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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27159: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (5): Carlos Alberto Ferrera Martns (1948-1971), sold pqdt, CCP 123 / BCP 12 (jun 70 / abr 71)



Carlos Alberto Ferreira Martins (1948-1971)


A. Continuamos a reproduzir, com a devida vénia (incluindo a autorização do autor e do editor), alguns excertos do livro recente do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1).


Dos vinte militares lourinhanenses que morreram em África, seis foram no TO da Guiné. O Carlos Alberto Ferreira Martins é o quinto da lista (pp. 185/187)


CARLOS ALBERTO FERREIRA MARTINS (12.07.1948 – 15.04.1971)

Localidade do falecimento - GUINÉ

Soldado paraquedista nº E 11923969

Subunidade / Unidade -  CCP 123 / BCP 12 (jun 1970 / abr 1971)  

Naturalidade - Toledo, Vimeiro

 Local da sepultura - Cemitério do Vimeiro


1. REGISTO DE NASCIMENTO

Carlos Alberto Ferreira Martins nasceu a 12 de julho de 1948, às 11h00 horas, no lugar de Toledo, freguesia do Vimeiro. 

Era filho legítimo de Carlos de Sousa Martins, de 33 anos, casado e com a profissão de fazendeiro, natural da freguesia de Vimeiro,  e de Maria da Luz Ferreira de 40 anos, casada, doméstica, natural da freguesia de Santa Maria, concelho de Torres Vedras,  ambos domiciliados no lugar de Toledo. Neto paterno de Domingos de Sousa (à data já falecido) e de Maria Justiniana e materno de Estevão Ferreira (à data já falecido) e Mariana da Conceição.

O registo de nascimento teve como testemunhas José Filipe da Silva, proprietário, e Joaquim do Sacramento Caetano, jornaleiro, ambos solteiros e residentes no lugar de Toledo.

O registo foi lavrado pelo Conservador Baltazar de Almeida Freitas e não tendo os declarantes e testemunhas assinado a respetiva declaração por não saberem escrever. Registo nº 374,  efetuado a 9 de agosto de 1948,  no posto do Registo Civil do Vimeiro.
 
2. REGISTO MILITAR

Recenseamento: Carlos Alberto Ferreira Martins foi recenseado em 29.06.1968 pela freguesia do Vimeiro sob o nº 5. 

Com 1.69 de altura, tinha a profissão de empregado de bar, era solteiro e tinha como habilitações literárias a 4ª classe.

Inspeção militar: apresentou-se à inspeção no DRM 5, oferecendo-se para cumprir o serviço militar nas Tropas Paraquedistas. Foi-lhe atribuído o número mecanográfico  E 11923969.

A 17.02.69 apresenta-se no RCP - Regimento de Caçadores Paraquedistas, em Tancos, para prestar provas de admissão às Tropas Paraquedistas, tendo sido considerado apto.

Colocação durante o serviço: em 21.02.69 foi alistado, incorporado e aumentado ao efetivo do RCP com o nº 409/69 e integrado na 1ª CAL.

Em 21 do mesmo mês, entrou de licença e apresenta-se a 29.09 69 no RCP.

Inicia a 29 de setembro de 1969 a ER (OS 247, RCP 22.10.69).

Inicia em 12.01.70 o curso de paraquedismo 1/70 (OS 22 RCP 27.01.70. Termina a 23 com aprovação a ER 3/69, tendo jurado Bandeira em 22 de janeiro (OS 28 RCP de 03.02.70).

Inicia a 21.02.70 o Tirocínio Paraquedista 1/70 (OS 51 RCP de 02.03.70). Em 20.02.70 terminou o Curso de Paraquedismo 1/70 (OS 53 RCP de 4.3,70) Inicia a 02.03.70 a IC 1/70 (OS 64 RCP 17.03.70).

Em 12 de junho 70 termina com aproveitamento a  IC 1/70 (OS 148 RCP de 25.06.70).

A 13 de julho 1970, por despacho 410 do SEA,  foi-lhe dado por findo o Tirocínio 1/70 (09164 RCP 15.07.70).
 
2.1. Comissão de serviço no ultramar, Guiné

Mobilizado para prestar serviço no ultramar, no BCP 12, em Bissau, pronto a embarcar a partir de 25.06.70. (OS 107, RCP 6.5.70).

Embarque: a 13 de julho embarca pelas 23.30 horas, via aérea, BCP 12.

Desembarque: a 14 de julho apresenta-se pelas 8h30 no BCP 12 em Bissau, sendo aumentado ao efetivo da Unidade e da CMI desde 13.06.1970 com o nº 106/69 (OS165 de 15.07.1970 do BCP 12), desde quando acresce de 100% de aumento no tempo de serviço nos termos da portaria 20.309 de 11 dez 64. 

Atividade operacional: em 23.07.1970 é transferido para a Companhia n.º 123 (OS 172). 

A 8 de agosto 70 marchou para o interior da província em missão de serviço (OS 201) regressando a 10 de setembro pelas 18h30 (OS 215). A partir de setembro estabeleceu pensão na Metrópole de 1.000$00 (OS 201).

 A 14.07.70, pelas 06h00, marchou para o interior da Província e regressou a 15.07.70 pelas 18h00 (OS 219). 

Volta a 21 e 26 de setembro para novas operações de combate. 

A 27 de janeiro de 1971 regressa pelas 18h00 do interior da Província. 

A 14.02.71 pelas 10h00 volta ao interior da província (OS 40).

 Data do falecimento: em 15 de abril 1971 é ferido em combate e evacuado para o hospital Militar 241 pelas 15h00, onde vem a falecer. (OS 91).

Causas da morte: ferido em combate

Local do acidente:
Ganguirô, na região de Liporo / Canjadude

Certidão de óbito: segundo a certidão de óbito faleceu a 15 de abril 71 (OS 94).

Processo de averiguações:
Processo de averiguações pendente por acidente em serviço desde 19 de abril (OS 95).

Abatido ao efetivo: abatido ao efetivo do BCP12 e da CCP 123 desde 15 de abril por ter falecido em combate, sendo transferido para o DRM 5 (OS 128 de 2 de junho 71 do BCP 12).

Unidades onde prestou serviço: RCP – 1969, 409 dias. BCP – 12, 106 dias

Tempo de serviço:
1969, 94 dias. 1970, um ano. 1971, 104 dias

Local da sepultura:
Cemitério do Vimeiro.

2.2 . Registo disciplinar: condecorações e louvores

Medalha de segunda classe segunda classe de comportamento (Artº 188.º do RDM) é-lhe atribuída a 21.02.69.

Louvor a título póstumo: “pelas suas qualidades de trabalho, dedicação, voluntariedade e espírito de sacrifício demonstradas ao logo dos nove meses em que permaneceu nesta província. Dotado de elevado espírito de missão e agressividade demonstrou sempre altas qualidades de tenacidade, espírito de camaradagem, resistência e espírito de sacrifício, nunca se poupando a esforços para total cumprimento das suas funções, e oferecendo-se voluntariamente para operações e serviços que não lhe competiriam especificamente. Extraordinariamente cumpridor, disciplinado, leal e dedicado pelo serviço, granjeou a estima e consideração dos seus camaradas e superiores tornando-se merecedor de público louvor. (OS nº/64 do BCP 12 a 16 julho 71)”.
 
3. PROCESSO DE AVERIGUAÇÕES AO ACIDENTE: ANOTAÇÕES E CONTEXTO

No seu processo, consultado no AGE - Arquivo Geral do Exército, não consta o Auto de Averiguações ao acidente que lhe provocou a morte.
  
(Continua)

 (Revisão / fixação de texto: LG)
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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P25156: Capas da Ilustração Portugueza - Parte XI: as "campanhas de pacificação e ocupação" do sul de Angola; o desastre do Vau do Pembe (em 25 de setembro de 1904)

 


Tropas portuguesas da guarnição de Angola, a caminho do interior,  preparando um bivaque (segundo um croquis)


Capa da Illustracão Portuguesa, I Ano, nº 49, 10 de outubro de 1904 (Edição semanal, Empresa do Jornal O Século, Lisboa; editor, José Jourbert Chaves) (Cortesia de CM Lisboa / Hemeroteca Digital) (*)


1. O semanário dedica a capa e as duas páginas centrais às "Guerras de África: alguns oficiais portugueses na guerra dos cuanhamas" (pp. 0776/0777), que se traduziu por um "terrível desastre":


"A notícia deste terrível desastre impressionou vivamente o país e veio lançar o luto sobre as armas portuguesas. Habituados a constantes vitórias em África, vitórias que têm colocado os nossos soldados entre os melhores do mundo, a derrota agora sofrida cai sobre nós como uma calamidade e vem demonstrar a razão que tinha a imprensa, quando, com o Século à frente, achava insuficiente o número de expedicionãrios. Para demais s já desde 1896 se sabia as forças de que dispunham esses inimigos, pois tendo ido em comissão o capitão Luna de Carvalho teve ocasião de dizer algumas coisas sobre




a situação dos cuanhamas. O régulo Jula vivia em Oujiva e em sua residência havia mobiliário europeu, e ele vestia à europeia, como os seus grandes, Os cuanhamas tinham cerca de 10.000 guerreiros, armados à moderna, dispunham entre eles de bons cavaleiros e esse número deve ter aumentado consideravelmente até agora, calculando-se em 50.000 homens as forças atuais.

Foi por isso uma temeridade atacar esses vizinhos dos herreros, famosos guerreiros que nouttros encontros tèm batido as tropas alemães; porém decerto os nossos teriam vencido se fosse



mobilizado maior número, como tantas vezes se aconselhou. O destacamento que ia ao encontro dos cuanhamas, era composto de dois pelotões de infantaria europeia, quatro pelotóes de infantaria indígena, duas bocas de fogo e uma secção de artilharia, na totalidade de 409 homens, dos quais foram mortos 254, contando entre eles 16 oficiais e 13 sargentos.

O corpo principal da coluna não entrara em fogo e concentrou-se no dia seguinte no Humbe, tendo-se dado a chacina pela noite na margem do Cuneme, sendo os atacantes os cuamatas, povo aliado


dos cuanhamas e como eles dispondo de forças importantes. O comandante das tropas era o capitão de engenharia João Maria d' Aguiar, governador da Huila, que se encontrava com a coluna, pois do contrário teria sido vítima com os seus camaradas.

Oficial valente e distinto, sem dúvida tirará uma brilhante desforra deste desastre que tanto vem enlutar a pátria portuguesa.

Fonte: Excertos de Illustracão Portuguesa, I Ano, nº 49, 10 de outubro de 1904, pp. 0776/0777)

(Revisão / fixação de texto: LG)


1. Uma efeméride trágica: foi em 25 de setembro de 1904, vai fazer agora 121 anos, que o exército português sofreu uma sério revés nas campanhas de pacificação e ocupação do sul de Angola.


A cerca de 500 quilómetros da costa, uma coluna comandada pelo governador da Huíla, o capitão de engenharia João Maria de Aguiar (de que fazia parte Gomes da Costa, mais tarde líder do golpe de estado militar do 28 de maio de 1926), internou-se para lá do rio Cunene, através do vau do Pembe.  Portugal estava decidido a bater o pé aos alemães que que estavam a expandir, para norte, a sua colónia do Sudoeste Africano Alemão (1884-1915) (hoje Namíbia, indepoendente da África do Sul, desde 1990). (**)

(..) "Só em 1904 é que os portugueses lançaram a primeira grande campanha além-Cunene, para ocupar o Reino do Cuamato Pequeno, do Cuamato Grande e o Reino Cuanhama mas esta redundou numa derrota na Batalha do Vau do Pembe

"O 'Desastre do Pembe' galvanizou os ovambos, em particular os cuamatos, que começaram a atacar tribos sob a protecção de Portugal e até a ameaçar fazendas na margem norte do Cunene mas galvanizou também a opinião pública portuguesa, que forçou o governo português a intervir na região." (...) (Vd. Wikipedia > Campanhas de Pacifiocação e Ocupação).


Os Portugueses, apanhados numa emboscada, caíram às mãos de outra tribo do grupo dos Ambós, os Cuamatos, e deixaram no local duas centenas e meia de mortos (mais de cem,. de origem metropolitana), o que representou, à escala africana, uma trágica surpresa para a Europa colonizadora (Portugal, Alemanha, Grã-Bretanha).

A ermboscada do Vau do Pembe (um ponto de travessia do rio Cunene) foi descrito pela "Ilustraçáo Portuguesa",  duas semanas depois (na edição de 10 de outubro de 1904) como um desastre  para as tropas portuguesas lideradas pelo capitão Luís Pinto de Almeida, que trouxe imensa dor e luto para a pátria portuguesa.

 João Roby (1875-1904), oficial da armada, é uma das figuras centrais da memória da Batalha do Vau do Pembe (também conhecida como Combate de Umpungo).
 
(Imagem à esquerda:  foto de João Roby,  "IIustração Portuguesa",I Ano, nº 49, 10 de outubro de 1904, pág. 0776).
 
_______________

Notas do editor LG:


(**) Com a ajuda do ChatGPT, apurei o seguinte sobre este "protetorado alemão" (1884-1915):

(i) em 1884, a  Alemanha (com o chanceler Otto von Bismarck, o pai-fundador Alemanha Moderna),no contexto da “Partilha de África” (Conferência de Berlim, 1884-1885), declarou protetorado sobre a região costeira do atual Namibe/Namíbia, a pedido de comerciantes e colonos alemães, nomeadamente Adolf Lüderitz (1834-1886), que já tinha adquirido, de maneira fraudulenta,  terras aos chefes locais;

(ii) a colónia foi chamada Deutsch-Südwestafrika (Sudoeste Africano Alemão) e foi a primeira e a mais importante colónia de povoamento alemã em África.

(iii) tinha, desde 1891, a capital em  Windhoek;  o número de colonos alemães andava à volta dos  15 a 20 mil (antes da Primeira Guerra Mundial);

(iv) a economia colonail assentava sobretudo na criação de gado, na agricultura e, a partir de 1908, importantes minas de diamantes descobertas em Lüderitz;

(v) o "protetorado" encontrou forte resistência por parte das populações locais:  Herero, Nama (também chamados Hotentotes, povo nómada), Damara e San;

(vi) 1904-1908: genocído dos Herero e Nama: rebeliões contra a ocupação alemã, foram reprimidas de forma extremamente violenta; o general Lothar von Trotha aplicou  uma política de extermínio; como resultado: dezenas de milhares de pessoas (entre 65% e 80% dos Herero e cerca de 50% dos Nama) morreram em massacres, perseguições no deserto, inanição, envenenamento de poços  e campos de concentração (no que foi considerado mais tarde, pela ONU,  o primeiro ou um dos primeiros genocídios do séc. XX).

(vii) extinção do protetorado: em 1915, no decurso  da Primeira Guerra Mundial, forças da União da África do Sul (do Império Britânico) invadiram e ocuparam o território;

(viii) em 1919, pelo Tratado de Versalhes, a Alemanha perdeu todas as suas colónias; o Sudoeste Africano passou a estar sob  mandato da Sociedade das Nações (antecessora da ONU), administrado pela África do Sul, situação que se prolongaria até à independência da Namíbia em 1990. 

(Condensação, revisão/fixação de texto: LG)

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro.   Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo de férias. A milhares de quilómetros de distância... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta, mandinga, biafada, manjaco, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  Dos "tugas".

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda". E ria-se.

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o difícil território do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabias que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam  outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala-te. Ele era um obscuro biafada. Um "cão rafeiro". Sabia lá o que era a história.  E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos "cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas quanto dececionantes  férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo na memória. Ainda hoje. Não foram as férias que tanto idealizaste.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe quando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia. "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. 

À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homens. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  aos amores.  Ias tendo sorte na guerra, vá lá . Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco. 

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste  sempre a remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de "tropa- fandanga". Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não, não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?!...    

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem poderia, se quisesse,  ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.

 Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço. Tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas tinha havido ou havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas não era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? 

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada, de férias. 

Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa. Um gajo morto cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava.  E para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".  

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso,  o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado do velho.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.  

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo mesmo. Pouco sociável. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais  ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.

Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraras, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho, no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto:  com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)

As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.

O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.

O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria" ( sic), numa festa da vila... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.

Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e luta de machos ?

O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz. O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres criaturas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda a latejar  no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúva e dos pais. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a dar pormenores. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos teria a 4ª classe e  achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido. 

Estavas com receio de não estar à altura de  desempenhar esta delicada tarefa... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos gestos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram-te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva. Só podia ser. E tu eras o "mensageiro da morte"... Ela percebeu logo que era alguém da tropa. Que vinha por causa do marido. Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Oficial e cavalheiro, estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. E ela mesmo sentou-se numa banqueta, junto à  lareira, a dois metros de distância. Recatada. E ligeiramente ofegante.

Sem grande palavras, deste-lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse de direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui que nem uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos àquela gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Desapertaste-lhe a blusa de flanela no colarinho. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma jovem mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava  desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Numa missão humanitária. 

Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

_________________

Nota do editor:

domingo, 3 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27083: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (4): Alfredo Manuel Martins Félix (1948-1970), sold at inf, CART 2673, "Leões de Empada" (Empada e Brá, 1970/71), natural de Toxofal de Baixo; vítima de acidente de viação em Bissorã



Alfredo Manuel Martins Félix 
(Toxofal de Baixo, Lourinhã, 18/11/1948 - Bissorã, Guiné 26/04/1970)

Soldado atirador infantaria nº 096848/69, CART 2673, "Leões de Empada" (Brá e Empada,  1970/71) 

Local da sepultura - Cemitério Municipal da Lourinhã


A. Continuamos a reproduzir, com a devida vénia, alguns excertos do livro recente do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1).


Dos vinte militares louirnhanesnse que morreream em Ãfrica, seis foram no TO da Guiné. O Alfreod Manuel Martins Félizx é o quarto da lista (pp. 183/184)


1. REGISTO DE NASCIMENTO

Alfredo Manuel Martins Félix nasceu a 18 de novembro de 1948, às 12 horas, no lugar do Toxofal de Baixo. 

Era filho legítimo de Joaquim Martins Félix, de 29 anos, casado e com a profissão de fazendeiro, e de Maria do Rosário de 22 anos de idade, casada, doméstica, ambos naturais da freguesia e concelho de Lourinhã e domiciliados no lugar de Toxofal de Baixo. Neto paterno de Daniel Félix e de Alice do Rosário Félix . e materno de Joaquim Maria (à data já falecido) e Diana da Anunciação.

O registo de nascimento teve como testemunhas Manuel Félix, solteiro, maior, empregado no comércio, residente no Toxofal de Baixo, e Armando Ferreira, maior, cantoneiro e residente na vila de Lourinhã.

O registo foi assinado pelas testemunhas e não assinado pelo declarante por não saber escrever. Registo efetuado a 15 de dezembro de 1948 na conservatória do Registo Civil da Lourinhã.

2. REGISTO MILITAR

Recenseamento: recenseado pelo concelho e freguesia de Lourinhã sob o nº 4 em 1968. Era solteiro, com a profissão de empregado de mesa, tinha como habilitações literárias a 4ª classe e morava em Toxofal de Baixo.

Inspeção militar: alistado em 31 de maio de 1968 com o número mecanográfico nº E 096848/69. Media 1.62 m de altura, cabelo castanho, olhos castanhos, pesava 67 quilos. Foi apurado para Todo o Serviço.

Colocação durante o serviço: foi incorporado em 29 de julho de 1969, como recrutado, no RI 7 em Leiria. Pronto da Escola de Recrutas a 16.11.1969.

Especialidade: soldado Atirador

Unidades onde prestou serviço: RI 7 Leiria, 29.07.60;  e GACA 2 Torres Novas, 27.09.70


2.1. Comissão de serviço no ultramar, Guiné

Mobilização: mobilizado nos termos da alínea c) do artº 3º do Dec. 42937, de 22.04.1960, para servir no ultramar, no CTI da Guiné, pelo Grupo de Artilharia Contra Aeronaves  (GACA) nº 2 – Torres Novas. Recebeu 500$00 de abono de embarque (172 euros, a preços de hoje, de acordo o simulador de inmflação da Pordata).

Embarque: Lisboa a 31 de janeiro de 1970 a bordo do navio “Uíge”, fazendo parte da CART 2673.

Desembarque: em Bissau a 06.02.1970 desde quando aumenta 100% ao tempo de serviço.

Data do falecimento: 26.04.1970

Causa da morte: acidente de viação

Local do acidente: Bissorâ,

Abatido ao efetivo: 26 de abril de 1970

2.2. Registo disciplinar: condecorações e louvores

Louvor: por ter cedido sangue a título gracioso em benefício dos doentes assistidos pela Liga Portuguesa contra o Cancro manifestando com o seu gesto sentimentos de humanidade dignos de apreço (OS 220 de 18 set. 69 do RI 7).

3 . PROCESSO DE AVERIGUAÇÕES AO ACIDENTE: ANOTAÇÕES E CONTEXTO

(No seu processo, consultado no Arquivo Geral do Exército, não consta o Auto de Averiguações ao acidente que lhe provocou a morte.)

(Revisão / fixação de texto: LG)





B. Informação complementar sobre a CART 2673 (Empada e Brá, 1970/71)


(i) foi comandada pelo cap art Adolfo Pereira Marques, que foi substituído pelo cap mil  José Vieira Pedro;

(ii) usou como divisa “Leões de Empada” e a história da unidade encontra-se arquivada na caixa 91, na 2ª Divisão/4ª Secção do AHMM

(iii) do seu percurso no CTIG, refere-se que seguiu para Empada em 4 de fevereiro de 1970, para substituir a CCAÇ 2381 e assumir a responsabilidade do subsector em 26 desse mesmo mês;

(iv) desde 9 de abril, cedeu pelotões para reforço de Nhacra e Buba até 12 de julho de 1970, data em que regressaram a Empada; o subsector de Empada tinha sido alargado com as zonas de acção das áreas das penínsulas de Cubisseca e Pobreza.

(v) foram obtidos excelentes resultados nas operações realizadas pela subunidade nas operações realizadas nas regiões de Caúr, Buduco, Cancumba e Satecuta, entre outras.

(vi) foi rendida no subsector de Empada pela CCAÇ 3373, em 28 de maio de 1971, seguindo para Bissau onde substitui a CCAÇ 2571, na guarnição e defesa dos pontos sensíveis da área.

(vii) a 30 de maio de 1971 assumiu o subsector de Brá, integrando o COMBIS [Comando de Bissau], destacando efectivos para Safim e João Landim, subsector de Nhacra, e para Cumeré, em reforço das guarnições locais, até ser rendida pela CART 2672, para embarcar para a metrópole.


sábado, 2 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27081: Felizmente ainda há verão em 2025 (6): Drave, na serra da Freita, Arouca... "O despertar da natureza" (José Teixeira)




Arouca > Serra da Freita > Drave, "aldeia mágica > Foto de Luís Pinto, com a devida vénia... Fonte: Visit Arouca


1. Mensagem do Zé Teixeira (régulo da Tabanca de Matosinmhos, ex-1.º cabo aux enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; é um histórico da Tabanca Grande, que integrou a partir de 14/12/2005; tem c. quatrro centenas e meia de referências no blogue; vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; é gerente bancário reformado; escritor, poeta, escutista)...

Data - 1 agosto 21:52  

Assunto - Tempo de estar presente

Meus queridos amigos

Paz, saúde e bem-estar.

Chegou o tempo de férias, para aqueles não estão em férias todo o ano e para esses também.

Mudar de ares sabe sempre bem.

Um abraço do tamanho do Geba para a equipa em especial e para todos os camaradas bloguistas que ainda resistem.

Convido-vos a dar um passeio comigo pela Natureza na aldeia mágica da Drave em plena Serra da Freita - Arouca. 

__________________


O despertar da Natureza

por José Teixeira


 Acordo ao som da água cristalina,

Que se esgueira de rocha em rocha na ribeira

E desliza, toda lampeira, pela colina.

 

As folhas das árvores de casca carcomida

Murmuram os bons-dias ao vento, que passa em corrida,

Num divertido rodopio,

Transportando com ele um brando ar frio.

 

Espreito por uma frincha da tenda que me abriga,

E vislumbro os primeiros estiletes do sol doirado,

A mergulhar nos picos da montanha, minha amiga.

 

Ao longe, os primeiros gorjeios dos passarinhos,

A acordar, lá no alto, lentamente,

Ainda dentro dos seus ninhos.

E continuando a sua leda marcha, em direção ao poente,

O sol lança brandamente os seus raios pela ladeira.

 

Bate à porta de cada ninho, com o seu calor,

E incita, nos passarinhos, aquela soalheira,

O bel-prazer de louvar o Divino Criador!

 

Forma-se, assim, uma melodiosa orquestra,

Com os mais variados sons e tons,

Enriquecida em cada centímetro de verdura,

Franqueada pelos raios solares com muita ternura.

 

Peneireiros, chascos, rouxinóis, carriças e verdilhões,

Pardais, piscos, pintassilgos, chapins ou tentilhões,

Qual deles o mais sonoro!

 

E quando chega ao fundo da planura, suavemente,

O sol acorda, num repente, os melros dorminhões,

Que enriquecem a harmonia do espaço envolvente,

Com o seu trinar peculiar, que encanta toda a gente.

 

Que divinal momento!

Que singular beleza!...

Oh! Como é bom sentir o despertar da Natureza.

                                                           

José Teixeira


2. Comentário do editor LG:

Zé, obrigado. É tempo de estar presente. E tu estás sempre presente. És um histórico da nossa Tabanca Grande. E tens uma particular sensibilidade sociocultural. Além disso, és poeta. 

O teu poema, inspirado na Serra da Freita, fica muito bem nesta série, "Felizmente ainda há verão em 2025" (*).

É tempo também de falar do Portugal Profundo, que só é falado quase sempre por más razões como a tragédia dos incêndios de verão.  Drave, na serra da Freita, Arouca, espero, ao menos, que tenha sido poupada ao  incêndio que, mais uma vez, se abateu sobre Arouca. 

Já passei pela serra da Freita, e pela aldeia de Drave, há uns largos anos.  Afinal, estou do outro lado do rio Douro, frente à serra de Montemuro, mas Candoz já fica no distrito do Porto. E já fiz o passadiço do rio Paiva ainda antes da pandemia. 

Fico com "inveja" de não poder estar aí contigo que, sendo, escuteiro. conheces bem Drave e a zona.

Numa consukta à Net, e ao sítio "Visit Arouca", fico a saber sobre Drave mais o seguinte:

(...) Desabitada desde 2009, algumas casas têm sido intervencionadas pelo Centro Escutista, já que Drave é a Base Nacional da IV Secção do Corpo Nacional de Escutas.

Drave é sublime, com os seus miradouros criados pela própria natureza. Atravessando a ponte, encontramo-nos nas ruelas estreitas entre as casas, que apetece calcorrear. 

No meio das ruínas de xisto e lousa, sobressai, branquinha, a Capela de Nossa Senhora da Saúde e o Solar dos Martins, atualmente convertido em quartel-general da IV Secção do Corpo Nacional de Escutas. 

Mais ao fundo, escutamos o barulho das águas puras da ribeira de Palhais, ouvimos o som das cascatas e apreciamos as piscinas naturais. (...)

Recorde-se, por outro lado, os 17 arouquenses que morreram na guerra coloniual / guerra do ultramar, num total de cerca de 3 mil militares mobilizados neste oncelho do distrito de Viseu,  que em 1970 tinha 23,8 mil habitantes.  Dos mortos, 7 pelo menos foram na Guiné, 6 em Moçambique e 3 em Angola (n=16).
 
______________

Nota do editor:

(*) ), Último poste da série > 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27076: Felizmente ainda há verão em 2025 (5): afinal, Vila do Conde é um dos pontos-chave do Caminho Português da Costa que leva a "pelingrina" italiana a Santiago... (Virgílio Teixeira)

Vd. postes anteriores:

31 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27074: Felizmente ainda há verão em 2025 (4): alzheimareados com a canícula...

30 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27072: Felizmente ainda há verão em 2025 (3): recordando o meu esforçado, voluntarioso, amável , efémero e... clandestino professor de pilotagem do DO-27, o "Pombinho", que veio expressamente do Brasil para assistir ao lançamento do nosso livro "Nós, as enfermeiras paraquedistas", em 26/11/2014, no Estado Maior da Força Aérea, em Alfragide (Maria Arminda Santos, Setúbal)

29 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27067: Felizmente ainda há verão em 2025 (2): E na próxima segunda-feira, dia 4 de agosto, às 19h30, os mordomos da Festa do Emigrante na Ventosa do Mar, Lourinhã, vão armar a "manjedouro do povo" para a monumental batatada de peixe seco!... Sigamos a "arraia", que o cherne está pela hora da morte!

sábado, 19 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27035: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (3): Albino Cláudio (1946-1968), sold at inf, CCAÇ 2368 / BCAÇ 2845 (1968/1970), natural de Ribamar: vítima de acidente com arma de fogo, em Bissorã, em 23/7/1968 - II (e última) Parte: O Comandante Militar do CTIG, por despacho, disse que o desastre ocorrido foi "por motivo de serviço"

 


Albino Cláudio (Ribamar, Lourinhã, 30.05.1946 – Bissorá, antiga província portuguesa da Guiné 23.07.1968), sold at inf, CCAÇ 2368 (Cacheu, Bissorã, Teixeira Pinto, 1968-70)

Brasão do BCAÇ 2845 (1968/70)

1. No poste anteriormente publicado nesta série (*), foram citados  os nomes e os postos de vários camaradas do Albino Cláudio (Ribamar, Lourinhã, 1944-Bissorã, Guiné, 1968), que intervieram no âmbito do processo de averiguações do acidente que o vitimou em Bissorã, no dia 27 de julho de 1968. Recorde-se:

  • o comandante da companhia, cap inf Manuel Joaquim Sampaio Cerveira;
  • o alf mil António Matos de Almeida, encarregue pelo Cmdt de elaborar o processo por acidente com arma de foto;
  • as testemunhas do acidente, 1º cabo at inf Cipriano Martins Silva, natural de Famalicão, e o sold at inf  Joaquim Cunha Moreira, natural de Penafiel;
  • o fur mil António Pimenta Rodrigues,  e o 1º cabo at inf Victor Manuel da Costa, que oram testemunhas da elaboração do espólio do Albino Claúdio,  feita pelo alf mil Matos de Almeira,na presença e capitão;
  • não sabemos o nome do alf mil médico que passou a certidão de óbito, mas muito provavelmente o seria o mais antigo, Fernando António Maymone Martins... O Maximino José Vaz da Cunha também foi médico do BCAÇ 2845.  E haverá ainda um terceiro médico, José Luís Pinto Pinto Bessa de Melo,  que muito possivelmente veio render um dos  dois primeiros, os quais, na 2ª parte da comissão, foram trabalhar  no HM 241, em Bissau.



Composição orgânica do pessoal da CCAÇ 2368. Lista gentilmente disponibilizada pelo Albino Silva, que pertenceu á CCS/ BCAÇ 2845.


2. Comentário do nosso editor LG ao poste P27032 (*).


Não foi suicídio, mas também não terá sido simples "acidente com arma de fogo", garante-me o conterrâneo e vizinho do Albino Cláudio, o nosso grão-tabanqueiro Carlos Silvério, ex-fur mil at cav, CCAV 3378 (Olossato, 1971/73)...

"A história estaria mal contada", disse-me ele ao telefone... Ele falou com familiares do Cláudio, em  Ribamar, e com outros militares na Guiné, no seu tempo. Ele tem outra versão, ouvida no Olossato...

Segundo ele, o Cláudio, àquela hora, 7 da manhã, não ia entrar de serviço, mas, sim, acabava de chegar de uma operação no mato... E que a essa hora não se limpavam armas...E que as duas testemunhas ouvidas pelo alferes que elaborou o auto, o Matos Almeida,  não eram testemunhas "oculares", nenhum delas viu o acidente ou o momento fatal:

(i) o 1º cabo Cipriano Martins Silva às 6:50 viu o Albino "limpar a arma", já que ia "entrar de serviço às sete horas" (sic);  ouviu o tiro quando já estava no refeitório para tomar a refeição da manhã; viu, isso sim, o oficial de dia sair do refeitório, correr para a caserna e fazer transportar o sinistrado para o posto de socorros;

(ii) o sold Joaquim Moreira estava de saída, à porta da caserna, ouviu o tiro, voltou a entrar na caserna, encontrou o sinistrado caído no chão, com a arma ao lado, e a esvair-se em sangue...

O Carlos Silvério estranha ( e eu também) não ter sido aparentemente ouvido, como testemunha, o oficial de dia, que foi quem assistiu o ferido e fez a participação da ocorrência ao comandante. Estava no refeitório quando ouviu uma detonação.

Estranha-se, ainda, que as duas testemunhas reforcem a ideia de que não foi suicídio: o 1º cabo Silva já tinha ouvido, algumas vezes, ao Cláudio dizer que quando passasse à disponibilidade iria "construir uma casa e casar-se" (estavam ainda todos no início da comissão, com apenas 2 meses e meio...); como quem diz: "quem quer casar-se, não vai matar-se"...

O sold Moreira diz, por sua vez, que o Cláudio "não se matou propositadamente" (sic), "era uma pessoa pacata e sem problemas" (sic).

A certidão de óbito é clara: "a causa principal da morte foi o ferimento perfurante na caixa torácica"...

Ota, ninguém limpa a arma ( e muito menos a G3) com o cano apontado ao peito... 

O Comando Militar do CTIG quer esclarecer todas as dúvidas: "se foi acidente ou suicídio" (sic)... E acabará por escrever no seu despacho, o Comandante Militar: "Sou de parecer que deve ser considerado ocorrido por motivo de serviço o desastre sofrido por este militar (...)".

Sabemos que na tropa não havia suicídio nem homicídio: para todos os efeitos, só havia, no nosso tempo,  mortes  por: (i) ferimento em combate; (ii) motivo de doença: ou (iii) acidente (incluindo com arma de fogo).

Ponto final parágrafo


PS - Ainda segundo o informação do Carlos Silvério, a namorada do Albino Cláudio acabou, naturalmente, por casar com outro e emigrar para o Canadá. 

Por outro lado,  e segundo consta no livro do Jaime Silva, "Não esquecemos..." (Lourinhã, Câmara Municipal da Lourinhã, 2025, pág. 181), na altura em que foi feito o espólio, um camarada do Claúdio lembrou  um desejo seu: se "viesse a falecer em combate" (...), "o fio em prata (contendo uma) pequena medalha", deveria ser " entregue à sua namorada".

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