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terça-feira, 26 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26198: Facebook...ando (67): Joaquim Gregório Rocha, da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72): participou na trágica Op Abencerragem Candente (25-26 de novembro de 1970), era do 4º pelotão (do fur mil Cunha, uma das vítimas mortais), vive em França e manifestou, há dois anos, interesse em integrar a Tabanca Grande



Joaquim Gregório Rocha > O antigo militar da CART 2715 / BART 2917, "Os Fantasmas do Xime"  (Xime, 1970/72)... Não sabemos nem o seu posto nem a sua especialidade: aqui é fotografado como apontador ou municiador de morteiro 60... 







Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

Joaquim Gregório Rocha é emigrante,  de longa data... Vive em Onzain, Centre, France. Tem página no Facebook, e apenas duas ou três fotos da Guiné, Pertenceu à CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72).


1. Por onde param os camaradas da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72) que, juntamente com a CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71),  fizeram a Op Abencerragem Candente, no subsetor do Xime, em 25 e 26 de novembro de 1970 ? 

Uma operação de trágica memória, que se saldou por um dos maiores desastres das NT, naquele subsetor do sector L1 (Bambadinca), região de Bafatá, em toda a guerra: 6 mortes, 9 feridos graves, com sequelas tremendas no "moral" do pessoal da CART 2715 que, dentro de mês e meio, iria perder o seu comandante, evacuado para o HM 241, com baixa psiquiátrica, o cap art Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014) (membro da Tabanca Grande, nº 781, a título póstumo, entrado em 26/11/2018, 48 anos depois da  Op Abencerragem Candente,sobre a qual temos cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue).

Por onde param os "Fantasmas do Xime" ? 

2. Em 27/11/2022, 21:14.  recebemos uma mensagem, pelo formulário de contacto do Blogger, da parte do Joaquim Gregório Rocha:


(...) Obrigado.pelo teu poema, verdadeiro, passado perto da Ponta do Inglês. Eu fazia parte do 4º pelotão, o mesmo do malogrado furriel Cunha. Que descanse em paz. (...). Ia nessa operação. (...)

Caro amigo, gostava imenso de ser membro da Tabanca Grande. Eu estive no Xime de 70 a 72. (...)

Um grande abraço.

Joaquim Rocha Gregório | joaquimgregorio0@gmail.com (...)

 
3. Em 4/12/2022, 12:31, o nosso coeditor Carlos Vinhal mandou-lhe, em resposta, a seguinte mensagem:

Caro Joaquim Gregório:

Para te juntares à nossa tertúlia, manda-nos uma foto tua actual e outra do nosso tempo de Guiné, fardado, que permitam fazer fotos tipo passe para os nossos arquivos.

Queremos saber o teu posto, especialidade, Companhia e Batalhão (se for o caso), datas de ida e volta da Guiné, localidades por onde andaste, etc.

Podes, caso queiras, mandar-nos uma pequena história que te tenha marcado particularmente, com fotos legendadas, ou texto onde fales de ti para te conhecermos melhor. Caso queiras ver anunciado o teu aniversário, manda a tua data de nascimento para publicarmos o postalinho natalício.

Aqui podes inteirar-te dos objectivos do nosso blogue.

Ficamos na expectativa das tuas novas notícias. Em nome da tertúlia e dos editores em particular, deixo-te um abraço e votos de boa saúde.

O camarada e amigo
Carlos Vinhal


4. O Joaquim Gregório Rocha, com pena nossa, nunca nos chegou a responder. Mas as portas da Tabanca Grande continuam abertas. Sempre abertas. Para ele e para todos os camaradas da Guiné, onde quer que estejam, em Portugal ou na diáspora...

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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26144: Facebook...ando (66): Sessão de apresentação do livro de poesia "Na Penumbnra  da Memória, Vivèwnciuas da Guerra Colonial",  da autoria de José Luís Loureiro, levada a efeito no passado dia 9 de Novembro de 2024, no Casino da Figueira da Foz (Antero Santos, ex-Fur Mil Inf)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26085: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (5): Lamine Bah escreve-nos, em francês, a pedir referências sobre o nosso camarada, o maj pilav António Lobato, recentemente falecido



Formulário de Contacto do Blogger: disponível na coluna estática, do lado esquerdo do blogue.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)





Capa do livro do António Lobato (1938-2024), "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.). 

1. Mensagem recebida através do Formulário de Contacto  do Blogger (*):


26/10/2024, 13:15

Bonjour,

Je suis content de découvrir votre blog. Il me permet d'avoir des
précisions sur l'opération portugaise Mar Verde à Conakry le 22 novembre
1970.

Je voudrais avoir des détails sur Antonio Lobato,  un pilote portugais qui a
été détenu 7 ans à Conakry.

Mercure

Cumprimentos,
Lamine Bah 

Nota: Este email foi enviado através da gadget Formulário de Contactos em
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com


2. Tradução para português (LG):

Bom dia.

Estou feliz por  descobrir o seu blogue. Deu-me informação detalhada sobre a operação portuguesa Mar Verde em Conacri , no dia 22 de novembro de 1970.

Gostaria de saber algo mais sobre António Lobato, um piloto português que esteve detido durante 7 anos em Conacri.

Mercure

Cumprimentos,
Lamine Bah  (c/ indicação de email, que por princípio omitimos)

Observação: este e-mail é enviado por meio do formulário de contato do gadget
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com


3. Resposta do editor LG:


Lamine Bah:

Salut, merci | Obrigado pelo contacto. 

Nous avons plusieurs références sur les sujets dont vous parlez | Temos no blogue  diversas referências sobre esses tópicos:


Mr. António Lobato, notre compagon d'armes,  a écrit ses mémoires de guerre: "Liberté ou évasion : la plus longue captivité de la guerre"  (titre en français) (5.ème ed., 2014, 276 pages)  | António Lobato, nosso camarada de armas, escreveu um livro de memórias, em português: "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.). 

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23945: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (4): Mensagens recebidas nos últimos dois meses de 2022

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois do relato surpreendente do tenente da Armada Real que andou em 1888 na delimitação de fronteiras, pareceu-me necessário voltar à questão do Casamansa, um dos efeitos mais dolorosos provocados pela ambição francesa, ignorantes e obtusos quanto à delicada questão dos povos ali residentes, forçados a entrar num espaço para eles inaceitável. E, como é público e notório, a questão perdura e perdurará. A investigadora Maria Luísa Esteves é mestra na organização do seu trabalho, enquadra de forma simples e incisiva a questão do Casamansa na perspetiva histórica da presença portuguesa, a parte da situação económica, continuamente desfavorável para Portugal, agravada pela presença dos Filipes, pelo analfabetismo político naquela monarquia constitucional em que Alexandre Herculano teve que desancar uma besta quadrada. Creio que o leitor ganhará mais elementos através desta visão de conjunto que este clássico da historiografia oferece, traz mais luz àqueles acontecimentos que o tenente da Armada Real Cunha Oliveira descreveu num relatório sem precedentes, agravado pelo seu desgosto em constatar a indiferença dos políticos portugueses pela Guiné, levado nas conclusões a conclamar: ou se desenvolve a Guiné ou então entreguem-na à França.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Atenda-se ao que escrevem a investigadora e Carlos Cardoso, este então a presidir o INEP:
“Ontem, objeto de disputa entre as potências de então, principalmente entre Portugal e a França, e hoje motivo de reivindicações por parte das populações que o habitam, este território, que perfaz 28,350 km2, ou seja, 1/7 do Senegal, denominado Casamansa, continua a despertar a atenção a historiadores e homens políticos. Com efeito, devido ás suas características naturais esta região cedo foi objeto de preocupação por parte daqueles que queriam ‘descobrir’ África.”

Parece-me também útil relevar da nota prévia: “Portugal e a França, até 1830, tiveram uma posição definida na Guiné. A partir dessa data, a influência francesa acentua-se lentamente após a fundação de uma feitoria no rio Casamansa (…) Para fazer uma descrição tanto quanto possível do Casamansa e da sua importância através dos tempos, fomos buscar elementos aos autores do século XV, XVI e XVII, que se lhe referem, como Luís de Cadamosto, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco Lemos Coelho.”

A autora observa que o grande mentor da defesa dos direitos portugueses ao Casamansa foi o visconde de Santarém, cuja obra Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos Portuguezes na Costa d’África occidental; para servir de illustração à chronica da Conquista de Guiné por Azurara se tornou a base histórica de toda a discussão diplomática. Depois da convenção de 12 de maio de 1886, o que parecia simples e resolvido levou a contendas sucessivas, notas diplomáticas azedas, era difícil saber o que rigorosamente pertencia a cada país. Uma tentativa de ultrapassar o impasse, os dois países aprovaram a constituição de uma comissão mista que se deslocou à Guiné em 1888 (conhecemos o conteúdo desta atividade através do artigo-memorial de Cunha Oliveira, detalhadamente referido aqui no blogue), havia a intenção de marcar as áreas de influência de cada uma das partes. Surgiram obstáculos e divergências, como se observou acima, tudo fora feito pelos negociadores sem ter havido previamente o levantamento topográfico dos locais a delimitar para, sempre que possível, se respeitarem as divisões naturais. Os impasses sucediam-se, organizaram-se missões que 1900 a 1905 se irão ocupar da balizagem das fronteiras, procedendo ao reconhecimento de certos rios, à troca de territórios, à colocação de pilares. Por muito que o leitor se surpreenda, a demarcação da fronteira luso-francesa da Guiné só se pode considerar definitivamente concluída depois dos trabalhos de 1930 e 1931.

Postos estes prolegómenos, a autora procede esquematicamente a dados da presença portuguesa na Guiné: provavelmente quem aqui chegou em primeiro lugar terá sido Álvaro Fernandes, em 1446, segue-se Luís de Cadamosto na segunda viagem à Guiné, em 1456; meio século adiante, no manuscrito de Valentim Fernandes, há uma descrição minuciosa do Casamansa; em 1594, mais notícias se vêm juntar e desta vez dadas pelo capitão André Álvares de Almada numa outra obra fundamental, Tratado Breve dos Rios de Guiné (capítulo VIII ‘Que trata do reino do Casamança e do que nele há’).

Chegados ao século XVII, deparam-se-nos três manuscritos de indiscutível importância – um de 1625, Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde, outro de 1669, Descripção da Costa da Guiné desde Cabo Verde até à Serra Leoa, com todas as ilhas e rios que os brancos assistentes nella navegão, e o último de 1684, Discripção da Costa da Guiné e Situação de Todos os Portos e Rios Della, e Roteyro Para se poderem Navegar todos seus Rios (associado aos nomes de André Donelha e Francisco Lemos Coelho).

Depois da Restauração, o capitão-mor de Cacheu, Gonçalo de Gamboa de Aiala, fortificou Ziguinchor, este vai ser o único porto digno desse nome, até ao século XIX. Apesar do panorama desanimador do movimento comercial no início do século XIX, as relações dos naturais com o presídio eram boas devido à influência da família Carvalho Alvarenga, aparentada com o régulo de Ziguinchor. Alguns portugueses procuravam alertar os responsáveis e demonstrar que a perda da presença portuguesa na região seria uma catástrofe para o país, pois “aquelle rio exporta o dobro do que exportam os outros pontos juntos” e é o “maior rio d’Africa Portugueza”.

Depois desta contextualização, a autora expõe a situação económica da Guiné através dos séculos, como aqui se resume. Expedições de Cid de Sousa (1453), Cadamosto (1455) chega ao Geba; Diogo Gomes terá precedido em 1454 Cadamosto. Recorda-se a capitania em Arguim e como D. Afonso V arrendara os “trautos da Guiné” a Fernão Gomes. É também recordado que o comércio da Guiné estava eivado de grandes defeitos: por um lado, o controlo exercido pela administração régia; por outro lado, a indisciplina dos particulares que se entregavam à atividade mercantil da forma mais arbitrária, e com perda de réditos para a Fazenda.

A presença lusa na Guiné limita-se ao princípio ao litoral e às margens dos grandes rios. Era nestes pontos, quase isolados entre si, que se exercia a influência portuguesa. Em fins do século XVIII não havia uma ocupação efetiva na Guiné. Os franceses estabelecem companhias de comércio em África e, para justificarem a sua presença, inventam a lenda das viagens dos normandos à Guiné no século XIV.

A Companhia de Cacheu formou-se em 1675, de que a Fazenda Real era acionista, ficava com o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Mas era tarde, a derrota da Invencível Armada, em 1588, lançou definitivamente a Inglaterra a caminho da costa da Guiné – vai aparecer a feitoria da Gâmbia, berço da futura colónia inglesa.

Em 1677, os franceses conquistaram aos holandeses a ilha de Goreia e assim começou verdadeiramente a ocupação militar do Senegal. Só pelo Tratado de Versalhes, de 3 de setembro de 1783, a França fica senhora sem mais contestações da região compreendida entre o Cabo Branco e a Gâmbia, enquanto esta e a Serra Leoa pertenciam à Inglaterra. A nossa presença sempre em deterioração. Arguim caiu em poder dos holandeses no tempo dos Filipes, em 1638. Ali tinham permanecidos os portugueses durante séculos, datando de 1461 a ordem de D. Afonso V para se edificar um castelo na ilha.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26010: Notas de leitura (1732): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25798: Historiografia da presença portuguesa em África (434): Na sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, Para servir de ilustração À Crónica da Conquista da Guiné de Zurara"; Paris, Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud,1841, o 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Creio que a chamada Questão do Casamansa tem vindo a ser tratada aqui no blogue com uma certa pertinência. É uma trágica sequela de um período de indiscutível abandono da nossa presença nesta região de África, houvera a formal abolição da escravatura, a França não escondia o seu apetite de estar presente e comerciar em exclusivo no território que corresponde ao Senegal, a Inglaterra também reivindicou a sua presença, forjou a Gâmbia, assentou arraiais na Serra Leoa, a Senegâmbia Portuguesa foi ficando cada vez mais espalmada e sempre disputada, os franceses pretenderam mesmo dominar Bissau, os régulos locais repudiaram-nos, quiseram também o Ilhéu do Rei, deu trabalho a afastá-los; os ingleses tudo fizeram para colonizar Bolama. Em termos de negociações diplomáticas, Paris teve a ousadia de argumentar com a presença dos normandos na região, em meados do século XIV. Vivendo em Paris, onde deixou um legado científico de incalculável valor, o 2.º Visconde de Santarém elaborou uma Memória que deitou por terra a falaciosa justificação francesa para se apoderar do Casamansa. É uma síntese dessa Memória que aqui se faz referência, tenho para mim que é peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na Guiné.

Um abraço do
Mário



O 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné

Mário Beja Santos

O 2.º Visconde de Santarém é uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa da primeira metade do século XIX, investigador distintíssimo na cartografia e nas análises feitas ao período dos Descobrimentos portugueses, mormente na África Ocidental. A sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, para servir de ilustração à Crónica da Conquista da Guiné de Zurara", publicada em Paris, na Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud, em 1841, é sem margem para dúvidas o documento mais incisivo que serviu para refutar os alegados fundamentos de diplomacia francesa de que este país fora o primeiro a chegar a esta região da costa africana. O Visconde de Santarém, devido à sua fidelidade ao ideário miguelista, exilou-se em Paris depois da Convenção de Évora Monte, não mais voltou a Portugal, recusou o convite que D. Pedro IV lhe fez para regressar. Estudioso emérito, dedicou-se à cartografia, deve-se-lhe a descoberta na Biblioteca Nacional de Paris da Crónica de Zurara onde supostamente se retém a imagem do Infante D. Henrique, e conhecedor da falaciosa argumentação francesa sobre a sua presença anterior à dos portugueses na costa africana, atirou-se ao trabalho, o resultado é esta Memória, peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na região.

Veja-se sumariamente a argumentação do investigador, o rigor da sua fundamentação, e como ela pôs cobro às falsidades e devaneios de pretensos historiadores franceses.

Até aos fins do século XVI nenhum escritor estrangeiro nos disputou a prioridade dos nossos Descobrimentos na Costa Ocidental de África, somente no meado do século XVII apresentou um certo Villant de Bellefond, viajante francês, reclamando, sem prova alguma, a prioridade daqueles Descobrimentos a favor dos marítimos de Dieppe, que, segundo ele, tinham fundado estabelecimentos na Guiné, em 1364. Vários escritores o copiaram depois, e posto que os mais sábios geógrafos de todas as nações que escreveram depois de Villant, e mesmo alguns dos franceses, não admitiram aquela suposta prioridade; contudo, três obras importantes, publicadas nestes últimos anos em França, vieram de novo ressuscitar a pretensão da dita suposta prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe, fundando-se principalmente na relação daquele viajante do meado do século XVII.

Restabelecer, pois, os factos, e mostrar com documentos de indubitável fé que a tal pretendida prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe do século XIV é insustentável, tal é o objeto da presente Memória.

Fala o autor francês dos navios destes portos de Dieppe que devastaram todos os países desde o Elba ao estreito de Gibraltar, e que estes normandos terão limitado as suas navegações aos confins da Mauritânia.

É um facto histórico de indubitável fé que os peninsulares ibéricos sujeitos aos árabes e cristãos passaram frequentes vezes a África. Não se pode sustentar à vista destes factos que os normandos desde a sua aparição no século IX, onde só apareceram como piratas, pudessem ter estabelecido relações comerciais com África; os portugueses instruíram-se na geografia de África nas escolas árabes que existiam na Península, principalmente durante a dinastia Omíada.

A data publicada pelos autores que referem a presença normanda é de 1365 e o Visconde de Santarém responde:
“Recorremos a documentos autênticos que provam que já antes de 1336 tínhamos começado as nossas navegações além do Cabo Não. Se acaso aqueles supostos estabelecimentos franceses tivessem ali sido fundados em 1385, como eles dizem, teriam sido indicados nas minuciosas cartas feitas imediatamente depois, e pelo menos a parte hidrográfica daquelas costas ali se acharia marcada, mas, pelo contrário, na carta de Piziani de 1367 não se encontra o menor vestígio do conhecimento daquele país.
As reações comerciais de um povo europeu, no estado em que se achava a Europa no século XIV não se podiam ocultar das outras nações, e muito menos a dos marítimos da Normandia se podiam ocultar aos portugueses que naquele século ali comerciavam.”


O Visconde de Santarém vem seguidamente argumentar com o texto da Crónica da Guiné de Zurara e enfatiza a sua argumentação anterior.

Nenhum escritor estrangeiro do século XV e ainda de quase todo o XVI disputou aos portugueses a prioridade dos seus Descobrimentos além do Cabo Bojador e da fundação dos estabelecimentos na Costa da África Ocidental.

Só depois do meado do século XVII, um certo Villant de Bellefond, que fez viagem à Costa da Guiné em 1666 e 1667, cuja relação dedicou a Colbert, julgou propósito, sem citar documento nem prova alguma das que exige a verdade histórica, indicar que os marítimos de Dieppe tinham sido os primeiros descobridores da Guiné, onde haviam fundado estabelecimentos em 1365.

É a parte capital e a mais demolidora da refutação que o aristocrata faz às teses sem pés nem cabeça de quem pretendia uma argumentação a favor da presença francesa, isto para demonstrar como eram legítimas as reivindicações da França para dominar o comércio no Casamansa. Não querendo cansar o leitor, avanço com exemplos dados pelo eminente cartógrafo.

Na carta de África do Atlas inédito feito por João Rotz, natural de Dieppe, e que este cosmógrafo desenhara para o rei de França, como diz na dedicatória, mas que ofereceu depois a Henrique VIII de Inglaterra, Atlas que é datado de 1542, e que é pintado em 18 grandes peles de pergaminho, toda a nomenclatura hidrográfica que se lê na costa de África Ocidental é portuguesa, e não faz menção entre ela do Petit Dieppe ou Lestro de Paris. Em um outro Atlas hidrográfico desenhado em Dieppe em 1547, composto de 15 cartas, por Nicolau Vallard, de Dieppe, o qual pertenceu ao príncipe de Tallyrand, toda a nomenclatura geográfica é portuguesa.

Prosseguindo toda a sua argumentação, o Visconde de Santarém refuta as teses inventadas e que a diplomacia francesa brandia nas conversações com o Governo de Lisboa. Argumentação manhosa em toda a linha, começa-se por dizer que é inquestionável a presença portuguesa em Ziguinchor, funda-se um tanto à sorrelfa uma feitoria, ergue-se Carabane, foi um nunca mais parar de posse do Casamansa, onde lamentavelmente se ia apagando a presença portuguesa. E tudo se consumou com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a questão do Casamansa voltava-se definitivamente contra nós. E tudo começara com expedientes e mentiras que o Visconde de Santarém denunciou neste seu fabuloso documento editado em 1841, mas que não teve o condão de abrandar a ganância dos franceses.

Gomes Eanes de Zurara, tal como aparece idealizado na estátua de Luís de Camões, no Chiado
Carta hidrográfica da Guiné Portuguesa, 1844
Retrato do 2.º Visconde de Santarém, Manuel Francisco de Barros e Sousa da Mesquita de Macedo de Leitão e Carvalhosa, 1791-1856, na Sociedade de Geografia de Lisboa
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Nota do editor

Último post da série de 24 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25774: Historiografia da presença portuguesa em África (433): Fortunato de Almeida e a Guiné antes de 1920 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25731: Timor-Leste, passado e presente (11): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte III: A vida de um médico de saúde pública, Dili, 1941 d

 

Uma rua de Dili


Baía de Dili


Ponte-cais de Dili


MIssão católia de Lahane


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Farmácia e posto médico


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Enfermaria de mulheres

Timor (c. 1936-1940)

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné (2024)


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


 O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este período dramático  da história de Timor durante a II Guerra Mundial, em que o território foi invadido e ocupado pelos Aliados (forças anglo-australianas e holandesas, em 17 de dezembro de 1941) e, depois, em resposta às forças aliadas, pelos japoneses, passados dois meses, em 19 de fevereiro de 1942. (Mas os japoneses vieram para ficar até ao final da guerra, perante a impotência de Portugal para fazer valer não só a sua soberania territorial como o seu estatuto de país neutral naquele conflito.)

Tanto quanto sabemos, o dr. José dos Santos Carvalho seria  natural de Armamar e teria nascido na primeira década de 1910, ou princípios da década seguinte.  Foi colocado em Timor, como médico de 2ª classe, em 1940, ezercendo funções de autoridade de saúde.

 Atualizámos a ortografia e a grafia dos topónimos. O livro foi redigido no principio da década de 1970, sendo uma edição da Livraria Portugal Editora, na Rua do Carmo 70  (que já não existe como editora, segundo julgamos),composto e impresso na Gráfica de Lamego, concelho vizinho de Armamar.


A vida de um médico de saúde pública 1941 (**)

por José dos Santos Carvalho


Em meia dúzia de páginas (15-24), o autor conta-nos como era o quotidiano, rotineiro, de um médico no mais longínquo território ultramarino, administrado por Portugal.  (Em princípio, o dr. José dos Santos Carvalho deveria ter o curso de medicina tropical e o curso de medicina preventiva / saúde pública, tirados respetivamente no Instituto Superior de Higiene e Medicima Tropical e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.)

O tom não é crítico, em relação nomeadamente à penúria de recursos e ao isolamento em que se encontravam os poucos funcionários portugueses que ali trabalhavam, e uma centena de desterrados, oriundos quer da metrópole quer de Macau, uns por motivos políticos outros por crimes de delito comum: o mais "ilustre" dos deportados políticos era o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973),  um jovem advogado do Porto, que chegaria a Timor em 1931, acusado de "bombista".

Já foi aqui descrita a atribulada viagem (de vários meses, pela rota do Cabo) do nosso médico para chegar, no final do ano de 1940, e começar no ano seguinte a exercer as suas funções (deve ter sido em meados de 1940 que ele foi colocado   em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial"). 

(i) Ficamos logo a conhecer o corpo clínico do  território (4 médicos!), que o esperava à sua chegada, em 29 de dezembro de 1940:

  • o chefe da repartição de saúde, dr. Alves de Moura;
  • o dr. Correia Teles e sua esposa, a dra. Elvira; 
  • o dr. Arriarte Pedroso; 
  • o dr. Francisco Rodrigues.

(...) Desembarcando na ponte-cais de Díli, todos os médicos de Timor aí se encontravam para me receberem (...)-

(...) [O dr. Francisco Rodrigues],  delegado de saúde da zona leste, havia-se deslocado de Baucau a Díli, por essa ocasião. O dr. Arriarte Pedroso era delegado de saúde da zona oeste, mas residia em Díli, o que lhe era permitido por dispor de um automóvel que o levava rapidamente à sua área de acção.

(ii) O atraso, o isolamento e o subdesenvolvimento de Timor eram de tal ordem que só havia, em Dili, a capital, um único "hotelzinho":

(...) Fiquei hospedado no hotel do deportado sr. Costa Alves,
único que então havia em Díli, muito modesto mas asseado e
relativamente confortável.


(iii) Seguem-se no dia seguinte os cumprimentos da praxe às autoridades, e logo ali passa a admirar, incondicionalmente, a figura do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (Porto, 1893 - Lisboa, 1968), oficial de infantaria e administrador colonial, que teve de lidar com a terrível situação da invasão e ocupação de Timor por forças estrangeiras(e que no regresso à Metrópole, em finais de 1945, foi "metido na prateleira").

(...) Na manhã do dia seguinte fui fazer a minha apresentação à direção de administração civil onde o intendente Sousa Franklin me conduziu ao chefe do gabinete do governador, o capitão Manuel do Nascimento Vieira que, imediatamente, me levou à presença do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

Figura desempenada de militar de carreira impecavelmente
fardado de branco, profundamente me impressionou o seu porte de natural distinção,  aliado à evidente amabilidade e compreensão com que acolheu o médico novato no meio colonial, convidando-o a ir jantar à sua residência, num dos dias seguintes.

(v) Ficamos a saber qual era a agenda do autor para os próximos seis meses:  seria o delegado de saúde da zona central da ilha (com sede em Díli e abrangendo o concelho deste nome, a circunscrição de Aileu, o posto administrativo da ilha de  Ataúro e o território do enclave de Oecussi).

(...) Como o dr. Alves de Moura estava de partida para a metrópole, em gozo de licença graciosa, o dr. Correia Teles deixaria a delegacia de saúde da zona central e passaria a chefe da repartição de saúde. 
 
(vi) Para a passagem de ano o nosso médico  foi convidado para os
 dois únicos clubes que existiam, e que tinham de chamar-se, tal como na Guiné desse tempo, Sporting, um, e Benfica, o outro. A escassa elite colonial esteve lá, nestas festas de passagem de ano.
  
(...) Assim, como todos os meus colegas e quase toda a sociedade (sic) de Díli, passei essa noite alternadamente numa ou noutra dessas associações, em ambiente de grande animação e alegria, marcadamente familiar mas cheio de dignidade e simpatia.

Estiveram presentes às festas as pessoas mais gradas da terra, todas acompanhadas da sua família:

  • o Governador, 
  • dr. juiz de direito [José  Nepomuceno Afonso dos Santos, pai do Zeca Afonso], 
  • o dr. delegado do procurador da república, 
  • o engenheiro José de Azevedo Noura (sic), diretor das obras públicas, o diretor das alfândegas Monteiro do Amaral, 
  • o diretor dos correios Fortunato Mourão,
  •  o dr. Tarroso Gomes,
  •  o dr. Cal Brandão,
  •  o senhor Jaime de Carvalho, etc, etc.


Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp.  Cortesia de Internet Archive.


(vii) Ficamos a saber que havia alguns automóveis na ilha mas que,  no interior montanhoso, eram de pouco valia,  daí o recurso ao transporte a cavalo. Fala-se tétum no mercado ("bazar"). E é em Lahane, numa encosta sobranceira a Dili, que residem as principais figuras públicas: 

(...) No dia 2 de Janeiro de 1941 iniciei as minhas funções oficiais. Manhã cedo, o dr. Correia Teles foi-me buscar ao hotel com o seu automóvel e saímos da cidade atravessando uma pequena planície onde, perto da estrada, se encontrava em plena atividade o «bazar», isto é, o mercado. 

Senhoras europeias passavam por entre os vendedores de fruta, hortaliça, galinhas, etc, combinando com eles, em tétum, o preço das suas compras.

Passados cerca de dois quilómetros após Díli, começámos
a subir, já na encosta da montanha e logo encontrámos o lugar
de Lahane onde estavam instaladas a missão (um pouco fora
da povoação) e a missão geográfica e tinham a sua residência
o chefe do gabinete do governador, o dr. Juiz, o dr. Francisco
Rodrigues, o director dos correios e outros funcionários.


(viii) Descreve-nos depois o modesto hospital colonial Dr. Carvalho, situado a escassas centenas de metros do "palácio do governador", e que será severamente danificado pelos bombardeamentos japoneses, um ano depois: 
 
(...) Um vasto e bem delineado pavilhão, solidamente construído
de pedra e cal, era o núcleo das várias edificações que o com-
punham. Nele estavam instaladas enfermarias para homens,
quartos de 1ª e 2ª classe, as salas de operações e de tratamentos, a secretaria, etc.

Paralelamente ao pavilhão principal estendiam-se as instalações anexas: cozinha, despensa, arrecadação de géneros, casas de banho e instalações sanitárias.

Próximo do pavilhão principal encontrava-se a casa mortuária, sólida construção em cimento armado.

Para o outro lado do pavilhão principal, em relação à casa
mortuária, existiam um grande pavilhão de madeira e zinco,
utilizado como enfermaria de mulheres e maternidade e outro pavilhão semelhante destinado a doentes indigentes.

Cerca de cem metros mais além, estava a residência do chefe de repartição de saúde e director do hospital.

Colocado em plano mais baixo que o do pavilhão principal
havia um grande edifício de pedra e cal em construção próxima da conclusão (pois já tinha a cobertura e várias portas e janelas), que se destinava a pavilhão de doenças infecciosas. (...)

(ix) Fica-se a saber também que o hospital tinha a sua própria "farmácia do estado" (ou botica, artesanal), a cargo do farmacêutico de 1ª classe, capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira (refugiar-se-á depois, na Austrália, abandonando o serviço)...  

"Semestralmente" (sic), eram fornecidos por Lisboa "os medicamentos, material de penso e cirúrgico, etc. requisitados pela farmácia, os quais se depositavam na grande cave que existe sob o pavilhão central do hospital".

(...) Nesta minha primeira visita aos serviços de saúde fiquei
a saber que a preparação e distribuição de medicamentos para
o hospital e para as enfermarias e ambulâncias das delegacias
competiam à farmácia do estado situada em Díli no mesmo edifício em que funcionava o posto médico, sendo assim designado um posto de consultas e tratamentos para servir a população da cidade em regime ambulatório, dirigido por um dos médicos do Estado que, por isso, recebia a gratificação mensal de cinquenta patacas. (...)

 

(x) Uma nota sobre o seu jantar "à mesa do Estado", ou seja, na casa do governador:

(...) No dia seguinte a este meu primeiro contacto com o serviço público fui jantar à residência do governador, conforme o seu referido convite, sendo recebido com extremos de gentileza e distinção pelo Governador, sua esposa, senhora D. Cora e suas três filhas, alunas do liceu de Díli.

Participou também da refeição, com a sua família, o tenente Francisco José Alves que era cunhado e secretário do governador, e em cuja residência também vivia. Outro convidado foi o chefe de posto Torresão, primo da esposa do governador e meu companheiro de viagem.

(xi) Havia tempo, na colónia, para a prática, então muito "British", do ténis; ao domingo, depois da missa, as famílias iam à praia da baía de Díli (ainda vinha longe a borrasca...)

(...) Durante este jantar surgiu a organização do grupo de jovens que nas tardes das quarta-feiras e sábados, se divertia, jogando ténis, dando passeios a cavalo, jogando o bridge ou, frequentemente, jogando o deck-tennis no pátio da Missão Geográfica onde o coronel Castilho e o engenheiro Canto nos recebiam com toda a benevolência e aprazimento, participando, este último, de muitas das nossas diversões.

Aos domingos, de manhã, após a missa, o ponto de encontro era na praia de Díli onde se passavm agradabilíssimas horas de salutar exercício e distração.

à noite, depois do jantar, havia sempre reunião no Sporting
ou no Benfica, conversando-se ou jogando-se o bridge, pingue-pongue, xadrez, etc, mas sem prolongar o serão pois todos começavam o trabalho de manhã, muito cedo. 


 (xii) Um dia típico de trabalho do dr. José dos Santos Carvalho, autoridade de saúde com funções também de médico-veterinário:


(...) Pelas oito horas da manhã vinha o árabe Abdula buscar-me ao hotel com o táxi de que era chauffeur. Seguíamos para o matadouro municipal, situado em Motael, próximo do farol de Díli, onde eu fazia a inspecção sanitária da carne dos animais abatidos para consumo público, pois Timor não dispunha de médico-veterinário.

Inspeccionada a carne, seguíamos pela estrada que contornava a planura de Díli, para o hospital onde, agora, eu tinha doentes de duas enfermarias a tratar. O meu trabalho ficava concluído cerca de meio-dia e o mesmo táxi me trazia de volta ao hotel. 


(xiii) Como era normal nas colónias, os hospitais eram, para os jovens médicos, uma verdadeira escola pelos casos de doenças, tropicais, infecto-contagiosas com que tinham de lidar, em geral pela primeira vez (boubas, paludismo, beribéri, sarna, disenteria...):

(...) No hospital Dr. Carvalho tive oportunidade de observar casos de doenças exóticas que nunca pudera estudar senão nos livros.

Eram muito frequentes os casos de boubas, uma doença aparentada com a sífilis e que se manifesta pelo aparecimento de tumefacções com o aspecto de toucinho, húmidas e repugnantes.

Felizmente que em Timor esta doença já era, então, facilmente tratada, pois o farmacêutico Oliveira tinha estudado e posto em prática técnicas simplicíssimas de preparar uma suspensão de salicilato de bismuto em óleo de amendoim, a 10%, que se esterilizava pela fervura e que se guardava em garrafas vulgares, também esterilizadas pela fervura. 

Todos os enfermeiros sabiam preparar esta suspensão oleosa que se aplicava em injecções intramusculares, indolores, e que a prática demonstrava não serem mais atreitas a infecções que as das ampolas injectáveis!

Grande surpresa para mim foi o aspecto que nesta terra apresenta a sarna que, quando não tratada, alastra de uma aneira incrível, complicada com lesões impetiginosas que devoram a pele dos doentes e muitas vezes os matam devido a septicémias !

Vulgaríssimos em Timor eram o paludismo, frequentemente de forma perniciosa, e a disenteria bacilar, quase sempre ocasionada pela utilização de fruta não madura, sobretudo mangas verdes, de que os timorenses são muito gulosos.

(xiv) Era uma "pasmaceira", a vida de um médico em Timor em 1941, trabalhando-se em geral apenas de manhã, que o clima (tropical) era violento para um europeu.
 

(...) Os meus serviços clínicos, à tarde, limitavam-se a idas ao
hospital quando, por urgência, era avisado telefonicamente
para aí me apresentar para colaborar em operações cirúrgicas
ou tratar casos urgentes ou quando havia nas enfermarias doentes graves que necessitavam assistência muito frequente.

(xv) Sobrava-lhe tempo e vagar para "conhecer Díli, que então era uma simpática e característica cidadezinha, do tamanho duma vila da metrópole, ensombrada por frondosas árvores, algumas das quais seculares, e dominada pelas alterosas torres da sé-catedral"... 

Uma cidadezinha, acrescente,-se, que não seria diferente de algumas da povoações da Guiné desse tempo (ou que conhecemos, vinte e tal anos depois com a "guerra colonial"): Bolama, Bissau, Bafatá, Nova Lamego... Timor e Guiné tinham em comum o facto de terem energia elétrica pública...

(...) As suas ruas rectilíneas cruzavam-se em xadrez e eram mantidas em conveniente limpeza pelo município. A maioria das edificações era construída de madeira e barro, sendo cobertas com telhados de folha de ferro zincado. Dispunham dum só piso, para poderem suportar sem graves danos os tremores de terra que por estas regiões são muito frequentes, atingindo, por vezes, grande violência.

Destinadas, quase todas a estabelecimento comercial e à habitação dos proprietários eram, em regra, pertença de chineses, havendo, somente, um negociante indiano, o muito conhecido Wadoomahl. Duas casas comerciais se destacavam, de longe, em Díli. A da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho e a da família chinesa Mie-Hap.

No melhor edifício particular da cidade, construído de cimento armado e colocado em situação esplêndida na avenida marginal da baía de Díli, vivia o alemão sr. Max Sander, representante duma companhia, a Ásia Investment Company que se havia estabelecido na ilha com o fim de explorar minérios, mas que nunca chegara a desenvolver essa actividade, apesar de ter praticado extenso trabalho de prospecção e instalado um completo laboratório químico.

Na avenida marginal eneontravam-se os principais edifícios
da cidade (o palácio do governo, o liceu Vieira Machado, a casa da alfândega, o colégio das irmãs canossianas, a escola chinesa, a sede da Ásia Investment Company, etc.) e um lindo jardim dentro do qual estavam, situados dois cortes de ténis de piso em betão para poderem ser utilizados na época das chuvas.


(xvi) O autor dá-nos conta também da sua visita à missão geográfica de Timor, instalada em Lahane, e onde viviam "os então já meus amigos, coronel Castilho e engenheiro Canto".

(...) Mostraram-me as suas instalações e descreveram-me as atividades da Missão. Já tinham feito uma campanha, um ano antes e, agora, prosseguiam-na. Estava concluída a triangulação da ilha e, em breve, seguiriam para o seu interior com  fim da elaboração da sua carta, em escala conveniente. Eram auxiliados nos seus trabalhos geodésicos pelo sargento-radiotelegrafista da marinha, Luís de Sousa, pelo deportado sr. Granadeiro e por vários empregados permanentes, timorenses, muito activos e eficientes.

(xvii)  E, claro, não podia faltar uma visita à missão católica (os missionários eram, afinal, os principais agentes da "ação civilizadora e colonizadora":

(...) Outra minha visita foi à missão de Lahane onde o reverendo vigário-geral, padre Jaime Goulart me recebeu com extremos de cortesia e fidalga amabilidade.

A missão central de Timor estava instalada num edifício de madeira e zinco, com primeiro andar, bastante amplo e confortável, dispondo de capela privativa. Em conversa com o padre Jaime fiquei a saber que os sacerdotes de Timor eram formados no seminário de Macau, sendo oriundos do norte da metrópole, dos Açores, da Índia Portuguesa e de Timor.


 (xviii) Vamos agora conhecer o interior da ilha, pela mão do dr. José dos Santos Carvalho:

(...) Assim, logo de início me resolvi a deslocar-me às ambulâncias da área a meu cargo para tomar contacto e conhecimento objectivo dos respectivos serviços.

A primeira visita que fiz foi de automóvel, ladeando a maravilhosa baía de Tíbar e alcançando Liquiçá, Maubara e Bazar-Tete onde fui acolhido pelos respectivos chefes de posto e enfermeiros.

Poucos dias passados desloquei-me à circunscrição de Aileu, sendo a viagem feita quase toda a cavalo pois o automóvel só podia levar-me até à ribeira de Cômoro, ainda bastante longe da sede da circunscrição.

 (...) Chegados à Cômoro, aí encontrámos os cavalos que, emprestados pelo liurai da região, foram aparelhados com os arreios, isto é, selim com estribos, freio e rédeas, que levávamos no carro, pois os timorenses montam em pelo, guiando o cavalo com uma corda que lhe passa na boca.

Recebidos fidalgamente em Aileu pelo administrador Virgílio Castilho Duarte, natural de Cabo Verde, passámos um dia e uma noite na sua residência que, tal como a de outras autoridades de Timor, era cercada por muros ameados, sendo designada, nesta terra, como a «tranqueira».

(xix) Timor continuava, nessa época (1941), a ser terra de encarceramento e de desterro (situação que se aceita com "naturalidade"):

(...) Em Aileu, visitei a enfermaria regional e o presídio que, como a "tranqueira", dispunha de um pátio rodeado de muros. Os condenados reunidos neste estabelecimento prisional, eram oriundos, não só de Timor como de outras terras portuguesas, donde tinham vindo cumprir as suas penas de degredo. A maior parte dos condenados era de macaenses ou chineses de Macau.

A etapa seguinte foi até Maubisse onde pernoitámos em casa do chefe de posto sr. Ademar Rodrigues dos Santos, prote-gidos do frio que nestas regiões de altitude se faz nitidamente sentir, por espessos cobertores de lã.

No dia imediato cavalgámos em longa jornada até Same onde ficámos instalados na residência do chefe de posto sr. Francisco Mouzinho.

 
(...) Noutro dia, visitei a ambulância de Laulara, situada num
píncaro não longe de Díli, que só era acessível a pé ou a cavalo,
tendo passado e visitado o colégio de Dare onde as irmãs canosianas instruíam e educavam muitas dezenas de meninas.

Utilizando a ambulância do hospital Dr. Carvalho, fui, um outro dia, visitar a enfermaria do Remexio tendo ocasião de aí conhecer o respeitável liurai coronel D. Moisés, majestosa e nobre figura de timorense, com veneráveis cabelo e barba encanecidos.

(...) Aproveitei, então, o amável convite do dr. Arriarte Pedroso
para, no seu automóvel e em sua companhia visitar as povoações da Ermera e Hátu-Lia, terras de altitude razoável, de temperatura agradabilíssima, onde reina a «Primavera eterna» de Teófilo Duarte e a paisagem é paradisíaca.

(xx) De regresso a Díli, vem agradavelmemte reconhecido por este primeiro contacto com "um povo simples, amável e trabalhador". Faltava-lhe conhecer a ilha de Ataúro e o enclave de Oecússi, só acessíveis de barco.

(...) Em certo dia, o administrador do concelho de Díli, sr. ourenço de Oliveira Aguilar, comunicou-me que iria visitar a ilha de Ataúro e convidou-me a acompanhá-lo, visto eu ser o delegado de saúde.

Assim, seguimos no vapor Oé-Kússi, comandado pelo primeiro-sargento da Marinha, sr. Correia.

Pomos recebidos pelo chefe do posto de Macadade, sr. Napoleão, sargento de infantaria, e tivemos ocasião de observar s curiosíssimos costumes primitivos desse povo de simpáticos e acolhedores pescadores submarinos.


(xxi)  Faltava-lhe também ainda conhecer (e exercer) uma das suas funções, a de autoridade sanitária internacional (fiscalização das embarcações e aviões que passavam por Díli):

(...) Num dado dia, o capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a participar-me que estava a chegar ao cais um naviozinho que já tinha arvorado a bandeira amarela a pedir a necessária visita sanitária.

Dirigi-me, imediatamente, para o local designado onde aportara um elegantíssimo veleiro em cujo convés se via um único tripulante, em calções e de tronco nu.

Por esses tempos eram muito conhecidas, pelos jornas, as viagens do navegador solitário Alain Gerbault 
 [1893-1941],  francês que num iate, o Firecrest,  se havia celebrizado por ter atravessado, sem escala e sozinho, o Atlântico, desde a França a Nova Iorque e, depois, vagueava solitário pelos mares do mundo.

Por isso, quando subi ao convés do barco, dirigi-me ao comandante e único tripulante, dizendo-lhe, em francês: "O senhor é um novo Alain Gerbault!" 

O meu interlocutor, sorrindo, apresentou-me então a carta de saúde para eu assinar. O navio era... o Firecrest !.

Alain Gerbault, certamente para evitar os azares da guerra ficou ancorado no porto de Díli, vivendo no seu barco. Assim, tive oportunidade de com ele várias vezes contactar e de apreciar as suas extraordinárias qualidades de homem finamente educado e invulgarmente culto e, sobretudo, de me maravilhar com a sua extrema perícia em jogar o ténis, ele que fora, mais de uma vez, concorrente aos campeonatos de Wimbledon !

(xxiii) Mas já havia petróleo, japoneses e até alemães na ilha:


(...) Por esse tempo, o sr. Kuróki, cônsul do Japão em Díli,
deu uma festa no Sporting, para a qual convidou as personalidades de maior projecção no meio social da cidade. 

Deste modo tomei contacto, pela primeira vez, com essa gente. Desfaziam-se em mesuras e mostravam-se amabilíssimos procurando, certamente, agradar. Porém, evidentemente, não enganavam nenhum dos portugueses presentes. Com excepção do cônsul e do chanceler do consulado, os súbditos nipónicos que se encontravam em Timor trabalhando na Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho eram, provavelmente, espiões e, alguns deles, pelo menos, militares, pois os seus gestos os traiam. 

Em breve soube que o governador os mandava vigiar atentamente e somente lhes permitia as viagens indispensáveis, pois as suas actividades os haviam tornado suspeitos além de que, sem razão plausível, do Japão mandavam frequentemente novos homens a substituir os que se encontravam em Timor, pois não lhes era n permitido aumentarem o seu número.

(...) Na festa do consulado japonês encontrei, também, o australiano, velho colono de Timor Arthur Brian e os dois técnicos da QANTAS, srs. David Ross e Robert Smith que já conhecia das partidas de ténis e que, também, eram com toda a evidência, militares disfarçados.  

(...) Há muito tempo que em Timor tinha sido encontrado petróleo. Uma companhia estrangeira, a Allied Mining Timor Corporation havia feito furos de prospecção que mandara obturar assim que encontravam petróleo, explicando essa determinação pela não existência de depósitos economicamente exploráveis !

Num dado dia chegou a Díli o engenheiro Veiga Lima, nrepresentante duma companhia portuguesa recém-formada, a Companhia Ultramarina de Petróleos, afirmando que os trabalhos necessários iriam imediatamente começar. A verdade é que, logo a seguir, ela apareceu associada a uma nova companhia, holandesa, regressando o referido engenheiro a Portugal e sendo substituído pelo engenheiro-geólogo Brower, de nacionalidade holandesa, que com ele tinha vindo para Timor.

Teve este último engenheiro todas as facilidades para fazer os estudos topográficos necessários para a investigação da existência de petróleo em Timor, pois a carta da colónia feita por fotogrametria interessava, também, para complemento daquela que a Missão Geográfica estava a ultimar.

Assim, foi o piloto holandês do avião da carreira para Koepang que tirou as fotografias sucessivas que, vistas através duma lente binocular davam a sensação do relevo duma maneira flagrante e pude apreciar na Missão Geográfica onde eram revelados os filmes e depositadas todas as provas, conforme o exigido pelo governo de Timor.

Por esse tempo, os japoneses conseguiram autorização
[de Lisboa, não do governador local], para estabelecerem uma carreira de hidroaviões entre Tóquio e Díli, com escala pela ilha de Palau, que não tinha qualquer justificação económica razoável, pois não havia comércio com o Japão e de Palau a Díli os grandes hidroaviões da carreira demoraram, em voos experimentais, nove horas! 

 Assim, obtiveram oportunidade de alargar substancialmente o número dos seus técnicos residentes em Timor, pois as infraestruturas de apoio necessárias ao hidroaviões requeriam a presença inadiável de pessoal competente em mecânica e radiotransmissão.


(xxiv) E eis que chegam, em meados do ano de 1941, novos portugueses, incluindo o capitão Freire Costa, novo comandante da Companhia de Caçadores de Timor:

(...) Já perto do meado do ano, chegou a Díli o novo director da administração civil, intendente dr. João Ferreira Taborda (...). No mesmo barco vieram para Timor o comandante da companhia de caçadores, capitão Freire da Costa e o administrador António Policarpo de Sousa Santos, funcionário do quadro privativo da colónia, que foi colocado em Bobonaro (...).

Entretanto, passaram-se os seis meses do meu estágio de médico que iniciava a carreira em meio colonial, pelo que fui nomeado delegado de saúde da zona leste, em fins de julho de 1941,seguindo para Baucau, a florescente Vila Salazar, no vapor Oé-Kússi. (...)


Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 15/24

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, parênteses retos, itálicos  e negritos: LG) 
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Notaa do editor:



(**)  "O Hospital Civil e Militar Dr Carvalho foi projectado em 1892 pela Direcção de Obras Públicas do Distrito de Timor, sendo então governador Cipriano Forjaz (1890-1894). 

A proposta da sua construção foi feita ao Ministério da Marinha e dos Territórios Ultramarinos por Custódio de Borja, governador de Macau (1890-1894), a quem estava sujeito o governador de Timor, para substituir o Hospital Militar de Díli, erguido no década de 1870, cuja condição precária não lhe permitia prestar cuidados de saúde adequados à população local. 

Situado em Lahane, nos subúrbios da capital, conhecido pelo seu clima saudável, a construção do complexo hospitalar, que incluía também alojamento para funcionários, foi iniciada durante o governo de Celestino da Silva. Financiadas com recursos locais, as obras demoraram vários anos e o hospital foi finalmente inaugurado em 1906. 

Inicialmente nomeado em homenagem a D. Carlos I, passou a chamar-se Hospital Dr Carvalho após a implantação da República, em homenagem ao Dr. Tomás de Carvalho, que foi o primeiro representante da Província de Macau e Timor na Câmara dos Deputados (Parlamento) em Lisboa. 

A sua planta foi inspirada no modelo tipológico dos sanatórios de montanha então em voga na Europa no século XIX. Tem a estrutura de um pavilhão e assenta num pequeno planalto. Está alinhado com as curvas da encosta, correspondendo seu traçado aos principais serviços hospitalares. Está dividido em módulos autónomos de diferentes níveis para funções auxiliares e serviços de apoio hospitalar. O próprio hospital apresenta uma organização alinhada, com uma galeria de cada lado do corpo central na fachada principal conferindo ao conjunto um desenho simétrico, sendo o eixo realçado por um pequeno frontão curvo. 

O hospital de Lahane, o único em Timor até meados da década de 1930, altura em que se iniciou a construção de um novo em Liquiçá, foi  constantemente melhorado com novas valências. Ali foi inaugurada uma escola de enfermagem em 1920 e uma unidade para isolamento de doentes  com tuberculose foi construída na década seguinte. 

Após a invasão japonesa de Timor em 1942, as forças de ocupação assumiram o controlo do hospital até serem expulsas pelas tropas aliadas três anos mais tarde, mas o bombardeamento resultante deixou o edifício gravemente danificado.

Restaurado após a guerra, forma feitas  vários melhoramentos. Contígua ao edifício principal foi construída uma maternidade e criados um bloco operatório, uma enfermaria pediátrica e um laboratório clínico.

 Esta intervenção privou o hospital da sua traça original, pois foi retirado o frontão curvo, eliminando assim a simetria do edifício e abrindo a galeria a todo o comprimento do edifício. Isto privou o edifício do seu aspecto latino e o hospital assumiu o aspecto de um edifício colonial de origem britânica, segundo modelos utilizados principalmente na Índia e na Austrália por aquela potência".

Edmundo Alves | Fernando Bagulho

Fonte: trad. e adapt. de HIPP - Património de Influência Portuguesa > Dr. Carvalho Hospital  > Dili, Timor > Equipamentos e Infraestrturas (em inglês)

(**) Segundo a Wikipedia, em francês, Gerbault morreu em 16 de dezembro de 1941, em Díli, Timor Leste, de malária, abandonado, e na mais completa miséria. Valeu-lhe a solidariedade dos portugueses, incluindo o governador Manuel Abreu Ferreira de Carvalho.