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quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de setembro de 2024:

Queridos amigos,

Devo a seguinte explicação. Adquiri inicialmente um conjunto de aerogramas, posteriormente perguntei à minha fornecedora se podia remexer lá no saco e ver se havia ainda alguma correspondência da Guiné. Apareceram, de facto, mais cartas do tenente Nuno Barbieri, mas datadas de Luanda, no nosso blogue só trato da Guiné e não vi razão para abrir exceções. 

O que obtive foram mais cartas de um amigo de Paulo António, o alferes Pedro Barros e Silva. Começo por uma carta extensa (publica-se agora só metade), toda esta correspondência foi escrita em 1966, o autor é uma pessoa incontestavelmente informada e culta, a redação comprova-o. 

Vista à distância, tratou com argúcia e pertinência certas observações, outras falhou redondamente, caso do Senegal, naquele mesmo ano de 1966 o PAIGC, depois de um encontro entre Senghor e Cabral, viu a sua vida facilitada com o transporte de pessoal e armamentos através de diferentes corredores; e não passava de pura especulação a possibilidade do PAIGC implantar uma estrutura governamental no Quitafine. 

Esta carta é merecedora da nossa atenção.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra vou sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. 

Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali, primeiramente, quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. 

Posteriormente, e depois de pedir à Sra. D. Amélia se tinha mais cartas dentro dos seus sacos, apareceram outras escritas pelo tenente Nuno Barbieri mas relacionadas com a sua presença em Angola, e mais duas de um alferes amigo de Paulo António, Pedro Barros e Silva. 

Já aqui se publicaram as duas cartas de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora uma das quatro cartas de Pedro Barros e Silva, datada de 17 de agosto de 1966 (as demais cartas são igualmente de 1966):

“Meu caro Paulo,

Escrevo esta carta na esperança que ainda siga para amanhã no avião militar. O mais provável é que ou o avião não segue ou não segue a carta. Enfim, tenta-se. Recebi a tua carta que chegou, como sempre, em boa altura. Já começava muito seriamente a temer que tivesses ficado submergido sob a avalanche dos exames, mestres, doutores e professores. Felizmente que te safaste com vida e fiquei bastante satisfeito por saber que os teus exames te tinham corrido positivamente. Podes crer que o meu patriotismo ficou ao rubro quando li que tinhas arrancado um 16 a tal coisa da História. Por momentos até acreditei que tivesses entrado no bom caminho. A Pátria que tanto fez por ti não merece as tuas ingratidões. Como já vai sendo habitual, a seguir aos teus exames, aos teus embates ferozes com a sapiência, entras gosse-gosse na tua caverna da Outra Banda, lá ficas a desintoxicar e a descontrair. Eu é que já estou bem necessitadinho de uma caverna pois começo a ficar nas lonas.

Já estou farto desta merda toda. Queres crer que não me importava nada, mesmo nadinha, poder estar fazendo uns estudos sobre essa tal fauna estival de que falas. Bem, espero que as pesquisas decorram frutuosamente e que a tua loura Fúria (loura ou morena?) te não prejudique nos teus trabalhos.

Escrever sobre a situação da Guiné não me parece muito simples. Mas deixemos o perlapié para dezembro, quando eu aí for. Por agora, vou procurar mostrar-te alguns aspectos da situação. Acertaste quando escreveste que eles tocam e nós dançamos. Contudo, não é bom esquecer que não são eles os regentes.

Quando cá cheguei entretive-me durante uns tempos a analisar as relações entre os militares e a população civil. Desta exceptuei os que vieram para a Guiné posteriormente à eclosão da porrada. A presença dos militares é tolerada. Na verdade, o máximo que nos parece ser permitido é pedir que não nos chamem muito alto filhos da puta. Esmagados pelo nosso complexo de culpa, nós, os maus e impuros, vamos atafulhando de dinheirinho as algibeiras dos bons e puros. Talvez eles nos deixem de chamar nomes feios.

Não julgues que este modo de pensar é característica exclusiva dos ‘velhos’. Uma boa parte dos novos também acha que se a gente tratar bem os pretinhos estes nos perdoariam por todos os séculos de chicotada que têm no lombo (se os visses trabalhar perguntarias para que serve o chicote) e passariam a ser bons cristãos e bons portugueses. Normalmente, após terem bebidos uns goles de água da bolanha mudam de ideias e então querem é pisgar-se. Mas isto tem que ser visto no contexto geral das estratégias que uma e outra parte utilizam. As ideias-base da nossa estratégia coincidem com as ideias-base da estratégia inimiga. Diferem no sinal. Assim, enquanto a estratégia do IN é ativa, conquistadora, lançada para um futuro, a nossa é passiva, conservadora, projeção do passado (dos tais 5 séculos).

Assim, bem podemos bradar aos quatro ventos que o IN ataca indistintamente brancos e negros. Será que também não haverá maus negros, traidores que a troco de uns patacões estão prontos a lutar (e alguns bastante bem) do nosso lado?

Nem tudo que é do lado de lá está o lugar deles e efetivamente é lá que está a grande maioria. E porquê? Quando nós dissemos aos Felupes, aos Sossos, aos Fulas, aos Balantas, aos Mandigas, a todos esses selvagens que se odiavam de morte, que eram todos portugueses, todos filhos do mesmo Deus que também era o nosso, quando os afastámos dos seus usos, deturpámos e aviltámos os seus sítios, os arrancámos à tabanca e os lançámos na cidade, não fizemos mais que criar as condições que permitiram a atual situação. Quando o IN proíbe severamente o tribalismo e os privilégios tribais, chama-os a todos guineenses, dá-lhes o português como língua única, limita-se a continuar aquilo que nós iniciámos e que incompreensivelmente continuamos. Quanto a mim, tendo em linha de conta um e outro dispositivo, a derrota é inevitável, a menos que se alterem certos factores externos que influem decisivamente e são susceptíveis de alterar profundamente a situação. Eles tocam, mas não são eles os donos dos instrumentos.

Parece-me que o factor mais importante é a atitude que os EUA possam vir a tomar. Até que pontos os ianques estarão dispostos a auxiliar-nos a ganhar esta guerra (no fundo, trata-se somente de impedir os outros de a ganharem, já que nós somos insuficientemente incompetentes para o fazer).

Vou deixar propositadamente para trás as nossas possibilidades de conquistar a mão da donzela. Há muito que andamos afastados destas lides e andamos esquecidos. Durante algum tempo ainda pensei que quiséssemos empatar a disputa (engolindo à pressa mais vitaminas), hoje cheguei à conclusão de que não temos a audácia e força para a desempatar. Assim, esperemos que o outro pretendente tenha uma paralisia infantil. Ora o outro pretendente é o PAIGC (que tem dois primos raquíticos, a FLING e a FLING combatente). As surpresas do rapaz dependem da atitude que tomarem uns parentes um pouco mais idosos: o Senegal e a Guiné.

Como é óbvio, a posição desses é determinada pelos cataventos da História. Ora sopram daqui, sopram dali. Pelo que toca ao Senegal, está-me a parecer que o PAIGC está a levar com os pés. Não é que os senegaleses nos beijem na boca e nos chamem Tarzan, mas eles têm medo de que o PAI de parceria com o PAIGC lhe meta um cagaço. E como a região do Casamansa é a base do PAI, os rapazes senegaleses estão a empurrar os turras para longe. Para começar proibiram todo o trânsito de material de guerra no seu território.

A concretizar-se mais profundamente o desafio que o Senghor está a oferecer ao Amílcar, é admitir que este tenha de abandonar ou pelo menos de diminuir a intensidade da luta no Norte e até talvez seja levado a abandonar uma das suas mais tradicionais posições: o Oio (apesar do que para aí dizem, nós não entramos no Oio).

Não se alterando a posição do Touré, é provável que tivéssemos de enfrentar um endurecimento da porrada ao Sul, que é, sem sombra de dúvida, aonde estamos de cócaras e onde eles têm posições tão seguras que até já pensam em instalar o Governo no Quitafine. Quanto à Guiné, falou-se por aí de umas desinteligências entre o Amílcar e o Touré. Quanto a mim, não passa de um bec-bec. As forças do PAIGC representam, para o Touré um tampão que lhe protegerá para a fronteira Norte e se necessário o ajudará a manter-se no trono, já que no Sul o rapazola (recentemente cognominado de Le Grand Soleil – maravilhas do socialismo africano) estão de calcinhas, ou por outra, de tanga na mão. De resto, parece-me que não seria muito difícil dar-lhe umas boas palmadas no rabo. Os ebúrneos que se entretenham. Eles têm para lá uma FNL (decerto que entendes a sigla) e já chamam bandidos e outros nomes feios aos moços do PAIGC. Para mim, tanto faz que lá esteja o Mamadu, o Baldé ou Fosquinhas. O principal é que se dê o chuto nos tais bandidos e seja amigo da tropa. A actual situação militar, como já deves ter depreendido através dos monocórdicos comunicados não é propriamente fantástica. A maralha não defronta uns bandos mas (e eu sei) gajinhos muitíssimo bem treinados e ainda por cima enquadrados por russos (chamemos assim aos brancos do lado de lá) e cubanos. Vou até ousar afirmar que não é em Moçambique ou em Angola que vão incidir maiores esforços do IN para nos pôr a andar. É aqui na Guiné.”


Interrompemos aqui a carta de Pedro Barros e Silva para Paulo António, é muito extensa e escusado é relevar que merece ser lida com a maior atenção.

Mensagens de Natal, Guiné 1966, RTP Arquivos

(continua)
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Nota do editor

Post anterior de 24 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25342: Notas de leitura (1680): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Passa-se em revista os acontecimentos que marcam a transição de 1970 para o ano seguinte, envolvem equipamento que foi sabotado em Tancos numa operação da ARA, os permanentes conflitos internacionais devido a fogo retaliatório em território fronteiriço da Guiné-Conacri e Senegal, segue-se a Operação Mar Verde e a partir de 1971, Spínola insiste que precisa de meios face às potenciais agressões que poderão vir da Guiné-Conacri, em resposta à incursão portuguesa. As insistências de Spínola para se comprarem aviões mais eficazes esbarrava sempre com negativas dos EUA e países da NATO, curiosamente é em Abril de 1974 que se estava a apalavrar a compra de Mirage, e por razões que veremos mais adiante, Kissinger parecia abrir mão, através de um negociante israelita, de mísseis terra-ar Red Eye, entretanto a guerra acabou.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.




Capítulo 5: “Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra”

Acompanhamos agora a evolução dos acontecimentos desde os finais de 1970. Houvera compra de equipamento militar, de acordo com as necessidades prementes da Força Aérea, entretanto uma ação subversiva em Tancos tornou inoperacional um conjunto importante de aeronaves. O debate internacional sobre a presença portuguesa em África era cada vez mais hostil ao Estado Novo, e as flagelações em territórios limítrofes da Guiné era sempre pretexto para reiteradas acusações na ONU contra as colónias portuguesas. Estamos num período em que aumentou o fornecimento de armas e material ao PAIGC, ofertas sobretudo da Europa de Leste e da URSS, as bases do PAIGC tanto na Guiné-Conacri como no Senegal foram ganhando importância.

O Comandante Alpoim Calvão observou: “Estávamos sempre perseguindo o inimigo, mas como as fronteiras da Guiné não estavam fechadas, era como esvaziar uma banheira sem fechar a torneira.” Frustrado com o uso incontestável do PAIGC de bases estrangeiras, Spínola orientou as suas unidades militares para ações retaliatórias (desde fogo de artilharia a operações especiais) nas zonas transfronteiras. O Ministro da Defesa Nacional, Sá Viana Rebelo, assumia uma postura diferente, ordenou a Spínola que respeitasse as fronteiras internacionais e derrotasse o inimigo dentro das nossas fronteiras, o que era materialmente impossível, a guerra, tanto na superfície como aérea implicava ou perseguições ou bombardeamentos nas regiões limítrofes. Como recordou o antigo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, General Lemos Ferreira, nunca se deu autorização para ataques em território estrangeiro, mas eles iam acontecendo. Em 25 de novembro e em 7/8 de dezembro de 1969, as forças portuguesas terão bombardeado um depósito do PAIGC em Samine, no Senegal, matando seis civis e ferindo nove. O presidente senegalês, Léopold Senghor, ordenou um reforço de tropas na fronteira sul do Senegal, invocando acordos de defesa com a França, que garantia a utilização de seis Noratlas na base de Dacar. Em 12 de dezembro, estes aviões franceses transportaram 1200 soldados senegaleses para o campo de aviação de Ziguinchor, a cerca de 13 km da fronteira com a Guiné Portuguesa.

Esta demonstração de força (e uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenando as ações portuguesas) não dissuadiram futuras incursões; o Senegal queixou-se, entre janeiro e julho de 1970 de mais 16 ataques de forças especiais e fogo de artilharia, bem como oito violações do espaço aéreo. Amílcar Cabral admitiu que estas atividades retaliatórias tinham levado o Senegal a fechar os hospitais do PAIGC na região, a bloquear a passagem de armas e reforços e até mesmo a submeter os alimentos e medicamentos destinados ao PAIGC a controlos rigorosos.

A República da Guiné-Conacri também protestou contra a “agressão premeditada”, acusando as forças portuguesas na Guiné cinco ataques com obuses e três ataques aéreos no seu território em 1969; mas o ataque português de longe mais dramático e controverso ocorreu em novembro de 1970. Numa tentativa ousada de decapitar a liderança do PAIGC e fomentar um golpe de Estado na República da Guiné, as forças portuguesas organizaram uma invasão anfíbia a Conacri em 22 de novembro, a Operação Mar Verde, concebida e liderada pelo comandante Alpoim Calvão. Ele propôs um ataque noturno de forças especiais africanas da Guiné lideradas por oficiais portugueses e também membros do grupo dissidente a Sékou Touré, Front de Libération Nationale de Guiné (FLNG). Uma vez em terra, os atacantes tinham por missão assassinar o Presidente da República da Guiné, iniciar um golpe de Estado liderado pelo FLNG, destruir as instalações do PAIGC localizadas em Conacri, incluindo a sua sede, detenção do líder do PAIGC, Amílcar Cabral, resgatar os prisioneiros de guerra portugueses detidos na prisão La Montaigne; e, para garantir uma retirada segura destruir os MiG-17 da Força Aérea da Guiné e potencialmente embarcações hostis.

Devido, sobretudo, à falta de informações seguras e atualizadas e até à falta de apoio local aos sublevados, além da destruição de embarcações do PAIGC no porto de Conacri, o único objetivo alcançado foi a recuperação bem-sucedida de todos os 26 prisioneiros portugueses.

A participação da Zona Aérea na operação foi mínima, embora nos dias que precederam a operação os Fiat tenham realizado missões de fotorreconheicmento a 19 bases do PAIGC na República da Guiné, medida preparatória para os ataques aéreos que teriam lugar depois da queda do regime de Sékou Touré. Como isso não aconteceu, a atividade da Força Aérea durante a operação limitou-se a um voo de um P2V-5 Neptune vindo de Cabo Verde, que patrulhava à busca de navios inimigos enquanto as forças portuguesas navegavam para Conacri.

No entanto, a Mar Verde veio a ter um impacto duradouro sobre as operações da Força Aérea na Guiné. O efeito mais imediato foi o impulso moral gerado pela repatriação do único aviador português em cativeiro, o então furriel António Lobato. Este piloto de um T-6 fora aprisionado em 22 de maio de 1963, após uma colisão aérea, passou sete anos e meio em prisões da República da Guiné. Sendo o prisioneiro de guerra mais antigo dos 26 prisioneiros portugueses na prisão de Conacri, e o único piloto entre eles, a libertação de Lobato aumentou o ânimo do pessoal da Força Aérea, embora as circunstâncias da sua libertação tivessem permanecido num total segredo.

A ameaça dos aviões MiG-17 não estava neutralizada. Apenas dois dias antes da Operação Mar Verde, os aviões tinham sido transferidos para Labé, a 150 km de Conacri, por razões que continuam por explicar. Percebendo que “um dos fatores para o sucesso era o domínio aéreo, e estava-se severamente comprometido”, Calvão abortou a operação e ordenou às equipas de assalto para regressarem ao porto e daqui partir para a base na ilha de Soga. As autoridades da República da Guiné tentaram demasiado tarde utilizar as aeronaves contra os invasores, só pelas 9 horas da manhã de 23 de novembro um único MiG-17 apareceu sobre o porto de Conacri. Numa clara e impressionante demonstração de incompetência, o piloto identificou erradamente o cargueiro cubano Conrado Benitez e metralhou-o, em vez dos seis navios portugueses que já estavam em retirada. Pelas 9:30h, o caça sobrevoou os navios portugueses numa altitude elevada, mas não empreendeu qualquer ação para detê-los ou desativá-los. A sobrevivência da frota MiG-17 da Guiné-Conacri preocupava Spínola. Em 26 de janeiro de 1971, o general informou o Ministro da Defesa Nacional que temia retaliações contra instalações portuguesas na Guiné. Apesar do discurso do Governo de Lisboa querer fazer crer que aqueles acontecimentos eram uma questão puramente interna entre fações rivais, Sékou Touré apelou imediatamente a todas as capitais amigas para enviarem forças militares, especialmente aeronaves de combate, no intuito de ajudar a repelir “uma nova série de incursões inimigas”. Spínola avisou Lisboa que a Nigéria teria colocado os seus caças e bombardeiros à disposição de Sékou Touré, e tinha recebido a notícia de que o chefe da Força Aérea da Argélia viajara para Conacri, manifestando a vontade daquela nação em poder intervir. Estaria igualmente a caminho assistência militar não especificada da Líbia, Egito e República Árabe Unida.

No quadro 11 temos a relação dos pedidos de aeronaves até à data de maio de 1971, e no quadro 12 a capacidade de transporte no teatro de operações da Zona Aérea da Guiné em 1971.
Um Noratlas em modelo da Alemanha Ocidental, dos 13 adquiridos por Portugal (Coleção José Matos)
Um P2V-5 Neptune na ilha de Sal (Coleção Touricas)
Um dos dois Boeing 707 adquiridos pela Força Aérea para voos transoceânicos (Coleção Austin J. Brown)
Um Milirôle adquirido à França em 1974, quando foi entregue à Força Aérea já tinham cessado os combates em África (Coleção Robert Ver)

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25316: Notas de leitura (1679): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (18) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...).


Capa da revista do Expresso, edição de 16 de Janeiro de 1993.

"A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral" (*)

1. Segunda e última parte do artigo de José Pedro Castanheira (JPC), "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?" (Semanário "Expresso", edição de 22 de janeiro de 2023, Revista, pp. E|32 - E|37), publicada trinta anos depois da reportagem de 1993 (vd. capa, acima, da Revista do Expresso, de 16 de janeiro desse ano). 


JPC, jornalista e escritor, de 70 anos de idade, dedicou perto de metade da sua vida a tentar  responder à pergunta sobre o "autor moral", o "mandante",  da morte de Amílcar Cabral (AC) e a respetiva teia de cumplicidades . Desde 1993, ele tem explorado quatro hipóteses de investigação, apontando para os presumíveis "mandantes" do crime: 

(i) uma ação do gen Spínola e dos seuseus íntimos colaboradores, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras (a semelhança do que acontecera, em 1965, com o gen Humberto Delgado, assassinado com a sua secretária depois de cair numa cilada, em Espanha; 

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana).

Na nota de leitura anterior (**) fizemos, resumidamente, o ponto da situação sobre  o que se sabia sobre uma  eventual participação da parte portuguesa: não há indícios, nem factuais nem documentais, que permitam incriminar quer o gen Spínola (na altura, governador-geral e comandante-chefe da Guiné) quer a polícia política do regime.

Na segunda parte do seu artigo, o JPC explora a informação que ele tem continuado a recolher  sobre o eventual envolvimento de Sékou Touré bem como dos grupos que, dentro do PAIGC, podiam ter razões para assassinar o  seu  líder. 

Sékou Touré tem, contra si, o facto de ter "[recebido] no palácio os assassinos de Cabral ainda o cadáver estava quente, após o que os enviou para a tenebrosa cadeia de Camp Boiro, onde foram interrogados e torturados por forma a alterarem o sentido do seu depoimento — como o testemunhou o cabo-verdiano Alcides Évora (Batcha), convocado para servir de intérprete da polícia de Conacri" (JPC, Revista, E|36).

Dos arquivos de Conacri, o silêncio é total.  O que não admira,  quando se sabe que Sékou Touré, heroi da luta anticolonialista, governou com mão de ferro o seu país, de 1958 até ao ano da sua morte, em 1984.

 JPC também não conseguiu entrevistar Leopoldo Senghor (que suspeitava do envolvimento de Sékou Touré na morte do AC), mesmo munido de uma carta pessoal do então presidente da República Portuguesa, Mário Soares,

Dos franceses (que tudo fizeram, ao que parece, para derrubar Sékou Touré, inimigo fidalgal da França, antiga potência  colonizadora) também não houve luz verde para consultar, como era previsível,   os arquivos  secretos das "secretas", o "Service de documentation extérieure et de contre-espionnage" (SDECE). Idem, por parte da Itália, do Vaticano, etc., com os seus arquivos fechados a sete chaves.

Dois diplomatas da antiga Jugoslávia estiveram nas exéquias do AC, em Conacri, tendo constatado (e relatado) "um largo descontentamento dos ativistas e combatentes do PAIGC" em relação ao seu secretário-geral e líder histórico. 

Agostinho Neto, membro da Comissão Internacional de Inquérito, revelou, por sua vez,  que foram ouvidos cerca de 500 membros do PAIGC, presentes em Conacri, e desses "só 20 se exprimiram abertamente por Cabral".  De resto, parece que toda a gente sabia da "morte anunciada" do AC, em Conacri, exceto os cabo-verdianos... 

Deve-se realçar que tanto as informações dos diplomatas jugoslavos como de Agostinho Neto são de fontes secundárias. JPC cita-os em segunda mão. 

Infelizmente, por outro lado, diz JPC, "dos interrogatórios efetuados pelas  três comissões de inquérito nada se sabe. Muitas das confissões foram  arrancadas sob tortura. As cassetes áudio e/ou as respetivas transcrições desapareceram". Estamos a falar de um total de 465 pessoas!...

E o que é que resultou do apuramento da verdade dos factos e dos implicados na conspiração que levou à morte de AC ?... Houve "43 acusões de participação no golpe, 9 de cumplicidade e 42 de suspeitos. Todos guineenses"...

Como Pilatos, Sékou Touré lavou as mãos  e entregou-os ao PAIGC para fazer um simulacro de julgamento revolucionário e passá-los a seguir pelas armas, "nas regiões libertadas", para lá da fronteira.   

Não se sabe ao certo quantos fuzilamentos é que houve. JPC aponta para um número que parece ser mais consensual entre as diversas fontes: uma centena, não havendo na lista nenhum cabo-verdiano

"Na minha investigação, investiguei 23 nomes, entre os quais o matador, Inocêncio Cani, e os alegados cabecilhas, Momu Touré e Aristides Barbosa", anteriormente libertados por Spínola do Tarrafal.

'Nino' Vieira, entrevistado por JPC em Bissau,  falou da "matança de muita gente". Mas ele sempre desmentiu as insinuações ou suspeitas do seu envolvimento, de que se começou a falar mais abertamente depois do seu golpe militar de 14 de novembro de 1980.  De qualquer modo, na Guiné-Bissau, ainda hoje, há um silêncio sepulcral sobre o caso da morte do AC, enquanto em Cabo Verde o assunto continua a suscitar viva discussão.

JPC tentou, também em vão, recolher depoimentos de membros da Comissão Internacional de Inquérito. Abordou o embaixador de Cuba, em Conacri, Óscar Oramas,  um dos primeiros a chegar ao local do crime: não só confirmou  as más, mesmo péssimas, relações entre Osvaldo Vieira e Amílcar Cabral, como apontou a sua presença na cena do crime, "escondido atrás daquelas árvores" (sic)... 

Mesmo munido de uma carta de Manuel Alegre, amigo do embaixador da Argélia, dos tempos da rádio de ARoel,   Messaudi Zitouni, JPC nunca conseguiu o depoimento deste... 

Também esteve duas vezes com Joaquim Chissano..."Disse-me que reservava o relato para as suas próprias memórias. Até agora só saiu o primeiro volume (...) que termina em 1963". 

Da extensa bibliografia que já se publicou sobre AC (muito mais do que sobre qualquer outro dos líderes nacionalistas  de países como Angola ou Moçambique), o JPC destaca o livro de Julião Soares Sousa ("Amílcar Cabral. Vida e Morte de um Revolucionário Africano", Veja, 2012). Na sua opinião ( e na opinião de outros especialistas), é "a melhor e mais completa biografia" do AC. (Resultou de um trabalho académico do autor, o seu doutoramento em história pela Universidade de Coimbra.)

No capítulo sobre o assassínio do AC, Julião Soares Sousa, que é guineense, diz  não haver "margem para dúvidas": (...) "foi obra de dissidentes do PAIGC, com uma grande probabilidade de ter sido também um grande complô em grande escala, que ultrapassa as fronteiras da Guiné-Conacri" (citado por JPC, Revista, E|37).

JPC cita ainda duas fontes, a seu ver, importantes: o livro-testamento de Aristides Pereira e a série da RTP, "A Guerra", realizada por Joaquim Furtado: o episódio nº 25. emitido em 2012, é inteiramente consagrado à morte de AC. Pedro Pires é um dos muitos entrevistados, e o seu depoimento deve ser tido em conta (mesmo que ele continue, ainda hoje, a manter a sua tese  do complô português). 

Aristides Pereira, sucessor de AC à frente do PAIGC,  entrevistado por José Vicente Lopes ("Minha Vida, Nossa História", Spleen, 2012), "fala sem filtros, com uma clareza e limpidez totais, acentuando de forma porventura definitiva a responsabilidade de um importantíssimo sector da ala guineense na elimição de Cabral" (JPC). Cite-se as suas palavras: 

"Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (e de facto, o não o era: nasceu em Bafatá,  viveu apenas 10 anos em Cabo Verde onde fez o liceu, o que é pouco mesmo numa vida curta de 49 anos...).

Chegados ao fim da leitura do artigo, alguns leitores dirão que a montanha pariu um rato... No meu caso (não li o livro de JPC, publicado em 1995), fico com as ideias mais arrumadas. O autor fez um trabalho de investigação jornalística, sério, intelectualmente honesto, com rigor e método. Não é um trabalho académico. Mas tem 4 hipóteses de investigação, todas elas verosímeis.  

As duas primeiras, envolvendo a parte portuguesa, perdem hoje força, por falta de provas. Não se trata de "limpar a honra" dos portugueses (os militares e a polícia política), mesmo que entre os cabecilhas do matador, Inocêncio Cani, estejam dois ex-tarrafalistas, Momu Touré e Aristides Brabosa. As hipóteses iii) e iv) ganham força, nesta e noutras investigações mais recentes como a do cabo-verdiano Daniel dos Santos ("Amílcar Cabral: um outro olhar", Lisboa, Chiado Editora, 2014).  

[ Condensação / negritos: LG]
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Notas do editor:

 (*) Vd. postes de 


29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 7 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Último poste da série "Notas de leitura": 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"


1. T
emos aqui falado pouco sobre Cabo Verde (467 referências), mesmo assim mais do que sobre Amílcar Cabral (389), muito pouco sobre o PAICV (7 referências) e muitíssimo mais sobre o PAIGC (1176).

 Embora não seja essa a nossa vocação enquanto blogue de antigos combatentes da Guiné (1961/74), faltam-nos depoimentos sobre os 15 anos em que o PAIGC (e depois o PAICV, mudança de sigla em janeiro de 1981) governou sozinho as ilhas, com recurso aos clássicos métodos totalitários (polícia política, censura, partido único, instrumentralziação das Forças Armadas, etc.). 

Muitos cabo-verdianos são extremamente críticos desse período totalitário, de má memória. Um dos homens que lutou pela democratização do país e pelo fim da hegemonia do PAIGC (e depois PAICV) é Daniel Santos.  

Foi jornalista no "Expresso das Ilhas" e tem-se agora dedicado à sua carreira académica. Em 2014 publicou "Amílcar Cabral: um outro olhar"(Lisboa, Chiado Editora, 2014, 604 pp), livro de que o Beja Santos fez, na devida altura, um detalhada recensão crítica (*). 


Antologia >  Expresso das Ilhas,15 de setembro de 2018 > 


Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.


Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?

Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. (...) 

É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?


Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses.  (...) 

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?

Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral.  (...)

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?

Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. 

(...)  À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.

São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. 

O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? 

Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.

Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC,

Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?

(...) Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. 

Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. 

O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. (,,,)

(...)  Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. (...)

 
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.

Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta.

 Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. 

E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. 

 Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?

Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. 

O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].

Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. 

Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. 

Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. 

Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?

Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência 
não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. 

Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito,  isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. 

Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.

Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?

É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. 

A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. 

Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. 

Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. 

Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.

Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?

Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único.

 Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. 

Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? 

Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.

E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?

Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. 

Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado. (**)

[Fonte: Cabo Verde Info... Com a devida vénia, Seleção, revisão e fixação de texto / Negritos nos subtítulos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não hesito em considerar esta obra como uma visão inovadora das relações internacionais durante todo o período em que vingou a nossa guerra em África. O diplomata e investigador escalpeliza elementos de grande significado, logo com Angola, o Catanga e o Congo, depois o início da guerra na Guiné, a crescente pressão na ONU, a nova relação de forças na África austral, o conflito interno do Congo, o início das hostilidades em Moçambique, as sucessivas tentativas externas para pôr termo à guerra, a recusa enérgica de Salazar, Cabora Bassa, a chegada de Marcello Caetano; a viragem provocada pelo ano de 1970, não só pelo isolamento diplomático como pela verificação que operações tipo Nó Górdio só serviam para alastrar a guerrilha, e assim iremos até ao 25 de Abril, uma abordagem diacrónica que é merecedora de ser saudada. Nestes 2 textos verificar-se-á que pontualmente o investigador ou expende ideias extravagantes como a de dizer que Amílcar Cabral era oriundo de uma família abastada de funcionários ou a repetição do mantra de que Schultz jogava à defesa e confiava mais nos bombardeamentos aéreos, hoje demonstradamente uma inverdade consumada. Enfim, rica apreciação das relações internacionais e a necessidade de estudar melhor o que aconteceu na Guiné.

Um abraço do
Mário



A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (1)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais.

Tenha-se em conta o parágrafo final da sua apresentação:
“História de resistência, a história deste período é, também, uma história de oportunidades perdidas. A capacidade de sobrevivência evidenciada pelo regime surpreendeu a comunidade internacional e os próprios países africanos. Em 1963, 1968/69 e até em 1972, houve condições objetivas propícias para tentar uma saída negociada para o conflito, que o regime não quis ou não soube aproveitar. Pela sua obstinação, pagámos todos um preço elevado: os milhares de vidas perdidas na guerra, os traumatismos que causou, os recursos nela desperdiçados, as sequelas de ressentimento que deixou e o atraso que provocou na transição para a democracia em Portugal e na inevitável transformação das ex-colónias em África em novos Estados independentes.”

Era obrigatório tratar a guerra da Guiné, por esta se ter tratado de um teatro decisivo, pelos aspetos mais impressivos, desde a primeira hora. E a primeira hora, como observa o autor, foi a abertura de uma segunda frente que era esperada, a Guiné estava encravada entre dois países recentemente independentes, desde o segundo semestre de 1962 que há documentação oficial e outra, e até livros de memórias, que relatam a constante presença da guerrilha, nomeadamente no Sul, onde desarticulou as comunicações, incendiou armazéns, gerou o abandono de lugares, intimidou populações. E subitamente o autor surpreende-nos com uma frase extravagante, historicamente descabida: “Amílcar Cabral, filho de uma família culta e abastada de funcionários, padres e comerciantes cabo-verdianos, crescera na Guiné, onde o pai ocupou vários cargos…”

Não sei onde Futscher Pereira foi buscar a família abastada, Iva Pinhel Évora trabalhou como uma moura nas tarefas mais humildes, Juvenal Cabral era um modesto professor, quando se separou de Iva, foi para Cabo Verde e levou uma vida remediada, quem cuidou de Amílcar foi Iva, primeiro na Guiné depois em Cabo Verde. O seu itinerário, como o autor descreve, está de acordo com as informações disponíveis, é fidedigno o que se escreve aqui sobre o seu projeto da luta armada, as tentativas de negociar uma solução política para o conflito, as suas preocupações com a dimensão internacional do combate anticolonialista. Comenta a estratégia militar do PAIGC definida por Cabral, a criação do que se passou a chamar “áreas libertadas”, mostra-nos o que separa Senghor de Touré, eram adversários figadais, Senghor bem tentou inicialmente apoiar um plano que levasse a FLING à governação, tudo parecia bem encaminhado, Salazar revela-se irredutível, nada de aberturas.

Futscher Pereira não investigou a guerra da Guiné e comete os mesmos erros de outros pesquisadores que o antecedem. Falando de Schulz, diz o que todos dizem: "Não revelou uma melhor compreensão da guerra subversiva do que o seu antecessor. Durante os anos em que permaneceu no comando da Guiné, antes de ser substituído por Spínola, manteve-se essencialmente na defensiva, recorrendo a bombardeamentos aéreos para atacar os redutos da guerrilha. Tais métodos permitiram ao PAIGC estender a presença no território e ganhar as populações para a sua causa.” Bastaria que tivesse manuseado os diferentes volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, edição do Estado-Maior do Exército, a leitura pode não ser a mais aliciante, mas estão lá as múltiplas operações efetuadas ao longo dos quatro anos do seu mandato, pesaram muitíssimo mais bombardeamentos aéreos, como o próprio autor observa o armamento do PAIGC ia-se progressivamente melhorando e a crítica que muitos fazem que Schulz expressou as unidades por todo o território decorria da necessidade de apoiar as populações ou impedir a circulação dos guerrilheiros das populações que os apoiavam.

Iremos ter o mesmo mantra quando se referir à chegada de Spínola à Guiné, dirá que as tropas portuguesas estavam confinadas nos aquartelamentos, dispersas pelo território e sem mobilidade e que as operações de envergadura era competência das forças especiais. Discreteia sobre a personalidade suis generis deste oficial de Cavalaria, a sua vinda a Lisboa depois da tomada de posse de Marcello Caetano, em 8 de novembro de 1968, fez briefing no Conselho Superior de Defesa Nacional, o novo governador diagnosticou uma situação extremamente crítica, exigiu reforços, previa um “colapso militar a curto prazo”, tendo dito que era necessário insuflar novo ânimo nas tropas portuguesas que precisavam de sentir que lutavam “por um objetivo suscetível de ser atingido”. A reação de Marcello Caetano foi perentória, “estava fora de questão abandonar a Guiné”. Dá-nos conta daquilo que ele designa como o vice-reinado de Spínola na Guiné: a prioridade absoluta ao aspeto político da guerra, conquistar as populações através do progresso económico e social, garantir-lhes segurança através de aldeamentos com amplas facilidades de autodefesa, foi lançado o slogan “Uma Guiné melhor” a que se seguiu outro que tinha objetivos claros “A Guiné para os guinéus”. Esta multiplicidade de medidas proativas exigiram a Amílcar Cabral uma movimentação diplomática para obtenção de apoios, irá consegui-los e conquistará amizades na Escandinávia.

O autor detalha cuidadosamente as sucessivas tentativas de Senghor em deixar uma porta aberta para negociações que pusessem termo à guerra, não deixando, contudo, de apresentar queixas no Conselho de Segurança da ONU por violações do seu território, ficamos igualmente a saber as negociações tentadas por Senghor em França, sem êxito. E assim chegamos à operação Mar Verde, os resultados são bem conhecidos, com destaque para o isolamento diplomático acrescentado. E observa: “Convencido da cumplicidade de Senghor na operação, Touré cobriu de insultos e vitupérios o líder do país vizinho. Para se eximir de responsabilidades, Dakar mostrou-se intransigente na ONU, reclamando uma resolução contra Portugal ao abrigo do capítulo VII da Carta. A 8 de dezembro, Portugal foi condenado no Conselho de Segurança, com as abstenções da França, Reino Unido, Espanha e EUA. Pela primeira vez, o Conselho declarou que o colonialismo português constituía uma ameaça à paz e segurança dos Estados africanos.” 1970 fora um ano para esquecer. Inclusivamente morrera na queda de um helicóptero na Guiné José Pedro Pinto Leite, o seu desaparecimento precipitou o fim do diálogo com a Ala Liberal.

Recorda-se ao leitor que estamos a falar de uma obra que consideramos de referência pelo inovador caráter organizativo. No tocante à Guiné, espera-se que o autor em próximas edições retifique comentários desajustados aos factos documentados.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23621: Notas de leitura (1495): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22099: Notas de leitura (1351): "Ataque a Conakry, História de um Golpe Falhado", por José Matos e Mário Matos e Lemos; Fronteira do Caos, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
 
O livro de José Matos e Mário Matos e Lemos incorpora investigação que não é despicienda. E está bem contextualizado: os sonhos de Spínola saem gorados em 20 de abril de 1970, quando o plano congeminado de incorporação de guerrilheiros do PAIGC acaba numa tragédia, o Comandante-Chefe alinha numa solução radical, uma tentativa de golpe de Estado envolvendo um grupo de opositores de Sékou Touré organizados na FLNG. Tudo se revela frustrante ou pouco sério, bem detalhado pelos autores. 

E temos a invasão propriamente dita e o rescaldo, diplomaticamente desastroso e que fez crescer os anticorpos contra o colonialismo português. E a análise da operação passa pela verificação que deixara de haver qualquer solução militar, o regime de Caetano não dispõe de mais meios, ainda se tentarão soluções recorrendo ao projeto Alcora, em 1974, para comprar um dispositivo de deteção aérea, o Crotale, mas era irremediavelmente tarde.
 
Um belíssimo ensaio, credor da vossa atenção.

Um abraço do
Mário


Ataque a Conacri, história de um golpe falhado

Mário Beja Santos

"Ataque a Conakry, História de um Golpe Falhado", por José Matos e Mário Matos e Lemos, Fronteira do Caos, 2020, é a mais recente investigação sobre o antes, durante e após a Operação Mar Verde. 

Os acontecimentos em si do que ocorreu na madrugada do dia 22 de novembro de 1970 é amplamente conhecido, nos seus traços essenciais: com o beneplácito de Marcello Caetano, foi desencadeada uma tentativa de sublevação a partir da capital da república da Guiné Conacri, seis navios de guerra portugueses transportaram uma força militar de tropas especiais portuguesas e opositores do regime de Sékou Touré. 

O objetivo da operação era múltiplo: incluía a tentativa de um golpe de Estado que derrubasse o ditador guineense, destruir os meios navais do PAIGC e da Guiné Conacri, capturar Amílcar Cabral, resgatar 20 e poucos militares portugueses encarcerados numa prisão às ordens do PAIGC e neutralizar, destruindo mesmo, o potencial aéreo guineense. 

O sonho de Spínola em ver instalado um regime em Conacri que expulsasse o PAIGC malogrou-se: nem o ditador guineense nem o líder do PAIGC foram encontrados; por desacerto na comunicação, não foi tomada a estação de radiodifusão, que seria essencial para os sublevados anunciarem o golpe de Estado, os aviões de origem soviética tinham mudado de aeroporto, os meios navais do PAIGC foram destruídos, os prisioneiros portugueses foram resgatados, a prazo os sublevados guineenses foram executados como executados foram o alferes Januário Lopes e cerca de duas dezenas de militares-comandos africanos que se rebelaram contra as intenções da Operação Mar Verde e se entregaram às autoridades guineenses. O malogro deste ataque a Conacri iria constituir o mais rude golpe diplomático, adensando o isolamento do Estado Novo.

Em que é que a obra de José Matos e Mário Matos e Lemos introduz inovações? A estrutura do estudo permite uma leitura cronológica e o conhecimento aprofundado de um punhado de peripécias que a investigação permitiu desvendar. Fica bem claro que a Operação Mar Verde foi uma ousadia, tinha planeamento mas enfermava de graves omissões: o efetivo de sublevados era irrisório, a clique política guineense-Conacri que aceitara participar na Operação vivia graves tensões internas e a sua motivação e programa eram uma nebulosa; a PIDE não dispunha de informações fiáveis sobre os objetivos, houve que recorrer a um antigo desertor, o soldado Alfaiate, que se prestou a explicar a topografia da cidade, manifestamente insuficiente o seu conhecimento; diferentes ministros de Caetano puseram seríssimas reticências à operação, temeram sempre o pior, as consequências internacionais, as informações que se dispunham nos dirigentes políticos da oposição levavam a supor que seria um golpe de Estado de pouca dura, haveria um volte-face em poucos meses, e o PAIGC reocuparia rapidamente esta poderosa retaguarda. 

Os autores consideram que os dois principais acontecimentos políticos congeminados por Spínola: um, para atrair guerrilheiros numa nova formação militar composta por guineenses apoiantes da soberania portuguesa e outros a favor da independência; dois, instalar em Conacri um regime hostil ao PAIGC, deram como falhanço e o governador e comandante-chefe da Guiné, a partir daí, quis sempre abrir a porta para a solução política, que Caetano energicamente recusou. É verdadeiramente de questionar se não houve mais aventureirismo que realismo, ao querer confiar naquela oposição a Sékou Touré, sabendo-se mesmo que a Organização da Unidade Africana  [OUA] teria todos os predicados para intervir e abortar o golpe de Estado.

Depois de contextualizar a estratégia de Spínola na Guiné e de se ter chegado à solução radical da Operação Mar Verde, conta-se a história dos contatos estabelecidos entre esta oposição a Sékou Touré e as autoridades portuguesas. Pesquisada a documentação, as intenções desta frente de libertação da Guiné (FLNG) eram dadas como amadoras, mesmo sabendo-se que a França e o Senegal veriam com bons olhos o derrube do ditador de Conacri. 

Até 1970, a FLNG não tinha quaisquer intenções de organizar uma guerrilha, mas sim um golpe contra Sékou e a sua clique de apoio, dizia que o povo da Guiné Conacri os acolheria triunfalmente. No entanto iam pedindo dinheiro a Portugal, e repetidamente. Os autores dão-nos um quadro das cumplicidades, mostram com desenvoltura o planeamento da Operação e o seu desfecho; e chegamos ao rescaldo, a verificação por parte de Spínola de que não era viável uma solução militar. Segue-se a escalada da guerra, é certo e seguro que os meios de fogo do PAIGC passaram a ser superiores aos das forças portuguesas, Spínola pede a exoneração e planeia escrever "Portugal e o Futuro", será publicado em 22 de fevereiro de 1974, que propõe era já inviável, mas criou condições para a arrancada do 25 de abril. 

Os autores recordam que Caetano defendia uma autonomia progressiva para as colónias e não aceitava uma negociação com o PAIGC, segundo ele, seria um precedente relativamente às outras colónias, ele pensava que Angola e Moçambique podiam acabar na independência desde que estivessem assegurados os direitos dos colonos. Havia também hipóteses do plano de Spínola que não tinham nem pés nem cabeça, como o de integrar Amílcar Cabral como Secretário-Geral do Governo Provincial. E os autores observam: 

“Cabral nunca mostrou qualquer interesse em negociar com Spínola. Para o líder do PAIGC, o diálogo teria que ser com o governo central em Lisboa e não com o governador provincial. Isto significa que Spínola tentou protagonizar na Guiné uma solução que estava condenada à partida, não só porque estava em rota de colisão com a política oficial do regime, como também não correspondia às aspirações do PAIGC”.

Trata-se de um estudo muito bem urdido e que introduz dados novos sobre a Operação Mar Verde. Como em toda a historiografia da guerra da Guiné, omite os dados relevantes da génese e desenvolvimento da luta armada. A historiografia privilegia Spínola e nunca se serve dos arquivos para estudar os acontecimentos ocorridos entre 1962 e 1968, parece sempre Louro de Sousa e Arnaldo Schulz andaram para ali sete anos a encanar a perna rã, nunca se fala nos meios postos à disposição destes dois comandantes-chefes e até do dinheiro que o regime de Salazar dificultou para o desenvolvimento socioeconómico da Guiné. É dentro da efabulação que a historiografia faz aparecer Spínola como o Atlas do combate feroz à guerrilha, da implementação da Guiné melhor e dos cheiros da autodeterminação. Isto só para sublinhar que continuamos a fazer historiografia numa sala de espelhos partidos.
A bordo da LDG Montante, oficiais da Armada com os dirigentes da FLNG que iriam atacar o Campo Militar Samory, imagem do livro
Prisioneiros portugueses em Conacri
Prisioneiros portugueses a caminho de Bissau
Banda-desenhada de António Vassalo sobre a Operação Mar Verde
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22069: Notas de leitura (1350): “Guerra e Política, Em nome da verdade os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)