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segunda-feira, 8 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14712: Notas de leitura (723): "Cabra Cega": tem valor acrescentado, é uma narração da guerra feita por quem lá andou... Aivecas fomos todos nós (Jorge Ribeiro)


Matosisnhos > Biblioteca Municipal Florbela Espanca > 3 de junho de 2015 >  Sessão de lançamento do livro Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial, de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo literário de A. Marques Lopes) (Lisboa, Chaido Editora, 2015): Aspeto parcial da mesa: da esquerda para a direita, o escritor Jorge Ribeiro (que fez a apresentação do livro) e o nosso camarada A. Marques Lopes. 

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2015): Todos os direitos reservados


1. Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial: apresentação por Jorge Ribeiro (*)


[Texto enviado por A. Marques Lopes, no passado dia 6, para publicação no blogue]


Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial é um livro surpreendente.
 
Há muitos livros de memórias. A maioria são relatos muito pessoais, memórias exaltantes, inúmeras referências a experiências de camaradagem, de entreajuda na picada, cenas no aquartelamento, piadas ou anedotas picada fora, saudades da família, das namoradas. Mas quanto a cenas de guerra - muito poucas. De resto, era assim que escreviam os aerogramas e as cartas à família, salvando-as do sobressalto.

Mas é raro um testemunho como Cabra Cega, porque está dentro da guerra. É a guerra vivida, sofrida em direto. E isto tem muito valor. Como se não bastasse, também fala do inimigo.

A maioria do milhão e tal que combateu nas colónias veio afetada, sofreu e ainda sofre duma doença que não existia no catálogo português – DPTS, a síndrome pós-traumático do stress de guerra.

Traumas, trazer recordações recalcadas, libertar emoções sofridas.

Ler, conversar, ver filmes, ou escrever. No caso do autor de Cabra Cega, ele faz a sua própria catarse. E fá-la pormenorizadamente, completa.

António Aiveca, a figura central da obra, viveu uma juventude diferente. Ingressou num seminário, e a diferença é a educação. Como a história dele é cronológica, o início do livro retrata o sofrimento do futuro padre: aceitar as ordens superiores e os sacrifícios, não se queixar de nada, obedecer ao chamamento de Deus, amar o martírio e cultivar permanentemente a obediência.

É a primeira parte do Cabra Cega, muito bem explicada, pois se entendermos isto compreenderemos facilmente todo o livro. Isto é, o autor traça ao mesmo tempo o quadro das contradições da religião, de tratamento frontal, que infalivelmente vão por fim ao tal chamamento. E do seminário para o quartel, quando Deus menos espera, é um tiro.

A partir daqui é a via sacra de qualquer futuro combatente: as peculiaridades da recruta, a especialidade, a primeira colocação, a ordem de mobilização, o embarque … e a chegada a Bissau. Instalação no mato e primeira operação. E as contradições sempre presentes no relato de vida. Os soldados a caírem como tordos e a reflexão sempre presente: então Deus deixa-nos morrer assim, eu que não tenho nada a ver com isto… nem isto é meu, nem eu quero isto para nada!

A segunda parte do livro torna-se, assim, concisa e não poucas vezes arrebatadora. Porquê? Porque para quem não foi à guerra pode ter a certeza que se passou assim. Isto foi verdade. Para quem lá esteve, o autor ajuda a fazer a catarse. Haverá sempre lugar para livros como Cabra Cega.

Dois terços da obra, praticamente, são diálogos. É a fórmula ideal para nos fazer reviver tudo a cada palavra escrita. É um processo que o autor utiliza muito bem, que dá para o elogio e a crítica – a opinião.

A narração de coisas por vezes terríveis (a guerra é uma coisa terrível) mas adornada pelo sistema político, o regime que enquadrava a guerra colonial: o falso patriotismo, a caridade para com o soldadinho coitadinho que ficou sem uma perna, o ter cuidado naquilo que se diz, a rádio que transmitia infalivelmente o futebol e os fados para aquecer os corações, lá longe. «Anda tudo a distrair-me», descobre o Aiveca, um belo dia.

Partilhar a realidade. Descrever as cenas mais dramáticas. Experimentar o pânico, bastava pensar Os Turras estão a ver-nos! Constatar que a preparação que nos deram não tinha nada a ver com o que nos confrontamos. A imagem dos mortos que nunca mais se esquece. O chico do bar de oficiais a dizer O´ nosso alferes não pode estar aí sentado de camuflado – suja o sofá. O Ferreira que se deitou na picada e se recursou a andar mais. O reencontro no mato de camaradas da…cidade da Metrópole – a confraternização mas também as rivalidadesinhas. Os que acarretam do mato o ferido, às costas, e ele morre à chegada.

Cabra Cega tem valor acrescentado. É uma narração da guerra feita por quem lá andou. O Aiveca é protagonista e testemunha. E isto é uma garantia - sei do que falo. Ninguém conta o dia a dia da guerra como nós, os que lá andamos. Todos, ou quase todos, ver-se-ão ao espelho ao ler Cabra Cega - do Seminário para a Guerra Colonial.

O Aiveca é o alter-ego do João Gaspar Carrasqueira. O João Gaspar Carrasqueira é o alter-ego do António Marques Lopes. Aivecas fomos nós todos!

Jorge Ribeiro Biblioteca Florbela Espanca / 3 de Junho 2015 (**)


2. Nota sobre o apresentador, Jorge Ribeiro,  jornatlista e escritor, que também foi  combatente na guerra colonial, em Moçambique:

Jorge Ribeiro nasceu no Porto em 1949. Jornalista, começou a escrever no semanário "Actualidades", no "Norte Desportivo", e a fazer rádio nos Emissores do Norte Reunidos (1969). Na tropa fez a  especialidade de Fotografia e Cinema. Foi mobilizado para Moçambique. Regressou a 24 de Abril de 1974.

De regresso à vida civil, continou a dedicar-se ao jornalismo e à rádio. Estudou jornalismo em Paris e em Praga.  Em 1978 foi trabalhar para o "JN", onde foi chefe de redacção.  Escreveu livros inspirados na sua experiência como repórter da guerra colonial: títulos como Capital Mueda e Marcas da Guerra Colonial continuam a merecer reedições

Centenas de artigos na imprensa, durante anos, reflectem uma investigação contínua da História do Colonialismo Português. É nesse contexto que surge a história do último tabu do Império: S. João Batista D’Ajudá – o seu primeiro romance na Arca das Letras.

Autor e realizador do único programa da rádio portuguesa produzido até hoje sobre os 13 anos de guerra em Angola, Guiné e Moçambique («Noites de África» / Rádio Press 1992-93), Jorge Ribeiro foi director de quatro estações de rádio,  e fez televisão durante 15 anos. Foi presidente do TEP (Teatro Experimental do Porto), fundador do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), e secretário-geral da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto

(Fonte: Arca das Letras e Wook, adaptação livre, com a devida vénia)