Queridos amigos,
Há muito tempo que não fazia um exercício destes. Não é petisco nenhum, são carambolas da memória, anda-se de pinça em riste, à procura das emoções vividas. A chatice é que estou atolado de trabalho, até partir. E a Guiné já está a mexer comigo. Hoje fui buscar vários quilos de roupa para entregar à filha do Abudu, vai ser uma das primeiras missões deste recoveiro. E há chamadas, contactos ainda a estabelecer. E há o medo de que falava o Torcato, talvez o mais insidioso de todos: o que é que se vai dizer, passado todo este tempo? Como é que é possível não deflagrarem várias granadas ofensivas e defensivas naquilo a que se chama o coração e os sentimentos?
Glosando o que a minha irmã escreveu num daqueles bilhetes-postais, eu tenho que aguentar a viagem a que me impus, não foi ninguém que me empurrou, de cá para lá.
Um abraço do
Mário
Operação saudade 2010 (5)
Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3)
Beja Santos
Os bilhetes-postais, os telefonemas, os livros
1 de Novembro
Faço vigília pelos meus mortos, os do sangue, os da mais terna amizade, aqueles de quem serei devedor para todo o sempre. Incómoda foi a hora em que decidi abrir a caixa de sapatos com os bilhetes-postais recebidos na Guiné, até aqueles que enviei para os meus mortos. Todas estas imagens desinquietam, me transferem prematuramente para a aventura que vou viver, dentro em breve.
Primeiro os bilhetes que a Manuela me enviava frequentemente, fosse a que pretexto fosse. 3 de Março de 1979, com a fachada da Estação do Rossio, a minha irmã recomenda-se: “Um dia de Páscoa o melhor possível é o que sinceramente te desejamos. Que Deus te vá dando forças para suportares tudo o que seja imposto. A 10 de Agosto desse ano, a minha mãe, a caminho de São Pedro do Sul, na companhia do Rodolfo, o meu sobrinho, com a biblioteca da Universidade de Coimbra, despede-se como sempre: “Beijo da tua mãe que nunca te esquece, Ângela”. Há bilhetes para todos os gostos, bilhetes policromos, do tipo arte pop, castelos, aldeias típicas e santinhos como aquele que a minha mãe me envia em Fevereiro de 1969, recordando um ano antes, as férias que passara nos Açores, na minha companhia. Leio e releio o que me dizem Junho de 1970 a minha irmã com uma imagem da Basílica de Fátima: “Viemos de passeio no nosso Fiat 850 Especial, o teu cunhado fez exame de condução com 27 lições e comprou o carro novo no dia. Desejo-te um rápido e feliz regresso”. A gratidão que devo à minha irmã não tem preço. Meticulosamente, aos sábados à tarde, ela ia visitar todos os feridos que estavam no Hospital Militar, levava-lhes comida e muito carinho. O marido e os filhos ficavam no carro enquanto ela atravessava aqueles corredores com gente com membros amputados, cegos, em cadeiras de rodas. Ela fez a comissão toda com uma devoção fraternal e um grande espírito de dádiva, muito próprio das enfermeiras.
Escrevo à minha mãe em 20 de Janeiro de 1967 e mando-lhe um bilhete-postal com uma plantação de chá em S. Miguel. Comunico-lhe que vou para exercícios finais para a Lagoa do Fogo. E é da Lagoa do Fogo que a minha amiga Cremilde Tapia me envia notícias, pedindo-me para ser perseverante e cumprir a vontade de Deus. Chega mesmo a dizer que quando acabar a comissão na Guiné irei passar por lá. Como aliás aconteceu, o Carvalho Araújo lá foi arrastado do cais do Pidjiquiti até à Ponta Caió, depois atirou-se pela noite escura em direcção a Cabo Verde, contingentes foram largados na ilha do Sal e depois em S. Vicente. A etapa seguinte foi o porto de Ponta Delgada, tinha os amigos todos à minha espera. O mais emocionante foi o barco a avançar lentamente sobre aquele esporão de cimento onde uma multidão de mulheres trajando de negro aguardava filhos, maridos e irmãos. De um silêncio sepulcral passou-se à estridência máxima enquanto de lá para cá, e de cá para lá, se faziam os reconhecimentos da voz do sangue.
A Lagoa do Fogo, ilha de S. Miguel
Plantação de chá, ilha de S. Miguel
Estação do Rossio em 1969
Não sei o que hei-de fazer destes bilhetes-postais. Procurei-os como teias de todo esse tempo que me parecia já descodificado, reconhecido, escancarado. É mentira, somos mnésicos, mas há sempre sombras, leituras dúplices. É um dos sabores da velhice, redescobrir lembranças do passado, poças de água que resistiram aos escaldões do vento suão.
Agora importa conversar, saber o que se vai passar na Guiné.
Começo pelo Cherno.
- Cherno!
- Pronto, às ordens!
- Cherno, já conseguiste encontrar o Doutor (Doutor é Quebá Sissé, cozinheiro, atirador e outras coisas mais, perdi-lhe o rasto, vive perto de Farim, pedi ao Cherno para o contactar)?
- Tumulu Soncó foi comprar tecidos a Zinguichor, passou por Farim, deixou recado. Boa notícia, Tomani Sanhá está vivo, vive perto de João Landim, a caminho de Mansoa. Com o telemóvel as coisas agora são mais fáceis, ficou combinado que vou seguir a tua viagem e a partir do dia 18 vou saber quando chegas a Bambadinca. No Cossé e em Badora, está tudo informado. Ninguém sabe do Campino, deve andar pelo Senegal. Tumulu deixou recado em Ziguinchor. A gente de Amedalai quer fazer-te uma festa, vais receber galinhas e panos.
- Cherno, não tenho palavras para te agradecer!
- Nosso alfero manda sempre, sempre. Pessoal da Guiné está à espera.
A seguir ligo para o Queta Baldé.
- Boa tarde, Queta.
- Boa tarde, boa tarde.
- Queta, já falei com o Mamadu, há muita informação a correr entre Bambadinca e o Xime, mas há nomes em falta, ninguém encontra Domingos nem o Príncipe Samba.
- Zé Pereira já foi encontrado. Está em Catió, vem para Bissau para te ver. Guardou sempre os louvores e a condecoração. Gostava de ser ajudado, não sei o que dizer, há muita tristeza, tens de partir preparado para o que vais ver.
- Vai-me dando notícias, meu bom Queta.
Amanhã vou ligar para Santa Helena e Bissau. Hoje já chega de emoções.
Remexi na bibliografia de tudo o que li na Guiné. Cheguei à conclusão que há títulos omissos. Agora sei bem porquê. Livros que não me tocaram, mesmo que fossem obras-primas. Foi o caso de “As Vozes do Silêncio”, de André Malraux. Para quem se lembra, o café Bento tinha uma pequena livraria ao fundo, ali encontrei relíquias. Recordo que na segunda visita a Bissau, em Julho de 1969, andava à procura de livros, perdera tudo no incêndio de 19 de Março, em Missirá. Malraux era para mim um grande escritor. Como, aliás, vim a confirmar quando, anos mais tarde, li "A Condição Humana" e as memórias que ele dedicou a Charles de Gaulle. Comprei “As Vozes do Silêncio” à toa, não me pude entender com aquela catadupa de análises. Dois exemplos: “O génio pode nascer de uma ruptura individual; a evolução e a mutação brusca dos valores provocam, contudo, em certas épocas privilegiadas, rupturas relativamente numerosas. Vários artistas tomam consciência, quase simultaneamente, de um desacordo fraterno entre cada um deles e a arte que admiram em comum; certas descobertas são retomadas por todos, como as descobertas técnicas do cinema o são hoje numa contradança inextrincável”. E mais adiante “É impossível compreender o papel desempenhado na nossa civilização pela ressurreição que ela suscita, senão descobrirmos que a arte que a pede surgiu das brechas da cristandade. Não do cristianismo, nem do pensamento religioso, mas da sociedade toda-poderosa que modelou a alma e o espírito dos homens, e cuja última expressão encontramos no que conservam do seu passado a Índia inquieta e o Islão”. Eu sei que isto é muito belo e seguramente profundo. Li na Guiné e não compreendi. E continuo a não alcançar esta forma de falar do absoluto e da permanência do acto criador. Paciência.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7259: Notas de leitura (168): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (5) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7237: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (4): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (2) 31 de Outubro