Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
Guiné 61/74 - P25984: (In)citações (264): Naquela época era-nos proibido falar muito sobre a política da guerra em África (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)
1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 25 de setembro de 2024:
…Companheiros, hoje somos um antigo veterano “anti-guerra”, porque a nossa experiência diz-nos que, (e não é apenas a continuação de uma história ruim que se arrasta por séculos), qualquer guerra, por mais pequena que seja, “nunca tem um bom final”.
…Naquela época, a maior parte de nós não sabia e…, era-nos proibido falar muito sobre a política da guerra lá na África. Uma coisa nós sabíamos, porque tínhamos sido treinados para isso…, era que estávamos ali para combater, guardar ou proteger, depende do que queiram chamar, um império desconhecido, num serviço militar que era obrigatório para todos e, morrer…, ou seja, dar a vida em defesa da bandeira de Portugal.
…E normalmente…, quem inicia as guerras entre países não é o povo, são os dirigentes desses países, o povo ama-se e compreende-se e quer a paz, um tecto para se abrigar, roupa, trabalho e comida, educação e o bem estar dos seus, mas alguns governantes que até têm escola superior, é que geram os conflitos, contando sempre com o apoio do povo que formam os seus exércitos, e claro,…, morrem num campo de batalha para os defenderem.
…Depois…, quem defende esse povo que defendeu esses dirigentes que tomaram decisões erradas? Enfim, podemos escrever um milhão de páginas, que o resultado é sempre o mesmo…, o povo é que luta e sofre.
…Nenhuma guerra, mesmo patriótica, defende os interesses da população justificando o sacrifício das vidas humanas que depois…, sempre tiveram alguma dificuldade em se afirmar nos círculos políticos ou culturais, porque entretanto o regime mudou com o fim dessa mesma guerra e logo vão esquecer o sofrimento dos soldados que combateram, porque sempre, não importa como, questionam os sentimentos patrióticos desses mártires soldados. Foi isto que aconteceu em Portugal, país onde nascemos e pelo qual combatemos.
…No entanto, em algumas nações ainda é prática comum algumas homenagens, aos seus heróis combatentes, embora na nossa opinião, as homenagens são ao mesmo tempo um reviver de memórias que enfatizam a honra e o patriotismo, obscurecendo o registo completo dos nossos sentimentos e experiências de combatentes e…, na verdade, colocam uma certa distância entre a semelhança da experiência humana, que essa sim, transcende toda e qualquer fronteira entre um discurso público de ocasião de um qualquer político, só para agradar e…, a realidade vivida num campo de batalha.
…E para terminar, como a minha especialidade era “cifra” e tinha conhecimento de algumas decisões que davam em destruição de bens e pessoas inocentes, e como para o final da comissão andava constantemente contrariado e dizia que assim que voltasse a Portugal ia emigrar, embora embarcasse de retorno a Portugal em Maio de 1966, guardaram a minha caderneta militar por mais de cinco anos, recebendo-a só em final de 1971.
Tony Borie.
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Nota do editor
Último post da série de 24 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25977: (In)citações (263): Eduardo Estrela, espero poder dar-te um abraço, ao vivo, com um atraso de 55 anos (!), na próxima quinta feira, em Algés, no 57º Convívio da Magnífica Tabanca da Linha (Luís Graça, editor)
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Guiné 61/74 - P25435: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (32): Rio de Janeiro, como rececionista num hotel, numa fase difícil da minha vida; como emigrante não prestava, até 1996, grande atenção à política em Portugal (João Crisóstomo, Nova Iorque)
Guiné >Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 1439 (1965/67) > Agosto de 1965 > O primeiro contacto com as terras do Xime...Em primeiro plano, o alferes Crisóstomo e o picador...
Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
Assunto - 25 de Abril
Vejo já artigos, reportagens, descrições individuais fabulosas sobre este 25 de Abril. E quase estou na dúvida se devo mandar o que segue, que em comparação não tem muito por onde se lhe pegue, a não ser que o tédio também conte.
Ao fim e ao cabo estou a falar pouco desse dia, exceto dum ponto muito subjetivo e mesquinho, quase e apenas pessoal. Bom, talvez conte, para fazer vir o sono a alguns dos mais velhotes e como eu com dificuldades de dormir, antes de irem para a cama…
O 25 de Abril 1974 apanhou-me numa fase difícil da minha vida. Depois de ter regressado são e salvo da Guiné (**), decidi dar uma volta pela Europa para aperfeiçoar línguas, pois tinha posto na cabeça que o meu futuro em Portugal seria o turismo.
Dois anos na Inglaterra, um ano em França, sete meses na Alemanha e no meio deste encontrei a que viria a ser minha esposa.
Casados em Londres, decidimos ir para o Brasil, onde tencionávamos gerir um restaurante que teórica e oficialmente pertencia a um avô da minha esposa. Mas no Brasil isso não contava já nada.
Avisados para não nos metermos em sarilhos, pois se tentássemos sequer reaver o restaurante tudo nos podia acontecer, acabei por começar do zero, pois a tal lei de reciprocidade entre portuguese e brasileiros, nessa altura. na prática não passava de uma fantasia no Brasil.
A cunha de um português bem alicerçado no Brasil que tinha sido colega de escola da minha sogra, foi a minha salvação.
A minha reação foi quase nula: "Oxalá não hajam mortos e apareça alguém com capacidade para governar", pensei eu.
Tudo o que me preocupava era encontrar maneira de dar à minha jovem família e a mim mesmo razão de esperança e confiança de um futuro melhor do que estava experimentando desde que tinha chegado ao Brasil.
Uma crise de meningite em crianças que subitamente pôs o Rio de Janeiro em estado de pânico, levou-me a pôr a minha família no primeiro barco de regresso a Portugal, enquanto eu, que tinha sido promovido a subgerente, ficava, mas ainda procurando algo melhor.
Do Brasil vim aos Estados Unidos, convencido de que aqui podia tirar um grau superior em Hotelaria, que me ia abrir as portas no mundo do turismo, que era para mim a minha primeira escolha depois que voltei da Guiné.
Tudo saiu diferente do que esperava e acabei por ficar em Nova Iorque para onde trouxe depois a minha família, agora acrescida de um filho que tinha nascido em Portugal, seis meses depois do regresso do Brasil.
Como emigrante não prestava muita atencão à política em Portugal, sabendo apenas que, graças a Deus, tal golpe de Estado tinha sido quase pacífico, mas que havia muita confusão : que se tinha dado a correr a independência a todos os que a pediam; mas que a pressa em que tudo era feito não augurava bom futuro para ninguém, como se veio a verificar.
E lembro que em 1996 quando me pediram para me envolver na causa de Timor Leste, eu respondi imediatamente que não me queria envolver em guerras fraticidas e na confusão que essa concessão de independência total sem as preparações devidas tinha causado em toda a parte.
Mas a minha experiência na Guiné vinha-me frequentemente à memória e comecei a procurar saber notícias e mesmo literatura . Não encontrava nada.
Até que numa visita a Portuga encontrei numa feira do livro, na Gare do Oriente, o livro "em Terras de Soncó", do Mário Beja Santos. Esse livro , logo seguido pela minha entrada para a Tabanca Grande, e encontros com camaradas da Guiné e outros veio reforçar o interesse por assuntos portugueses que durante muito tempo eu tinha intencionalmente ignorado.
Minha opinião agora é de que o 25 de Abril possibilitou e desencadeou um despertar de consciências geral, que possibilitou a democracia que agora vivemos. Não é perfeita, mas parece-me que o é o melhor que já alguma vez tivemos. E isso faz dessa data uma das mais importantes da nossa história.
João Cisóstomo, Nova Iorque
sexta-feira, 22 de março de 2024
Q 61/74 - P25295: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (23): O fado de Rosemarie - II (e última) Parte
Travessia dos Pirinéus por imigrados portugueses. Maio de 1965.
Foto: © Gerald Bloncourt (1926 - 2018) > Foto: cortesia de Le Blog de Gerald Bloncourt > L'immigration portugaise.
O fotógrafo francês foi uma das testemunhas do duro quotidiano dos compatriotas que viveram os primeiros anos da maior vaga de emigração para França, sendo simultaneamente amigo e companheiro de tantos portugueses que ali construíram o seu futuro.
Isso mesmo testemunhei em Champigny-sur-Marne, por altura das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2016, reconhecendo o seu espírito de missão pela defesa da dignidade humana junto da comunidade portuguesa, com o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique. "]
Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, de educação católica tradicionalista, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola e depois no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir e ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas só e infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1969, quando partiu para França a salto. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos.
Em Cascais, estava longe da família e da terra, que já não era Cabeceiras de Basto, mas Resende… Tinha um dia de folga, que aproveitava para conhecer Lisboa e os arredores. Metia-se no comboio e desaguava no Cais do Sodré, cujas “luzes de néon” a atraíam, como à borboleta, mas onde nunca chegou a entrar em nenhum bar.
Ainda se aventurou a ir, um dia, ao Bairro Alto dos fadistas, onde se dizia que se cantava o fado castiço, mas sentiu-se intimidada, com todo aquele corropio de gente, a sair e entrar de tipografias, redações de jornais, casas de pasto, tabernas, oficinas, lojecas e casas que pareciam de bonecas, com mulheres a assomar às "janela de pau", ou vagabundear pelas ruas.
Havia prostituição de rua, mas nada no entanto parecido com a que irá conhecer, uns anos mais tarde, na Rue de Saint Denis, em Paris, quando um dia lá for com o "seu" Antoine, e o seu mano que estava na Alemanha, só para ver aquelas pobres mulheres trajando ricos casacos de vison, umas, outras quase nuas...
Raramente via os patrões, lá no palecete de Cascais. Tinha "uma chefa que era de gancho” (sic), e que mantinha a criadagem na linha como na tropa. O seu dia a dia era passado no meio de tachos e panelas, na cave. A senhora, “que era do Norte”, apreciava o seu “arroz de anho no forno”, uma das suas coroas de glória culinárias… Mas a cozinheira-chefe, francesa, tinha ciúmes dela e não a deixava fazer grandes pratos, apenas o trivial, o pequeno almoço, o lanche, coisas ligeiras. Mas acabou por aprender, à socapa, uns pratos da cuisine française e começou a arranhar o francês… (Falava-se francês lá em casa, o patrão era de origem francesa.)
Já não se lembrava sequer do nome dos patrões, que eram gente "muito rica e muito fina", de famílias tradicionais, católicos, mas liberais e respeitadores do pessoal menor… Cultivavam, no entanto, muita distância social. Nunca se lembra, por exemplo, de ter entrado na sala de jantar, a não ser pelo Natal, em que senhores e criados consoavam juntos.
Os tempos que passou em Cascais, cerca de dois anos, eram sobretudo lembrados pela Rosemarie pela sua iniciação ao fado de Lisboa. Na escola de adultos, onde tirou a quarta classe, conheceu uma jovem fadista amadora que tinha ambições de concorrer à Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios.
À noite as duas cantarolavam uns fados no regresso a casa, já que moravam perto. Ficaram amigas mas a Rosemarie perdeu o seu contacto quando foi para França, em 1969. Tinha para com ela uma dívida de gratidão, arranjara-lhe alguns discos e letras, da Amália, e da Maria da Fé, de quem a Rosemarie também era fã, até por ser uma mulher do Norte.
Logo no início, em meados de 1967, teve autorização de ir ao Cais da Rocha Conde Óbidos abraçar um dos irmãos que chegava da Guiné, depois de cumprido o serviço militar. Vinha “mais maduro, mais homem”, e confidenciou-lhe que tinha intenções de emigrar, talvez para a Alemanha, de comboio. Era só tratar do passaporte, que agora, com a tropa feita, não precisava de ir a salto. Tinham-lhe prometido um emprego numa fábrica de automóveis, mas precisava de “aprender a língua alemã, que era tramada”. E na realidade conseguiu ir para a Alemanha, logo em finais de 1967, mas teve de começar por trabalhar nas obras. Durante alguns anos, não se viram até que ele foi passar o Natal, com ela e o Antoine, em 1973.
Foi também por essa altura, por volta de 1968, que a Rosemarie começou a congeminar a ideia de ir para França viver e trabalhar. Mas só podia ir a salto... Sendo oficialmente casada, precisava de autorização do "cabrão do marido" (sic), o "chefe de família", ausente em parte incerta... ("o tocador de rabeca chuleira", como ela o passou a tratar depreciativamente, depois que se separaram ao fim de um ano e tal de casados).
Por outro lado, as suas fracas economias não davam para “comprar a passagem”… Precisava de ter pelo menos uns 15 contos, para a viagem e para os primeiros tempos. (Nessa época, em 1969, era uma pequena fortuna, cerca de 5,2 mil euros, a preços atuais.)
Entretanto, umas antigas colegas e amigas das Caldas de Aregos, em Resende, deram-lhe notícias do Antoine Ben Oliel (ele usava o apelido materno).
Ele não lhe respondeu logo, mas na carta que ela irá receber, passadas umas largas semanas, diz-lhe que, "sim, senhora, se lembrava dela, de Chaves, em 1958 ou 59, e que ia ver o que podia fazer por ela"... Mas acrescentava logo a seguir: " Sem papéis era mais arriscado, para mais sendo mulher. Mas prometia lembrar-se do seu caso e do seu pedido"...
Determinada a sair do círculo vicioso da pobreza e da solidão, a Rosemarie começou a preparar a "mala de cartão" e, um dia, com a desculpa de ir visitar a mãe, “muito doente, p'ra morrer”, obteve autorização para gozar uns dias de licença, na terra.
Nunca mais voltou a casa dos patrões em Cascais. E uma semana ou duas depois estava a atravessar os Pirinéus, escondida na mala do carro do Antoine.
Não lhe fez desconto nenhum, “o gajo” (como ela o tratava)!... E sabiam pouco um do outro. Mas deu conta que o Antoine se sentia atraído por ela... Na viagem, partilhada com mais gente (“rapazes novos, um ou dois deles fugidos à tropa”), foram pondo, lenta e discretamente, a conversa em dia. Ela, sempre muito faladora, “um livro aberto”, ele sempre muito calado, de óculos escuros, a cigarrilha ao canto da boca, do lado da cicatriz… E usava um chapéu preto à cobói, que puxava para a cara, a tapar-lhe os olhos…
Na presença de terceiros, o passador evitava ter com ela conversas mais pessoais. Respondia-lhe, quase sempre com monossílabos, os olhos postos na estrada, enquanto o Peugeot ia devorando quilómetros.
A cena mais caricata foi a passagem da Rosemarie no posto fronteiriço pirinaico, em Hendaia, que era pressuposto ser “da confiança do Antoine”.
Como era habitual, os homens que seguiam na viagem, apeavam-se uns quilómetros antes, ainda em território espanhol, e seguiam por um trilho, seguro, atrás do guia basco que trabalhava habitualmente com (ou para) o Antoine, que por sua vez os voltava a apanhar mais à frente, já em territ´orio gaulês. Tratava-se apenas de salvar as aparências, não fosse algum chefão aparecer por aquelas bandas sem avisar.
A Rosemarie foi poupada ao incómodo da travessia a pé, seguindo, deitada e tapada com um cobertor, na mala do carro do Antoine. À frente seguia um empregado do Antoine, com a carrinha de nove lugares, vazia. Cada passageiro transportava na mão as valises en carton, no trajeto a pé. Traziam o mínimo, uma ou duas mudas de roupa, calçado, farnel…
Habitualmente era o Antoine que conduzia a carrinha e naturalmente, era conhecido, e mais do que isso, “amigalhaço dos guardas fronteiriços” (a quem costumava deixar uns presuntos de Chaves ou até mas peças de caça). Há muito que fazia os postos fronteiriços de Hendaia e Irun, sendo conhecido como marchand d’art. Na realidade, também comprava e vendia velharias, antiguidades e móveis de estilo, abastecendo algumas lojas no Norte de Portugal e até na Galiza. Rentabilizava assim a viagem. Trazia tralha. E no regresso levava viande à canon, carne para canhão (como ele dizia, na galhofa, lembrando-se porventura dos seus duros tempos de legionário).
Mas daquela vez estava de serviço o “novato” de um agente que não conhecia o Antoine ou, pelo menos, não o reconheceu tout court... Mandou parar o carro e abrir a mala…
A Rosemarie não ganhou para o susto, mas de acordo com as instruções do Antoine, “não tugiu nem mugiu”… Tudo se resolveu num ápice quando o Antoine “puxou dos galões”, e falou no nome do “chefe”, seu velho conhecido do tempo da Legião…
Aliviados, seguiram a viagem, pela route nationale 10 (desgraçadamente também conhecida como cemitério dos portugueses), sem mais sobressaltos, até ao destino, que era… o famigerado bidonvillhe de Champigny.
A Rosemarie, ingénua (quando lhe convinha), nunca soube, ao fim destes anos todos, quais foram les frais de transport... Mas, nesse troço da viagem, já em território francês, ficou então a saber que o Antoine era viúvo e vivia num château, nos arredores da petite ville de A.... no Val-de-Marne.
Simpático, cavalheiro, sedutor, ofereceu à Rosemarie uma cama num duplex, grande demais para um homem que vivia sozinho, e que era a única parte habitável do casarão, que em tempos devia ter feito parte de uma quinta, sacrificada à expansão urbanística… O chateau não era, afinal, o "castelo dos contos de fadas" que ela imaginara ao longo da viagem...
Passada uma semana ou duas, já dormiam os dois na mesma cama. E ela arranjou, também por convite do Antoine, um primeiro emprego no bistrot, “O Cantinho da Saudade”.
(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.
O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)
Foi uma deixa para se falar do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste de Paris, onde ambos viveram…
Enquanto tu e a tua entrevistada tomavam café numa esplanada junto à lagoa (de Óbidos), puxaste a conversa para o Antoine… Querias conhecer melhor o homem, de obscuro passado, que levara a Rosemarie para França, a salto, em 1969, e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, depois de passar a dormir com ela… na cama.
É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que os entrevistadores (o português e o francês ) tiveram de respeitar.
A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-te ela. “Ainda mesmo antes de casar com o tocador de rabeca chuleira ”… Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:
− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia', como vocês dizem em Portugal, quando falam de raparigas… Disse-mo talvez uns dez anos mais tarde, quando me levou para França…
A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas. Era a sua “cruz de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.
O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.
E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte, à pneumónica (ou "gripe espanhola") de 1918/19.
Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.
A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, nunca ou raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.
A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera largos anos antes de ela chegar a França. O pai, esse, morrera ainda muito mais cedo, na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixava 4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.
Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.
Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva.
A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato no Porto.
−Tempos difíceis! – comentaria o entrevistador francês.
Viveram da caridade. Tanto quanto a Rosemarie contou sobre este periodo , e pelo que o Antoine lhe contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, esteve num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização portuguesa judaica.
Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.
Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário.
Mas, logo em finais de 1946, o Antoine voltou a Chaves e às atividades lucrativas (mas arriscadas) do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e os caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, a tiro, na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.
A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.
Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.
Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.
Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos. E estava, de
A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França nos princípios de 1969, "ainda no tempo do De Gaulle", já não se falava dessas guerras.
Por alguns amigos e conhecidos, inquiridos pelo entrevistador francès, soube-se que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 18/19 anos, por volta de 1950. Pertencia, não aos paraquedistas, mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine "não gostava de voar, tinha vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista" (confidenciou um antigo camarada de armas).
−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro – comentou um dos entrevistados franceses.
Um ano e tal depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.
A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano ou dois depois, em 1958, que ele conheceu a Rosemarie em Chaves.
Os amigos comuns de Óbidos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia, que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colégio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários, professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia, há várias gerações.
Foram entretanto viver para a região da Ilha de França, logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes.
O bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…
Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.
A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".
A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo, dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"...
Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”…
Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE, na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.
Mas voltando à Rosemarie: como sabia cozinhar, e "até cozinhava bem", foi uma boa aquisição para o tasco do Antoine. À noite, o bistrot enchia-se de clientes, a maior parte portugueses com saudade do "caldo verde" e de umas boas bifanas no "casqueiro".
Com o seu trabalho, ela pagava a “renda da casa” e ia descontando um xis por mês para as despesas da passagem a salto. Trabalhou um ano para o Antoine, sobravam-lhe uns trocos para os “alfinetes”… Saía de uma escravatura para se meter noutra, receava ela.
Arranjou, por isso, um part-time na limpeza de um consultório médico e depois numa clínica. Vinha a tempo de fazer o almoço para os dois. À tarde e à noite trabalhava no bistrot, era pau para toda a obra, estava na cozinha mas também dava um jeito nas mesas e ao balcão. E ao fim de semana havia fado…
Ao fim de alguns meses, lá pelo volta do Nöel de 1970, já se “desemerdava” (sic) com o francês. "A vida rolava bem". Estreou-se tempos depois no bistrot a cantar, em caraoque, a Amália e a Maria da Fé, que também começava a estar na moda…
Ainda não havia guitarrista, só viola. Alguém desencantou um tipo fugido à tropa que em tempos tinha acompanhado, à guitarra, fadistas amadores em tascos do Bairro Alto. Trabalhava como operário numa fábrica da Citröen. Dois ou três meses depois, com muitos ensaios, a Rosemarie apresentou-se, de xaile preto e rosa vermelha ao peito, a cantar o fado no bistrot, acompanhada à guitarra e à viola…
− Comme il faut!
Antoine não escondia o seu orgulho. Apresentava-a já como sua copine, chanteuse, não escondia o seu afeto por ela e elogiava o seu talento.
− Une deuxième Amalia! – garantia ele aos seus amigos franceses.
Foi a altura em que os teus anfitriões da casa de Óbidos a conheceram. Foi também o melhor período da vida da Rosemarie, não só da sua vida em França, como de toda a sua vida!
− Ah!, oui, j’ ai été três heureuse à cette époque-là! − garantiu-me ela.
A Rosemarie, aux yeux verts, "de olhos verdes", começou a ser notada. E o bistrot do Antoine duplicou a faturação. Mas o seu principal negócio continuava a ser o “ilegal”, o transporte de imigrantes clandestinos, de carro e de comboio… Como fachada legal e fiscal, tinha o tasca e uma loja de antiguidades, no próprio château, na prática, um depósito de velharias… Com os negócios a prosperar, também comprou um licença de táxi e arranjou um motorista, luso-francês de confiança.
Mas era a atividade de passador que lhe garantia mais proveitos. Terá ajudado centenas de portugueses e até magrebinos, a instalarem-se e legalizarem-se em França. E dizia-se até que explorava os desgraçados dos imigrantes com o aluguer de algumas "barracas" em Champigny. Coisa que a Rosemarie nunca soube (ou nunca quis saber). Nisso era notável a sua habilidade em ignorar, escamotear ou "branquear" algumas partes mais desagradáveis da sua vida em comum com o Antoine Ben Oliel.
Tudo corria bem, para o Antoine (e para a sua companheira), até à crise económica de 1973 e sobretudo até ao 25 de Abril… Meteu-se depois la merdre de la politique, lamentou-se a Rosemarie. A partir de 1974, começou a baixar a clientela do bistrot e as viagens a Portugal tornaram-se mais espaçadas…
− Et le fado devient… réactionnaire! – indignava-se ela.
− Reacionário... como assim ? – perguntaste-lhe ti, fazendo-me ingénuo,
Não soube ou não me quis responder. Repetia apenas que o fado se tornara "reacionário", e que os baladeiros haviam destronado os fadistas...
Em suma, a Rosemarie “perdeu o pio”, deixou de cantar por uns tempos, aproveitando a má maré para dedicar mais tempo à sua atividade principal, de femme de ménage. Criou uma empresa de limpezas, com o Antoine como sócio minoritário… E que foi um sucesso. Começava assim a ganhar independência em relação ao “seu homem”…
− Há males que vèm por bem! − contemporizava eu.
Começou a fazer amigos franceses. E integrou-se muito bem naquela pequena cidade de província, na banlieue de Paris. Durante muitos anos não veio a Portugal, nem mesmo quando o pai faleceu. E por volta de finais de 1980 consegue finalmente obter o divórcio do seu primeiro casamento. Nunca chegou a saber o destino que teve o seu primeiro marido, desaparecido para sempre, talvez assassinado numa lixeira de São Paulo ou do Rio de Janeiro.
No início dos anos 90, o Antoine Ben Oliel, já sexagenário, terá tido uma depressão, começou a beber mais ido que o habitual, e os negócios ressentiram-se. Ela ajudou-o a reequilibrar-se com "apoio psiquátrico". Mas em 1995 ele tem uma nova recaída e faz um tentativa de suicídio. Puxou do revólver e apontou à cabeça. In extremis, ela salvou-o, mesmo com risco da sua própria vida... Na luta corpo a corpo, a arma ainda disparou dois ou três tiros para o ar ("ainda lá estão marcados no teto")... Talvez por gratidão o Antoine aceitaria, mais tarde, casar-se com ela, já no ocaso da vida.
− Era violento, o Antoine ? – perguntaste tu, com alguma ingenuidade, Rosemarie, em 2018, o último ano em que ambos se viram, estando os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de deles, na sequência da pandemia de Covid-19.
− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surménage… Entendes ?
− Stress, como nós dizemos aqui.
− Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…
− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.
− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, no ano em que eu nasci.
O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E tu recordaste-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia…
− Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!
− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.
− Era a minha sina, o meu fado!... Afinal, tive dois homens que me amavam e me batiam.
Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca chuleira, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era truculento e ciumento. Sugeriste à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…
− Qu'est-ce que ça veut dire ?
Referiste-lhe o facto de ele ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada… Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário.
− A minha mãe era uma santa – recorda ela.
− E o pai ?
− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.
− E a mãe, consentia ?!...
− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas.
Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela, como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.
− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!
Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….
E pormenorizava:
− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.
− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão ? – perguntei eu.
− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!
E acrescentava:
− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.
Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.
Todavia, a Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.
− Jalousie, ciúmes! – achava ela.
O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o Francês. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine.
Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida, a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.
Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito com os entrevistadores sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…
− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo (e uma escrava) para aquele gajo!
Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.
− Heuresement, felizmente! − exclamava.
Nunca soube saber nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de frustraca "por não ter dado filhos ao Antoine". "Primeiro, passou a idade... E depois talvez fosse estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)
Em resumo, tudo indicavava que ela teria tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu a entender, nas entregvistas, que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.
Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…
Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não escondeu, de resto, que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…
Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir de 1974/75... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!, com uma carreira artística como fadista em França!...
Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património…
Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.
Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.
Sentindo a sua saúde piorar (e pressentindo talvez o fim!), o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.
Em 1999, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 68, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne. Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.
Dois anos depois, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.
No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos, que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.
− Gente ingrata, des gens de merdre! – arrematou ela.
Os últimos tempos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...
−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-te a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!
Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.
Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Tu, pelo teu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.
Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E em meados de 2020, morreu, vítima de Covid-19.
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 21 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I
"Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe 'oublier' (esquecer) e até talvez 'cacher' (esconder) ou mesmo 'effacer' (apagar) a sua origem portuguesa e a sua condição humilde de imigrante em França, filha de pequenos rendeiros pobres do Norte de Portugl.
"Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um 'cadavre', o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola ou no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, no inicio de 1969, quando partiu para França 'a salto«. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos." (...)
quinta-feira, 21 de março de 2024
Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I
− Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a
salto, escondida na mala do carro de um passador…
Foi assim que a Rosemarie (nome fictício, por razões óbvias)
começou o seu "relato de vida": um passador que será depois seu
amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.
A salto !... Como tanto outros portugueses e até
portuguesas, nos anos 60 até meados de 70...
E, no entanto, a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille…
Tinha 30 anos feitos... E era "criada de servir"...0
− Nasci em 1939, mon chérie.
Morto o Antoine [leia-se "an-tu-a-ne", diz-te ela], há
uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á sentido
liberta de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto
ao seu futuro…
Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o
património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu
doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros, os
filhos do primeiro casamento.
Libertou-se sobretudo de uma relação de amor-ódio que
manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão
transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.
− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou um
viúva portuguesa remediada em França… − comentou ela, com amarga ironia.
Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com
sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido
segundo marido.
Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie,
como ela repetia amiudadas vezes, com muito humor, perpassado âs vezes com
alguma tristeza mas quase sempre sem rancor.
E, no entanto, ela foi uma típica vítima de violência
doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos
que ela, e com um passado de guerra.
A sua vida ("que contada dava um filme") foi passada entre o Portugal dos sombrios anos 40 e 50, e a França gloriosa, da V República.
− Voltei à minha terra natal... nem sei bem porquè. Dizem
que é a voz do sangue... Mas agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era
nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.
Gostava de ser tratada como Madame Ben Oliel. Conheceste-a
numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido
materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que
esteve nas guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem
e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e
até talvez cacher ou até effacer (esconder ou até apagar) a sua origem
portuguesa e a sua condição, humilde , de imigrante em França, filha de
rendeiros pobres do Norte de Portugal. O que, na realidade, nunca conseguiu por
causa do seu accent: não carregava suficientemente nos "erres"...
−
L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! −
desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.
Tu havia-la conhecido, há já uns bons anos, quando ela
andava perto dos 70, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de
juventude, com uns fatais olhos verdes.
− Quando tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila
vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um
bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.
Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente. Aceitou com relativa facilidade o convite para ser
entrevistada para uma projeto de investigação sociológica sobre "histórias
de vida de mulheres imigrantes portugueses em França". Envolvia também
investigadores franceses que a ouviram, por seu turno, nos arredores de Paris
(onde tinha residência oficial).
Naturalmente, o investigador português deu-lhe todas as
garantias de sigilo e anonimato. Infelizmente meteu-se a pandemia pelo meio e,
num dos seus regressos a França, acabou por adoecer e morrer, estupidamente, de covid-19. Por amigos da Rosematie, soube- se que terá morrido por infeção
hospitalar… Ia fazer 81 anos.
Ficou-te então a vontade de evocar (e de certo modo
homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade,
a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos
arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…).
Desconhece-se se deixou herdeiros, mas devia ter pelo menos sobrinhos algures,
em parte incerta.
Conheceste-a na casa de praia de uns amigos comuns,
parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão, desde 1974, atraídos
pela revolução dos cravos. Agora,
professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita
frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.
Nunca chegaste a saber exatamente quais eram as suas
afinidades mas, das conversas cruzadas, haviam-se tornado amigos desde o tempo
em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.
Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal
a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezanove anos de
diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:
− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus
olhos, aqueles olhos verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como
punhais'... Quem cantava isto ?...
− Ah!, o Francisco José, um rapaz do seu tempo...
Estes amigos franceses comuns adoravam Portugal, o sol, os
fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les
portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e
no Olympia de Paris.
Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheceste
a Rosemarie, rapidamente ganhaste a sua confiança e até a sua afeição. Falavam
ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos anfitriões, entre duas
ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer
confidências, estando só contigo.
Explicaste-lhe que a equipa estava muito interessado em
conhecer a histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a
coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura
com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.
Acabaste por criar laços afetivos, de empatia e até de
amizade, contrariando até a tua deontologia profissional. Ainda se encontraram
três ou quatro vezes e falaram ao telefone. E tiveste acesso à transcrição da
entrevista feita pela equipa francesa. Em suma, conheceste razoavelmente bem a
sua biografia.
Com tristeza soubeste da sua morte, vítima da pandemia do
século. Tratava-te, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem.
Era muito maternal.
Era da região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus
pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.
− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de
rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois
que terão morrido ainda anjinhos do céu.
E acrescentava:
− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos
esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.
Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar,
oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O
mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor",
médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.
− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama,
mesa e roupa lavada.
E mesmo assim eram precisas referências, cartas de
recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as
enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar
a “conduta moral irrepreensível”…
No caso da Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou para
Chaves, em meados dos anos 50 como “criadita de servir” de uns senhores da
família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…
− Fidalgo ?! – indagaste, curioso.
− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um
brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da
História de Portugal não sei nada. O muito pouco que sei, ouvi-o desses
senhores, meus patrões.
Tinha casado, entretanto,
aos 24 anos, em finais de 1963.
− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! –
comentou. com alguma amargura na voz.
Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos
patrões de Chaves, casara com "o primeiro fils de putain”, o primeiro
filho da p…, que conheceu num baile, já
em Resende. E que a “desonrou” (sic).
Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o
distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em
França, o Antoine, de quem se voltara a falar, mais à frente.
A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo
de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de
algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor.
Para. ti era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse
preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais e detalhes circunstanciais,
obrigando-te a reformular ou repetir a pergunta…
Nascida em 1939, a Rosemarie casou aos 24 "com vestido
branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção,
senhor meu pai!"...
− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos
e costumes da época. E confidenciava, com graça:
− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido
catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no
confessionário, davam à expressão 'comer a maçã'.
O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos
patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 8 anos e que fizeram
questão de ser padrinhos da noiva.
Não se atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe
passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida” (sic).
Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro,
ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães
solteiras.
− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.
À medida que se entusiasmava com a conversa, Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pelo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não te deixavam todavia de surpreender, talvez por serem de gerações diferentes, tu com idade de ser seu filho.
Afinal, isto passava-se no teu país, ainda nos anos 50 e 60.
E tu não podias deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar
estas histórias de vida, bem duras.
− No meu tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto
ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso
da maioria.
− A liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada,
conquista-se – acrescentaste tu, usando um chavão que era, de há muito, um
lugar comum.
− Ah!, sim, vê o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado
a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que
ele me tinha desonrado.
− A sério?!... A tiro ?!... Agora se percebe por que é que o
seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…
− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois
aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão
por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau
olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas
garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às
raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que
gritavam: “Damas, ao bufete!”…
Os “bailes mandados” ? Explicou-te ela depois: os homens e
os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',
no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um
dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as
casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido
ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as
ciumeiras entre rapazes…
Mas os feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles
tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que
o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda,
um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.
Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não
dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto
aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior
parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao
São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as
dívidas.
− Mas como é que vocês se conheceram ? – quiseste tu saber,
intrigado.
− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num
desses tais bailes mandados…
− Em Chaves ?...
− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses
de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de meia e quis celebrar o regress, com saúde e sucesso…
Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O
Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile…
Fazia parte da tuna…
− A tuna ?
− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava
viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca chuleira.
Juntavam-se a outras tunas, ali da região do Marão e Montemuro, de Baião a
Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham
mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha
profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma
mesa ou armário de jeito.
− E tocava bem, o seu homem ?
− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o
cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a
gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e
sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a
contradança… Já havia rádio, mas pouca gente tinha rádio e telefone… E a
televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas
quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga
do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais
tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte
imperial de Viena… Naquele tempo éramos todas umas atrasadas…
− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode
falar-se de miséria, miséria mesmo ?
− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier –
começou a tutoyer, a tratar por tu o entrevistador, que nunca lhe correspondeu, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia
defensiva…
Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as
tamancas, a casa de pedra, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto
para os pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do
milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a
família se mudou de Cabeceiras para Resende.
Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido
mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e
Guiné.
Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie
arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu
pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no
Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de
amigos. Enfim, estava ligado à antiga nobreza rural, pequena e decadente, cujas origens
remontavam ao tempo do liberalismo.
− E porquê Resende, Rosemarie ?
Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões
tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer
vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia
boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser
alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em
Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou
promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios
da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).
Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa
nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e
outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a
entrar em decadência.
Depois da separação (de facto mas não “de jure”), a
Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns
senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves
e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de
cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...
− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?
Ela contou-te tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando,
aqui vai o essencial dos factos.
A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina.
Não perdia “bailos”, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a
ir. A princípio, até aos 16 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de
varapau”.
− Varapau ?...
− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes
aprendiam a ser homens… Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe
a cabeça por minha causa.
− O seu irmão ?!...
− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas.
Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça.
− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, para a gente não
se perder... Estávamos a falar do baile…
− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a
cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já
sem muito tempo à minha frente, mas naquela época eu era uma raparigaça que
metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar… E, depois, como também
tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava
sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para
as cantigas.
−…Até ao dia em que...?
− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... Tinha vindo
da tropa, em Angola, em meados de 1963… A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio
da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser
a minha perdição!...
− Amor de perdição!... Mas como assim ?!...
− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê,
doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!... Fazíamos amor… qual amor!,
fazíamos sexo em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi
?, 'desavergonhada'!... Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio
− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não
me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...
− D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as
palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, c'est çá ?!... Era o que eu era
nessa altura…
− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da
pele!…
− Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na
força da idade, se bem que ele fosse um pouco mais velho do que eu… E deixa-me
dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era
abonado, um garanhão, o cabrão.
− E a tuna, os bailes, as tainadas?...
− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí
trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca,
depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de
lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça:
mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...
− Ficou, portanto, o caldo entornado…
− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida
airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas
tainadas.
− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época
balnear, não ?!…
− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de
Canaveses…
− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…
− Passaram-se os seis meses da
lua de mel, um ano… E nada!...
− Nada, o quê ?!-…
− Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um
homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não
emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…
− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…
− Ah!, oui!... Então Começou a bater-me. Começou a ficar
ciumento, possesso… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o
cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.
E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.
− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia
cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava
com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,
uma vergonha para mim e para a minha família... Pedi ajuda, até ao padre... Todos me diziam: "Entre o homem e a mulher, não ponhas colher!"...
Até um dia em que enchi-me de coragem e bati com a porta, voltando para casa dos
meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações.
Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão
tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… Os homens protegem-se uns aos outros...
− E depois ?...
− Constou-se que voltara a Angola… que já conhecia, já havido ido para lá quando rebentara o terrorismo... Depois em 74 ou 75, com a independência, veio com os outros retornados… Tinha, ao que se dizia, um imão mais velho no Brasil, foi ter com ele… Já eu estava em França, há um bom par de anos, desde 1969…Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Heuresement!...
− Mas o mundo é pequeno, Rosemarie...
− Sim, houve quem o visse a sambar, a tocar
rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim
desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando eu me quis divorciar, foi o cabo dos
trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto.
Divorciei-me já em França, já com quase 60 anos… Lá no Brasil o meu advogado francês tratou de arranjar uma certidão de óbito… Não
sei se falsa ou verdadeira, custou-me uma boa nota…
− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…
− Se foi!... Dava para outro filme, mon chérie… Mas hoje já não to
conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée…
(Continua)
© Luís Graça (2020). Revisão em 21 de março de 2024.