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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,

A comissão de Eduardo começa em Quipedro e tem o seu término em Barraca. O imprevisto de toda esta narrativa é, como se observou anteriormente, haver uma descrição oficinal a ritmo moderado, o que começa por se contar parece um fotomaton que cabe no currículo de muitos de nós, e de chofre, depois de uma estadia em Quipedro, numa tensão habitual de guerrilha, chega-se ao Leste e é uma autêntica descida aos infernos, daí não hesitar em dizer que nada de mais explosivo se escreveu sobre os horrores da nossa última guerra em África.

E termina-se com uma citação um tanto cabalística do autor na apresentação do seu livro:

"Um forte sentimento de culpa, aliado a laços de camaradagem e de cumplicidade, tem levado os ex-combatentes ainda vivos a silenciarem acontecimentos dramáticos que protagonizaram de modo ativo ou passivo. Esse é um dos grandes óbices a que se escreva a verdadeira história da guerra colonial".

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (3)

Beja Santos

A obra “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, centrada em acontecimentos ocorridos na guerra de Angola, é um documento com imenso significado. A roda da fortuna lançou um jovem alferes em Quipedro, no Norte, tudo parece levar a crer que é uma guerra de guerrilhas que opõe as forças portuguesas e as surtidas rebeldes, é certo que há população afetada, mas muitíssimo menos grave do que ele vai presenciar no Leste.

Ele escreve em 17 de setembro de 1967, no Alto Cuíto:

“O Alto Cuíto era um simples morro que dominava uma extensa chana onde corria o rio Cuíto, de águas cristalinas. Dentro do espaço protegido por arame farpado, no topo da colina, existiam improvisadas barracas de madeira para utilização da tropa. Contrastavam com a confortável casa de alvenaria do Administrador de Posto.

O Administrador Raposo tinha sob as suas ordens cerca de duas dúzias de milícias mal vestidas e de pés descalços, armadas de velhas espingardas de repetição. Mantinham a sua própria segurança, com um sentinela permanente num torreão de madeira.

Sendo aquela uma zona de guerra, onde as populações haviam abandonado as suas sanzalas e passado para o controlo da UNITA ou do MPLA, não fazia sentido continuar a existir no Alto Cuíto uma autoridade administrativa, pensava o Alferes. Mas o certo é que o Raposo mantinha-se no seu posto como se tivesse sido esquecido pelos seus superiores hierárquicos ou como se estes ignorassem a situação de guerra no terreno.

O administrador convidou o alferes a deslocar-se à secretaria do seu posto administrativo, para participar num interrogatório de negros suspeitos de ligações com a UNITA.

O primeiro detido, ao ser perguntado sobre a localização dos guerrilheiros, nada disse. Os cassetetes dos dois sipaios de serviço funcionaram então implacavelmente, tal como as mãos e os pés do administrador. O interrogado rebolou no chão como se de um objecto qualquer se tratasse.

O segundo detido enfrentou o Raposo com uma aparente serenidade. Também parecia mostrar-se decidido a não declarar nada. E nem sequer reagia às violentas pancadas que um dos sipaios lhe infligia. Poucos saíam dali vivos”.

Mais tarde, o alferes avistou duas vítimas no chão, uma delas com um lago de sangue à sua volta. À noite, os milícias deitaram os corpos num rio.

E comenta-se:

“No Leste, a vida dos adversários ou dos meros suspeitos não tinha significado algum para cada uma das partes do conflito. Assassinava-se a sangue frio, sem dó nem piedade, por tudo e por nada”.

A tropa de Eduardo dá proteção à Junta Autónoma das Estradas, prepara-se uma ponte numa área de intervenção do MPLA, protegem-se serrações de madeiras a 75 e a 95 quilómetros do Alto Cuíto. Ocorrem emboscadas, morre o 1.º Cabo Costa, vítima de uma emboscada próximo da serração do Nhonga. Faz a contabilidade, com apenas um terço da comissão tinham sido feridos e mortos em combate nove soldados. O contexto do terrífico e do horror não abranda.

Ele escreve a 26 de outubro:  

“De manhã saiu, em missão de patrulhamento, uma secção comandada pelo Furriel Marta. Ao cruzar-se com dois negros desarmados, deteve-os e não tardou a eliminá-los, utilizando um processo cruel. Amarrou-os um ao outro, costas com costas. Depois colocou uma granada defensiva despoletada entre os corpos e afastou-se. À distância, gozou o espectáculo macabro dos dois condenados a serem despedaçados pelos estilhaços do engenho explosivo”.

Sucedem-se os patrulhamentos, numa sanzala controlada pela UNITA, os habitantes mostravam-se aterrorizados, nada lhes aconteceu. No regresso de um outro patrulhamento, já perto do Alto Cuíto, “viu o jipe do administrador carregado com cinco negros de mãos atadas atrás das costas, escoltados por sipaios. Não duvidou do destino que os desgraçados teriam mais tarde”.

Os interrogatórios em casa do administrador Raposo não param, Eduardo está enojado, pensou mesmo em prendê-lo mas temeu as consequências. Termina as observações desse dia escrevendo:  

“O morro do Alto Cuíto era um barril de pólvora que mais tarde ou mais cedo teria de explodir”.

Prossegue a atividade operacional, a guerrilha estende-se como mancha de azeite. Os acidentes também não param, caso de um soldado que caiu numa armadilha e ficou espetado num pau aguçado, que lhe entrou na virilha e avançou até perto do pescoço.

Eduardo regressa a Munhango, tinham sido distribuídas armas a uns tantos homens numa sanzala próxima, esses homens passaram-se com armas e bagagens para a UNITA. Já estamos em 1968, os patrulhamentos não abrandam. O relacionamento entre Eduardo e outro alferes é cada vez mais tenso, e o relacionamento com o Capitão Francisco já teve melhores dias. O alferes volta a Cangonga, vem com a missão de penetrar em zonas “libertadas” e surpreender gentes da UNITA, os resultados são magros.

Descreve a 29 de janeiro:

“Verificou que as sanzalas, tempos antes habitadas, iam sendo progressivamente abandonadas pelas populações, entaladas entre as pressões da UNITA e as das tropas portuguesas. Quando se aproximou para cumprimentá-lo, o Sr. Vilaça, madeireiro em Cangonga, insinuou de modo crítico que o alferes era excessivamente brando para com os negros. Defendia que deveria, no mínimo, ser tão duro como o seu antecessor Barradas. A população branca que ainda permanecia no Leste exigia sangue. Queria acções de represália contra os suspeitos. E por ali toda a gente negra era suspeita. Muitos acreditavam que aquela guerra só poderia resolver-se com o terror do branco contra o terror do negro".

Este jogo do gato e do rato com a UNITA, o convite a que as populações se apresentassem frutifica, vão-se apresentando pessoas num pinga a pinga que vai aumentando, vão ser necessárias obras de construção para albergar alguns daqueles que haviam participado em atos cruéis de terrorismo. Melhoram as relações entre os oficiais da companhia, o sofrimento das populações é inesgotável, os episódios de horror repetem-se, como se exemplifica:

“Sentado junto de uma tenda de campanha, vi um negro cambaleante e esfarrapado aproximar-se da porta de armas do quartel de Munhango. Desatou o cordão que trazia amarrado à cabeça e o maxilar inferior caiu-lhe de imediato, deixando-lhe a boca escancarada.

Segurou o queixo com uma das mãos e, quase imperceptivelmente, foi balbuciando o seu drama.
Residia na sanzala de Magimbo quando uma bala lhe destroçou a face. Refugiara-se na floresta, receoso de ser apanhado pela tropa ou pela UNITA. Mas a fome e o medo acabaram por obrigá-lo a apresentar-se às autoridades portuguesas. Ali estava ele em busca de paz e de alimento”.

Os episódios sangrentos avantajam-se, houvera uma emboscada e a tropa reagiu, dois grupos de combate foram tentar a sua captura e fazer justiça.

E repete-se o horror:

“O jovem oficial levava consigo farinha e peixe, a servir de isco. Era um artifício destinado a incutir nos aldeões a ideia de amistosidade. As pessoas, embora desconfiadas inicialmente, quando viram a comida aproximaram-se, na expectativa de alcançarem a sua quota-parte.

Depois dos habitantes estarem reunidos, apareceu o guia denunciante, incumbido de identificar os elementos hostis. Foi nesse momento que compreenderam a intenção da tropa. Assustadas, procuraram fugir em todas as direcções. Eram centenas de negros em fuga precipitada. O alferes não hesitou. Ordenou aos militares que atirassem impiedosamente. Homens, mulheres e crianças tombavam como animais no matadouro”.

Em março, a CCAÇ 1638 viaja para Barraca, um lugar situado a cerca de cem quilómetros a sudeste da capital, junto da estrada que ligava Luanda ao Dondo. A corrente de alta voltagem que se vivera na região Leste vai-se diluindo, regressa-se ao trivial, às situações corriqueiras, fazem-se férias e em fevereiro de 1969 retoma-se a viagem para Luanda, é o regresso.

“Quando chegou à Covilhã, olhou o recorte noturno da montanha sob o céu escuro. A mesma que via desde a sua infância. Os pais acharam-no pouco falador, muito menos do que outrora. Nunca fora expansivo. Mas parecia-lhes claro que ele não desejava falar sobre a sua vivência em Angola. Antes de deitar-se tomou um Vesparax completo. E adormeceu. Não ouviu nem sentiu o forte tremor de terra dessa noite de 27 para 28 de fevereiro de 1969. O maior das últimas décadas em Portugal”.

E assim se chega ao termo de uma obra avassaladora, onde as descrições no Leste de Angola atingem o pico do horror, do medo, da existência sem sentido, como se sobreviver fosse o santo-e-senha.
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Notas do editor

Vd. postes de:

14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,

A narrativa de Fernando Fradinho Lopes não se pode confundir com as reportagens que proliferaram no teatro de guerra angolano, logo a partir de 1961. O discurso é inicialmente balizado por um rigor formal, sucedem-se as etapas convencionadas para este tipo de diário, memorial, descrevem-se os antecedentes familiares, a recruta e a especialidade, tudo numa atmosfera de amenidade.
E é nessa mesma amenidade que se parte para Quipedro, ali vive-se uma atmosfera de guerra com florestas cerradas. E dá-se a reviravolta, a CCAÇ 1638 parte para o Leste, ali pratica-se a carnificina, mutila-se e executa-se. São descrições terríficas, como se o horror fosse aceite ao nível da banalidade. É nesta dimensão que o relato de Fradinho Lopes é uma corrente de alta tensão, o ódio anda por ali à solta, entre pretos e brancos.

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial:
“O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (2)

Beja Santos

O título escolhido para esta recensão não enferma nada de bombástico. “O Alferes Eduardo”, de Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, é uma obra arrasadora, no início, a máquina literária parece conduzir-nos para descrições semelhantes a muitas outras, desde a preparação militar e do contexto familiar, até do maravilhamento perante a fauna e a flora, as tensões com a hierarquia, e o muito mais que serve de pano de fundo a uma grande parte da literatura da guerra colonial, por essência.

O autor, que diz suportar-se por notas de diário, parte de Luanda com o seu batalhão, o BCAÇ 1901, a sua companhia fica sediada em Quipedro, onde ele não se sente bem, há patrulhamentos, acidentes, dificílimas colunas de reabastecimento. É destacado para Quixico e regressa a Quipedro. Estamos agora em finais de abril de 1967, o seu pelotão foi destacado para o Lué, leva por missão garantir a integridade da ponte sobre o rio com o mesmo nome e dar proteção aos trabalhadores da fazenda. Constata que os rebeldes se passeiam com grande à-vontade na fazenda.

Então escreve:

“Viviam no Lué centenas de negros trazidos, enganados, do distante Centro de Angola. Haviam-lhes dito que trabalhariam numa zona pacífica. Afinal estavam no meio da guerra, numa das zonas de intervenção militar mais perigosas.

"Era um trabalho escravo, a troco de alguns escudos por dia. Habitavam em miseráveis cubatas e alimentavam-se de fuba e peixe seco, comprados na cantina do patrão. Aí deixavam grande parte do que ganhavam. E regressavam às suas terras tão miseráveis como eram dantes.

"Dizia-se que os fazendeiros do Norte recrutavam os trabalhadores no Centro de Angola através das autoridades administrativas, a troco de dinheiro. Estas, por sua vez, encomendavam os ‘escravos’ aos sobas que estavam sob a sua jurisdição, recebendo os últimos uma insignificante quantia por cabeça”.

Do Lué o seu pelotão regressa a Quipedro e o Alferes Eduardo vai passar férias a Luanda, findas estas embarca para Quipedro, as coisas começam mal pois o comandante de companhia reúne os seus subalternos e lê a nota de repreensão agravada que fora aplicada a Eduardo, pressente-se que há um contexto de rivalidades e de mexerico entre os diferentes alferes. E parte com uma coluna que acompanha a máquina de Engenharia, perto de Nambuangongo rebenta uma emboscada, os feridos graves serão evacuados por avião.

Eduardo é informado que a CCAÇ 1638 irá em breve ser transferida, no início de agosto estão em Luanda de onde vão partir para o Leste, Munhango.

Escreve nas suas notas:  

“Estava perante um meio paisagístico e humano muito diferente daquele que encontrara no Norte de Angola. As florestas tinham uma arborização pouco densa e o terreno era constituído de areia fina. Existiam longas planícies, com chanas ao longo das linhas de água. Munhango, uma pequena povoação sem asfalto nas suas poucas ruas, não tinha semelhança alguma com a região desabitada de Quipedro. Parte da população da vila trabalhava nos Caminhos de Ferro, que eram o motor económico de Munhango”.

Eduardo contraiu malária, doente vai fazer uma descida aos infernos. Numa serração próxima aparece uma senhora retalhada em postas e a casa saqueada. Um negro de Munhango foi apontado como suspeito. Pouco depois será abatido em “patrulhamento”. Começa a melhorar, tem tempo para refletir sobre as contradições da presença portuguesa e o quadro de injustiça que presenceia diariamente.

Outra serração será atacada, mais gente assassinada. “Os terroristas, ao serviço da UNITA, deixaram na serração dois papéis escritos, com o carimbo da organização. Procuravam justificar o massacre invocando o nome de Deus. Alguém com formação religiosa, provavelmente protestante, dirigira a matança”.

Chegam os feridos, todos negros, empregados dos brancos assassinados, feridas horríveis. Sai de Munhango um pelotão com intenção punitiva. Com a saúde recomposta, Eduardo partiu a 28 de agosto para a região de Cangonga.

Os ódios andam à solta:

“Descobri na floresta, a ocidente de Cangonga, uma sanzala ainda habitada. Ao aproximar-se de surpresa, apercebeu-se de que alguns indivíduos se haviam posto em fuga. Teria de investigar aqueles movimentos estranhos.

"Cercou o quimbo e andou de cubata em cubata a observar e a interrogar as pessoas delicadamente. As contradições que ele viu convenceram-no de que a UNITA tinha de facto aquela sanzala sob o seu controlo.

"Com alguns habitantes da sanzala a servirem-lhe de guias involuntários, fez um patrulhamento pela mata, nas proximidades do quimbo. Não encontrou ninguém.

"Ao deixar o local, levou consigo os homens adultos da sanzala. Depois de serem cuidadosamente interrogados no Munhango, regressariam às suas casas onde poderiam continuar a viver em paz, garantiu-lhes o alferes.

"Pelo caminho, alguns militares propuseram insistentemente a Eduardo o fuzilamento dos negros detidos. Mas ele, enojado com aquela sede de sangue, repeliu a proposta”.

Chegados a Munhango, recebem a notícia de que houvera um ataque a uma viatura blindada que seguia à frente do comboio. Eduardo constata que a atividade da UNITA alastrava desmesuradamente, os quatro grupos de combate não tinham descanso. Estamos já em setembro, a CCAÇ 1638 parte para uma operação, vão patrulhar na zona onde a UNITA executava habitualmente os ataques ao caminho-de-ferro, entre Cangonga e Cangumbe.

“Impressionara-o os cento e catorze abrigos que encontrara a dois ou três metros da picada. Provavelmente foram escavados por indivíduos mal treinados e mal armados, talvez vacinados contra as balas dos brancos e convencidos de que morreriam num sítio e nasceriam noutro lugar a seguir”.

A tensão avoluma-se, muita gente foge de Munhango, há execuções, e há também momentos de heroísmo, como ele escreve:

“A serração de Nhonga, situada junto da picada para o Alto Cuíto, a cerca de oitenta quilómetros de Munhango, foi atacada por um grupo de dezenas de homens da UNITA. Era defendida por três rapazes do pelotão de Eduardo: o 1.º Cabo Costa e os Soldados Branco e Rodrigues. Durante toda a noite, resistiram com unhas e dentes. Os atacantes desistiram quando se aproximou o dia, levando consigo as baixas sofridas. Os militares, bem protegidos pelos sacos de areia previamente colocados em redor da serração, escaparam ilesos. Parte para o Alto Cuíto, onde muitas centenas de infelizes, cobertos parcialmente de farrapos, viviam na mais absoluta miséria”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Desta vez, inesperadamente, ruma-se para Quipedro, Angola, uma narrativa que começa em tom muito ameno e ordeiro, com o ritmo de uma memória a funcionar pela infância e juventude, o contexto familiar, a recruta e as especialidades, este alferes Eduardo vive numa grande tensão, dorme horrivelmente, precisa de Vesparax, estamos a pensar que se trata de uma máquina literária formal, a sua companhia irá ser transferida para o Leste e iremos ser confrontados com uma prosa truculenta, jamais me fora dado ler prosa tão sanguinária, tanto ódio à solta naquela frente de guerra.
E fica a pergunta no ar: Como é possível ter passado à margem da crítica este violentíssimo e chocante "O Alferes Eduardo"?

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: 
“O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (1)

Beja Santos

No início, tudo parece formal, um tanto estereotipado, rotineiro, já abordado em muitíssimas outras obras. E subitamente, no leste de Angola, entra-se numa atmosfera de chacinas, assassinatos, terríveis execuções. Esta edição do Círculo de Leitores data de 2000, não conhecia qualquer referência ao título, não conhecia igualmente qualquer menção ao chocante do seu conteúdo. Na introdução refere algo que está longe de ser verdade, imagine-se que o autor é praticamente desconhecedor das toneladas de papel publicado neste subgénero literário das guerras de África, veja-se o que diz:
“Alguns escreveram ao longo das últimas décadas sobre as suas vivências em África, sem grande preocupação de verdade e de isenção, utilizando quase sempre um estilo literário patrioteiro de cariz colonialista ou então uma linguagem eivada de oposicionismo balofo. Disseram apenas aquilo que lhes convinha dizer no contexto do momento em que escreveram, ocultando factos relevantes e distorcendo a realidade histórica.
Exceptuando trabalhos jornalísticos avulsos sobre um ou outro acontecimento em particular, nunca vi qualquer obra feita com a objectividade e a imparcialidade adequadas à apresentação de um quadro real sobre a experiência dos jovens combatentes da geração de Eduardo, que consumiram uma parte das suas vidas nas florestas africanas para manterem, pela força das armas, a presença de Portugal naquelas paragens”.

É uma declaração que não pode passar sem um breve comentário. Basta atender-se à antologia “Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, Publicações Dom Quixote, em 1988 e 1998, ler os nomes de Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Abílio Teixeira Mendes, Lobo Antunes, João de Melo, Carlos Vale Ferraz e perceber a grave injustiça ínsita ao que Fernando Fradinho Lopes apresenta como um retrato acabado. E vamos adiante.

Há algo de diarístico, nesta obra. Estamos em 14 de janeiro de 1967, Eduardo parte da Covilhã, vai para a guerra, rememora as etapas por que passou nas Caldas da Rainha, Vendas Novas, Figueira da Foz, Lamego e Abrantes, transitou do curso de sargentos para o curso de oficiais, comeu o pão que o diabo amassou em Lamego, tudo isto lhe aflora ao espírito enquanto viaja de comboio até chegar a Abrantes. A 21 de janeiro, embarca no Vera Cruz com destino a Luanda, dias antes rompera namoro e não parte feliz. Não avisou a família da sua partida, os seus familiares viram-no por mero acaso no telejornal. Ruma com os seus homens para o Grafanil. O seu batalhão, o BCAÇ 1901, encaminha-se para a região dos Dembos. Há uma curta paragem em Nambuangongo, é uma viagem extenuante, são amistosamente recebidos na fazenda do Quixico, alguns quilómetros à frente começam as viaturas a atascarem-se na picada, e assim se chega ao destino, aqueles quarenta e tantos camiões chegam a Quipedro. “O Batalhão 1901 atravessou a ponte sobre o rio Lué, guardada por um pelotão aquartelado no local. Finalmente, nove quilómetros depois, atingiu Quipedro. A Companhia 1638 ficou e as restantes continuaram para Micula, a uns quarenta quilómetros a norte”. Eduardo fica em Quipedro, um lugar isolado, situado num vale encravado entre montanhas. “Naquela região as populações haviam desaparecido totalmente. Apenas a fazenda do Lué era habitada por algumas centenas de trabalhadores contratados no Centro de Angola. Antes de 1961 existira em Quipedro uma bela fazenda cujos vestígios quase haviam desaparecido. Os rebeldes, seis anos antes, haviam assassinado selvaticamente muitos brancos e seus criados negros”. Começa o reconhecimento da região, o maravilhamento daquelas densas florestas, as plantas, os sons, os animais, os cheiros, as cores. Sente-se impressionado pela fauna, pelas formigas-brancas e pelas bisontes, o alferes adapta-se, prosseguem os patrulhamentos de rotina, voltou à montanhosa zona de Catembo, constava que era bastante elevado o número de guerrilheiros na região. Sente-se profundamente confrontado com usos e costumes, um grupo de militares a rezar o terço na capela leva-o até à sua adolescência, onde se iniciara o seu agnosticismo.


São avistados grupos de guerrilheiros muito próximo de Quipedro. Começam as escoltas a camiões civis, a escassos quilómetros de Quixico um tiro isolado, à queima-roupa, veio gerar a confusão no pelotão de Eduardo. Há um ferido, o “Travanca”, uma bala entrara-lhe pela anca esquerda e alojara-se na anca direita, foi impossível contar com um helicóptero, o “Travanca” morre. Prosseguem as incursões na zona de Catembo, são recebidos pelos guerrilheiros com extenso tiroteio, impunha-se retirar, o comandante de companhia não gostou, manda repetir. Eduardo fala-nos de Pereira que cumpria a sua segunda comissão em Angola, desta vez como voluntário. Era um aldeão que não se deu bem com o regresso à vida civil e aos trabalhos da lavoura, sentia-se bem no Exército. “Preferia a insegurança das matas de Angola à infelicidade que sentia na sua pacata aldeia natal. Nem sequer era motivado pelo dinheiro. Ia de novo combater a troco de quase nada”. Entretanto o cabo enfermeiro atira-se para o chão, está aterrorizado, o medo domina-o, houve necessidade de o fazer regressar à unidade. E o grupo interna-se pela floresta. Eduardo medita as consequências de avançar para território francamente hostil, onde não pode contar com quaisquer apoios. “Reuniu o pelotão em círculo e disse aos rapazes que, em consciência, teria de desistir outra vez da missão que lhe fora imposta pelo comandante de companhia. Se caminhavam pelo único trilho que conheciam, seriam flagelados e, além disso, corriam o risco de encontrar o terreno armadilhado. Se entravam pela mata virgem, perdiam-se nela. Portanto, regressariam a Quipedro”. Surpreendentemente, o capitão deu razão ao Alferes. Dias depois, deslocação ao comando do batalhão em Micula, com imenso calor e chuva torrencial, depois de muitas peripécias, regressa-se a Quipedro. Nova saída desta vez com rumo a Quixico, a missão é proteger Engenharia Militar. Eduardo gosta do ambiente humano de Quixico, daquela verdejante fazenda cuja principal cultura era o café.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20229: Notas de leitura (1225): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (27) (Mário Beja Santos)