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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26998: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (2): José Henriques Mateus (1944-1966), sold at inf, CCAV 1484 (Catió, 1964/1966) - II (e última) Parte: testemunhos de camaradas


 Lourinhã > Areia Branca > 11 de maio de 2014 > A terra homenageou o seu herói, o  José Henriques Mateus (1944-1966).  Painel de azulejos, pintado à mão, e que faz parte do monumento, inaugurado no centro da povoação. Na parte superior do painel, ao centro está desenhado e pintado o guião da CCAV 1484, a que pertencia o Mateus.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Henriques Mateus (1944-1966), sold at inf, CCAV 1484 (Catió, 1964/66)



Guiné > Região de Tombali (?) > Catió (?) > s/l> s/d> CCAV 1484 (1483,  Nhacra e Catió, 1964/66)> O José Henriques Mateus. Foto gentilmente cedido pelo irmão mais novo, Abel Mateus, ao Jaime Bonifácio Marques da Silva.  O Zé Henriques era o "sustento da família" , o mais velho, o braço direito da mãe, viúva.

Foto (e legenda): © Jaime Silva (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Continuamos a reproduzir, com a devida vénia,  alguns excertos  do livro recente  do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 173/178. 


II (e última) parte  relativa às circunstâncias em que morreu, no CTIG, o lourinhanense José Henriques Mateus, o segundo em termos cronológicos, depois do José António Canoa Nogueira (*)

(...) Certidão de óbito

No seu livro, o Jaime Silva transcreveu integralmente o teor da certidão de óbito nº 594/967,  passada em janeiro de 1967,  pela Conservatória do Registo Civil da Comarca de Bissau, onde consta “morte em combate”, apesar do corpo do militar nunca ter aparecido, o que se justifica pelo facto de ser necessário para a família poder receber a pensão de preço de sangue.

Neste postes, limitamo-nos a reproduzir um excerto da parte final dessa certidão:

(...) "A declaração de óbito foi feita de conformidade com o ofício número sessenta e quatro/ sessenta e sete, processo número sete/sessenta e sete do Tribunal Judicial da Comarca da Guiné que acompanhou a certidão de sentença proferida pelo Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz, em Bissau, digo em vinte e três de janeiro de mil novecentos e sessenta e sete. 

"Depois deste registo ser lido e conferido com o seu extrato vai ser assinado por mim, Carlos Dinis de Figueiredo Júnior, conservador do Registo Civil. Conservatória do Registo Civil da Comarca da Guiné em Bissau, aos trinta dias do mês de janeiro de mil novecentos e sessenta e sete. "(...)



5. NOTAS À MARGEM DO PROCESSO: testemunhos

Testemunhos de camaradas que conviveram com José Henriques Mateus:

1º Testemunho: 

Transcrevo o que Benito Neves (2007) [1] relatou sobre o acidente ao Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. O texto foi extraído da história da Companhia, da qual foi encarregue de escrever. Realça:


“Relatório da Operação Pirilampo - 10 de setembro de 1966:

 “Esta operação foi realizada pelas CCAV 1484, reforçada com 1 Gr Comb Pel  Mil 13 e CCAÇ 763, com a finalidade de bater a mata de Cabolol de modo a detetar e a destruir o acampamento IN localizado em (1510.1120.A2).

 Foi efetuada uma minuciosa batida à mata de Cabolol no sentido E-W. Pelas 14h30, não obstante as dificuldades que surgiram pela densidade da vegetação, foi detetado o acampamento IN em (1510.1120A3.15), composto por 16 casas, que foi destruído com fraca resistência do IN.

 Foram capturados documentos diversos e munições para espingarda Mauser. O IN, que deveria ter detetado as NT, havia evacuado grande parte do seu material para fora do acampamento.

Em continuação da ação, as NT seguiram em direção a Cabolol Balanta. Quando queimavam o seu primeiro núcleo de casas mais a sul, o IN, instalado na orla da mata, reagiu em força com fogo de morteiro, lança granadas-foguetes, metralhadora pesada, pistolas metralhadora e espingardas, causando 6 feridos ligeiros às NT. Após reação destas, o IN furtou-se ao contacto, sendo ainda queimados mais 3 núcleos de casas.

Pelas 17h00 as NT iniciaram o regresso, tendo sido flageladas com fogo de morteiro.

Quando as NT atravessavam o rio Tompar [afluente do Rio Cumbijã, a sudoeste de Bedanda], afogou-se o soldado nº 711/65, José Henriques Mateus, da CCAV 1484, não tendo sido possível recuperar o seu corpo, apesar de todas as buscas efetuadas. 

Pelas 22h30 as NT chegaram ao aquartelamento de Cufar, depois de uma marcha fatigante em terreno pantanoso. O que acima se transcreve é o que consta do relatório da operação, extraído da história da Companhia, de que fui encarregue de escrever.”

2º Testemunho: 

O José Francisco Couto, soldado nº 699/65 – SPM 3008, natural da freguesia da Roliça (Baracais), concelho do Bombarral, foi camarada de pelotão do Mateus e seu amigo. Participou com ele na Op Pirilampo, assistindo ao desaparecimento do Mateus quando ambos atravessavam o rio Tompar.

Durante a consulta ao espólio do Mateus, juntamente com o seu irmão, encontrei entre a sua correspondência dois aerogramas enviados à mãe do Mateus pelo soldado Couto. Neles, ele lamentava as circunstâncias da morte do filho e afirmava que a iria visitar logo que regressasse da Guiné, uma vez que eram naturais de concelhos vizinhos.

Transcrevo, ainda, parte do segundo aerograma, endereçado à mãe do Mateus, em 08.11.1966, a parte do texto em que lamenta a tragédia que roubou a vida ao amigo, como repete as circunstâncias do acidente:

 “Prezada Senhora: É com os olhos rasos de lágrimas que novamente me encontro a escrever-lhe sendo ao mesmo tempo a desejar-lhe uma feliz saúde a si e aos seus filhos que eu cá vou indo na graça de Deus. 

Sei senhora Rosa que ao receber esta minha notícia mais se recorda da tragédia que lhe roubou o seu querido filho, pois é com mágoas no coração que lhe respondo a tudo quanto me pergunta e peço a Deus que não a vá magoar mais com tudo o que lhe possa dizer. Pois compreendo que além da minha dor ser enorme a sua não tem palavras, pois o destino foi traiçoeiro. 

Sim (…), a Senhora pede-me que lhe explique como tudo se passou. Pois sou a dizer-lhe tudo o que sei. Foi uma das saídas que nós tivemos, durante o dia tudo se passou da melhor maneira na graça de Deus e nós nos sentíamos satisfeitos, mas no regresso tivemos que atravessar um rio e a corrente era enorme, como enorme era o peso que trazíamos, e que ele ao passar a corda se partiu e foi quando ele foi parar ao fundo sem mais ninguém o ver. Pois quatro camaradas nossos, mal pressentiram o que se estava a passar, atiram-se à água e mergulharam ao fundo para ver se o encontravam correndo o rio de cima para baixo e vice versa mas o resultado foi o que Senhora já sabe. 

(…) Esta é apenas a verdade que podem contar à Senhora e aos seus filhos. Sim, também me diz que apareceu alguma coisa dele e é certo, mas não o que a Senhora me diz. Apareceu sim o que lhe vou contar. Passados alguns dias nós voltámos a passar por lá, e foi nessa altura que um dos alferes encontrou uma parte da camisa e a carteira no bolso, pois a parte da camisa era só da frente e tinha o bolso onde estava a carteira, que o alferes tem para lhe enviar tudo junto que resta do seu querido filho. E a Senhora não precisa de tratar nada pois a companhia já tratou de tudo, pois também tratou dos papéis para a Senhora ficar a receber algum dinheiro que bastante falta lhe fará e assim, minha Senhora, não quero alongar mais as minhas notícias pois elas só lhe levam mágoas. 

Sem mais me despeço com muitas saudades para os seus filhos um aperto de mão para todos para a Senhora também deste que chora também a sua dor. José Francisco Couto."

Consegui o contacto com o José Francisco Couto, convidei-o para participar na cerimónia que a AVECO (Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhã) e a população da sua terra natal – lugar da Areia Branca – lhe prestou em 11 de maio de 2014. Após o serviço militar, o José Couto emigrou para o Canadá, onde vive atualmente e na troca de correspondência que efetuou comigo, em 3 de fevereiro de 2014, escreveu:

“Eu, José Francisco Couto estou-lhe respondendo à sua carta que recebi aqui há dias. Fiquei bastante surpreendido que ao fim de tantos anos verifiquei que afinal o José Henriques nunca foi esquecido (…).

"Eu gostava imenso de estar aí presente nesse dia para prestar a minha homenagem e ditar tudo o que se passou, mas como estou longe e por agora, não posso fazer planos, mas vou-lhes contar aquilo que se passou.

“O Batalhão ia fazer uma emboscada na qual o José Henriques estava incluído. Éramos bastante amigos. O alferes ia com uma corda atada à cintura para atar a uma árvore para nós podermos passar um a um. A corda atravessa o rio de um lado a outro. Ele agarrou-se à corda a seguir ao alferes. Quando o alferes já tinha passado para o outro lado, ele agarrou-se e a seguir ia eu e eu ouvi ele gritar e não o vi. Eu recuei para trás. Começaram as emboscadas por terra e por rio e nunca ninguém o viu mais. 

"Ao fim de quinze dias passámos ao rio e vimos a camisa dele pendurado numa árvore toda rota. Ele, umas semanas antes, tinha-me desafiado para nós fugirmos para os turras. Por isso, nunca pensei que ele tivesse morrido no rio e que ele se tivesse passado para algum lado porque ele sabia muito bem nadar. E pronto, é tudo o que sei para contar. De resto não sei mais nada. Não sei se foi comido por algum bicho do rio ou o que se passou mais. Quando cheguei a Portugal fui mandar dizer uma missa por ele. (…)”

3º Testemunho que me foi prestado pelo ex- fur mil  Estêvão Alexandre Henriques em 23.04.2014. 

O Estevão é natural de Fonte Lima, Stª Bárbara, e vive no Seixal. Com a especialidade de Radiomontador, embarcou para a Guiné, a 18 de agosto de 1965, a bordo do navio Niassa, chegando a Bissau a 24. Fez parte da Companhia  nº 1423, CCS que pertenceu ao BCAÇ 1858. 

Quando o Mateus chegou à Guiné o Furriel Estevão conseguiu o seu destacamento para a Messe de Sargentos, através do cozinheiro Santos, seu amigo e natural das Matas (Lourinhã). 

Na altura do acidente o Estevão não estava em Catió. Soube do acidente três dias depois, quando regressou de Empada onde tinha ido fazer reparações nos rádios. Pensa que se estivesse em Catió na altura da operação, seguramente o Mateus não teria sido nomeado para a mesma, uma vez que, no seu entender, ele já não era operacional. 

O que soube em pormenor do acidente foi-lhe contado pelo cozinheiro António José dos Santos, entretanto falecido. O furriel Henriques afirma que as Nossas Tropas só voltaram ao local do acidente uma semana depois, altura em que encontraram, então, a camisa ou um pedaço (farrapo) da camisa pendurada (presa) numa árvore. Não sabe quem a encontrou e nunca viu a camisa. No bolso da camisa estava uma carteira em forma de ferradura contendo uma medalha da Nossa Senhora, uma moeda portuguesa furada e um amuleto de cabedal. Foi o Estevão que entregou a carteira à mãe do Mateus. 

No final da Comissão o comandante do Batalhão 1858, cujo nome não se lembra, chamou-o e pediu-lhe expressamente que entregasse a carteira à mãe e lhe apresentasse as suas condolências e do pessoal do Batalhão pela morte do filho. O comandante nunca lhe falou das circunstâncias do desaparecimento do Mateus.

Diz, ainda, que foi sempre tudo um segredo bem guardado e nunca conseguiu que algum dos camaradas que participaram na operação lhe dissesse o que quer que fosse sobre o acidente. Afirma, ainda, que o Mateus nunca lhe falou em fugir.

O furriel Estevão regressou da Guiné em 9 de maio de 1967 e só em junho teve a coragem de entregar a carteira à mãe do Mateus. Lembra-se que nesse momento estava presente a irmã do Mateus.

Hipótese colocadas por seus camaradas acerca do seu desaparecimento:

Alguns camaradas do Mateus colocaram a hipótese de ele ter desertado ou ter sido preso pelo PAIGC, vindo a ser libertado na Operação Mar Verde. Entre eles, encontra-se José Francisco Couto, como referi anteriormente.

Essa hipótese não se confirmou, de acordo com o testemunho de alguns dos seus camaradas:

i) Benito Neves (CCAV 1484, Nhacra e Catió 1965/67) escreve:

 “Relativamente a reservas que ainda hoje tenho sobre esta morte, na medida em que se levantou a hipótese de ter sido capturado e libertado mais tarde no decurso da operação Mar Verde [Conacri, 22 de novembro de 1970]. Porém, oficialmente, conforme documento anexo, foi considerado “morto em combate”. (Luís Graça & Camaradas da Guiné, Post1676).

ii) Benito Neves e Hugo Moura Ferreira juntam cópia do Ofício do Arquivo Geral do Exército, nº 112/STAG, Proc. 6.2, de 23 de maio de 2007, em resposta a um requerimento do nosso camarada Hugo Moura Ferreira, de 16 de abril de 2007, pedindo informações do Soldado José Henriques Mateus. Cópia facultada pelo Benito Neves. Em traços largos, o teor do ofício é o seguinte: 

1. O José Henriques Mateus foi dado como morto em combate, “conforme a História da sua unidade (CCAV 1484)"

2. Segundo o Arquivo Histórico Militar, há uma relação de militares falecidos e desaparecidos, do CTIG/QG/1ª Repartição, datada de 21 de maio de 1974, donde consta o nome do José Henriques Mateus,  “dado como desaparecido em combate na região de Catió, em 10 de setembro de 1966 e que mais tarde foi considerado morto, juntamente com outros militares, nos termos do n.º 3 do art 1º do Decreto 350/71, e 12 de agosto de 1971”.

3. Não faz parte dos militares resgatados através da Operação Mar Verde [em que foram libertados 26 prisioneiros portugueses, em Conacri];

4.Também não consta da base de dados referente à lei dos ex-combatentes (Lei nº 9/2002).

(Vd. poste de 9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2821: Aqueles que nem no caixão regressaram: o caso do José Henriques Mateus, da CCAV 1484, natural da Lourinhã (Benito Neves / Hugo Moura Ferreira).

(Revisão/ fixação de texto: LG)
 ________________

Nota do autor, JBMS:

[1] In: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, quinta-feira, 19 de abril de 2007. Guiné 63/74 - P1676: Vivo ou morto, procura-se o Soldado Mateus, da CCAV 1484, natural da Lourinhã (Benito Neves). https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2007/04/guin-6374-p1676-vivo-
-ou-morto-procura.htm
________________

Nota do editor LG:


Vde. postes anteriores:

30 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26968: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942- 1965) (sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619, Catió, 1964/ 1966) - Parte II: o Manuel Luís Lomba estava lá, em Cufar, em 23 de janeiro de 1965

terça-feira, 8 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26993: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (2): José Henriques Mateus (1944-1966), sold at inf, CCAV 1484 (Catió, 1964/1966) - Parte I: nota biográfica


JOSÉ HENRIQUES MATEUS (Lourinhã, 
17.10.1944 - Guiné, 10.09.1966)


TO do falecimento - Guiné

Posto: Soldado atirador infantaria nº E – 69516/65

Subunidade: CCAV 1484 (

Naturalidade - Areia Branca, Lourinhã

Local da sepultura - Corpo, desaparecido no rio Tompar (afluernte do rio Cumbijã), , no decurso da Op Pirilampo, e  não encontrado


I. Continuamos a reproduzir, com a devida vénia,  alguns excertos  do livro recente  do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 169/173.


1. REGISTO DE NASCIMENTO

José Henriques Mateus nasceu a 17 de outubro de 1944, às 11.30 horas, no lugar de Areia Branca. 

Filho legítimo de Joaquim Mateus Júnior, de 42 anos, casado, com a profissão de jornaleiro e natural da freguesia e concelho de Lourinhã, e de Maria Rosa Mateus, de 20 anos, doméstica, casada, natural da freguesia de Atouguia da Baleia, concelho de Peniche, e domiciliados no lugar de Areia Branca. (...)

A declaração do registo de nascimento foi feita pela mãe, teve como testemunhas José Borges, operário reformado do Arsenal da Marinha, morador na vila de Lourinhã, e Manuel da Cruz, casado, proprietário e morador no lugar da Marqueiteira, foi assinado pelas testemunhas e não assinado pela declarante por não saber escrever e lavrado pelo Ajudante da Conservatória, Francisco Rocha, em substituição do Conservador por se encontrar legalmente de licença. Registo nº 503, de 14 novembro 1944, da Conservatória do Registo Civil da Lourinhã.

2. REGISTO MILITAR

Recenseamento: José Henriques Mateus foi recenseado no ano de 1964. Alistado a 3 de junho de 1964. Era solteiro, com a profissão de trabalhador agrícola,  e analfabeto

Inspeção militar: foi inspecionado a 16 de março de 1965 na DRM 5. Tinha 1.67 de altura, 65 kg de peso, cabelos lisos de cor castanho escuro e olhos de cor cinzento esverdeado. Em resultado da inspeção foi “apurado para todo o serviço Militar” e atribuíram-lhe o número mecanográfico E – 6951665.

Colocação durante o serviço: a 4 de maio de 1965 é incorporado como recrutado no RI 7, em Leiria. Fica adstrito à 1ª CI com o nº 1820/65. De 21 a 26 tomou parte nos exercícios de campo (OS 146). Faz o Juramento de Bandeira a 1 de julho. Termina a instrução básica a 03.07.65, sendo transferido para o RC 7 a 4 de julho, destinado à especialidade de atirador de infantaria, sendo aumentado ao efetivo da CCAV 1484 com o nº 711/65. Pronto da Escola de Recrutas a 22 de agosto de 1965 na especialidade de Atirador.

2.1. Comissão de serviço no ultramar, Guiné

Mobilizado: em outubro de 1965 nos termos da alínea c) do artº 3 do Decreto 42937, de 22/04/60, para servir CTI da Guiné, fazendo parte da CCAV 1484.

Embarque: no dia 20 de outubro, a bordo do navio Niassa, em Lisboa. Desembarque: a 27 de outubro em Bissau, desde quando conta 100% de aumento no tempo de serviço.

Data do falecimento: 10.07.1966

Causa da morte: desaparecido ao atravessar o rio Tompar

Local do acidente: Catió

Abatido ao efetivo: de acordo com a Ordem de Serviço (OS), e 21 de setembro de 1966, assinada pelo comandante de companhia,  capitão Virgílio Fernando Pinto, no quartel em Catió, na secção “Orgânica – Alterações para os mapas permanentes, alínea c) – Praças: Abates, consta: “Que seja abatido ao efetivo da CCAV 1884 do BCAÇ 1858, data em que desapareceu ao atravessar o Rio Tompar, o soldado José Henriques Mateus”.

Despacho Superior: por despacho de 24.10.67 foi confirmado como ocorrido em 10.09.66 e por motivo de serviço o acidente referido do qual lhe resultou a morte (OS 265).

Tempo de serviço: 1965, 241 dias e 1966. 252 dias.

2.2. Registo disciplinar: condecorações e louvores

Medalha: de segunda classe de comportamento (Artº 188.º do RDM) é-lhe atribuída em 4 de maio 1965.


3. PROCESSO DE AVERIGUAÇÕES AO ACIDENTE: ANOTAÇÕES E CONTEXTO

Em consequência do acidente, o Ministério do Exército, através do Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), determina que se organize um processo de averiguações. 

O CTIG informa, ainda, que, na sequência do acidente, “foi enviado telegrama à família do desaparecido comunicando a ocorrência” de acordo com ofício nº 1893, de 14 de setembro de 1966, emitido pelo Comandante do Depósito Geral de Adidos em Lisboa, coronel de infantaria Amândio Ferreira. 

Este informa, também, as várias instâncias superiores do “Desaparecimento de praça no Ultramar”: 

  • Chefe da 1ª Secção da Rep do Gabinete do Ministro do Exército,
  •  Chefe da Rep Geral DSP/ME, 
  • Chefe do Serv Inf Pública das Forças Armadas do Dep da Defesa Nacional, 
  • Chefe do Estado Maior do GG/GML, 
  • Chefe da Rep de Sargentos e Praças DSP/ME,
  •  Chefe da Agência Militar 
  • e Comandante do RC 7.

A 22 de setembro de 1966 dá-se início ao Processo de averiguações em cumprimento do despacho 13919 / processo nº 131, ponto três, exarado pelo QG/CTIG. Para o efeito, o Comandante da CCAV1484 nomeia o alferes miliciano José Rosa de Oliveira Calvário, do Serviço de Material, para elaborar o respetivo processo.

1. O Alferes Calvário, para apurar as circunstâncias em que terá desaparecido o soldado nº 711/66, José Henriques Mateus, ouviu, primeiro, o comandante interino da CCAV 1418, cap inf Virgílio Fernando Pinto, que declarou: 

"Que, a ocorrência tinha sido participada no relatório da operação 'Pirilampo' e no qual se encontram como testemunhas o alf mil cav de Fernando Pereira Silva Miguel, o 1º cabo, radiotelegrafista, nº 1055/65, Osvaldo Freitas de Sousa, e o alf mil cav Cav José Martinho Soares Franco Avillez."

A primeira testemunha, o alf mil cav Fernando Pereira Silva Miguel, CCAV 1484, solteiro, de vinte e quatro de idade e natural de Lisboa declarou:

“Que, após terem sido atingidos os objetivos da operação 'Pirilampo', e se terem evacuado os feridos e se ter dado início à retirada das nossas tropas levantou-se uma tempestade, que fez com que diminuíssem as condições normais de visibilidade, já por si escassas, por ser ao anoitecer. 

Que, quando o acidente se deu eram cerca das dezassete horas e quarenta e cinco minutos, quando da travessia do segundo e último rio, que as nossas tropas tinham de atravessar no regresso, e que naquele dia e àquela hora não dava passagem a vau por se encontrar a maré cheia. 

Mais disse que o soldado José Henriques Mateus se encontrava a atravessar o rio, agarrado a uma corda, quando esta se partiu. Em consequência disto, o sinistrado desapareceu imediatamente não dando mais sinal de si. Mais disse que ouviu o primeiro cabo Osvaldo gritar - «está um homem debaixo de água».

Mais declarou que ele próprio se atirou ao rio o que foi imediatamente secundado por outros camaradas seus, levando em buscas durante cerca de quarenta minutos, mergulhando e tentando tatear e detetar o corpo do sinistrado. 

Mais disse que em virtude da impossibilidade de o encontrar, devido à má visibilidade e forte corrente das águas, e depois de se empregarem todos os esforços, inspecionando a zona várias vezes, regressaram a quartéis. E mais não disse.”

A segunda testemunha, o 1º cabo radiotelegrafista, nº 1055/65, Osvaldo Freitas de Sousa, CCAV 1484 de vinte e um anos, solteiro e natural da Freguesia e Concelho de Fafe, disse: 

“Que se encontrava, quando do acidente, na extremidade da corda que atravessava o rio para apoio da sua passagem, a ajudar seus camaradas a saltarem para a margem. E que, quando o sinistrado se encontrava a meio da travessia, agarrado à corda, esta rebentou. Ao ver que o seu camarada se afundava, jogou-se à água para tentar agarrá-lo. Mais disse que conseguiu chegar junto do mesmo, e que o agarrou ainda por um ombro, embora ele se encontrasse submerso. Mais disse, que começou a gritar pelo que foi ouvido pelos seus camaradas, os quais se lançaram à água tentando auxiliá-lo. Que um deles (talvez uma milícia – não o reconheceu devido à pouca visibilidade) o segurou quando ele já se encontrava também prestes a ser arrastado para o fundo, devido ao peso do corpo do sinistrado. E que em virtude de se encontrar agarrado não conseguiu mais sustentá-lo por mais tempo.

"Mais disse que depois em companhia de outros seus camaradas, tentou detetar o corpo que nunca mais fora visto. Que levaram cerca de trinta minutos em busca, mergulhando e inspecionando a zona, pelo que eram impossibilitados pela escuridão, pela forte corrente das águas e também por estas se encontrarem turvas. E mais disse que após todo este tempo de buscas regressaram a quartéis. E mais não disse.”


A terceira testemunha, o alf mil cav José Martinho Soares Franco Avillez, CCAV 1484 de vinte e dois anos de idade, solteiro, natural da Freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, declarou que:

 “após ter sido dado o alarme sobre o desaparecimento do sinistrado, correu até junto da margem e lançou-se à água, para participar nas buscas do corpo do companheiro. Mais declarou que houve impossibilidade da sua parte e de outros seus camaradas, nas buscas feitas na zona onde desapareceu o sinistrado em virtude da escuridão que se encontrava, da forte corrente das águas do rio e além disso por estas se encontrarem bastante turvas. Mais declarou que levou cerca de quarenta e cinco minutos dentro de água, com outros seus camaradas, tenteando detetar o corpo do desaparecido, esforço, aliás infrutífero. E dado que a coluna estava a ser flagelada na cauda e que havia possibilidade de sofrer emboscadas no regresso e dado também à adiantada hora, foi dada ordem para regressarem a quartéis. E mais não disse.”


Relatório final e Conclusões: Após ter ouvido as testemunhas, o alferes Calvário elabora o relatório final, tirando as seguintes conclusões:

RELATÓRIO:

"1) Que no retorno de uma operação a CAV 1484 teve de transpor um rio bastante caudaloso;

2) Que para o transpor teve-se de utilizar como apoio à tropa que o atravessava, uma corda, cujas extremidades se encontravam presas em ambas as margens, do mesmo;

3) Que em dada altura a referida corda se partiu, precisamente no momento em que se encontrava a transpor o rio, o soldado n.º 711/65, José Henriques Mateus;

4) Que o mesmo soldado se afundou após a corda ter quebrado:

5) Que elementos da companhia, seus camaradas, o tentaram socorrê-lo, atirando-se à água e procurando socorrê-lo;

6) Que se fizeram buscas, durante cerca de quarenta minutos, na zona do desaparecimento, imediatamente, procurando detetar o corpo, sem qualquer resultado;

7) Que as águas do respetivo rio se encontravam bastante turvas e corriam a grande velocidade;

8) Que o incidente se deu ao anoitecer e debaixo de mau tempo."

Conclusões:

"a) Factos provados:

1) Que no acidente não houve culpabilidade do sinistrado, nem de outrem. 

2) Que o sinistrado desapareceu tragado pelas águas do rio, após se ter partido a corda de apoio, na travessia. 

3) Que em virtude das infrutíferas buscas que se fizeram durante 40 minutos, devido a uma série de fatores como: má visibilidade, forte corrente nas águas do rio, adiantado da hora (anoitecer) e as águas do rio bastante turvas, não se conseguiu recuperar o corpo. 

4) Que em virtude do depoimento das testemunhas, concluo a morte do soldado nº 711/65, José Henriques Mateus. 

b) Factos não comprovados: Nenhum”.

Termo de entrega: a 24 de setembro de 1966 o alf mil José Rosa de Oliveira Calvário dá por terminado o Processo de Averiguações e entrega o Relatório final e as Conclusões do mesmo na Secretaria da Unidade, quartel em Catió, para o devido destino”.

Informação superior do comandante: a 20 de outubro de 1996 o Processo de Averiguações segue para conhecimento e decisão superior, com a informação do comandante do Batalhão.

“Informação, 1. O soldado nº 711/65, José Henriques Mateus, da CCAV 1418, foi tragado pelas águas do rio que atravessava, desapareceu e nunca mais foi encontrado; 2. Face às circunstâncias apresentadas concordo com a opinião do Oficial Averiguante que conclui pela morte do referido soldado; 3. Sou do parecer que o acidente deve ser considerado como ocorrido em serviço.

Quartel em Catió, 20 de outubro de 1966”



Parecer do Comando Militar do CTI da Guiné, em Bissau: a 2 de novembro de 1966, o QG/CTIG, através de ofício assinado pelo Comandante Militar, brigadeiro António Reymão Nogueira, emite a seguinte informação: Informação nos termos do Dec. 3ª da OE nº 6-1.ª Série, de 30 junho 66. “Sou de parecer que deve ser considerado em serviço” o desastre de que teria resultado a morte ao sol. 711/65, José Henriques Mateus, da CCAV 1418 a que se refere o presente processo”.

Fonte: adapt. de Jaime Bonifácio Marques da Silva, op. cit.,  2025


(Revisáo / fixação de texto: LG)


(Continua)

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Nota do editor LG:

Postes anteriores  da série > 

26 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26957: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942-1965), sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/1966) - Parte I: nota biográfica


4 de julho de 2025 Guiné 61/74 - P26983: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942-1965), sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/1966) - Parte III: notícia do funeral no jornal da terra, "Alvorada" (de 23/5/1965)

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26983: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942-1965), sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/1966) - Parte III: notícia do funeral no jornal da terra, "Alvorada" (de 23/5/1965)




Recorte de imprensa: notícia, que o Luís Graça  elaborou (tinha então  18 anos...) sobre  o funeral do sold apont morteiro José António Canoa Nogueira, de resto seu primo em 3º grau. Foi o primeiro lourinhanense a morrer,, em combate, no TO da Guiné, em Cufar, na madrugada de 23 de janeiro de 1965 (e não em Ganjola, como foi publicado  há 60 anos).

Fonte: Alvorada. (Lourinhã). 23 de maio de 1965


Foto (e legenda): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Continuamos a reproduzir, com a devida vénia,  alguns excertos  livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 165/167


(...) 4. Notas à margem do processo:   notícias e testemunhos


Transcrevo um testemunho acerca da morte do soldado José António Canoa Nogueira, do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (Poste P14858, de 10 de juho de 2015). O testemunho é de João Sacôto, ex-alf mil inf CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, ilha do Como e Cachil, 1964/66, que em correspondência com Luís Graça escreve:

(...) “Quanto ao teu primo José António Canoa Nogueira, natural de Lourinhã, soldado do pelotão de morteiros 942, CCAÇ 619, com sede em Catió, que tinha por alcunha o 'Bombarral' e que era muito amigo de um soldado do meu pelotão, o João Fernandes Almeida, de alcunha o 'Lourinhã', não morreu em Ganjola, mas sim, em combate, numa das operações para instalar as NT em Cufar,  da qual também fiz parte (CCAÇ 617) numa altura em que, estando a municiar um morteiro, saiu do abrigo para ir buscar granadas, foi atingido, na cabeça, por estilhaços de granada do IN. Ainda foi evacuado por helicóptero, mas infelizmente, não sobreviveu aos ferimentos”. (...)

Na verdade, este testemunho do alferes Sacôto coincide com o teor da participação do comandante de companhia (a CCAÇ 619) sobre o local e causas da morte do soldado Canoa.

Transcrevo, também, a notícia local no jornal "Alvorada" de 23/05/1965, da autoria de Luís Graça (...), aquando do funeral do soldado José António Canoa Nogueira, intitulado, “Os restos mortais de José António jazem finalmente na sua Terra Natal”:

(...) “Depois de transportados da Guiné para a metrópole a expensas dos seus companheiros de companhia que lhe votavam particular estima e amizade, os restos mortais do soldado José António Canoa Nogueira repousam finalmente no cemitério da sua Terra Natal.

O funeral, realizado no segundo domingo do corrente, constituiu uma homenagem pública à memória daquele de cuja presença e convívio a morte irremediavelmente nos separou, e um testemunho de apreço pelo sacrifício da sua vida. Nele se incorporaram, além da multidão anónima e inumerável, o senhor Presidente do Concelho, outras autoridades civis e militares e os bombeiros voluntários.

À chegada do autofúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor.

Antes da urna ser depositada no jazigo, os Bombeiros tocaram em continência, num último adeus e derradeiro tributo de homenagem ao soldado e Jovem Lourinhanense”. (Poste P6509, de 1 de junho de 2010).

Luís Graça, no seu blogue, a propósito da notícia da morte deste soldado, escreve o seu testemunho acerca do ambiente de dor, de luto, emoção, medo e estupefação por si experienciados:

“(…) o funeral de Nogueira, 4 meses depois (em maio de 1965), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos. “Se calhar o caixão vem cheio de pedras”. Da estupefação e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa, como eu. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Do calor, abrasador, do dia.” (...)

Também sobre a questão da solidariedade dos camaradas de companhia, que se cotisavam para enviar os restos mortais dos colegas para a metrópole, num tempo em que o Estado não assegurava a trasladação dos corpos, Luís Graça escreve:


(...) “Um facto desconhecido e insólito para mim, mas ao tempo revelador da grande solidariedade entre os camaradas de guerra, na época os restos mortais dos nossos soldados não eram embarcados para a Metrópole a expensas do Estado. No caso do Nogueira, foram os seus camaradas (do pelotão de morteiros e possivelmente também do batalhão) que se cotizaram para pagar, do seu bolso, o transporte via marítima da urna… (E, se calhar, a própria urna).


Creio que custava, o transporte por via marítima, qualquer coisa como 11 contos (equivalente hoje a mais de 5 mil  euros…) o que era muito dinheiro para a época. " (...)
 
 Luís Graça refere, ainda, a propósito da notícia e comentários acerca do funeral do Canoa e da publicação da sua carta endereçado ao diretor, escrita 13 dias antes de morrer (...), lembra que a Censura  escreveu ao Diretor do "Alvorada" interrogando-o acerca do motivo pelo qual o jornal não continuava a ir à censura:

“(…) não sei se foi depois disso (da notícia do funeral e dos meus comentários) que o diretor, padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar porque é que o jornal já não ia à censura há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mas arrogante e intimidatória que eu jamais vi em toda a minha vida. (Se o fascismo alguma vez existiu na minha Terra, na nossa Terra, então essa assinatura do censor-mor, ou de alguém dos seus esbirros era fascismo, puro e duro)”. (...)

  

O jornal publicava também, a seguir à notícia, uma carta, datada de 10 de Janeiro, endereçada ao director, e que fazia parte do  espólio do malogrado José António  (o jornal não chegara a recebê-la, fora entregue ao Luís Graça pelo pai).(A carta voltará a ser transcrita no livro "Não esqueceremos"..., na pág, 119). 
 

2. Um domingo do mato | por José António Canoa Nogueira

Aqui, Ganjolá, Guiné, 10-1-1965

Mesmo no sul da Guiné, pequeno destacamento militar presta continência à Bandeira Verde-Rubra que sobre o mastro fica brilhando ao sol. E que linda que é a nossa bandeira; e é tão alegre, tão garrida, só olhá-la nos faz sentir alegria e também emoção; alegria de sermos portugueses e emoção por estarmos cá longe para a defender. Embora assim perdida no mato, a bandeira, brilhando, afirma que aqui também é Portugal.

Em volta, meia dúzia de barracas verdes, o nosso aquartelamento, a única nota de civilização nesta imensa planície. 

Muito ao longe, quase perdidas no mato e no capim, algumas palhotas indígenas; de resto, tudo é solidão. Somos soldados de Infantaria e por isso o nosso trabalho é fazer operações em qualquer parte do mato.

Aqui não há escolas e as igrejas não têm paredes; o teto é o céu. Em toda a parte se reza e tudo nos incita à oração. Deus está em toda a parte e ouve-nos.

Hoje é domingo, dia de descanso, não se trabalha, mas distracções também não há. Alguns vão à pesca ou à caça; outros, deitados debaixo das enormes árvores, dormem e pensam nas suas terras e famílias distantes, mas pertinho do coração. 

Como são diferentes aqui os divertimentos nos domingos.

Dois soldados vão todos os dias à caça; por isso, fome não há. Temos carne com abundância, mas falta tanta coisa!... 

Ei-los que chegam com tenros cabritos e gazelas e logo enorme fogueira crepita alegremente. Esfolam-se os animais e lava-se a carne; a água não falta, embora para se beber seja preciso enorme cuidado. Prepara-se um espeto para se assar a carne. Espalha-se então o cheiro da carne assada pelo pequeno acampamento. Está a refeição preparada; troncos de árvores, caixotes vazios, servem de mesa e de cadeiras.

Todos se servem. A refeição é pouco variada: apenas carne assada e pão. O vinho também é pouco, mas dividido irmãmente dá para todos; que bem que sabe uma pinguita com este almoço!...

Bebi-se mais mas não há, paciência… O improvisado cozinheiro faz enormes quantidades de café. Todos enchemos os copos de alumínio e bebemos alegremente. Acaba a refeição; por fim, alguns macacos, meio domesticados, que por aqui andam, aproximam-se e reclamam a sua parte.

É assim um domingo no mato. Depois de explanar esta ideia, termino. Despeço-me com o mais ardente desejo de a todos vós abraçar brevemente, fazendo preces ao Senhor para que tenhais saúde e boa sorte. 

Vosso amigo que respeitosamente se subscreve, todo vosso.

José António Canoa Nogueira.
Soldado nº 2955/63
SPM 2058
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(Revisão / fixação de trexfo: LG)







Lourinhã > Cemitério local > 6 de maio de 2012 > Lápide funerária referente ao José António Canoa Nogueira (1942-1965), o primeiro militar lourinhanense a morrer em terras da Guiné, em 23/1/1965... Era sold ap mort Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/66). 

 Os seus restos mortais estão em jazigo de família, não no  talhão criado entretanto para os antigos combatentes (I Guerra Mnudial e Guerra Colonial). 

Fotos (e legenda) : © Luís Graça  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


30 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26968: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942- 1965) (sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619, Catió, 1964/ 1966) - Parte II: o Manuel Luís Lomba estava lá, em Cufar, em 23 de janeiro de 1965

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26968: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942- 1965) (sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619, Catió, 1964/ 1966) - Parte II: o Manuel Luís Lomba estava lá, em Cufar, em 23 de janeiro de 1965


1. Comentário do Manuel Luís Lomba ao poste P26957 (*):

Foto à esquerda: Manuel Luís Lomba: (i) ex-fur mil cav, CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66): (ii) autor de “A Batalha de Cufar Nalu” (Terras de Faria, Lda. 4755-204,
Faria, Barcelos, 2012); (iii) natural de Barcelos; (iii) natural de Barcelos,

O camarada lourinhanense José António Canoa Nogueira, apontador do morteiro 81, participante da Operação Tridente (Batalha do Como, jan -mar 64), foi alvo de (e mortalmente atingido por) uma granada de RPG, talvez a uns 20 metros de mim, nessa madrugada. 

Adido à CCav 703, pertencia á esquadra que o furriel Santos Oliveira foi instalar no nosso estacionamento em Cufar Nalu, no âmbito da Operação Campo, complementada com as Operações Alicate 1, 2 e 3, entre janeiro e março de 1965... 65 dias de vida à toupeira!...

O IN, comandado por Manuel Saturnino, atacou-nos em meia lua, cortou as primeiras fiadas de arame farpado, o José António ousava fazer fogo de olho e ouvido, orientado pelas chamas do seu armamento... O IN, por sua vez, orientou-se pela chama do seu morteiro, foi certeiro, e ele tombou com uma granada de RPG, eu ajudei a retirá-lo para o posto de socorros, uma tenda em ruínas da antiga fábrica de descasque de arroz.

O alferes miliciano médico João Sequeira já não pôde fazer nada por ele, á luz de um petromax. A vítima foi um moço corajoso.



Capa do livro do Manuel Luís Lomba: leiam-se as páginas 157-169, onde se descreve o ataque do PAIGG a Cufar, em 23 de janeiro de 1965, seis dias depois da sua sua ocupação pelas NT, Foi nessa madrugada que morreu o lourinhanense , sold ap mort, Pel Mort 942, José António Canoa Nogueira (era soldado, mão 1º cabo).

 

Mas o IN também também teve a sua paga, na retirada. A Companhia de Milícias, comandada pelo João Bacar Jaló e por Zacarias Sayeg (futuro capitão do MFA, assassinado após a independência) e o Grupo de Comandos "Os Fantasmas", de Maurício Saraiva, futuro comandante do capitão Salgueiro Maia, em Moçambique, no qual se distinguia o então primeiro cabo Marcelino da Mata e o nosso amigo furriel João Parreira, montaram-lhe uma emboscada de muito sucesso.... sanguinário.

Dos intervenientes, o capitão Fernando Lacerda, o dr. João Luís Sequeira, o furriel Santos Oliveira e o furriel 'comando' João Parreira, e outros indiretos, como os alferes João Sacoto e Carvalhinho estão vivos - e recomendam-se!

Aquele abraço!

sexta-feira, 27 de junho de 2025 às 10:51:00 WEST


(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26957: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942-1965), sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/1966) - Parte I: nota biográfica

sábado, 28 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26964: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (4): Cemitério Central do Mindelo: Talhão dos combatentes portugueses (Nelson Herbert / Luís Graça) - II (e útima) Parte

 


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Foto nº 21 e 21A


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério Municipal > Maio de 2025

Fotos: © Nelson Herbert  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagemn: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



1. Publicação das restantes fotos do Talhão da Liga (Portuguesa) dos Combatentes, no Cemitério Municipal do Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde,  enviadas no passado dia 25 de maio, pelo nosso grão-tabanqueiro Nelson Herbert, jornalista reformado da VOA - Voice of America, guineense de origem cabo-verdiana.

Sabemos que o talhão das "Forças Expedicionárias Portuguesas (1939-1945)" é constituído  por  68 campas, de militares mortos por doença ou acidente, na Iha de São Vicente (40) e na Iha do  Sal (28)(*).

A sigla G.A.C.A (fotos nº 14 e 16) quer dizer "Grupo de Artilharia Contra Aeronaves".

Na foto nº 21 pode ler-ser a seguinte inscrição:

"À memória do cirurgião-mor do exército L. L. Guibara,  falecido em 31 de agosto,  por  ocasião do aparecimento do cólera-morbo. Testemunho de gratidão dos habitantes da ilha de São Vicente. Em 1856".

Trata-se do tenente graduado médico do exército português, Henrique Leopoldo Lopes Guibara (Gibraltar, 1826-1856), reconhecido como  um médico-mártir devido ao seu falecimento  num surto de cólera (ou cólera-morbo, como se dizia então),  em 31 de agosto de 1856, na ilha de São Vicente, Cabo Verde.

Eis a informação que recolhemos de Manuel Brito-Semedo, no seu blogue "Esquina do Tempo" (em poste de 13 de agosto de 2020), 

(...) "No dia 23 de agosto de 1856, começou em São Vicente a epidemia da cólera-morbo, importada de um vapor procedente da Madeira trazendo a bordo doentes dessa moléstia. 

Faleceram 645 indivíduos, até ao dia 20 de setembro, estando nesse número o delegado de saúde, o cirurgião-mor do exército Henrique Guibara, que morreu a 31 de agosto, ficando a ilha sem um dos principais responsáveis pela gestão da crise sanitária." (...)

Na altura São Vicente não teria mais do que 1,4 mil habitantes. (Na segunda metade do séc. XIX, Mindelo  começa a desenvolver-se,  graças sobretudo à sua atividade portuária: o porto da Baía Grande torna-se um ponto estratégico para o reabastecimento de navios a carvão; como imigrantes das ilhas próximas, como Santo Antão e São Nicolau, reforça-se a população local; no início da II Guerra Mundial, estima-se a população em 15 mil; segiundo o censo de 2010, teria mais de 70 mil.)

(...) "Conforme Henrique de Santa-Rita Vieira, no seu livro 'História da Medicina em Cabo Verde' (1999), como testemunho de gratidão da ilha de São Vicente, foi construído um mausoléu em sua homenagem, em 1856 (hoje desaparecido, aliás, como o cemitério, que ficava situado na Chã de Cemitério)." (...)

(...) Henrique Leopoldo Lopes Guibara poderá pertencer à leva de judeus que vieram para Cabo Verde no século XIX, provenientes do enclave inglês (de Gibraktar) e de Marrocos.

Um decreto datado de 10 de junho de 1851 nomeou o cirurgião civil Henrique Leopoldo Lopes Guibara para o serviço do Exército, passando a ser 'cirurgião ajudante', colocado no Batalhão de Caçadores n. º1.

Um novo decreto de 31 de agosto de 1854 determinou que o Dr. Henrique Guibara passasse a servir na ilha de São Vicente, por tempo de 6 anos e, para o efeito, foi promovido a 'cirurgião mor' do exército. Em março de 1855, foi nomeado Delegado de Saúde dessa ilha." (...)


Tem nome de rua no Mindelo.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26957: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (1): José António Canoa Nogueira (1942-1965), sold ap mort, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/1966) - Parte I: nota biográfica



José António Canoa Nogueira (1942-1965): um dos 20 militares lourinhanernses  mortos durante a guerra do ultramar / guerra colonial, o primeiro a morrer na Guiné (no total, morreram 9 em Angola, 6 na Guiné e 5 em Moçambique).


Lourinhã > Cemitério Municipal > 25 de agosto de 2013 > Pedra tumular do José António Canoa Nogueira (1942-1965), o primeiro lourinhanense a morrer na Guiné, em Cufar, Catió, região de Tombali. em combate. Foi no dia 23 de janeiro de 1965. Era soldado apontador de morteiro, Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/66). Era primo, em 3º grau, do nosso editor Luís Graça, tal como o Arsénio Marques Bonifácio da Silva, morto em Angola, em 1972, era primo (direito) do Jaime Bonifácio Marques da Silva.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lourinhã > Salão Nobre da Câmara Municipal > 21 de junho de 2025 > Da esquerda para a direita, o presidente da câmara (entidade que editou o livro, a irmã, Bia, do José  António Canoa Nogueira (1942-1965), o primeiro lourinhanense a morrer na Guiné, em combate (em 23 de janeiro de 1965), e o autor do livro "Não esquecemos...",  Jaime Bonifácio Marques da Silva (ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72). A Bia, viúva e reformada, vive no Canadá e na Lourinhã. A outra irmã, Esmeralda, vive na Lourinhã.


Fotos: Página do Facebook do Municipio da Lourinhã (com a devida vénia...)

Seleção e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



I. Foram seis os militares lourinhanenses que morreram no CTIG, entre 1965 e 1973, aqui listados pela seguinte ordem (ano da morte):

  • José António Canoa Nogueira (1942-1965) (morte  por ferimentos em combate)
  • José Henriques Mateus (1944-1966) (desaparecido em combate)
  • Albino Cláudio (1946- 1968) (morte por acidente com arma de fogo)
  • Alfredo Manuel Martins Félix (1948-1970) (morte por acidenete de viação)
  • Carlos Alberto Ferreira Martins (1948-1971) (morte por ferimentos em combate)
  • José João M. Agostinho (1951-1973) (morte por ferimentos em combate)

II. Vamos dedicar este primeiro poste ao José António Canoa Nogueira (Casal da Pedreira, Lourinhã, 11.01.1942 - Cufar, Catió, 23-01-65) (*)


1. Registo de nascimento

O José António Canoa Nogueira nasceu a 11 de janeiro de 1942, às 19 horas, no Casal da Pedreira, freguesia de Lourinhã. Filho legítimo de José Nogueira, de 20 anos, casado e fazendeiro, e de Rosalina da Conceição, 22 anos, casada, doméstica, ambos naturais da freguesia e concelho da Lourinhã e domiciliados no Casal da Pedreira (...).

A declaração do registo de nascimento foi feita pelo pai, às dez horas e cinquenta minutos do dia 9 de fevereiro de 1942 O registo foi assinado pelo pai e duas testemunhas e lavrado pelo conservador João Catanho de Menezes Júnior. (...)

 (Observação - na época, o registo de um filho custava 6 escudos de emolumentos mais 3 escudos de selos, uma exorbitância, já que um trabalhador rural não devia ganhar mais de que 20 escudos por dia, valor que corresponderia, a preços de hoje, a  qualquer coisa como 12 euros, LG).


2. Registo militar

Recenseamento: foi recenseado no ano de 1962, sob o número 68, e alistado em 9 de julho de 1962. Solteiro, com a profissão de agricultor,  tinha como habilitações literárias a 4.ª classe.

Inspeção militar: a 14 de fevereiro de 1963 na DRM 5. Tinha 1.65 de altura, 62 kg de peso e, em resultado da inspeção, foi “apurado para todo o serviço militar”. Atribuíram-lhe o número mecanográfico 63-E-78069.

Colocação durante o serviço: a 31 de julho de 1963 é incorporado como recrutado no RI 5, Figueira da Foz, passando a fazer parte do Regimento e da 2ª Companhia, sendo-lhe atribuído o nº 2530/63; fez o Juramento de Bandeira a 24 de setembro de 1963 e é transferido a 29 de setembro para o RI 7, Leiria, a fim de tirar a especialidade de Apontador (AP) de Morteiro; a 17 de novembro 1963 fica Pronto da Escola de Recrutas com a especialidade de AP Morteiros; a 17 de novembro de 1963 foi transferido para o RI 1, Amadora.

Comissão de serviço na Guiné

Embarque: a 8 de janeiro de 1964 embarca para o CTIG, fazendo parte do Pelotão de Morteiros nº 942, subunidade da CCS/BCAÇ 619, para cumprir uma comissão, por imposição de serviço.

Desembarque: a 15 de janeiro de 1964 desembarca em Bissau, desde quando conta 100% do aumento do tempo de serviço.

Data do falecimento: 23.01.1965.

Causa da morte
: ferimento em combate.

Local do acidente: Cufar, Catió, região de Tombali, sul da Guiné.

Abatido ao efetivo: a 23 de janeiro de 1965 foi abatido ao efetivo da Companhia, data em que faleceu em combate (...).

Despacho Superior: em 1 de julho de 1965, por despacho, foi considerado como ocorrido por motivo de serviço o acidente sofrido do qual lhe resultou a morte (...).

Registo disciplinar: condecorações e louvores

Medalha de segunda classe de comportamento (artº 188.º do RDM), atribuída em 31.07.1963


3. Processo de averiguações ao acidente: anotações e contexto

Participação superior do acidente: a 1 de fevereiro de 1965 o Comandante da CCAV 703, sediada em Cufar, cap cav Fernando Manuel dos Santos Lacerda, participa superiormente “que no dia 23 de janeiro de 1965, pelas 02.30 horas, foi ferido em combate durante o ataque levado a efeito pelo inimigo ao aquartelamento de Cufar o soldado nº 2955/63, José António Canoa Nogueira, do Pel Mort nº 942 do BCAÇ 619,  pelo que foi imediatamente transportado ao posto de socorros da Companhia onde ficou em tratamento”.

Instrução do processo de averiguações: na sequência da participação do cmdt de companhia, o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) ordena que se instaure “processo por falecimento em combate nos termos da Instrução 15ª das Instruções para execução do Decreto-Lei 28404, de 31 dez 37, respeitante ao soldado nº 2955/63,  José António Canoa Nogueira, do Pel Mort 942 da CCS/BCAÇ 619”.

Certidão de óbito e relatório médico: estes dois documentos fazem parte do processo de averiguações e atestam sobre as causas da morte do soldado José António Canoa Nogueira.

(i) no primeiro documento, a Certidão de Óbito assinada a 23 de janeiro de 1965, o alferes miliciano médico, João Luís da Silva Sequeira, declara “que o soldado José António Canoa Nogueira residia em Catió, faleceu às 3 horas do dia 23 de janeiro de 1965, que a duração da doença se prolongou por 15 minutos, causada por traumatismo craniano com perda de massa encefálica, em estado terminal de coma”;

(ii) segundo documento: do Relatório Médico assinado a 1 de fevereiro 1965 pelo mesmo médico, consta que “o soldado José António Canoa Nogueira foi ferido durante o ataque ao estacionamento de Cufar e presente no Posto de Socorro, no qual se verificou as seguintes lesões: 1) derramamento da calote craniana na região parieto-occipital esquerda numa extensão de cinco centímetros; 2) perda de massa encefálica pelo citado ferimento; 3) estado de coma. Em virtude da gravidade das lesões veio a falecer neste Posto de Socorros, após cerca de 15 minutos de ter dado entrada”.

Abate ao efetivo: a 5 de fevereiro 1965 o alferes Manuel Henriques de Oliveira, Chefe da Secretaria do BCAÇ 619, sediado em Catió, divulga a cópia do artº 3.º da OS (Ordem de Serviço) 12, do BCAÇ 619 na qual se “confirma que o soldado n.º 2955/63, José António Canoa Nogueira, do Pel Mort 942/CCS, faleceu em 23 do mês findo, pelas 02h 45, por motivos de ferimento em combate, foi abatido ao efetivo do seu Pelotão e desta Unidade desde a mesma data”.

Ministério do Exército considera o acidente morte em combate: em 20 de abril de 1965 o Ministério do Exército, através do Comando Territorial da Guiné em Bissau ( Informação nº 1865/E do Serviço de Justiça e Disciplina)  informa por ofício assinado pelo Chefe de Serviço, capitão Raul Santos,  que: “i) em 23 de janeiro, faleceu, vítima de ferimentos recebidos em combate, o soldado nº 2955/63, José António Canoa Nogueira, do Pel Mort 942 do BCAÇ 619; ii) o processo foi organizado sumariamente, nos termos da Determinação nº 15 da OS nº 12, 1ª Série de 1961, pág. 639; iii) em presença dos elementos supra, este Serviço é de parecer que: a) o acidente deve ser considerado em serviço; b) de harmonia com a Determinação VII da O.E. nº 3, 1ª Série, de 1941, e aditamento constante da circular nº 18246, Pº 26, de 20.09.1957 o processo deve subir à DSP para os devidos efeitos. Quartel-General em Bissau, 20 de abril de 1965”.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Nota do editor LG:

(*) Excertos do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 163/165.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça



Capa do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã, 2025, 235 pp, il, ISBN: 978-989-95787-9-1) (*)




Nota biográfica di autor



Índice da obra



I. Texto do essencial da apresentação, por Luís Graça, do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos...",  Lourinhã, 21 junho 2025, 11h00 (**)



1. As minhas saudações lourinhanenses ao Jaime,e aos restantes membros da mesa.
A todos os demais antigos combatentes. Aos familiares
dos jovens lourinhanenses mortos na guerra do ultramar / guerra colonial que se voltam a homenagear com este livro. A todos os demais presentes nesta sala que é também, fisica e simbolicamente, a casa do poder autárquico democrático.

Já prefaciei e apresentei cerca de um dezena de livros de memórias, ficção e poesia, escritos por antigos combatentes da Guiné.

Mas este livro do nosso Jaime tem um particular significado para mim. Acompanhei o seu "making of". E fala da nossa terra e e da nossa gente. Foram vinte os nossos conterrâneos, mortos na guerra do ultramar / guerra colonial. Já homenageados na pedra, em monumento inaugurado em 2005.

Hoje este livro traz-nos mais informação, proveniente dos arquivos militares e outras fontes, sobre a vida e a morte destes bravos lourinhanenses. Traz a sua foto, e detalhes sobre a sua vida civil e militar, incluindo as circunstâncias em que morreram, 11 em combate e 9 por acidente ( incluindo com armas de fogo).

Alguns estavam mais próximos de nós, pela idade, o parentesco, a vizinhança, etc.

Por exemplo, o Arsénio Bonifácio Marques da Silva, do Seixal, era primo direito do Jaime. Morreu em Angola em 1972. Numa mina. Ou o José Henriques Mateus,da Areia Branca, seu colega de escola: desapareceu, no decurso de uma operação, no sul da Guiné, em 1966, ao atravessar o rio Tompar. O corpo nunca foi econtrado.

Já o José António Canoa Nogueira, o primeiro lourinhanense a morrer na Guiné, em combate, em 1965, era meu parente. O seu pai e a minha mãe eram primos direitos. As nossas avós eram irmãs. Ele tinha mais cinco anos do que eu. Não éramos íntimos mas o seu funeral, três meses e meio depois, tocou-me profundamente.

Eu tinha 18 anos e na altura, eu era o redactor do nosso jornal "Alvorada"... Fui eu próprio que fiz a notícia do seu funeral. E publiquei uma das últimas cartas que ele escreveu, dirigida ao diretor. Foi-me entregue pelo pai, um homem destroçado. Fazia parte do seu espólio.

Já não chegou a tempo de ser enviada pelo SPM (Serviço Postal Militar). O Nogueira morreria 13 dias depois, em em combate, com um estilhaço de morteiro na cabeça.

Em boa hora o Jaime transcreve no seu livro, na página 119, esta carta singela e comovente. O Nogueira chamou-lhe "Um domingo do mato" (sic).

Escrevi, no jornal, em 23/5/1965, há 60 anos (!) que o texto revelava muito da solidão, da saudade e da sensibilidade dos nossos militares em África.

Os restos mortais do Nogueira, em urna de chumbo, foram transportados, de barco, a expensas não do exército mas dos seus camaradas. Onze contos. 5 mil euros a preços de hoje.

Só a partir de 1968 o Estado chamou assim esse encargo, o de trasladar para a metrópole os restos mortais dos seus soldados.

A cerimónia fúnebre, na qual se incorporou "uma multidão anónima e inumerável" (sic), para além das autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários, foi das mais emocionantes que eu já vi em vida:

(...) À chegada do autofúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor. (...)

2. Feita esta incursão pelas minhas própias memórias, deixem-me fazer duas perguntas a que os próprios leitores deste livro devem poder responder no final, e a quem o autor não deixa de dar a sua própria resposta:

(i) Qual o sentido destas mortes ?

(ii) Qual a dimensão desta guerra e o preço que tivemos de pagar, nós, lourinhanenses, a nossa terra ?


Permitam-me que vos mace com alguns números que, às s vezes, valem mais do que mil palavras.

Estas mortes não podem ter sido em vão. A nossa participação na guerra também não pode ser vista como totalmente absurda. Afinal “soubemos fazer a guerra e a paz”.

Servimos a Pátria, que está acima dos regimes políticos. Não desertámos. Pagámos o nosso imposto de sangue. Reafirmámos o direito de continuar a ser portugueses e a viver em Portugal.

E mais: como militares, assegurámos as condições que permitiriam ao regime da época encontrar soluções politicas para uma guerra que nunca poderia ter uma solução estritamente militar.

Para além do testemunho pessoal sobre a sua própria vivência da guerra, o Jaime reconstitui as histórias de vida de 20 combatentes da Lourinhã que não sobreviveram para as poder contar.

Ficamos a conhecer melhor pelo menos quem foram os nossos conterrâneos que pagaram com a vida o brutal esforço de guerra (militar, logístico, demográfico, financeiro, económico, social, político, diplomático, etc.) que o país fez entre 1961 e 1975.

Estima-se em c. 25 mil milhões de euros, a preços de hoje, o custo da guerra. São quase 8,8% do nosso PIB nominal

Mas a perda e vida e o sofrimento físico e psíquico não mais difíceis de contabilizar em termos de custos, diretos, indiretos e ocultos.

Reforço o que o Jaime escreveu no capítulo Um: a guerra colonial (1961/75) foi seguramente o acontecimento mais marcante da nossa Pátria no Séc. XX.

Em rigor dever-se-ia falar em guerras coloniais, e que remontam à expansão colonial europeia, na sequência da Conferência de Berlim, em 1884/85.

A última foi mais do que uma sucessão de operações militares: implicou também, paralelamente, uma aposta, se bem que tardia, no desenvolvimento socioeconómico do “ultramar português”.

Cedo se percebeu (até pelo exemplo de outras potências colonizadoras como a Inglaterra, a França e a Holanda) que aquela guerra não podia ser ganha pelas armas.

O seu desfecho levou não só à restauração da democracia em Portugal, com o 25 de Abril de 1974, mas também ao desmantelamento do velho império colonial e ao aparecimento de novas nações lusófonas, mais de cento e cinquenta anos depois da independência do Brasil (em 1822).

Resta saber se fizemos (ou soubemos fazer) o luto de tantas perdas (físicas e simbólicas).

Já no passado, a Lourinhã tinha pago a sua quota-parte do "imposto de sangue de sangue, suor e lágrimas" nas guerras que direta ou indiretamente a tocaram, desde pelo menos as invasões napoleónicas.

Mais próximo de nós, não posso esquecer o caso dos nossos 4,6 mil prisioneiros na Índia (1961/62) (dos quais 13 eram lourinhanenses).

Mas a Lourinhã, desde a batalha do Vimeiro, em 1808, e as guerras civis oitocentistas, não conheceu felizmente a brutalidade da guerra à sua porta.

Estas de que aqui falamos,  passaram-se a milhares de quilómetros de distância: 4 mil na Guiné, 8 mil em Angola, 12 mil / Moçambique, 8,3 mil na India (via Canal Suez) etc.

Quantos militares (e/ou civis) nossos conterrâneos, mesmo os que não tenham morrido nestas guerras e expedições, pagaram o "imposto de sangue, suor e lágrimas" ?

Será bom não esquecê-los, incluindo as famílias dos militares mobilizados, a população civil que "retornou" a Portugal, na sequência da descolonização (mais de meio milhão), etc.

Mas restringindo-nos ao período da guerra do ultramar / guerra colonial, podemos avançar com alguns números:

Estima-se em cerca de 1300 o número de mobilizados, da nossa terra

No total foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique cerca de 800 mil militares portugueses (número no qual se incluem também cerca de 30% de oriundos do recrutamento local, ou sejam, africanos como os meus soldados).

Em 1970, a população portuguesa era de 8,6 milhões e a da Lourinhã, não chegava aos 20 mil.

Portanto, 65 lourinhanenses em cada mil foram à guerra. E morreram 20 (11 por ferimentos em combate e 9 por acidente e outras causas), o que corresponde a uma taxa de letalidade de 1,56.

No total, morreram (por todas as causas) 10,4 mil militares portugueses, dos três ramos das Forças Armadas (incluindo os do recrutamento local).

E pelo menos 60 dos nossos militares lourinhanenses foram feridos gravemente. No cômputo geral houve 10 feridos (dos quais 3 graves) por cada morto.

O total de feridos da guerra foi de cerca de 117 mil.

Houve cerca de 28 mil feridos evacuados para os hospitais, metade dos quais metade foram classificados como deficientes.

Nestas baixas todas, para além das mortais, há lourinhanenses. Não sabemos quantos nem quem.

Também sabemos que um 1/5 dos mancebos em idade militar, em todo o país, não se apresentaram para cumprir o serviço militar. Estamos a falar de um total de mais 220 mil. Cerca de 500 seriam lourinhanenses.

Os números podem discriminar-se do seguinte modo:  faltosos (c. 202 mil), refratários (c. 
20 mil), desertores (c. 9 mil) (também os houve na nossa terra).

Neste número de faltosos e refratários estão muitos emigrantes. E é bom não esquecer que ao longo deste período (1961/74) a emigração em Portugal ultrapassou o milhão e meio.

Na década de 60, a Lourinhã perdeu cerca de 3,3 mil habitantes (c. 15%).

1300 homens em África foram também 1300 famílias. Fora o meio milhar que escapou a guerra.

Milhares de lourinhanenses (familiares, vizinhos e amigos) viveram a guerra à distância, com os oceanos Atlântico e Índico de permeio.

Dez toneladas de correspondência (aerogramas, cartas, jornais e revistas, encomendas, etc.) circulavam todos os dias através do Serviço Postal Militar, criado em 1961.

Calculamos, por baixo, que 250 milhões de aerogramas escritos, uns de cor amarela (reservados aos militares) e outros de cor azul (reservados às famílias), terão circulado num sentido e no outro. Sem falar das cartas pelo correio normal. Os aerogramas eram distribuídos pelo Movimento Nacional Feminino (mais de 30 milhões de impressos por ano).

À Lourinhã, com uma população a rondar os 20 mil, caberão c. 600 mil aerogramas  durante a guerra, enviados e recebidos pelos militares, famílias e amigos.

3. Passo o desafio à professora Leonor Bravo, a quem sugeri, através do Jaime, que falasse do direito e do dever de memória dos combatentes e da sua comunidade (incluindo a escola, professores, alunos, pais, avós) .

Mais de meio século depois (e quando mais de um terço dos antigos combatentes já terá morrido), não é tarde ainda para que a nossa comunidade (incluindo as escolas e as autarquias) se empenhe na recolha e salvaguarda de todo a documentação dessa época, com destaque para os álbuns fotográficos e a correspondência,

O Jaime dedica o seu livro ao seu neto David e a todos os netos dos antigos combatentes bem como aos cerca de 3,5 mil estudantes do concelho.

Há intencionalmente aqui uma “passagem de testemunho” e uma partilha de memória intergeracional.

4. Uma nota final: a guerra tem sempre um preço muito alto para qualquer combatente ou para quem a sofreu, a população. A guerra, e as suas múltiplas histórias, com h pequeno e com H Grande, as suas sequelas, os seus fantasmas, as suas memórias, as suas perplexidades... nunca acaba, mesmo quando morre o último combatente.

O músico e cantor Diogo Picão, que se orgulha das suas raízes lourinhanenses, diz isso, magistralmente:

“O meu tio (refere-se ao materno) fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito.

" O meu outro tio (refere-se ao paterno) nunca me falou da guerra, mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites”

Caros amigos e conterrâneos, leiam o livro e falem dele aos vossos netos: a palavra é agora do Jaime, que legitimamente reivindica, para ele e todos os demais antigos combatentes, o direito de não ficar na “vala comum do esquecimento”.

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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26947: Agenda cultural (890): Lançamento do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial": Lourinhã, 21 de junho de 2025: fotogaleria

(**) Último poste da série > 20 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26943: Notas de leitura (1810): A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira (Mário Beja Santos)