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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27459: Efemérides (475): Mais de cem anos depois do Armistício de 11 de novembro de 1918, que encerrou a Primeira Guerra Mundial, é essencial registar o percurso de Portugal até esse conflito e os seus impactos (José Marcelino Marins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)



Loures e Odivelas na Guerra
(Memória, Sacrifício e Monumentos)

José Marcelino Martins

Mais de cem anos depois do Armistício de 11 de novembro de 1918, que encerrou a Primeira Guerra Mundial, é essencial registar o percurso de Portugal até esse conflito e os seus impactos. Num período de grandes crises políticas, financeiras e económicas, Portugal conseguiu ainda defender a sua soberania e os territórios ultramarinos. Este artigo recupera a memória desta geração de Combatentes e o preço da guerra para a Nação.


Do mapa Cor-de-Rosa ao fim da Monarquia

Em 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro do ano seguinte, realizou-se em Berlim uma célebre conferência que reuniu catorze países com interesses em África. Portugal apresentou duas propostas: o denominado “Mapa Cor-de-Rosa”, que pretendia ligar Angola a Moçambique, e o direito de posse fundamentado na “descoberta ou achamento”. Ambas foram liminarmente rejeitadas. A partir daí, a ocupação efetiva dos territórios tornou-se condição essencial para o reconhecimento internacional da soberania legitimando, inclusive, anexações pela via militar.

Em 30 de janeiro de 1892, como resposta à grave situação das finanças públicas, o governo instituiu impostos extraordinários. Os rendimentos do trabalho (ordenados, soldos e pensões) estavam sujeitos a taxas entre 5% e 20%, enquanto os rendimentos prediais, de capitais e industriais podiam atingir 30%. Paralelamente, Portugal foi obrigado a renegociar a sua dívida externa.

Entre 1895 e 1910 intensificaram-se as chamadas Campanhas de Ocupação em África. Esta campanha era para “ocupar efetivamente” o território, mas provocaram forte resistência das populações locais, determinadas na defesa da sua autonomia sob a liderança de chefes regionais. A persistência dos combates deu origem às designadas Campanhas de Pacificação, realizadas com forças expedicionárias metropolitanas de cerca de 650 a 700 homens, compostas por infantaria, artilharia e cavalaria, serviços de saúde, engenharia e administração.

Perante a contínua asfixia financeira, o deputado José Bento Ferreira de Almeida (1847-1902), Capitão-de-Mar-e-Guerra e antigo ministro da Marinha e Ultramar, propôs, na sessão parlamentar de 12 de janeiro de 1902, uma medida extrema: a venda das colónias portuguesas, com exceção de Angola e São Tomé e Príncipe. O objetivo seria liquidar a dívida externa e utilizar o eventual excedente para dinamizar a economia nacional.

(Curiosamente, sessenta anos mais tarde, em 12 de janeiro de 1962, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira (1918-1993), entregou a António de Oliveira Salazar (1889 - 1970) um documento intitulado “Notas sobre a Política Externa Portuguesa”. Nele defendeu a entrega de Macau à China, de Timor à Indonésia e a abertura de conversas condutoras à independência da Guiné e de São Tomé e Príncipe. Propunha ainda que Portugal mantivesse apenas Angola, Moçambique e Cabo Verde. Ao receber o documento, Salazar anotou: “Começado a analisar com o ministro dos Negócios Estrangeiros numa das nossas conferências”) (Revista Expresso, 31 de agosto de 2002, p. 12).


A República e o caminho para a guerra

Quando a República foi proclamada, a 5 de outubro de 1910, uma das primeiras medidas de vulto foi a reorganização do Exército. O serviço militar tornou-se obrigatório para todos os jovens, que passavam inicialmente por uma escola de recrutas, com formação de 15 a 30 semanas. Nos dez anos seguintes foram chamados ainda em períodos regulares de instrução de duas semanas. Criaram-se também escolas de quadros para preparação de oficiais milicianos. Estava previsto um corpo permanente de 11.210 militares: 1.870 oficiais e 9.540 praças e sargentos.

Tal como aconteceu no regime monárquico, o governo republicano não esqueceu a prioridade das possessões ultramarinas. Pouco a pouco, as forças militares instaladas nas colónias foram colocadas sob a tutela do recém-criado Ministério das Colónias (3 de setembro de 1911), embora mantendo uma ligação operacional ao Ministério da Guerra. Esta dualidade prolongou-se até 1959, altura em que a reorganização do Ministério do Exército lhe devolveu a jurisdição plena sobre os territórios ultramarinos.

No plano interno, os primeiros tempos da República ficaram marcados pelas investidas monárquicas de Paiva Couceiro (1861-1944). Entre 1911 e 1912, as suas incursões mantiveram uma instabilidade no norte do país, com combates e escaramuças. Foram silenciadas definitivamente com a batalha de Chaves, em 8 de julho de 1912.  Se internamente a República se consolidasse, externamente enfrentaria ameaças graves: o alegado acordo secreto entre a Grã-Bretanha e a Alemanha. Confirmado por alguns e negado por outros, punha em risco a velha aliança anglo-portuguesa e, sobretudo, a continuidade da presença portuguesa em África. Portugal encontrou-se numa posição delicada: Angola partilhava fronteira com o Sudoeste Africano Alemão e Moçambique com a África Oriental Alemã.

Em 13 de agosto de 1913, foi assinado um novo protocolo que retomou o acordo de 1898, prevendo uma partilha ainda mais ampla das colónias portuguesas. A 20 de outubro desse ano, o entendimento foi rubricado e, semanas depois, reforçado no Reichstag, onde o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros proclamava o “êxito” das negociações. A França reagiu e, em fevereiro de 1914, o embaixador francês em Londres avisou que esta aproximação entre Londres e Berlim punha em causa o Acordo Cordial franco-inglês.

Em 3 de agosto de 1914, a Alemanha invadiu a Bélgica, violando o tratado de 1831, que consagrava a sua neutralidade perpétua. No dia seguinte, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha. A Europa estava em guerra e não demoraria para que Portugal fosse chamado a escolher um lado.

Quando o Congresso da República se reuniu extraordinariamente, em 7 de agosto de 1914, para aprovar um documento relativo à Grande Guerra - que tinha sido iniciada em 28 de julho desse ano, quando o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia - Portugal já enfrentava graves problemas políticos, económicos e coloniais. O conflito europeu viria assim apenas agravar uma conjuntura já marcada por instabilidade e incerteza.


África e a entrada antecipada na Grande Guerra

Em setembro de 1914, Lisboa enviava a 1.ª Expedição a Angola, com 1.526 militares, e no mesmo dia, uma outra com 1.539 militares para Moçambique. Pouco depois, em 11 de novembro, partiu o 1.º reforço de 2.803 soldados para Angola. A mobilização contínua em 1915: em janeiro, mais 4.318 homens foram enviados para reforço e, em setembro, a 2.ª Expedição para Angola, com 1.789 efetivos. Entretanto, para Moçambique, também foi destacada uma 2.ª Expedição com 1.558 militares.

As pressões cresceram quando, em fevereiro de 1916, o governo britânico pediu oficialmente a Portugal que, “em nome da aliança luso-britânica”, apreendesse todos os navios mercantes alemães que se encontrassem nos portos portugueses e ultramarinos. A missão, cumprida a 23 de fevereiro pelo capitão-de-fragata Jaime Daniel Leote do Rego (1867-1923), desencadeou protestos violentos em Berlim. Poucos dias depois, a 9 de março, o representante alemão, Rosen, entregou pessoalmente ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Luís Vieira Soares (1873-1954), em Lisboa, a declaração formal de guerra. Foram apenas quinze minutos de reunião - mas mudariam para sempre o destino de Portugal.

A 15 de junho de 1916, o governo britânico fez um convite formal a Portugal para que participasse nas operações militares ao lado dos Aliados. O Parlamento aceitou esta convocação a 7 de agosto, numa altura em que já decorriam as célebres “Manobras de Tancos”, que reuniram cerca de 30.000 militares provenientes de todas as divisões do país. Enquanto isso, foi organizada a 3.ª Expedição para Moçambique, composta por 4.386 militares, que embarcaram em vários navios entre maio e julho de 1916.


O Corpo Expedicionário Português Rumo a França

No início de 1917, deu-se a grande viragem: a 3 de janeiro ficou previsto que o Corpo Expedicionário Português (CEP) atuasse integrado na Força Expedicionária Britânica (BEF). Poucos dias depois, a 17 de janeiro, o Decreto-Lei n.º 2938 formalizou oficialmente a criação do CEP. A 30 de janeiro, o primeiro comboio de tropas partiu para França em navios britânicos. Até agosto de 1917, foram realizadas 50 viagens, transportando 55.165 militares portugueses para a frente europeia. Entre eles estavam soldados que já tinham sido combatentes em África. Enquanto isso, Moçambique continua a receber reforços: a 4.ª Expedição, entre julho e outubro de 1917, levou mais 5.267 homens, a que se juntou um reforço adicional de 4.509. Para Angola, seguiram dois pequenos contingentes: 566 militares em 1917 e 746 em 1918.

A 11 de novembro de 1918, às 11 horas, soava o armistício e o fim das hostilidades. Mas, para os militares portugueses, o regresso à casa não começou de imediato. O esforço de guerra prolongar-se-ia, marcando profundamente a vida nacional e a memória de uma geração.

Portugal combateu em diferentes frentes durante a Grande Guerra - tendo mobilizado aproximadamente 105.000 militares para África e Europa - morrendo 8.787 e ficando feridos entre 5.000 a 16.000.


Entre 1914 e 1918, Loures viu centenas de seus filhos irem para as frentes da Primeira Guerra Mundial e para África - alguns não regressaram, outros voltaram mudados para sempre. Este artigo regista os nomes, as histórias e o legado desses lourenses, bem como os monumentos que perpetuam a sua memória.

Loures, vila às portas de Lisboa, conquistou o título de “concelho” em 26 de julho de 1886, guarda na memória coletiva páginas de coragem e sacrifícios que ecoam até hoje. Durante a Primeira Guerra Mundial, muitos lourenses deixaram as suas terras para combater em Angola, Moçambique e França. O mais velho, nascido em 1879, partiu com 38 anos; o mais novo, nascido em 1898, tinha apenas 20. No total, cerca de 304 homens do concelho foram mobilizados para diferentes frentes. Oito deles, após servirem em África, integraram o Corpo Expedicionário Português e seguiram para a Europa, elevando para “aproximadamente” 312 o número de lourenses envolvidos neste capítulo marcante da história nacional.

A cada nova partida, crescia a ansiedade entre famílias e amigos, à medida que se formavam sucessivos contingentes: em 1914, três partiram para Angola e cinco para Moçambique; em 1915, nove para Angola, quatro para Moçambique e um para serviço marítimo; em 1916, dez para Moçambique, dois para a Madeira e um para o mar; em 1917, 257 para França e dez para Moçambique; e em 1918, cinco para França e um para Moçambique. Quatro casos permaneceram sem registo documental.

As notícias que chegavam eram muitas vezes vagas e sombrias, trazendo o peso das batalhas, da doença e da dureza do conflito. Entre 1916 e 1919 tombaram em campanha 19 lourenses: 1916 - um em Angola e três em Moçambique; 1917 - um em Angola e três em Moçambique, como no ano anterior; 1918 - seis em França e três em Moçambique; 1919 - já após o fim da Grande Guerra, um em França e outro em Moçambique. A ausência de um corpo para velório e luto tornava a dor ainda mais profunda, deixando famílias presas entre a dúvida e a esperança. Apesar disso, também houve regressos, embora num ritmo lento, fosse por conclusão de missão, doença, acidente ou licença. Entre 1915 e 1919, centenas regressaram vindos de vários teatros de guerra, numa dolorosa reconciliação com a vida e com o lar, marcada pelos sacrifícios e pela falta dos que não regressaram.

Em 1915 regressaram três de Angola e cinco de Moçambique; em 1916, seis de Angola e um de Moçambique; em 1917, um de Angola, seis de França, um da Madeira, um da Marinha e dois de Moçambique; em 1918, 68 de França, um da Marinha e sete de Moçambique; e em 1919, 179 de França, um da Madeira e quatro de Moçambique. Existem ainda sete casos sem dados sobre o ano de regresso.

O luto, mais pesado pela ausência do militar e do próprio corpo, deixou uma ferida aberta na comunidade. Faltava um espaço físico onde, nos momentos de maior saudade, se pudesse homenagear os que partiram, “conversando com eles” mesmo no silêncio. Esta necessidade era ainda mais sentida por órfãos, viúvas e principalmente por quem perdeu um filho, pois permanece até hoje o mistério - e a dor - de a língua portuguesa não ter uma palavra que define “pais que perderam um filho”. Uma saudade imensa, um luto sem fim, que apenas o tempo e a memória proporcionam entrelaçar e transmitir às próximas gerações.

As comunicações às famílias, baseadas nas informações prestadas pelas subunidades combatentes, eram muitas vezes vagas e lacónicas - e a ausência do corpo levantava uma dúvida: entre tantos soldados com nomes idênticos, não teria ocorrido engano? Não estaria aquele filho, afinal, ainda a caminho de casa?

A partida para os diferentes Teatros de Operações, sobretudo para França, fez-se ao longo de quase dez meses; para África, foram efetuadas duas a três viagens por ano. Os regressos davam-se por missão cumprida, incapacidade física, convalescença ou licença. Este retorno, contudo, foi quase sempre lento e marcado pela incerteza, sobretudo porque o repatriamento dos homens que serviram na frente francesa se prolongou por todo o ano de 1919. O luto, assim, mantinha-se - pesado, prolongado e sem corpo a velar, fator fundamental para o ritual da despedida. E continuou a faltar um local de homenagem, onde os mais fragilizados poderiam render tributo, conversando com os ausentes no silêncio das recordações. Esta “terapia silenciosa” ainda hoje conforta órfãos, viúvas e aqueles que perderam os filhos em quem depositaram sonhos e futuro. Na realidade, não foram apenas os familiares, amigos ou vizinhos que sentiram a ausência de “algo” que não regressou no final do conflito. Também a sociedade civil, no seu conjunto, partilhou essa sensação de perda e a necessidade de preservar a memória coletiva. Foi nesse contexto que, a 30 de julho de 1919, a Junta Patriótica do Norte lançou uma proposta para a criação de “padrões” que, através dos tempos, evocavam os que combateram na Grande Guerra e apresentavam uma devida homenagem.

A designação “monumentos”, teve origem numa decisão do governo da época, inspirada nos marcos e padrões deixados pelos portugueses nas suas viagens pelo mundo. O primeiro monumento erguido em Portugal foi inaugurado em 24 de setembro de 1919, por iniciativa de combatentes naturais da freguesia das Cortes, no concelho de Leiria. Com o apoio da população local foi construído no ponto mais alto da freguesia - símbolo de honra, sacrifício e memória.

Na sua tese de doutoramento “Políticas da Memória da I Guerra Mundial em Portugal (1918-1933) - Entre a Experiência e o Mito”, a doutora Sílvia Correia classifica os monumentos da Grande Guerra em quatro tipologias: “Vitorioso”, “Patriótico”, “Cívico” e “Funerário”. Ao Monumento de Loures é atribuída a dupla classificação “Patriótico/Funerário”, refletindo a sua simbologia de heroísmo e luto. De acordo com o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), trata-se de um “monumento comemorativo da participação portuguesa na I Guerra Mundial, com um grupo escultórico representando uma cena de combate, com figuras de grande expressividade”.

Embora exista um processo administrativo contendo planta e alçados, não foi encontrada qualquer memória descritiva nem representação completa da escultura. Na ausência desses registos, a interpretação mais aceite é a de que a componente “patriótica” se manifesta na parte traseira do monumento, representando uma trincheira após uma incursão inimiga.
Frente do Monumento de Homenagem ao Combatente da Grande Guerra - Loures
Lateral direita do Monumento
Lateral esquerda do Monumento
Traseira do Monumento

A peça de artilharia de campanha de fabrico francês - calibre de 7,5 cm TR m/1904 fabricada pela Schneider Frères & Cie - operada por uma guarnição de seis militares:
comandante, apontadores e serventes, apresenta-se em posição de tiro horizontal, embora pareça bastante elevado devido à especificidade natural do terreno.  Na figurativa destacam-se duas esculturas humanas. Um dos militares, possivelmente um oficial tombado no terreno, segura na mão uma pistola de fabrico americano - provavelmente uma Savage 7,65 mm m/1915, fabricada pela Savage Arms Company, e distribuída como arma de defesa pessoal. Esta imagem simboliza o sacrifício máximo exigido a um combatente: “a entrega da vida pela Pátria”. O outro militar, em vigia junto da trincheira, empunha uma espingarda Lee-Enfield (SMLE) Mark III de 7,7 mm M/1917 de fabrico inglês. Essa representação evoca a firme determinação de cumprir a missão, mesmo ferido ou em perigo iminente, simbolizando a persistência em defender uma posição confiável. Toda a componente figurativa do monumento é realizada em betão armado.

Depois de se consultar as plantas conservadas no Arquivo Municipal de Loures, reforça-se a ideia de que o monumento foi concebido para representar a entrada simbólica de um espaço cenotáfio - um local construído em memória dos combatentes lourenses sepultados em vários cemitérios da Europa.
Vista Geral do monumento da Grande Guerra de Loures ladeado pelas lápides

O frontispício é formado por dois contrafortes dispostos em posição oblíqua às paredes laterais do monumento, que vão perdendo altura gradualmente, indicando uma descida abaixo do solo. Estes contrafortes de base retangular composta por grandes blocos graníticos, mantém a face interior vertical, terminando em forma quadrangular, com capitéis retos que sustentam, no topo, duas esferas armilares - símbolos universais da identidade portuguesa e da sua história.  Sob um arco de volta perfeito em mármore branco, destaca-se uma Cruz de Guerra, parcialmente suspensa ao centro, acompanhada da inscrição “Aos Mortos da Grande Guerra”. Este seria, originalmente, o acesso ao interior do monumento, que posteriormente seria fechado com pedras e sobreposta por uma moldura onde foram gravados os nomes dos militares naturais do concelho, de que se tinha conhecimento, que tombaram em combate.
Lápide Grande Guerra
Lápide Guerra Ultramar

Para a recolha dos nomes dos lourenses mortos na guerra, tanto em África como na Europa, foram oficiadas todas as juntas de freguesia do concelho através de uma circular datada de 6 de setembro de 1929, assinada pelo Capitão Francisco Marques Beato, combatente em França, então presidente da Câmara Municipal de Loures (32.º presidente, com mandato entre 12 de julho de 1926 e 6 de outubro de 1931).

Foi precisamente durante o seu mandato que se concretizou a inauguração do monumento. De acordo com o livro “In Memorian”, editado pela Câmara Municipal de Loures em novembro de 2016, na Parte II, assinado por Jorge Aniceto e Pedro Rocha, leia-se na página 94: “No dia 8 de Dezembro de 1929, dedicado a Nossa Senhora da Conceição (e às mães), foi finalmente inaugurado o Monumento aos Combatentes do Concelho de Loures mortos na Grande Guerra, o segundo a ser erigido no distrito de Lisboa. O autor do projeto foi Fernando Soares, um conhecido empresário da época. Embora simples, o monumento é expressivo.” 

No verso de um postal de época, editado pela própria Câmara Municipal de Loures e com fotografia do monumento, encontra-se o seguinte texto:
“O envolvimento português na Grande Guerra arregimentou quase 200 mil homens, oriundos de todo o território nacional, incluindo o concelho de Loures. Aqui, o recrutamento militar atingiu largas dezenas de jovens. Todos partiram, mas alguns não regressaram. Ao todo tombaram quase 10 mil no campo de batalha. O heroísmo destes homens foi alvo de uma sentida homenagem dos seus conterrâneos, abraçada por Francisco Marques Beato, presidente da autarquia, militar e combatente que, solicitando a colaboração das juntas de freguesia garantia a realização de uma angariação de fundos para a execução do projecto da autoria do construtor civil Fernando Soares e que estava orçamentado em 25 contos. Assim, a 8 de Dezembro de 1929, dia de Nossa Senhora da Conceição (correspondia, à época, ao dia da Mãe), numa cerimónia que contou com a presença de diversas entidades públicas, Oficiais do Exército, representantes dos combatentes de Arruda, Loures e Lisboa, e de muitos populares que fizeram questão de se associar a este tributo, inaugurou-se o Monumento aos Combatentes do Concelhio de Loures Mortos na Grande Guerra, localizando-se ainda hoje no centro da vila (elevada a cidade em 1990), em lugar de destaque no jardim da Praça da Liberdade, em frente aos Paços do Concelho.”


No dia 8 de dezembro de 1929, o vespertino “O Povo” destacou a inauguração do Monumento aos Combatentes de Loures na sua página 4. Nos dias seguintes, o acontecimento continuou a ser amplamente noticiado, com referências nos jornais “28 de Maio” (edição de 10 de dezembro, página 4), “ABC” (edição de 12 de dezembro, página 8) e “Notícias Ilustradas” (edição de 15 de dezembro, páginas 10 e 11), refletindo a importância nacional e o impacto local desta homenagem.

Durante o serviço militar, o reconhecimento pelos méritos e pelo sacrifício dos soldados chega, muitas vezes, em forma de medalhas e condecorações. Estas insígnias, distinguem atos de bravura, determinação e dedicação. Durante a Primeira Guerra Mundial, os militares de Loures, não foram esquecidos: cinco receberam a insígnia da “Ordem Militar da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito”, grau comendador; cinco foram distintos com a “Medalha Militar da Cruz de Guerra”, uma de terceira classe e quatro de quarta; um militar com a “Medalha Militar de Comportamento Exemplar” nos graus Cobre e Prata; 43 lourenses receberam “Medalhas militar Comemorativas das Campanhas”, com registo de serviço em Angola, Moçambique, França ou na Defesa do Campo Entrincheirado de Lisboa; A “Medalha Militar da Vitória” acordada pelos aliados após a vitória, foi igualmente entregue a 43 combatentes. Houve ainda espaço para distinções de um militar com a “Medalha de Dedicação da Cruz Vermelha Portuguesa, e dois com a Medalha de Conduta Distinta (Distinguished Conduct Medal) atribuída pelo Rei de Inglaterra, Eduardo VII, e ainda foram atribuídos mais vinte e um louvores individuais.

Em novembro de 1968, Loures voltou a ser palco de homenagem aos seus combatentes, no cinquentenário do Armistício da Primeira Guerra Mundial. Junto ao monumento, agora enriquecido com uma nova placa em bronze comemorativa dos 50 anos da paz, reuniram-se militares, autoridades e população, numa cerimónia presidida pelo autarca Joaquim Dias de Sousa Ribeiro. O gesto, público e simbólico, reforça o orgulho e o respeito da comunidade por aqueles que defendem a Pátria, assegurando que o legado dos que serviram permanece presente na vida cívica do concelho.

Décadas depois, este sentimento de memória e reconhecimento foi novamente colocado em destaque. Em 2014, sob a presidência de Bernardino Soares (mandatos de outubro de 2013 a outubro de 2021), o Município de Loures prestou homenagem aos seus combatentes da Grande Guerra. No dia 25 de julho, durante as comemorações do 128.º aniversário da elevação de Loures a concelho, foi anunciada a reabilitação do monumento, com destaque para a recuperação da escultura, limpeza de cantarias e detalhes em bronze, bem como a renovação da base, agora em mármore preto. Mais tarde, a 19 de outubro do mesmo ano, foi descerrada uma placa comemorativa do centenário da Grande Guerra, na presença de representantes da Câmara Municipal, da Direção Central da Liga dos Combatentes e do Regimento de Transportes. Esta homenagem foi acompanhada de investigação histórica detalhada, conduzida por uma equipa multidisciplinar, resultando na publicação da Parte III do livro “In Memoriam” e na identificação específica dos lourenses mobilizados para África e França.

O centenário do Armistício foi assinalado em 11 de novembro de 2018, com a inauguração de um Memorial desenvolvido para aqueles que, cem anos antes, tinham deixado tudo para trás e rumaram para os campos de batalha. A cerimónia decorreu sob chuva intensa, reunindo representantes das Forças Armadas, das Edilidades de Loures e Odivelas, além de combatentes inscritos no Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes.

Reconhecendo o interesse da população neste símbolo de memória coletiva, a Câmara Municipal de Loures aprovou, em reunião de 31 de agosto de 2022, a classificação do Monumento aos Mortos da Grande Guerra como Monumento de Interesse Municipal, destacando o seu significado histórico e afetivo para o concelho.

Em 2023, o desejo de perpetuar novas memórias levou à proposta de criar uma lápide dedicada aos lourenses tombados na Guerra Colonial. A ideia foi acolhida pelo presidente do município Ricardo Leão (mandato desde outubro de 2021) e, a partir de outubro desse ano, técnicos e investigadores iniciaram o levantamento dos dados e a validação dos nomes dos militares que perderam a vida nas campanhas de Angola, Guiné e Moçambique, com apoio do Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes e com consulta rigorosa aos registos oficiais. Assim, no dia 10 de outubro de 2024, foi inaugurado o Memorial aos Combatentes do Ultramar, dedicado aos lourenses que deram o melhor de si em África, frequentemente a custo da juventude e do futuro. A cerimónia reuniu familiares, entidades civis e militares, e incluiu o chamamento dos nomes dos tombados, deposição de flores e alocuções das entidades presentes.

Estas memórias foram mantidas e celebradas pelo Núcleo da Loures da Liga dos Combatentes, cuja presença se faz notar anualmente nomeadamente em datas marcantes como sejam nos dias 9 de abril e 11 de novembro, junto dos monumentos aos combatentes em Loures, e 2 de novembro, junto dos talhões de combatentes nos cemitérios de Caneças, Loures, Odivelas e Sacavém. Com o avanço dos anos e a chegada de novos conflitos, como a Segunda Guerra Mundial e o Ultramar, a tradição das homenagens continua integrando diferentes gerações de militares na mesma memória coletiva.

Com estes gestos, Loures reforça o seu compromisso com a preservação da memória e da História Militar portuguesa. O jardim central, com o Monumento e as lápides dedicadas aos seus combatentes, tornou-se um lugar de referência, perpetuando os nomes e o sacrifício dos lourenses que cumpriram, até ao último momento, o seu juramento à Pátria.

José da Silva Marcelino Martins
Combatente na Guiné (1968-1970)
Sócio Combatente n.º 80.393
Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes

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Nota do editor

Último post da série de 22 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27451: Efemérides (474): Foi há 55 anos a Op Mar Verde, a invasão anfíbia de Conacri... Uma das vítimas colaterais foi Mamadou Barry, "Petit Barry" (n. 1934), colaborador próximo de Sékou Touré, encarcerado 7 anos em duas das mais sinistras prisões do regime

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27303: A nossa guerra em números (39): E os "retornados" de outros impérios coloniais (França, Holanda, Grã-Bretanha, etc.) quantos foram ?


Bandeira da França, "vandalizada" com o emblema representativos dos "pieds-noirs" da Argélia.   Imagem do domínio público

Fobte: Cortesia de Wikimedia Commons



1. O "boneco" do nosso António Rosinha (*), "tuga", "colon", "retornado", leva-nos a fazer a seguinte pergunta: quantos "retornados" houve, no séc. XX, nos outros países europeus, para além de Portugal, com colónias ou protetorados que acederam à independência política ?  Casos nomeadamente da França, da Holanda, Grão-Bretanha...

Como termo de comparação, partimos da estimativa mais consensual do total geral de “retornados” (1974/76), oriundos de Angola e Moçambique: c. 500 mil / 520 mil pessoas.

Aproximadamente menos de 2/3 vieram de Angola, e pouco mais de 1/3 de Moçambique; das restantes colónias (Cabo Verde, Guiné, São Tomé) os números são residuais (**).


O caso mais notório seria, de entre os colonizadores europeus, o da França, que manteve na Argélia uma guerra prolongada e violentíssima, entre 1954 e 1962. 


 Tal como de resto não o é o termo "retornado" entre nós: de facto, havia  portugueses,  cabo-verdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos,  goeses, e até chineses, etc., nascidos em África e para quem Portugal era o "Puto",  um país europeu, estrangeiro, distante, física, cultural e afetivamente. 

De facto, havia quem tivesse nascido em Angola ou Moçambique, de pais, avós e até bisavós oriundos de Portugal, continental e ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo-Verde) mas também de outras proveniências, e que se consideravam, a si próprios, depreciativamente, como "portugueses de 2ª"

 Em todo o caso, vinham cá de férias ou de licença graciosa ( os funcionários públicos),  vinham cá consultar o médico, ou estudar cá, etc. A universidade só tardiamente chegou a Luanda,  Nova Lisboa, Lourenço Marques... A formação das elites tinha que ter o "carimbo" de Lisboa...

Esses angolanos e moçambicanos não aceitavam ser tratados como "retornados".  Mas o "Puto" acabou por ser felizmente uma pátria de acolhimento para eles. Seriam hoje apátridas. É verdade que nem todos viajar para a antiga metrópole. Não sabemos quantos foram para  o Brasil, a África do Sul, a Venezuela...
 

A. Quantos foram os "pieds-noirs" que  sairam da Argélia, com a independência em 1962 ? (***)


É arriscado avançar com números, por causa das fontes, das metodologias, dos enviesamentos, etc.  Mas os números são necessários para termos uma noção mais aproximada das realidades complexas. É verdade que também servem para mentir, ocultar, branquear, etc.

A assistente de IA que rapa o tacho aqui e acolá, vasculha o lixo da Net, não tem espírito crítico nem muito menos empatia e compaixão, assim de rajada diz-nos logo que os "pieds-noirs" terão sido entre 650 mil e  1 milhão.  

Pés-negros ? Parece ter um sentido pejorativo, tal como "tuga" (no tempo da guerra colonial).. O nosso "retornado", apesar de tudo, parece ser mais "neutro", mas não é menos impreciso e redutor... A língua tem sempre estas limitações, e a realidade é sempre mais dinâmica, espessa e complexa.

Entenda-se: "pieds-noirs" = colonos europeus, principalmente franceses, que  saíram da Argélia após a independência em 1962, buscando refúgio sobretudo na França. 

Mesmo o termo "colono"  é impreciso: o missionário, o professor, o topógrafo, o médico,  etc., são colonos ?

O número exato varia conforme a fonte:

(i) vários relatos históricos estabelecem que cerca de 800 mil foram evacuados para França e aproximadamente 200 mil  permaneceram temporariamente na Argélia, sendo que o número dos que permaneceram foi se reduzindo rapidamente; 

(ii) algumas fontes falam em “quase 1 milhão” de refugiados (outro termo que também não é "neutro");

(iii) registros administrativos (de 1962)  apontam para  cerca de 650 mil a  680 mil os recém-chegados à França só nesse ano;

(iv) considerando também os judeus argelinos (alguns, seguramente sefarditas, de origem ibérica, c. 130 mil), bem como outros europeus, estima-se que até 1.050.000 pessoas de origem europeia viviam na Argélia no início da década de 1960; 

(v) sabe-se que a esmagadora maioria partiu com a independência, depois de uma guerra que foi uma tragédia.

O êxodo ocorreu de forma acelerada, em poucos meses, tal como em Angola e Moçambique, fruto do temor de represálias e das mudanças políticas, económicas e sociais radicais após o fim do domínio francês.

Claro que a saída dos "pieds-noirs" teve profundas consequências sociais e políticas tanto na Argélia como na França, marcando o pós-colonialismo no Mediterrâneo ocidental.


B. Quanto a holandeses (ou neerlandeses, como se diz hoje), saídos das ex-colónias dos Países Baixos...

O número de "retornados holandeses"  variaram bastante conforme o contexto histórico de cada território. 

Não houve um êxodo tão em massa e tão concentrado como no caso dos "pieds-noirs" da Argélia, nem do "ultramar português" (Angola, Moçambique...).

 Vejamos caso a caso:

(i) Índias Orientais Holandesas (Indonésia)

após a independência (1949), cerca de 300 /350  mil "colonos" emigraram para a Holanda entre as décadas de 1940 e 1960; mas nesse número não estão  apenas holandeses "puros" (de sangue),  mas também mestiços euro-asiáticos (os chamados "indos"), judeus, chineses e outros grupos ligados à administração colonial; os tais "indos " que migraram para a Holanda, serão estimados em 200 mil;

(ii) Suriname: 

com a independência em 1975,  quase metade da população original (estimada entre 100/150 mil pessoas) mudou-se para a Holanda, numa corrida migratória antes do encerramento das fronteiras (foram sobretudo descendentes de holandeses e outros grupos ligados à administração colonial);

(iii) Antilhas Holandesas: 

houve um  fluxo menor, mas constante, das ex-colónias caribenhas (Curaçao, Aruba, Sint Maarten) para a Holanda, especialmente em contextos de crise, totalizando hoje cerca de 200 mil descendentes de caribenhos holandeses  a viver  nos Países Baixos;

(iv) África do Sul: 

após o fim da dominação holandesa no Cabo (1815), muitos dos bóeres (palavra de origem neerlandesa, quer dizer isso mesmo, colono, descendente de holandeses) permaneceram na região e formaram comunidades que deram origem aos atuais africâneres; neste caso,  não houve uma saída massiva para a Holanda.

Mais especificamente os africâneres 
são um grupo étnico  sul-africano descendente de colonos, protestantes calvinistas,  europeus, principalmente holandeses, alemães e franceses (huguenotes), que chegaram ao Cabo da Boa Esperança a partir do século XVII. 

Eles falam africâner, uma língua germânica, que evoluiu do dialeto holandês dessa época;  desempenharam um papel central na história da África do Sul, incluindo o regime do apartheid (que vigorou de 1948 a 1994); historicamente, eles dominavam  setores como a política, o comércio  e a agricultura, mas a minoria branca, incluindo os africâneres,  é hoje uma pequena percentagem da população. 

Em resumo: a saída dos holandeses das ex-colónias foi significativa na Indonésia (após 1949) e em Suriname (após 1975), mas comparativamente menos dramática que a dos "pieds-noirs" na Argélia. ou das colónias / províncias ultramarinas portuguesas (há quem não goste do termo "colónias),

A diáspora holandesa mundial contemporânea reflete essas migrações, com estimativa de até 15 milhões de pessoas de origem holandesa/neerlandesa e seus descendentes vivendo fora da Holanda, incluindo grandes comunidades vindas das antigas colónias.  

C. Quanto aos britânicos, não há um número consolidado ou uma estimativa global de “retornados”, na sequência  das várias independências dos territórios do império onde o sol nunca se punha no tempo da Raínha Vitória...

Os retornos existiram, mas dispersos, com destaque para expulsões pontuais (ex: Uganda, 1972,  cerca de 27.000).

O fenómeno é amplamente documentado no caso português, mas não tem equivalente em escala ou identificação no caso britânico.


D. Os espanhóis, por sua vez,  não tiveram um fenómeno de "retornados" semelhante ao caso português.

A descolonização espanhola  (grande potência imperial) ocorreu maioritariamente nas Américas no século XIX, com processos de independência que resultaram na formação de vários países novos entre 1810 e 1824, e não no século XX como nos impérios britânico, francês ou português; esses processos de independência foram guerras e movimentos políticos e sociais que levaram à saída da Espanha das colónias americanas, mas não provocaram um retorno em massa de colonos espanhóis para a Espanha equivalente ao nosso caso no pós-25 de Abril.

Ainda há os casos residuais dos italianos, alemães, belgas... E até dos suecos, que, ao que parece,  também tiveram colónias.

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Perplexity, ChatGPT, Gemini...)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

____________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27288: Humor de caserna (214): O dono daquilo tudo, do Cuanza ao Cunene, o "colón", o retornado", o "coronel" e o "grão-tabanqueiro" António Rosinha

(**) Vd. poste de 12 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27113: A nossa guerra em números (31): Angola e Moçambique: População europeia total: ~535 mil / 600 mil | Total geral de "retornados" (incluindo os restantes territórios): c. 500 mil / 520 mil pessoas

(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,

Passando em revista os nomes sonantes do pensamento anticolonial, verifiquei que faltava nesta listagem uma referência a uma figura de primeiro plano, Aimé Césaire, hoje e ainda figura de proa surrealista, dos anos 1950 e 1960, alguém que, no primeiro Congresso dos Escritores Artistas Negros, em 1956, aludiu entusiasticamente às relações entre a situação colonial e a cultura, defendendo a necessidade militante de os intelectuais se comprometerem na luta popular de libertação nacional, a fórmula iria ser tomada à letra por líderes anticoloniais, como Amílcar Cabral, que reclamaram o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história. 

Este discurso sobre o colonialismo tem a datação daqueles meados dos anos 1950, Césaire dirige um libelo acusatório à intelectualidade francesa e não subsistem dúvidas de que o seu documento faz parte da documentação fundamental do impulso anticolonial, um chamamento à ação dos intelectuais negros para as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Libelo acusatório sobre o colonialismo como não se escreveu outro

Mário Beja Santos

A Martinica forneceu ao pensamento anticolonial duas figuras de referência: Aimé Césaire [foto à direita] e Franz Fanon, obviamente com características diferentes.

 Aqui se têm referenciado algumas obras indispensáveis para entender como se foi alicerçando o pensamento anticolonial, no continente americano, na própria atmosfera europeia onde ideólogos do antigo colonialismo foram bastante ativos, em África e na Ásia. De todos os nomes destes intelectuais que vão emergindo no Pós-Guerra ganhou preponderância o testemunho de alguém que ao tempo era dado como um poeta consagrado, um surrealista de peso, alguém que vinha da Martinica e que se formara em Paris, com altíssima classificação.

A obra que sujeitamos a análise, Discurso Sobre o Colonialismo, foi editada em 1955, (por coincidência, o ano da Conferência de Bandung, ponto de viragem para as lutas anticoloniais) o poeta lança-se num requisitório, como escreve Mário de Andrade, jamais um outro escritor negro proferiu, com tamanho talento, ao rosto dos opressores.

 Césaire escolheu claramente a quem se dirigia: aos intelectuais burgueses do seu país, a França, que ostentavam representar a consciência liberal, e ao fazê-lo alimentou a revolta nacionalista, como um seu colega de estudo, Leopold Senghor, mais tarde relembrou. O poeta começou por coligir testemunhos de colonialistas assumidos, irá fazer desfilar os horrores da dominação francesa em África, dará ênfase em Madagáscar, na Indochina e nas Antilhas.

Procurou reverter toda aquela argumentação da civilização dita cristã e ocidental. Começa por observar o que não é colonização: nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito. Colonizar é assunto de aventureiros e piratas, de comerciantes e de armadores, de pesquisadores de ouro e de mercadores. Tudo isto é uma hipocrisia recente.

 Nem Cortez, ao descobrir o México, nem Pizarro, diante de Cuzco, se proclamaram os mandatários de uma ordem superior, mataram, saquearam, enriqueceram a Espanha. A responsabilidade recai sobre o pedantismo cristão, ao considerar que o cristianismo é civilização e o paganismo selvajaria. Esta colonização esmerou-se em descivilizar o colonizador, embruteceu-o na verdadeira aceção da palavra, despertou-lhe os instintos para a cobiça, para a violência, para o ódio racial.

O colonialismo não aspira à igualdade, mas sim à dominação. E Césaire lança a questão das raças ditas superiores e das inferiores. Civilizar, para certos apologistas do colonialismo,  é não tolerar a “preguiça” dos povos selvagens. E o seu libelo acusatório sobe de tom:

“Onde quero eu chegar? A esta ideia: que ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização é uma civilização doente e a colonização é testa de ponte numa civilização de barbárie.”

Daí, ele enuncia as expedições coloniais e os seus cadáveres: o coronel de Montagnac, um dos conquistadores da Argélia, o conde d’Hérrisson, que veio com um barril cheio de orelhas, o marechal Bugeaud que dizia que se devia fazer uma grande invasão em África que se assemelhasse ao que faziam os Francos, ao que faziam os Godos.

Importa não esquecer os massacres e as execuções, as conquistas coloniais fundadas sobre o desprezo pelo homem indígena, e assevera:

“Bem vejo as civilizações em que a colonização introduziu um princípio de ruína: Oceânia, Nigéria, Niassalândia. Vejo menos bem o que ela lhes trouxe. Segurança? Cultura? Juridismo? Entretanto, olho e vejo por toda a parte por onde existem, frente a frente, colonizadores e colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque, e, parodiando a formação cultura, a fabricação apressada nuns tantos milhares de funcionários subalternos, ‘boys’, artesãos, empregados de comércio e intérpretes necessários à boa marcha dos negócios.”

Dirige-se em réplica de contraponto:

“Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano. Falo dos que, no momento em que escrevo, cavam à mão o porto de Abidjan. Falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem colocaram sabiamente medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo.”

Dentro do seu libelo acusatório, vai desmascarando posições racistas, posturas de superioridade cultural e questiona os tais intelectuais burgueses franceses: 

“Os vietnamitas, antes da chegada dos franceses ao seu país, eram gente de cultura antiga, delicada e requintada. Estes malgaxes, que hoje são torturados, eram, há menos de um século, poetas, artistas, administradores. Impérios sudaneses? Bronzes de Benim? Escultura Songho? Livrar-nos-ia de tantos mamarrachos sensacionais que adornam tantas capitais europeias. O pequeno burguês não quer ouvir mais nada.”

Césaire também vai zurzir em missionários, etnólogos, amadores do exotismo, sociólogos agrários, a todos aqueles que, diz ele, desempenham o seu papel na sórdida divisão do trabalho, escarnece dos estudos sobre o primitivismo, os romancistas da civilização que negam os méritos às raças não-brancas, sempre para chegar à conclusão que todos os progressos da Humanidade acabaram por ser desencadeados pela raça branca, dirige-se mesmo a uma figura de proa do tempo, Roger Caillois:

“A inaudita traição da etnografia ocidental que, há algum tempo, com uma deterioração deplorável do sentido das suas responsabilidades, se engenha a pôr em dúvida a superioridade omnilateral da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas”.

Acusa-o por favor parte do lote dos intelectuais europeus que se encarniçam a renegar os diversos ideais da sua cultura, isto quando no fundo, todos pensam pela mesma cartilha: o Ocidente inventou a ciência, só o Ocidente sabe pensar, no entanto, esses mesmos ocidentais esquecem certas verdades: a invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; a descoberta da astronomia pelos assírios; o nascimento da química pelos árabes; o aparecimento do racionalismo no Islão numa época que o pensamento ocidental tinha uma feição pré-lógica. 

“Nunca o Ocidente, no próprio momento em que mais se deleita com esta palavra, esteve tão longe de poder assumir as exigências do humanismo verdadeiro, de poder viver o humanismo verdadeiro – o humanismo à medida do Mundo.”

E despede-se na sua catilinária prevendo o que na prática veio a acontecer:

“Se a Europa Ocidental não toma de modo próprio em África, na Oceânia, em Madagáscar, isto é, às portas de África do Sul, nas Antilhas, isto é, às portas da América, a iniciativa de uma política das nacionalidades, a iniciativa de uma política nova fundada no respeito dos povos e das culturas, se a Europa não galvaniza as culturas moribundas ou não suscita as culturas novas, se não se torna despertadora de pátrias e civilizações, a Europa terá perdido a sua derradeira oportunidade.”

Eis, em síntese, um dos documentos de referência que levou ao conclave da liberdade dos povos colonizados, um conteúdo que chamou à atenção de futuros líderes anticoloniais, Amílcar Cabral seguramente que tomou em conta o princípio que Césaire enuncia, o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história, como Cabral escreveu:

“(…) a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à História, pela destruição do domínio imperialista a que esteve sujeito.”

Césaire foi um notável poeta que nos deixou um poderoso lirismo de combate, como se exemplifica: “Vejo a África múltipla e una/vertical na sua tumultuosa peripécia/com os seus refegos, os seus nódulos/um pouco à parte, mas ao alcance/do século, como um coração de reserva.”
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Nota do editor

Último post da série de 4 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26198: Facebook...ando (67): Joaquim Gregório Rocha, da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72): participou na trágica Op Abencerragem Candente (25-26 de novembro de 1970), era do 4º pelotão (do fur mil Cunha, uma das vítimas mortais), vive em França e manifestou, há dois anos, interesse em integrar a Tabanca Grande



Joaquim Gregório Rocha > O antigo militar da CART 2715 / BART 2917, "Os Fantasmas do Xime"  (Xime, 1970/72)... Não sabemos nem o seu posto nem a sua especialidade: aqui é fotografado como apontador ou municiador de morteiro 60... 







Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

Joaquim Gregório Rocha é emigrante,  de longa data... Vive em Onzain, Centre, France. Tem página no Facebook, e apenas duas ou três fotos da Guiné, Pertenceu à CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72).


1. Por onde param os camaradas da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72) que, juntamente com a CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71),  fizeram a Op Abencerragem Candente, no subsetor do Xime, em 25 e 26 de novembro de 1970 ? 

Uma operação de trágica memória, que se saldou por um dos maiores desastres das NT, naquele subsetor do sector L1 (Bambadinca), região de Bafatá, em toda a guerra: 6 mortes, 9 feridos graves, com sequelas tremendas no "moral" do pessoal da CART 2715 que, dentro de mês e meio, iria perder o seu comandante, evacuado para o HM 241, com baixa psiquiátrica, o cap art Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014) (membro da Tabanca Grande, nº 781, a título póstumo, entrado em 26/11/2018, 48 anos depois da  Op Abencerragem Candente,sobre a qual temos cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue).

Por onde param os "Fantasmas do Xime" ? 

2. Em 27/11/2022, 21:14.  recebemos uma mensagem, pelo formulário de contacto do Blogger, da parte do Joaquim Gregório Rocha:


(...) Obrigado.pelo teu poema, verdadeiro, passado perto da Ponta do Inglês. Eu fazia parte do 4º pelotão, o mesmo do malogrado furriel Cunha. Que descanse em paz. (...). Ia nessa operação. (...)

Caro amigo, gostava imenso de ser membro da Tabanca Grande. Eu estive no Xime de 70 a 72. (...)

Um grande abraço.

Joaquim Rocha Gregório | joaquimgregorio0@gmail.com (...)

 
3. Em 4/12/2022, 12:31, o nosso coeditor Carlos Vinhal mandou-lhe, em resposta, a seguinte mensagem:

Caro Joaquim Gregório:

Para te juntares à nossa tertúlia, manda-nos uma foto tua actual e outra do nosso tempo de Guiné, fardado, que permitam fazer fotos tipo passe para os nossos arquivos.

Queremos saber o teu posto, especialidade, Companhia e Batalhão (se for o caso), datas de ida e volta da Guiné, localidades por onde andaste, etc.

Podes, caso queiras, mandar-nos uma pequena história que te tenha marcado particularmente, com fotos legendadas, ou texto onde fales de ti para te conhecermos melhor. Caso queiras ver anunciado o teu aniversário, manda a tua data de nascimento para publicarmos o postalinho natalício.

Aqui podes inteirar-te dos objectivos do nosso blogue.

Ficamos na expectativa das tuas novas notícias. Em nome da tertúlia e dos editores em particular, deixo-te um abraço e votos de boa saúde.

O camarada e amigo
Carlos Vinhal


4. O Joaquim Gregório Rocha, com pena nossa, nunca nos chegou a responder. Mas as portas da Tabanca Grande continuam abertas. Sempre abertas. Para ele e para todos os camaradas da Guiné, onde quer que estejam, em Portugal ou na diáspora...

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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26144: Facebook...ando (66): Sessão de apresentação do livro de poesia "Na Penumbnra  da Memória, Vivèwnciuas da Guerra Colonial",  da autoria de José Luís Loureiro, levada a efeito no passado dia 9 de Novembro de 2024, no Casino da Figueira da Foz (Antero Santos, ex-Fur Mil Inf)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26085: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (5): Lamine Bah escreve-nos, em francês, a pedir referências sobre o nosso camarada, o maj pilav António Lobato, recentemente falecido



Formulário de Contacto do Blogger: disponível na coluna estática, do lado esquerdo do blogue.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)





Capa do livro do António Lobato (1938-2024), "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.). 

1. Mensagem recebida através do Formulário de Contacto  do Blogger (*):


26/10/2024, 13:15

Bonjour,

Je suis content de découvrir votre blog. Il me permet d'avoir des
précisions sur l'opération portugaise Mar Verde à Conakry le 22 novembre
1970.

Je voudrais avoir des détails sur Antonio Lobato,  un pilote portugais qui a
été détenu 7 ans à Conakry.

Mercure

Cumprimentos,
Lamine Bah 

Nota: Este email foi enviado através da gadget Formulário de Contactos em
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com


2. Tradução para português (LG):

Bom dia.

Estou feliz por  descobrir o seu blogue. Deu-me informação detalhada sobre a operação portuguesa Mar Verde em Conacri , no dia 22 de novembro de 1970.

Gostaria de saber algo mais sobre António Lobato, um piloto português que esteve detido durante 7 anos em Conacri.

Mercure

Cumprimentos,
Lamine Bah  (c/ indicação de email, que por princípio omitimos)

Observação: este e-mail é enviado por meio do formulário de contato do gadget
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com


3. Resposta do editor LG:


Lamine Bah:

Salut, merci | Obrigado pelo contacto. 

Nous avons plusieurs références sur les sujets dont vous parlez | Temos no blogue  diversas referências sobre esses tópicos:


Mr. António Lobato, notre compagon d'armes,  a écrit ses mémoires de guerre: "Liberté ou évasion : la plus longue captivité de la guerre"  (titre en français) (5.ème ed., 2014, 276 pages)  | António Lobato, nosso camarada de armas, escreveu um livro de memórias, em português: "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.). 

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23945: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (4): Mensagens recebidas nos últimos dois meses de 2022

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois do relato surpreendente do tenente da Armada Real que andou em 1888 na delimitação de fronteiras, pareceu-me necessário voltar à questão do Casamansa, um dos efeitos mais dolorosos provocados pela ambição francesa, ignorantes e obtusos quanto à delicada questão dos povos ali residentes, forçados a entrar num espaço para eles inaceitável. E, como é público e notório, a questão perdura e perdurará. A investigadora Maria Luísa Esteves é mestra na organização do seu trabalho, enquadra de forma simples e incisiva a questão do Casamansa na perspetiva histórica da presença portuguesa, a parte da situação económica, continuamente desfavorável para Portugal, agravada pela presença dos Filipes, pelo analfabetismo político naquela monarquia constitucional em que Alexandre Herculano teve que desancar uma besta quadrada. Creio que o leitor ganhará mais elementos através desta visão de conjunto que este clássico da historiografia oferece, traz mais luz àqueles acontecimentos que o tenente da Armada Real Cunha Oliveira descreveu num relatório sem precedentes, agravado pelo seu desgosto em constatar a indiferença dos políticos portugueses pela Guiné, levado nas conclusões a conclamar: ou se desenvolve a Guiné ou então entreguem-na à França.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Atenda-se ao que escrevem a investigadora e Carlos Cardoso, este então a presidir o INEP:
“Ontem, objeto de disputa entre as potências de então, principalmente entre Portugal e a França, e hoje motivo de reivindicações por parte das populações que o habitam, este território, que perfaz 28,350 km2, ou seja, 1/7 do Senegal, denominado Casamansa, continua a despertar a atenção a historiadores e homens políticos. Com efeito, devido ás suas características naturais esta região cedo foi objeto de preocupação por parte daqueles que queriam ‘descobrir’ África.”

Parece-me também útil relevar da nota prévia: “Portugal e a França, até 1830, tiveram uma posição definida na Guiné. A partir dessa data, a influência francesa acentua-se lentamente após a fundação de uma feitoria no rio Casamansa (…) Para fazer uma descrição tanto quanto possível do Casamansa e da sua importância através dos tempos, fomos buscar elementos aos autores do século XV, XVI e XVII, que se lhe referem, como Luís de Cadamosto, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco Lemos Coelho.”

A autora observa que o grande mentor da defesa dos direitos portugueses ao Casamansa foi o visconde de Santarém, cuja obra Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos Portuguezes na Costa d’África occidental; para servir de illustração à chronica da Conquista de Guiné por Azurara se tornou a base histórica de toda a discussão diplomática. Depois da convenção de 12 de maio de 1886, o que parecia simples e resolvido levou a contendas sucessivas, notas diplomáticas azedas, era difícil saber o que rigorosamente pertencia a cada país. Uma tentativa de ultrapassar o impasse, os dois países aprovaram a constituição de uma comissão mista que se deslocou à Guiné em 1888 (conhecemos o conteúdo desta atividade através do artigo-memorial de Cunha Oliveira, detalhadamente referido aqui no blogue), havia a intenção de marcar as áreas de influência de cada uma das partes. Surgiram obstáculos e divergências, como se observou acima, tudo fora feito pelos negociadores sem ter havido previamente o levantamento topográfico dos locais a delimitar para, sempre que possível, se respeitarem as divisões naturais. Os impasses sucediam-se, organizaram-se missões que 1900 a 1905 se irão ocupar da balizagem das fronteiras, procedendo ao reconhecimento de certos rios, à troca de territórios, à colocação de pilares. Por muito que o leitor se surpreenda, a demarcação da fronteira luso-francesa da Guiné só se pode considerar definitivamente concluída depois dos trabalhos de 1930 e 1931.

Postos estes prolegómenos, a autora procede esquematicamente a dados da presença portuguesa na Guiné: provavelmente quem aqui chegou em primeiro lugar terá sido Álvaro Fernandes, em 1446, segue-se Luís de Cadamosto na segunda viagem à Guiné, em 1456; meio século adiante, no manuscrito de Valentim Fernandes, há uma descrição minuciosa do Casamansa; em 1594, mais notícias se vêm juntar e desta vez dadas pelo capitão André Álvares de Almada numa outra obra fundamental, Tratado Breve dos Rios de Guiné (capítulo VIII ‘Que trata do reino do Casamança e do que nele há’).

Chegados ao século XVII, deparam-se-nos três manuscritos de indiscutível importância – um de 1625, Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde, outro de 1669, Descripção da Costa da Guiné desde Cabo Verde até à Serra Leoa, com todas as ilhas e rios que os brancos assistentes nella navegão, e o último de 1684, Discripção da Costa da Guiné e Situação de Todos os Portos e Rios Della, e Roteyro Para se poderem Navegar todos seus Rios (associado aos nomes de André Donelha e Francisco Lemos Coelho).

Depois da Restauração, o capitão-mor de Cacheu, Gonçalo de Gamboa de Aiala, fortificou Ziguinchor, este vai ser o único porto digno desse nome, até ao século XIX. Apesar do panorama desanimador do movimento comercial no início do século XIX, as relações dos naturais com o presídio eram boas devido à influência da família Carvalho Alvarenga, aparentada com o régulo de Ziguinchor. Alguns portugueses procuravam alertar os responsáveis e demonstrar que a perda da presença portuguesa na região seria uma catástrofe para o país, pois “aquelle rio exporta o dobro do que exportam os outros pontos juntos” e é o “maior rio d’Africa Portugueza”.

Depois desta contextualização, a autora expõe a situação económica da Guiné através dos séculos, como aqui se resume. Expedições de Cid de Sousa (1453), Cadamosto (1455) chega ao Geba; Diogo Gomes terá precedido em 1454 Cadamosto. Recorda-se a capitania em Arguim e como D. Afonso V arrendara os “trautos da Guiné” a Fernão Gomes. É também recordado que o comércio da Guiné estava eivado de grandes defeitos: por um lado, o controlo exercido pela administração régia; por outro lado, a indisciplina dos particulares que se entregavam à atividade mercantil da forma mais arbitrária, e com perda de réditos para a Fazenda.

A presença lusa na Guiné limita-se ao princípio ao litoral e às margens dos grandes rios. Era nestes pontos, quase isolados entre si, que se exercia a influência portuguesa. Em fins do século XVIII não havia uma ocupação efetiva na Guiné. Os franceses estabelecem companhias de comércio em África e, para justificarem a sua presença, inventam a lenda das viagens dos normandos à Guiné no século XIV.

A Companhia de Cacheu formou-se em 1675, de que a Fazenda Real era acionista, ficava com o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Mas era tarde, a derrota da Invencível Armada, em 1588, lançou definitivamente a Inglaterra a caminho da costa da Guiné – vai aparecer a feitoria da Gâmbia, berço da futura colónia inglesa.

Em 1677, os franceses conquistaram aos holandeses a ilha de Goreia e assim começou verdadeiramente a ocupação militar do Senegal. Só pelo Tratado de Versalhes, de 3 de setembro de 1783, a França fica senhora sem mais contestações da região compreendida entre o Cabo Branco e a Gâmbia, enquanto esta e a Serra Leoa pertenciam à Inglaterra. A nossa presença sempre em deterioração. Arguim caiu em poder dos holandeses no tempo dos Filipes, em 1638. Ali tinham permanecidos os portugueses durante séculos, datando de 1461 a ordem de D. Afonso V para se edificar um castelo na ilha.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26010: Notas de leitura (1732): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23) (Mário Beja Santos)