quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7183: Notas de leitura (162): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Estou a alongar-me na apreciação do livro de Hélio Felgas, nada há de tão substancial para a época em que foi publicado. Permito-me manifestar a minha surpresa porque é que este livro não foi discutido nem posto à nossa disposição para sabermos a evolução da guerra. Sou levado a supor que não era uma questão de censura nem cabotinismo, era indiferença, era incapacidade de julgar factos… ou talvez medo de nos ceder informação que os dirigentes não soubessem comentar.
Enfim, suposições.
O importante é que chegamos na ignorância de tudo e nunca nos foi facultada a possibilidade de olhar para o todo.

Um abraço do
Mário


Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (2)

Beja Santos

A ofensiva do PAIGC em 1963

Apresentada a Guiné portuguesa, feito o esboço histórico da Província, o tenente-coronel Hélio Felgas procede à apresentação dos diferentes grupos políticos, desde o Movimento de Libertação da Guiné até ao PAIGC. E seguidamente caracteriza o início da luta armada, logo após as flagelações de Fulacunda e Tite. Estamos ainda numa fase em que os quadros da guerrilha andam por várias academias chinesas e o armamento distribuído pela guerrilha do Sul e na região do Morés é proporcionalmente inferior ao das tropas portuguesas.

Em Fevereiro de 1963, a guerrilha começa a fazer uso de explosivos e a destruir os pontões que ligavam as povoações da região Sul. Nesse mês, Cacine conhece a primeira flagelação, embosca-se uma força militar em Salancaur, três dias depois ocorrem pilhagens em estabelecimentos da Sociedade Comercial Ultramarina. As diferentes penínsulas do Sul, umas atrás das outras, vão conhecendo a guerrilha. O aliciamento do PAIGC foi, regra geral, bem sucedido na região. Será muito difícil vir um dia a saber-se qual o grau de intimidação em função do terror, quais as adesões espontâneas, qual o número de populações em fuga, colocado entre dois fogos. Em Março as destruições chegam a Tite e a Buba, cortaram-se as estradas de acesso a Empada, incendiaram-se barcos a motor, colocaram-se abatizes e capturaram-se barcos que foram levados para a República da Guiné. A situação foi-se sempre agravando, de Abril para Junho. Depois, a guerrilha anunciou-se na margem oeste do rio Corubal e no final do mês o PAIGC começou a actuar no Xime, flagelando a população. Escreve Hélio Felgas: “A pequena densidade de ocupação militar portuguesa facilitara a expansão da actividade inimiga, não dando às populações nativas a protecção de que necessitavam. Em segurança reinava em vastas áreas e até mesmo algumas tabancas fulas das áreas de Aldeia Formosa, Cumbijã e Colibuia, começaram a ser abandonadas. Em especial na península de Cacine, junto à fronteira Sul, a maioria das tabancas estavam desertas, tendo os nativos fugido para a República da Guiné onde os bandidos evitavam molestá-los com receio de criarem complicações ou provocar distúrbios que desagradassem às autoridades daquele Estado”.

O PAIGC anunciou-se com o recurso a várias emissoras. Em comunicado difundido radiofonicamente, o PAIGC afirmava que a ilha do Como, a sudoeste de Catió, fora completamente libertada. Hélio Felgas exprime-se assim quanto ao tipo de bases ou refúgios da guerrilha: “São o que há de mais transitório pois as tropas, nos seus constantes reconhecimentos, acabam sempre por dar com eles, expulsando ou aniquilando os bandoleiros que lá encontram e, na maioria dos casos sem que estes ofereçam qualquer resistência. Umas vezes, o comando militar instala nessas áreas novos destacamentos militares. Mas em outras, a tropa, cumprida a missão que lhe foi atribuída, regressa aos seus quartéis. Não há na nossa Guiné região libertada alguma, desde que por esses termo se designe qualquer região que o inimigo controle efectivamente e onde disponha de meios que impeçam a penetração das nossas tropas”.

Enquanto a guerrilha alastra a Sul, dá os seus sinais no Oio, situado no quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá, região de florestas densas e quase sem estradas. Ao tempo a presença militar era insignificante. Por exemplo, havia um pelotão em Bissorã e pouco mais em Mansoa. No fim de Junho, um grupo armado inutilizou a jangada de barro, no rio Cacheu. Em Julho foram alvejadas viaturas entre Binta e Farim e houve a tentativa de destruir diversas pontes e pontões nas estradas Olossato-Farim, Olossato-Mansabá e Mansoa-Nhacra. Seguem-se as emboscadas, o saque de casas comerciais e em Julho, perto do Morés, uma força é brutalmente emboscada.

Hélio Felgas comenta a actividade desenvolvida pelas forças portuguesas, inicialmente incapazes de conter esta onda destruidora, tanto no Sul como na região do Oio. Reconhece que havia um plano bem definido por parte do PAIGC e que o Morés era um refúgio natural bastante seguro. Muitos dos eixos rodoviários da Província, com interesse económico, ficaram inutilizados. Eixos fundamentais (como Mansoa-Bafatá), ficaram comprometidos. Seguiu-se o aumento de actividade na área de Xime Bambadinca e no segundo semestre de 1963 sucederam-se os ataques ou assaltos a Porto Gole e Enxalé e no Sul intensificaram-se as acções em Fulacunda, Catió, Buba, Cacine, Empada e Bedanda. Irradiando do Oio, o PAIGC procurava infiltrar-se na direcção de Binar e de Bula. Felgas aproveita a oportunidade para tecer considerações sobre aspectos que ele considera delirantes nos comunicados do PAIGC: aviões abatidos, 46 soldados portugueses postos fora de combate numa emboscada, a população de Empada a receber com entusiasmo o “exército de libertação nacionalista”, etc.

Na segunda metade de Outubro o PIAGC iniciou o emprego generalizado de minas e fornilhos de anticarro. O primeiro engenho explodiu na estrada Bambadinca-Xitole.

Nesta região, muitas tabancas começam a organizar-se em autodefesa, a resistência ao PAIGC foi inequívoca. No final do ano, a norte do Geba e em especial no Oio, a acção do PAIGC já se fazia sentir com crescente importância: ataque ao Olossato, flagelações a Binta, Cutia e Farim. O movimento das tropas portuguesas era dificultado ou impedido por milhares de abatizes e pela destruição de muitas infra-estruturas. A região de ligação entre o Norte e o Sul, o canal do Geba, tornou-se o local de cambança, em locais desertos entre Porto Gole e Enxalé. O PAIGC fixou-se no Oio. A reacção militar passou pela preparação de uma grande ofensiva sobre a ilha do Como e previa-se “fechar” a fronteira Sul instalando tropas entre a aldeia Formosa e Cacine. Como se sabe, este objectivo nunca foi alcançado. E chegámos assim a 1964 em que o Geba, tanto a Norte como a Sul se transformou no palco da ofensiva do PAIGC e das primeiras medidas bem sucedidas de reacção pelas tropas portuguesas. É esse o relato que iremos seguidamente fazer.

O livro “Guerra na Guiné” é indiscutivelmente o relato mais completo dos factos que ocorreram entre 1961 e 1965. Nenhum outro autor foi tão longe, do lado português. A despeito de inúmeros comentários apologéticos, o historiador, o investigador e curioso, dispõem aqui de um alfobre de informações que não estão disponíveis a não ser dispersa e às vezes confusamente, noutros autores.

A título de curiosidade, refira-se que Hélio Felgas editara em 1966 um conjunto de artigos que tinham sido dados à estampa na Revista Militar intitulados “Os Movimentos Terroristas de Angola, Guiné e Moçambique (influência externa)”. Felgas aproveitou o conteúdo do que escreveu sobre a Guiné na apresentação dos movimentos de libertação neste seu livro “Guerra na Guiné “. Para que conste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7168: Notas de leitura (161): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

"Será muito difícil vir um dia a saber-se qual o grau de intimidação em função do terror, quais as adesões espontâneas, qual o número de populações em fuga, colocado entre dois fogos". Diz Hélio Felgas.

Não seria dificil saber se os dirigentes do PAIGC/PAICV, um dia contassem sinceramente aos seus povos o que se passou.

Talvez ajudasse a esclarecer e a resolver alguns problemas que surgiram após a independência até hoje, dentro da Guiné.

Beja Santos, este relato de Hélio Felgas é a cópia do que se passou com a UPA no norte de Angola em 1961, só que aqui os brancos e pretos, trabalhadores do sul (bailundos), que sobreviveram ao massacre, relataram tudo e está tudo documentado a quente, visto dos vários lados.

Desde a fuga das populações para o Congo de Mobutu, cunhado de Holden Roberto até à reação que se seguiu, mesmo depois a atitude do MPLA e da UNITA, está mais ou menos descrita por muitos intervenientes, o povo tem acesso a muita coisa.

Provavelmente os guineenses um dia terão que se recorrer à memória do "tuga" para adivinhar o que na realidade se passou com eles.

Mas com este livro de Hélio Felgas em 1966 (?), como dizes, porque é que não foi discutido e posto à disposição...

Beja Santos em 1961 não havia nem Alferes nem capitão nem soldado raso que não emitisse opinião, e não teria havido guerra do ultramar na Guiné, se em 1961tivesse havido uma ponte aérea de Luanda para Lisboa como em Novembro de 1975.

Houve muita mala feita e pronta para viajar.

Mas sobre a adesão dos povos aos movimentos, no caso de Angola há uma declaração de Holden Roberto aos jornalistas interessante.

Explica ele que com o facto de o povo não ter aderido muito a ele, só tinha um explicação: «são coisas do diabo que não têm explicação»

Como era pastor evangelista os crentes devem ter compreendido.

O problema devia estar nos ateus que ficaram sem compreender que nas últimas eleições em Angola teve 1%.

Mas sem dúvida que dá para fazer, com dizes, muitas suposições.

Até havia uma suposição dos que diziam: e se largassemos mão da Guiné?

De Caboverde e São Tomé sabia-se que não viriam problemas.

Mas se o Salazar nem da India quis largar mão!

Estas conversas sempre houve em Luanda.

Um abraço

Antº Rosinha