até nos esquecemos de que ainda há um pesadelo chamado Prédio Coutinho, uma aberração que parece não ter fim, elemento mais perturbador não pode haver na panorâmica da cidade.
Praça da Liberdade, Avenida dos Arquitetos

E até à próxima, Viana, diante desta escultura que simboliza o arraial minhoto e o seu pujante folclore, tendo como pano de fundo a estação ferroviária que certifica a prosperidade da cidade no fim do século XIX, regressamos a Ponte de Lima, o termo da viagem está próximo.
Estação ferroviária de Viana do Castelo

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21438: Os nossos seres, saberes e lazeres (415): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (10) (Mário Beja Santos)