segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
À pergunta de quem mandou matar Amílcar Cabral, manda a probidade que se responda que não há provas concludentes sobre a natureza dos mandantes. Sabe-se que havia organização, assassinado o fundador do PAIGC os sublevados repartiram-se em diferentes atividades, é óbvio que havia um plano.

 Desapareceram ou continuam religiosamente escondidas as conclusões das comissões de inquérito. Mesmo que um dia venham a aparecer, também se poderá pôr em causa o que ali vem escrito, já houve testemunhos suficientes de que foram arrancadas declarações ao sublevados da forma mais bárbara, à altura das polícias políticas mais torcionárias.

Não deixa de embaraçar quem analisa os factos a situação chocante de duas fações distintas, cabo-verdianos e guineenses, estes apresentam-se a Sékou Touré alegando que estão fartos de ser dominados pelos cabo-verdianos, por quem nutrem uma hostilidade multissecular. Creio que não se pode ir mais longe sem exibição de provas. Mas reconheça-se que para os velhos nostálgicos da unidade Guiné-Cabo Verde continua a saber bem alegar que foi Spínola e a PIDE/DGS em Bissau que dirigiram a manobra. 

E, por fim, convém não esquecer que a morte do fundador do PAIGC é o início de um mito poderosíssimo: o que teria acontecido ao país independente sob a liderança de Amílcar Cabral?

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) 

Beja Santos  (*)

A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral. 

Anos depois de José Pedro Castanheira ter dado forma de livro à sua importantíssima reportagem aparecia na imprensa portuguesa um livro-testemunho de análise irrecusável. Oscar Oramas, embaixador cubano em Conacri, ao tempo dos acontecimentos, tecia um rasgado elogio ao homem Amílcar Cabral e ao génio construtor de nações. É uma biografia, infelizmente cheia de imprecisões: atribui uma falsa importância a Juvenal Cabral na formação de Amílcar, pura mistificação; faz de Cabral um deportado pelo Governador Mello e Alvim, quando ele fazia o recenseamento agrícola, está demonstrado que Cabral regressou à pressa com a mulher a Portugal, estavam gravemente doentes com paludismo… 

O antigo embaixador estudou a história muito à pressa, atrevendo-se a dislates como dizer que o território da Guiné foi descoberto por navegadores portugueses nos finais do século XV… A despeito deste quadro de perniciosas imprecisões, coube-lhe assistir de perto ao assassinato de Cabral. O fundador do PAIGC vinha a insistir de que havia um processo de sabotagem dentro do partido e advertia que a maquinação era incentivada pelas forças coloniais que se aproveitariam de traidores e delinquentes. Minutos depois dos tiros assassinos, Otto Schacht, chefe da segurança do PAIGC telefona a Oramas, pede a sua comparência. No local do assassinato, o segurança cubano que acompanha o embaixador adverte que há um grupo escondido.

E ele escreve no seu livro “Amílcar Cabral para além do seu tempo”, Hugin Editores, 1998: “Mais tarde soube-se que escondido atrás daquelas árvores estava também Osvaldo Vieira”

Oramas procura um dirigente guineense, Bacary Ghibo, este telefona a Sékou Touré, Oramas conversa com o presidente da Guiné-Bissau. Entretanto, Oramas conversa com o embaixador soviético e acerta-se numa estratégia para procurarem recuperar Aristides Pereira que fora sequestrado por sublevados e levado numa lancha. 

Oramas assiste no palácio presidencial à reunião de Sékou Touré com a delegação de sublevados. Entre os conjurados estão Momo Touré e Inocêncio Kani que “explicam que a direção do PAIGC tem estado controlado pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que são os que lutam de armas na mão contra os portugueses. Dizem ter denunciado esta situação em várias oportunidades mas Amílcar nunca lhes deu importância. Acrescentam que não queriam matar Amílcar, apenas conversar com ele, convencê-lo a mudar, mas como resistiu, na confusão foi liquidado”.

Esta leitura dos acontecimentos vistos por uma testemunha privilegiada dão conta de uma tensão profunda que se procurava camuflar, embora diversos dirigentes do PAIGC tenham vindo a declarar, pouco depois do assassinato, que a atmosfera em Conacri era irrespirável, era patente que se urdia uma conjura cabo-verdianos e guineenses já não sentavam à mesma mesa.

No seu relevante trabalho, Castanheira houve opiniões díspares. Por exemplo, o Coronel Carlos Fabião era de opinião que fora a PIDE a montar o esquema. Fragoso Allas nega qualquer envolvimento. O respetivo ministro, Silva Cunha declara que não houve intervenção portuguesa. Alpoim Calvão também atira achas para a fogueira, envolve a PIDE. Nas suas investigações dos arquivos da PIDE, nenhum dos documentos trabalhados por Castanheira permite aduzir envolvimento da PIDE no complô, igualmente não há um papel incriminatório para Spínola.

Castanheira vai até Conacri ao local do crime e escreve:  

“É um círculo de cimento, de dois metros de diâmetro, pintado de branco. À volta, um murete baixo, igualmente caiado. No meio, desenhada com pedras do tamanho de uma unha, uma estrela de cinco pontas. Foi ali que caiu Amílcar Cabral a escassos metros da residência, junto à majestosa mangueira que filtra a luz quente e clara do sol africano. Durante anos, aquele punhado de terreno esteve simplesmente protegido por uma cerca de arames velhos e enferrujados. Foi preciso esperar por 1988 para que o local passasse a estar assinalado com alguma dignidade. Em Maio de 1960, Amílcar instalou-se em Conacri, ao PAIGC foram concedidas as quatro casas que hoje são património da embaixada da Guiné-Bissau (…) os quatro imóveis, simples, funcionais, de um único piso, faziam parte de um vasto conjunto urbanístico erguido, no final dos anos 1950, pela Société Minière”.


Neste preciso local foi assassinado Amílcar Cabral ao fim da noite de 20 de Janeiro de 1973

No final da reportagem, Castanheira ouve Nino Vieira. Desconhece-se o número dos fuzilados, mas diz que houve muito mortos, admite mesmo que houve inocentes mortos e comenta: “No congresso de 1984, Fidélis Almada declarou publicamente que foi mandatado para acusar muita gente”. Interpelado quanto ao facto do grupo dos conspiradores ser composto por guineenses, não ilude a clivagem que se estabelecera, mas pensava que a causa principal da morte de Amílcar fora a infiltração, era coisa trabalhada pela PIDE. Não adiante provas. Aqui e acolá, faz a sua crítica azeda a Aristides Pereira e a Luís Cabral.

Esta reportagem de José Pedro Castanheira veio abrir espaço a diferentes interpretações quanto a organizadores. Acrescente-se que não há provas nenhumas sob a natureza dos mandantes: não se sabe quem foi o cérebro do complô guineense, que houve complô demonstra-se pela capacidade de manobra dos revoltosos ao sequestrar Aristides Pereira, ao prender todo o grupo cabo-verdiano, ao querer captar as simpatias e aquiescência de Sékou Touré. Sobre esta matéria, o relato de Oscar Oramas é muito pobre, está constantemente a invocar o que veio na reportagem de José Pedro Castanheira. 

Mas Oramas revela profundo ceticismo quanto ao comportamento de Sékou Touré, pergunta mesmo como é que os conspiradores chegaram ao palácio no meio de uma grande mobilização militar que começou logo quando o embaixador cubano conversou telefonicamente com Sékou Touré. E está comprovado que naquela manhã de 20 de Janeiro um alto funcionário guineense, a mando de Sékou Touré, vai informar Amílcar Cabral que está uma intentona em marcha, este chama Mamadu N’Diaye e pede-lhe cautelas redobradas, como hipótese de trabalho terá sido esta determinação de Amílcar que levou os conspiradores a prontamente a entrar em ação.

Enfim tudo no campo das hipóteses mas há factos iniludíveis, de um lado, estavam cabo-verdianos e, do outro, guineenses, foram estes que se sublevaram em número elevado e ninguém acredita que Momo Touré e Inocêncio Kani tivessem estofo para pôr tanta gente em movimento naquele complô. A segunda morte de Cabral será confirmada a 14 de Novembro de 1980, quando os cabo-verdianos forem definitivamente arredados do poder, na Guiné-Bissau.
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Notas do editor

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

"Não há provas concludentes", diz o Mário Beja Santos. Depois dá provas mais do que concludentes,assim:
Entre os conjurados estão Momo Touré e Inocêncio Kani que “explicam que a direção do PAIGC tem estado controlado pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que são os que lutam de armas na mão contra os portugueses. Dizem ter denunciado esta situação em várias oportunidades mas Amílcar nunca lhes deu importância. Acrescentam que não queriam matar Amílcar, apenas conversar com ele, convencê-lo a mudar, mas como resistiu, na confusão foi liquidado”.

Sempre esta estranha e falsa maneira de, no blogue, o grande especialista MBS escrever a nossa História!

Abraço,

António Graça de Abreu


Tabanca Grande Luís Graça disse...

O autor publicará dois anos depois um extenso livro, de 312 pp, com o material da sua investigação...

Na sinopse do livro, lê-se:

(...) Amílcar Cabral foi assassinado a tiro, à porta da sua residência na Guiné-Conacri, na noite de 20 de Janeiro de 1973. Nunca se soube quem foi que o mandou executar, quem, na sombra, preparou e organizou o crime e tentou um golpe de estado no interior do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné Bissau e Cabo Verde).

Este livro constitui o desenvolvimento de uma reportagem publicada no jornal 'Expresso' em 1993 e procura desvendar o enigma da morte de Amílcar Cabral.

«Este livro vale como investigação jornalística pedagógica e necessária. De facto, o jornalismo não é só actualidade. E não é só novidade. É também descoberta, que inclui novidade, mas procura, além disso, o nexo entre o que vai sendo encontrado. Mesmo quando esse nexo é um ponto de interrogação.» Victor Cunha Rego, in 'Diário de Notícias' (...)


CASTANHEIRA, José Pedro

Quem mandou matar Amílcar Cabral? / José Pedro Castanheira . - Lisboa : Relógio D'Água, 1995. - [9], 325 p. ; 24 cm . - Bibl. : p. 312


2. Li na altura (quando lia o "Expresso"...) a reportagem do José Luís Castanheira... Não li (bem vou ter tempo de ler o livro de 1995)... E é sempre bom haver quem o faça por nós, através de "notas de leitura" como esta...

Deixem-me dar uma achega:

Na impossibilidade, até ao momento, de responder à pergunta "Quem matou Amílcar Cabral?", acho que teremos que reformular a questão, como faria qualquer bom investigador policial: "A quem é que interessaria a morte de Amílcar Cabral ?"... Os "duros" de um lado e do outro, os "falcões"... Pôr a coisa em termos étnicos, é quue me parece "perigoso" e não ajuda a esclarecer a verdade: portugueses, guineenses, cabo-verdianos... Porque os portugueses, os guineenses e os cabo-vberdianos é muita gente... E depois ainda há os russos, os cubanos, a Guiné-Conacri, etc.

Talvez os nossos leitores possam contribuir com elementos de reflexão para este debate... LG

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antonio graça de abreu disse...

Não gosto muito, meu caro Luís Graça quando te vejo, meu caro Luís Graça, ainda tantos anos depois, a discutir o sexo dos anjos.
Quem matou Amilcar Cabral foram os homens do PAIGC.
Quando, tantos anos depois, depois de tantos anos de blogue, te vejo a alinhar com a dúvida, a subreptícia análise do desentendimento, made in Mário Beja Santos, ainda entristeço. Um leve sorriso triste.
Quem matou Amilcar Cabral foram os homens do PAIGC.
A verdade histórica, os factos, com respeito por todos nós, combatentes portugueses na Guiné,numa guerra lusitana sem solução militar, mais os heróicos combatentes guineenses acreditando e morrendo por um futuro melhor, que nunca chegou, infelizmente, na sua diversificada pátria.

Abraço,

António Graça de Abreu