Matosisnhos > Biblioteca Municipal Florbela Espanca > 3 de junho de 2015 > Sessão de lançamento do livro Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial, de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo literário de A. Marques Lopes) (Lisboa, Chaido Editora, 2015): Aspeto parcial da mesa: da esquerda para a direita, o escritor Jorge Ribeiro (que fez a apresentação do livro) e o nosso camarada A. Marques Lopes.
Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2015): Todos os direitos reservados
1. Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial: apresentação por Jorge Ribeiro (*)
[Texto enviado por A. Marques Lopes, no passado dia 6, para publicação no blogue]
Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial é um livro surpreendente.
Há muitos livros de memórias. A maioria são relatos muito pessoais, memórias exaltantes, inúmeras referências a experiências de camaradagem, de entreajuda na picada, cenas no aquartelamento, piadas ou anedotas picada fora, saudades da família, das namoradas. Mas quanto a cenas de guerra - muito poucas. De resto, era assim que escreviam os aerogramas e as cartas à família, salvando-as do sobressalto.
Mas é raro um testemunho como Cabra Cega, porque está dentro da guerra. É a guerra vivida, sofrida em direto. E isto tem muito valor. Como se não bastasse, também fala do inimigo.
A maioria do milhão e tal que combateu nas colónias veio afetada, sofreu e ainda sofre duma doença que não existia no catálogo português – DPTS, a síndrome pós-traumático do stress de guerra.
Traumas, trazer recordações recalcadas, libertar emoções sofridas.
Ler, conversar, ver filmes, ou escrever. No caso do autor de Cabra Cega, ele faz a sua própria catarse. E fá-la pormenorizadamente, completa.
António Aiveca, a figura central da obra, viveu uma juventude diferente. Ingressou num seminário, e a diferença é a educação. Como a história dele é cronológica, o início do livro retrata o sofrimento do futuro padre: aceitar as ordens superiores e os sacrifícios, não se queixar de nada, obedecer ao chamamento de Deus, amar o martírio e cultivar permanentemente a obediência.
É a primeira parte do Cabra Cega, muito bem explicada, pois se entendermos isto compreenderemos facilmente todo o livro. Isto é, o autor traça ao mesmo tempo o quadro das contradições da religião, de tratamento frontal, que infalivelmente vão por fim ao tal chamamento. E do seminário para o quartel, quando Deus menos espera, é um tiro.
A partir daqui é a via sacra de qualquer futuro combatente: as peculiaridades da recruta, a especialidade, a primeira colocação, a ordem de mobilização, o embarque … e a chegada a Bissau. Instalação no mato e primeira operação. E as contradições sempre presentes no relato de vida. Os soldados a caírem como tordos e a reflexão sempre presente: então Deus deixa-nos morrer assim, eu que não tenho nada a ver com isto… nem isto é meu, nem eu quero isto para nada!
A segunda parte do livro torna-se, assim, concisa e não poucas vezes arrebatadora. Porquê? Porque para quem não foi à guerra pode ter a certeza que se passou assim. Isto foi verdade. Para quem lá esteve, o autor ajuda a fazer a catarse. Haverá sempre lugar para livros como Cabra Cega.
Dois terços da obra, praticamente, são diálogos. É a fórmula ideal para nos fazer reviver tudo a cada palavra escrita. É um processo que o autor utiliza muito bem, que dá para o elogio e a crítica – a opinião.
A narração de coisas por vezes terríveis (a guerra é uma coisa terrível) mas adornada pelo sistema político, o regime que enquadrava a guerra colonial: o falso patriotismo, a caridade para com o soldadinho coitadinho que ficou sem uma perna, o ter cuidado naquilo que se diz, a rádio que transmitia infalivelmente o futebol e os fados para aquecer os corações, lá longe. «Anda tudo a distrair-me», descobre o Aiveca, um belo dia.
Partilhar a realidade. Descrever as cenas mais dramáticas. Experimentar o pânico, bastava pensar Os Turras estão a ver-nos! Constatar que a preparação que nos deram não tinha nada a ver com o que nos confrontamos. A imagem dos mortos que nunca mais se esquece. O chico do bar de oficiais a dizer O´ nosso alferes não pode estar aí sentado de camuflado – suja o sofá. O Ferreira que se deitou na picada e se recursou a andar mais. O reencontro no mato de camaradas da…cidade da Metrópole – a confraternização mas também as rivalidadesinhas. Os que acarretam do mato o ferido, às costas, e ele morre à chegada.
Cabra Cega tem valor acrescentado. É uma narração da guerra feita por quem lá andou. O Aiveca é protagonista e testemunha. E isto é uma garantia - sei do que falo. Ninguém conta o dia a dia da guerra como nós, os que lá andamos. Todos, ou quase todos, ver-se-ão ao espelho ao ler Cabra Cega - do Seminário para a Guerra Colonial.
O Aiveca é o alter-ego do João Gaspar Carrasqueira. O João Gaspar Carrasqueira é o alter-ego do António Marques Lopes. Aivecas fomos nós todos!
Jorge Ribeiro Biblioteca Florbela Espanca / 3 de Junho 2015 (**)
Mas é raro um testemunho como Cabra Cega, porque está dentro da guerra. É a guerra vivida, sofrida em direto. E isto tem muito valor. Como se não bastasse, também fala do inimigo.
A maioria do milhão e tal que combateu nas colónias veio afetada, sofreu e ainda sofre duma doença que não existia no catálogo português – DPTS, a síndrome pós-traumático do stress de guerra.
Traumas, trazer recordações recalcadas, libertar emoções sofridas.
Ler, conversar, ver filmes, ou escrever. No caso do autor de Cabra Cega, ele faz a sua própria catarse. E fá-la pormenorizadamente, completa.
António Aiveca, a figura central da obra, viveu uma juventude diferente. Ingressou num seminário, e a diferença é a educação. Como a história dele é cronológica, o início do livro retrata o sofrimento do futuro padre: aceitar as ordens superiores e os sacrifícios, não se queixar de nada, obedecer ao chamamento de Deus, amar o martírio e cultivar permanentemente a obediência.
É a primeira parte do Cabra Cega, muito bem explicada, pois se entendermos isto compreenderemos facilmente todo o livro. Isto é, o autor traça ao mesmo tempo o quadro das contradições da religião, de tratamento frontal, que infalivelmente vão por fim ao tal chamamento. E do seminário para o quartel, quando Deus menos espera, é um tiro.
A partir daqui é a via sacra de qualquer futuro combatente: as peculiaridades da recruta, a especialidade, a primeira colocação, a ordem de mobilização, o embarque … e a chegada a Bissau. Instalação no mato e primeira operação. E as contradições sempre presentes no relato de vida. Os soldados a caírem como tordos e a reflexão sempre presente: então Deus deixa-nos morrer assim, eu que não tenho nada a ver com isto… nem isto é meu, nem eu quero isto para nada!
A segunda parte do livro torna-se, assim, concisa e não poucas vezes arrebatadora. Porquê? Porque para quem não foi à guerra pode ter a certeza que se passou assim. Isto foi verdade. Para quem lá esteve, o autor ajuda a fazer a catarse. Haverá sempre lugar para livros como Cabra Cega.
Dois terços da obra, praticamente, são diálogos. É a fórmula ideal para nos fazer reviver tudo a cada palavra escrita. É um processo que o autor utiliza muito bem, que dá para o elogio e a crítica – a opinião.
A narração de coisas por vezes terríveis (a guerra é uma coisa terrível) mas adornada pelo sistema político, o regime que enquadrava a guerra colonial: o falso patriotismo, a caridade para com o soldadinho coitadinho que ficou sem uma perna, o ter cuidado naquilo que se diz, a rádio que transmitia infalivelmente o futebol e os fados para aquecer os corações, lá longe. «Anda tudo a distrair-me», descobre o Aiveca, um belo dia.
Partilhar a realidade. Descrever as cenas mais dramáticas. Experimentar o pânico, bastava pensar Os Turras estão a ver-nos! Constatar que a preparação que nos deram não tinha nada a ver com o que nos confrontamos. A imagem dos mortos que nunca mais se esquece. O chico do bar de oficiais a dizer O´ nosso alferes não pode estar aí sentado de camuflado – suja o sofá. O Ferreira que se deitou na picada e se recursou a andar mais. O reencontro no mato de camaradas da…cidade da Metrópole – a confraternização mas também as rivalidadesinhas. Os que acarretam do mato o ferido, às costas, e ele morre à chegada.
Cabra Cega tem valor acrescentado. É uma narração da guerra feita por quem lá andou. O Aiveca é protagonista e testemunha. E isto é uma garantia - sei do que falo. Ninguém conta o dia a dia da guerra como nós, os que lá andamos. Todos, ou quase todos, ver-se-ão ao espelho ao ler Cabra Cega - do Seminário para a Guerra Colonial.
O Aiveca é o alter-ego do João Gaspar Carrasqueira. O João Gaspar Carrasqueira é o alter-ego do António Marques Lopes. Aivecas fomos nós todos!
Jorge Ribeiro Biblioteca Florbela Espanca / 3 de Junho 2015 (**)
2. Nota sobre o apresentador, Jorge Ribeiro, jornatlista e escritor, que também foi combatente na guerra colonial, em Moçambique:
De regresso à vida civil, continou a dedicar-se ao jornalismo e à rádio. Estudou jornalismo em Paris e em Praga. Em 1978 foi trabalhar para o "JN", onde foi chefe de redacção. Escreveu livros inspirados na sua experiência como repórter da guerra colonial: títulos como Capital Mueda e Marcas da Guerra Colonial continuam a merecer reedições
Centenas de artigos na imprensa, durante anos, reflectem uma investigação contínua da História do Colonialismo Português. É nesse contexto que surge a história do último tabu do Império: S. João Batista D’Ajudá – o seu primeiro romance na Arca das Letras.
Autor e realizador do único programa da rádio portuguesa produzido até hoje sobre os 13 anos de guerra em Angola, Guiné e Moçambique («Noites de África» / Rádio Press 1992-93), Jorge Ribeiro foi director de quatro estações de rádio, e fez televisão durante 15 anos. Foi presidente do TEP (Teatro Experimental do Porto), fundador do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), e secretário-geral da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto
(Fonte: Arca das Letras e Wook, adaptação livre, com a devida vénia)
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Notas do editor:
(*) V. poste de 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14703: Agenda cultural (406): Apresentação do livro "Cabra-Cega", de João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de António Marques Lopes, levado a efeito no passado dia 3, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos
(**) Último poste da série > 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14702: Notas de leitura (722): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (2) (Mário Beja Santos)
(**) Último poste da série > 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14702: Notas de leitura (722): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (2) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
aiveca | s. f.
ai·ve·ca |é|
substantivo feminino
Cada uma das duas peças de madeira que ladeiam a relha do arado.
"aiveca", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/aiveca [consultado em 08-06-2015].
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Sim, todos fomos "aivecas", muitas vezes coma G3 numa mão e a pica, a pá ou a enxada, na outra... LG
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