− Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a
salto, escondida na mala do carro de um passador…
Foi assim que a Rosemarie (nome fictício, por razões óbvias)
começou o seu "relato de vida": um passador que será depois seu
amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.
A salto !... Como tanto outros portugueses e até
portuguesas, nos anos 60 até meados de 70...
E, no entanto, a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille…
Tinha 30 anos feitos... E era "criada de servir"...0
− Nasci em 1939, mon chérie.
Morto o Antoine [leia-se "an-tu-a-ne", diz-te ela], há
uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á sentido
liberta de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto
ao seu futuro…
Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o
património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu
doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros, os
filhos do primeiro casamento.
Libertou-se sobretudo de uma relação de amor-ódio que
manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão
transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.
− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou um
viúva portuguesa remediada em França… − comentou ela, com amarga ironia.
Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com
sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido
segundo marido.
Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie,
como ela repetia amiudadas vezes, com muito humor, perpassado âs vezes com
alguma tristeza mas quase sempre sem rancor.
E, no entanto, ela foi uma típica vítima de violência
doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos
que ela, e com um passado de guerra.
A sua vida ("que contada dava um filme") foi passada entre o Portugal dos sombrios anos 40 e 50, e a França gloriosa, da V República.
− Voltei à minha terra natal... nem sei bem porquè. Dizem
que é a voz do sangue... Mas agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era
nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.
Gostava de ser tratada como Madame Ben Oliel. Conheceste-a
numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido
materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que
esteve nas guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem
e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e
até talvez cacher ou até effacer (esconder ou até apagar) a sua origem
portuguesa e a sua condição, humilde , de imigrante em França, filha de
rendeiros pobres do Norte de Portugal. O que, na realidade, nunca conseguiu por
causa do seu accent: não carregava suficientemente nos "erres"...
−
L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! −
desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.
Tu havia-la conhecido, há já uns bons anos, quando ela
andava perto dos 70, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de
juventude, com uns fatais olhos verdes.
− Quando tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila
vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um
bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.
Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente. Aceitou com relativa facilidade o convite para ser
entrevistada para uma projeto de investigação sociológica sobre "histórias
de vida de mulheres imigrantes portugueses em França". Envolvia também
investigadores franceses que a ouviram, por seu turno, nos arredores de Paris
(onde tinha residência oficial).
Naturalmente, o investigador português deu-lhe todas as
garantias de sigilo e anonimato. Infelizmente meteu-se a pandemia pelo meio e,
num dos seus regressos a França, acabou por adoecer e morrer, estupidamente, de covid-19. Por amigos da Rosematie, soube- se que terá morrido por infeção
hospitalar… Ia fazer 81 anos.
Ficou-te então a vontade de evocar (e de certo modo
homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade,
a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos
arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…).
Desconhece-se se deixou herdeiros, mas devia ter pelo menos sobrinhos algures,
em parte incerta.
Conheceste-a na casa de praia de uns amigos comuns,
parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão, desde 1974, atraídos
pela revolução dos cravos. Agora,
professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita
frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.
Nunca chegaste a saber exatamente quais eram as suas
afinidades mas, das conversas cruzadas, haviam-se tornado amigos desde o tempo
em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.
Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal
a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezanove anos de
diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:
− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus
olhos, aqueles olhos verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como
punhais'... Quem cantava isto ?...
− Ah!, o Francisco José, um rapaz do seu tempo...
Estes amigos franceses comuns adoravam Portugal, o sol, os
fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les
portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e
no Olympia de Paris.
Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheceste
a Rosemarie, rapidamente ganhaste a sua confiança e até a sua afeição. Falavam
ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos anfitriões, entre duas
ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer
confidências, estando só contigo.
Explicaste-lhe que a equipa estava muito interessado em
conhecer a histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a
coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura
com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.
Acabaste por criar laços afetivos, de empatia e até de
amizade, contrariando até a tua deontologia profissional. Ainda se encontraram
três ou quatro vezes e falaram ao telefone. E tiveste acesso à transcrição da
entrevista feita pela equipa francesa. Em suma, conheceste razoavelmente bem a
sua biografia.
Com tristeza soubeste da sua morte, vítima da pandemia do
século. Tratava-te, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem.
Era muito maternal.
Era da região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus
pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.
− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de
rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois
que terão morrido ainda anjinhos do céu.
E acrescentava:
− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos
esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.
Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar,
oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O
mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor",
médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.
− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama,
mesa e roupa lavada.
E mesmo assim eram precisas referências, cartas de
recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as
enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar
a “conduta moral irrepreensível”…
No caso da Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou para
Chaves, em meados dos anos 50 como “criadita de servir” de uns senhores da
família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…
− Fidalgo ?! – indagaste, curioso.
− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um
brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da
História de Portugal não sei nada. O muito pouco que sei, ouvi-o desses
senhores, meus patrões.
Tinha casado, entretanto,
aos 24 anos, em finais de 1963.
− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! –
comentou. com alguma amargura na voz.
Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos
patrões de Chaves, casara com "o primeiro fils de putain”, o primeiro
filho da p…, que conheceu num baile, já
em Resende. E que a “desonrou” (sic).
Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o
distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em
França, o Antoine, de quem se voltara a falar, mais à frente.
A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo
de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de
algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor.
Para. ti era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse
preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais e detalhes circunstanciais,
obrigando-te a reformular ou repetir a pergunta…
Nascida em 1939, a Rosemarie casou aos 24 "com vestido
branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção,
senhor meu pai!"...
− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos
e costumes da época. E confidenciava, com graça:
− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido
catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no
confessionário, davam à expressão 'comer a maçã'.
O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos
patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 8 anos e que fizeram
questão de ser padrinhos da noiva.
Não se atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe
passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida” (sic).
Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro,
ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães
solteiras.
− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.
À medida que se entusiasmava com a conversa, Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pelo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não te deixavam todavia de surpreender, talvez por serem de gerações diferentes, tu com idade de ser seu filho.
Afinal, isto passava-se no teu país, ainda nos anos 50 e 60.
E tu não podias deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar
estas histórias de vida, bem duras.
− No meu tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto
ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso
da maioria.
− A liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada,
conquista-se – acrescentaste tu, usando um chavão que era, de há muito, um
lugar comum.
− Ah!, sim, vê o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado
a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que
ele me tinha desonrado.
− A sério?!... A tiro ?!... Agora se percebe por que é que o
seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…
− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois
aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão
por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau
olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas
garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às
raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que
gritavam: “Damas, ao bufete!”…
Os “bailes mandados” ? Explicou-te ela depois: os homens e
os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',
no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um
dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as
casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido
ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as
ciumeiras entre rapazes…
Mas os feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles
tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que
o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda,
um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.
Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não
dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto
aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior
parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao
São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as
dívidas.
− Mas como é que vocês se conheceram ? – quiseste tu saber,
intrigado.
− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num
desses tais bailes mandados…
− Em Chaves ?...
− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses
de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de meia e quis celebrar o regress, com saúde e sucesso…
Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O
Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile…
Fazia parte da tuna…
− A tuna ?
− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava
viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca chuleira.
Juntavam-se a outras tunas, ali da região do Marão e Montemuro, de Baião a
Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham
mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha
profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma
mesa ou armário de jeito.
− E tocava bem, o seu homem ?
− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o
cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a
gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e
sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a
contradança… Já havia rádio, mas pouca gente tinha rádio e telefone… E a
televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas
quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga
do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais
tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte
imperial de Viena… Naquele tempo éramos todas umas atrasadas…
− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode
falar-se de miséria, miséria mesmo ?
− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier –
começou a tutoyer, a tratar por tu o entrevistador, que nunca lhe correspondeu, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia
defensiva…
Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as
tamancas, a casa de pedra, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto
para os pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do
milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a
família se mudou de Cabeceiras para Resende.
Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido
mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e
Guiné.
Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie
arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu
pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no
Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de
amigos. Enfim, estava ligado à antiga nobreza rural, pequena e decadente, cujas origens
remontavam ao tempo do liberalismo.
− E porquê Resende, Rosemarie ?
Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões
tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer
vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia
boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser
alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em
Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou
promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios
da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).
Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa
nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e
outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a
entrar em decadência.
Depois da separação (de facto mas não “de jure”), a
Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns
senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves
e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de
cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...
− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?
Ela contou-te tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando,
aqui vai o essencial dos factos.
A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina.
Não perdia “bailos”, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a
ir. A princípio, até aos 16 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de
varapau”.
− Varapau ?...
− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes
aprendiam a ser homens… Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe
a cabeça por minha causa.
− O seu irmão ?!...
− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas.
Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça.
− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, para a gente não
se perder... Estávamos a falar do baile…
− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a
cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já
sem muito tempo à minha frente, mas naquela época eu era uma raparigaça que
metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar… E, depois, como também
tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava
sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para
as cantigas.
−…Até ao dia em que...?
− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... Tinha vindo
da tropa, em Angola, em meados de 1963… A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio
da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser
a minha perdição!...
− Amor de perdição!... Mas como assim ?!...
− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê,
doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!... Fazíamos amor… qual amor!,
fazíamos sexo em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi
?, 'desavergonhada'!... Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio
− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não
me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...
− D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as
palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, c'est çá ?!... Era o que eu era
nessa altura…
− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da
pele!…
− Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na
força da idade, se bem que ele fosse um pouco mais velho do que eu… E deixa-me
dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era
abonado, um garanhão, o cabrão.
− E a tuna, os bailes, as tainadas?...
− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí
trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca,
depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de
lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça:
mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...
− Ficou, portanto, o caldo entornado…
− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida
airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas
tainadas.
− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época
balnear, não ?!…
− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de
Canaveses…
− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…
− Passaram-se os seis meses da
lua de mel, um ano… E nada!...
− Nada, o quê ?!-…
− Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um
homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não
emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…
− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…
− Ah!, oui!... Então Começou a bater-me. Começou a ficar
ciumento, possesso… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o
cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.
E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.
− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia
cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava
com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,
uma vergonha para mim e para a minha família... Pedi ajuda, até ao padre... Todos me diziam: "Entre o homem e a mulher, não ponhas colher!"...
Até um dia em que enchi-me de coragem e bati com a porta, voltando para casa dos
meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações.
Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão
tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… Os homens protegem-se uns aos outros...
− E depois ?...
− Constou-se que voltara a Angola… que já conhecia, já havido ido para lá quando rebentara o terrorismo... Depois em 74 ou 75, com a independência, veio com os outros retornados… Tinha, ao que se dizia, um imão mais velho no Brasil, foi ter com ele… Já eu estava em França, há um bom par de anos, desde 1969…Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Heuresement!...
− Mas o mundo é pequeno, Rosemarie...
− Sim, houve quem o visse a sambar, a tocar
rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim
desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando eu me quis divorciar, foi o cabo dos
trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto.
Divorciei-me já em França, já com quase 60 anos… Lá no Brasil o meu advogado francês tratou de arranjar uma certidão de óbito… Não
sei se falsa ou verdadeira, custou-me uma boa nota…
− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…
− Se foi!... Dava para outro filme, mon chérie… Mas hoje já não to
conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée…
(Continua)
© Luís Graça (2020). Revisão em 21 de março de 2024.
1 comentário:
É uma tradição do Norte, e sobretudo da região do Marão, o "baile mandado" e a "tuna rural"... Que já se perdeu ou está em vias de desaparecer...
Enviar um comentário