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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25760: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (5): No RI 1, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...


1. Retomar (ou dar a conhecer) alguns dos seus escritos é também uma forma homenagear o  A. Marques Lopes (1944-2024), que em vida foi cor inf DFA, na situação de reforma, alf mil at inf, da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), membro da direção da delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grão-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis, tendo  entrado para a nossa tertúlia em 14/5/2005)...

 
Falando dos seus escritos, temos para já a sua página no Facebook e  o seu livro de memórias "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp., editado também no Brasil). Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.  No nosso blogue, tem tem cerca de 280 referências.

"Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015) é uma autobiografia,  elaborada com recurso ao artifício literário do "alter ego": o livro foi  escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

 Publicou, nos útimos dois anos,  na  sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais,  de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, 
João Gaspar Carrasqueira. De  ascendência alentejana, o A. Marques Lopes   nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 165/169 e 187/178, seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular). A cena inicial, a conversa entre os aspirantes Aiveca e Gonçalves (pp. 165/169) passa-se no bar de oficiais do RI 1 (Amadora).


No RI 1, Amadora, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...

por A. Marques Lopes 


Quando acabámos de almoçar fomos para o bar de oficiais. Pedimos cafés.

 Não queres um whisky?  
– perguntou-lhe o Gonçalves. (...)

 Chega-me um café.

Os outros dois enfiaram-se numa mesa a jogar poker de dados. Ele e o Gonçalves foram para umas cadeiras que estavam ao canto da sala.

 Então conta lá como é que te livraste daquela treta dos padres?

 
– Ora, fiz como tu. Um dia disse-lhes que me queria vir embora e vim. Mas, antes, andei mais de dois anos a magicar. Na altura em que estava na Filosofia já as minhas dúvidas tinham começado e avolumaram-se de tal modo que o director me mandou para o colégio do Porto, para pensar disse-me ele, vê lá. Tinha-lhe dito que não tolerava aquele ambiente, que havia lá uma cambada de hipócritas que batiam punhetas debaixo dos lençóis à noite, e que no dia seguinte pareciam anjinhos a rezar na igreja. Até lhe disse que também o fazia, não tive medo, mas ele, em vez de me dizer logo para me ir embora,  ainda fez que me massacrasse durante um ano e meio no Porto.

–  É, pá, mas então tinhas-lhe dito logo que querias sair. Eu não demorei tanto tempo. Foi cerca de um mês, só. Fui ter com ele, disse-lhe que não queria continuar e saí calmamente nesse mesmo dia. Fiquei livre, tirei o sétimo ano e fui depois para a Universidade.

 E não arranjaste um emprego?

 
– Não precisei. Os meus pais apoiaram-me. Até alugaram uma casa para mim em Lisboa. Onde ainda estou, aliás  disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e levantou o indicador direito  – ah, eu escrevi-te a dizer onde era, lembras-te?

–  Lembro-me, sim. É na Rua Almirante Barroso, ali para os lados do Chile.

O Gonçalves levou o copo do whisky à boca e eu aproveitou para continuar. Queria dizer-lhe antes que ele falasse novamente. Sentiu o à-vontade dele como uma injustiça.

 Pois é, para ti foi fácil, estou a ver, mas para mim não. Tive de ir viver apertadamente numa casa pequena onde já moravam os meus pais e os meus irmãos. Além disso tive de ir trabalhar para os ajudar, porque eles não têm as possibilidades que os teus, pelos vistos, têm. Foram as perspectivas que eu tinha destas dificuldades que também tiveram influência nas minhas hesitações antes de tomar a decisão de me vir embora. E como é que tu saíste assim tão de repente e nem sequer tiveste de esperar que viesse a dispensa dos votos para assinar? Se calhar os teus pais foram-te buscar ou então tinhas dinheiro, sei lá. Mas eu não, tive de esperar até ao fim e que me pagassem o comboio para Lisboa.

Ele tinha pousado o copo e olhava-o seriamente. Interrompeu-o.

– Espera aí, Aivec, tem calma, deixa-me dizer também. É claro que eu tinha dinheiro, sempre tive dinheiro guardado, estava-me borrifando para aquela treta do voto de pobreza. E a dispensa dos votos era problema deles, que o resolvessem, por mim deixei-me da castidade e da obediência. E quanto ao resto 
 apontou-lhe novamente o indicador  –  não penses que eu não tenho consciência das desigualdades que há, não estou de acordo com isso. E, olha, para te provar, estive metido num movimento contra esta situação toda, e é por isso que estou aqui agora. Fiz o primeiro ano na universidade mas, quando tinha começado o segundo, fui preso durante uma acção de contestação. Mandaram-me logo para a tropa.

 
– Estás a ver? – Aiveca apontou-lhe também o dedo, propositadamente, e sorriu, já estava calmo.   – Mais uma diferença. Tu ainda fizeste o primeiro ano, e vieste para a tropa por protestar. Se não te tivesses metido nisso tinhas acabado o curso, certamente, e só virias depois. Comigo não foi assim. Entrei na universidade em Outubro do ano passado mas em Janeiro deste ano já estava em Mafra. Ainda fui a uma repartição qualquer que há na Rua do Passadiço para pedir o adiamento, mas um gajo de lá perguntou-me em que Universidade eu andava. Quando lhe disse que estava em Letras,  o palerma riu-se. Que não davam adiamento porque não queriam atiradores de caneta, só os de canhota na mão.

 É, sei bem. Interessa-lhes é médicos, para tratar dos feridos, cortar braços e pernas, passar certidões de óbito, ou engenheiros, para construir quartéis, abrigos subterrâneos e aldeias para os pretos. Eu andava em Direito, não sei se lhes interessavam os gajos dali, nem sei se me deixariam acabar o curso, é que, sabes?, só não vão para a guerra os filhos e familiares dos governantes ou dos seus amigos.

Baixou a voz e inclinou-se um pouco para mim.

– E tu, estás disposto a ir para a guerra?

Admirou-se com a pergunta, encolhou os ombros e respondeu-lhe.

 É,  pá, o que é que hei-de fazer? É a vida, não há remédio.

–  Não há remédio,  o caraças. Tens de pensar 
–  e abaixou ainda mais a voz    que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida.

– 'Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas.

 Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar. Até já mudaste uma vez, não é?

Calou-se quando reparou que os oficiais estavam a abandonar o bar. Levantou-se, o Aiveca  também. Desceram até à parada.

 
– Bem, temos de ir embora ao trabalho. Depois vou para Lisboa, só durmo aqui quando estou de serviço. Não queres vir comigo? 

 
– Não. Estou a pensar ir a casa só aos domingos, para ver os velhotes.

–  Mas vem lá hoje, pá. O Serafim, aquele gajo que estava à minha frente na mesa durante o almoço, vai também. Anda lá, tenho uma ideia para ver contigo, agora não dá, e acho que te vais interessar.

–  Não, não vou. Prefiro dormir aqui do que na casa apertada dos meus pais. Depois falamos nisso.

O Gonçalves pareceu um pouco desiludido. Parou, pôs a mão esquerda no  ombro do Aiveca e estendeu-lhee a direita. Ele ficou  espantado com o gesto mas estendeu-lhe também a mão, instintivamente.

 – 
É pena, Aiveca. Adeus, se não nos virmos. Hás-de ter notícias minhas –  e afastou-se apressadamente.

Aiveca ficou  especado a vê-lo afastar-se. Estava completamente baralhado com o gesto e as palavras dele. Acabou por ir andando em direcção à CCS com um torvelinho de interrogações na cabeça. Aquela do aperto de mão não era normal num local onde todos se viam durante o dia inteiro, tanto mais que a saudação da praxe era bater a pala, mas isso não era entre eles, claro, porque eram da mesma patente. E o se não nos virmos, o adeus, será que já tinha sido mobilizado e ia formar companhia? Era capaz de ser isso, sim, mas podia ter-lhe dito quando estiveram a falar no bar…


Capa do livro 
"Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial",
de João Gaspar Carrasqueira 
(pseudónimo do nosso camarada
 A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.
ISBN: 978-989-51-3510-3,

Colecção: Bíos, Género: Biografia).


(...) Na segunda-feira levantou-se cedo, era o hábito que ganhara, e já estava pronto quando foi o toque de alvorada. Vagueou calmamente pela parada, observando tudo o que estava à volta dela, lendo os letreiros que estavam nos vários edifícios indicando a que se destinava cada um. Era uma forma de se inteirar de tudo aquilo, aproveitava aquele tempo para isso, pensando ao mesmo tempo o que é que o capitão lhe destinaria para aquele dia. Vi um soldado que se aproximava.

– O meu aspirante é o aspirante Aiveca ?

–  Sou. O que é que há?

–  O nosso capitão Ferreira quer que vá ter com ele ao gabinete.

Porra que o homem madrugara. Mas ainda bem, ia saber o que fazer. Viu logo que estava com má cara.

– Aiveca, você sabe onde está o aspirante Gonçalves?

 – Não sei, meu capitão, ainda não o vi hoje.

 – Que merda!  – estava mesmo lixado.  – Ele hoje está de serviço à companhia e já devia cá estar!

Olhou depois para ele de modo perscrutador:

– Eu vi que vocês os dois estiveram muito tempo a falar lá ao canto no bar de oficiais. Ele disse-lhe que tinha algum problema?

 Não, meu capitão, não me falou de problema nenhum. Disse-me que depois do serviço ia para casa, como habitualmente…

 É,  pá, tanto tempo e foi só disso que falaram?

Tocou-lhe uma campainha na cabeça e ficou alerta.

 Não foi só isso, meu capitão, claro. Fomos colegas na escola e estivemos a lembrar esses tempos.

Nem esteve para lhe dizer que a escola era o seminário. Não pareceu convencido, mas não insistiu.

– Bem, você vai ficar a substituir o aspirante Gonçalves. Daqui a pouco vai tocar para a formatura e eu vou estar lá para me apresentar a companhia.

Foi assim que entrou no vários serviços à CCS do RI 1. Formaturas, ver se os ranchos estavam bem, prevenções, etc.

O Gonçalves nunca mais apareceu e falou-se durante algum tempo no bar de oficiais, e a meia voz, que ele e o Serafim tinham desertado. Mais uma vez tomou uma atitude e decisão rápidas, pensou Aiveca. Deve ter ido para França, era para onde iam muitos, já sabia. Mas teve condições para isso, como quando saiu do seminário, os paizinhos ajudaram-no e vão continuar a ajudá-lo certamente. Mais uma diferença. Se ele, António Aiveca, quisesse fazer isso como é que podia? Só se fosse para os bidonvilles nos arredores de Paris viver miseravelmente como os milhares de imigrantes que lá estão. Continua a haver coisas que só alguns podem fazer. Tinha de ir para a guerra, que remédio. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  
165/169 e 176/178)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

_________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 
16 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25697: (In)citações (268): Desertar ou cumprir a missão ao serviço da Pátria, mesmo sabendo que o regime, irracional e anacronicamente, entendia o colonialismo como um processo moral e legal? (António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro)

Porta de Armas do Quartel da Serra do Pilar
Foto: © António Tavares, ex-Fur Mil SAM

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, (Mampatá, 1972/74), com data de 27 de Junho de 2024:

Estávamos ali reunidos em formatura na parada do quartel da Serra do Pilar, para a despedida da praxe.
Dentro de breves minutos entraríamos nos autocarros que nos deixariam no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa. Só um camarada faltou à chamada, por ter resolvido desertar, como no decurso desse mesmo dia vim a confirmar.

Não sei o que cada um dos presentes pensou da sua atitude, sei que eu próprio me interroguei se não o deveria ter imitado. E da interrogação fui evoluindo para a certeza de que se estava a cumprir uma missão ao serviço da Pátria, essa missão era um erro do regime que irracional e anacronicamente entendia o colonialismo como um processo moral e legal.

Ao longo do cumprimento da minha missão no sul da Guiné, durante penosos 26 meses, fui compreendendo que, para além da injustiça de um povo governar outro sem prévio acordo do governado, a guerra, mesmo que fosse legítima, era cada vez mais insustentável e conduzia a um morticínio inútil de jovens de pouco mais de vinte anos e sequelas físicas e mentais em muitos outros.

O ano de 1973, quando o PAIGC passou a ter a capacidade para praticamente neutralizar a nossa Força Aérea, tornou-se decisivo para convencer os Capitães de Abril a evoluírem da sua feição corporativa para um movimento revolucionário capaz de derrubar o regime. Pena foi que não houvesse condições políticas para o fazerem antes de 1974.

Nesse mesmo dia 27 de Junho de 1972 chegámos a Bissau, para ainda na madrugada do dia 28 sermos despejados na ilha de Bolama. O resto fica por contar.

Estou muito grato aos Capitães de Abril, sobretudo por terem terminado com a guerra.

Carvalho de Mampatá

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Nota do editor

Último post da série de 24 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25678: (In)citações (267): Compensações às colónias (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

segunda-feira, 11 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste". Na foto, o sold Cristina, municiador do morteiro 81, que as circunstâncias obrigaram a tornar-se padeiro... Como muitos outros, espalhados pelos duzentos e tal aquartelamenntos e destacamentos da Guiné..."A necessidade faz o órgão"... Mas esta história que aqui se conta não tem nada a ver  diretamente com ele..., apesar de ter descoberto na ponte Caium a sua vocação e ter continuado  a ser padeiro pela vida fora.


Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (21) >  O pão que o diabo amassou 


por Luís Graça


− “Duque de Palmela”, imaginem!,  foi a alcunha que me puseram na tropa.

Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras ou bairros donde provinham: o Peniche, o Madragoa, o Setúbal, o Campanhã.... Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, os Carvalhos, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil do que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia de cor, nem o próprio… Andava-se com ele ao pescoço numa medalha metálica, picotada:

− Em caso de um tipo lerpar, cortavam uma metade e entregavam-na ao cangalheiro..., não fosse mais tarde haver troca de urnas − esclareceu o meu interlocutor.

Santos era o seu nome, um antigo 1º cabo atrador de infantaria, que se emocionava quando falava  da Guiné:  dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia; dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver:  "da fome e da sede que raparam"; dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… 

Emocionava-se ao falar do pão que amassou e cozeu em fornos, quase sempre improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a pá de padeiro...

Ainda se emocionava, enfim, quando falava da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!... Pode escrever aí!

Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido "lá para as bandas da Serra da Estrela", em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. 

− Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto por falta de fruta e legumes frescos, e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945, que fui eu. 

Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de "parceria pecuária": tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local nos anos 40.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobrirá, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz do seu distrito, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio (que só era de tantos em tantos meses, quando o barco lá passava).

De regresso à terra, casou e jurou a si mesmo que os seus filhos, se os tivesse e  fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos... De uma pneumia, mal curada. 

− Nunca ficou bom da 'doença dos pulmões' que trouxera da ilha do Sal, dizia-nos a nossa mãe.

Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…(Um em cada dois portuguesees ainda vivia na sua aldeia.)

O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo (como nas tabancas da  Guiné!), paredes meias com o rebanho, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria privilegiada de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. 

Os portugueses estavam então divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos  que de resto se contavam pelos dedos (Hospitais Civis de Lisboa e poucos mais...). 

Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhiam doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.

O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade dos ricos e remediados, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu belo carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira ou coisa parecida.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Roubar para matar a fome não é  
crime, camarada... Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à tua (vamos lá tratarmo-nos por tu como camaradas que fomos,  pode ser ?!) não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, ou dizes bem, camarada: pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…

Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam também moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, fizesse sol ou chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro  ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.

Aos vinte anos foi chamado para a tropa. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.

Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. 

Nas provas físicas, era o campeão. Fazia uma marcha  de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires.

Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” em Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado… À bazucada ou com tudo o que tiver à mão!...

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé, a varrer o capim… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… 

− Ah!, valente!...

− E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas, descavilhadas,  e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato.

Ainda chegou a ser "aliciado" para os comandos:

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me dou bem com as alturas! – explicou ele.

Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e até para o  Vietname.

− No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles, à despedida.

Para o “Duque de Palmela” era a sua independência económica, " o prémio da lotaria" que nunca lhe calhara, porque também "nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. 

− É verdade... E nem sequer é capaz também de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe, à espera de uma carta ou de um aerograma!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns deles
 era como ir para a forca! Outros iam com cara de enterro. 
Havia até quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e já com filhos… Eu até compreendia, Mas, para mim, não!... Solteiro, sem compromissos...
 
E explicou-se melhor: 

 Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, longe disso... Mas não conseguia esconder que estava algo excitado com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas também com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, a salto, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça,  um perdigueiro, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−És ou foste caçador ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram-te que eras um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. 

− ... Compensou-te ?!

− Sim, posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal e porcamente,  a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…

A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Juntava o pé-de-meia de soldado da fortuna e regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…

Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para a África do Sul ou para o  Vietname”. 

Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 

Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo para a Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guarda e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira, em Aldeia Formosa, e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… 

− E, claro, encostado a um poilão para me limparem o sebo, como fizeram a alguns desgraçados depois da independência!

Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … 

A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo, "ganhar calo", e se poder depois  alistar num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era, afinal, virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. 

E, depois, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos  em presídio militar… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal marcial, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…


Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, depois do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para a África do Sul ou para o Vietname... Também me falavam da Legião Estrangeira’mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os sul-africanos e os americanos...

E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

− Um pai, um amigo!,,,

Era miliciano, teria pelo menos dez ou  doze anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem de comnboio, para o embarque no Cais da Rocha Conde de Óbidos, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Aldeia Formosa.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "maluco" ou  "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’... – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção, um alívio.  Mas, não,  para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… 

− Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhei uma 'cadela de todo o tamanho'…

− Básico ?!... O pãozinho de todos os dias é que não podia faltar, ó  Santos!

− … Foi isso que acabou por me convencer... E no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, bem ataviado, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  
 
O “Duque de Palmela” não se deu mal com a “nova vida”, a de padeiro ... Deixou de fazer colunas, operações e serviço de guarda, etc.,  mas tinha que trabalhar de noite para ter pão fresco todas as manhãs para cerca de bocas, entre militares e civis, incluindo o chefe de posto e a família...

E a verdade é que a malta se habituou ao pão fresco todas as manhãs. E isso também ajudou a levantar o moral da tropa. 

O "casqueiro" era, reconhecidamente,  um parte importante da ração a que cada homem tinha direito. Cabia nos 24 escudos e 50 centavos que eram atribuídos a cada militar, do soldado básico ao general, para efeitos de alimentação. Quem era arranchado, recebia em géneros, quem era desarranchado recebia em espécie, sendo no caso dos africanos, muçulmanos ou animistas, que não comiam a comida dos brancos, um importante complemento do salário: dava para comprar um saco de arroz de 100 kg ou mais.

− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…

O Zé Soldado era "pãozeiro", como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros,  tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O  abastecimento era então irregular e incerto. 

− Em Buba, quando lá estivemos, apesar de tudo, tínhamos a lancha da marinha a abastecer-nos.

Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.). 

A farinha e a cerveja era dois géneros alimentares de “primeiríssima necessidade”… Ainda bem que a atividade operacional ficava mais reduzida, sobretudo de julho a setembro, meses de maior pluviosidiade, tanto para as NT como para o PAIGC. Em boa verdade, a guerra parava...

O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.

− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico',  e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…


− A caça ?!...

− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo... 

− Não queria dar confiança aos subordinados, compreende-se... 

− Por outro lado, ele não gostava nada que eu saísse fora do arame farpado, mas lá ia fechando os olhos… E eu também não era mau cozinheiro, diga-se em abono da verdade… Uma vez por outro fazia-lhe uns miminhos, como um cabritinho assado para a messe. Ou um leitão, iguaria que era mais difícil de arranjar, só indo roubá-la aos 'turras'...

A coroa de glória do “Duque de Palmela” foi quando a companhia, a dois grupos de combate, ficou com as calças na mão, mum medonho ataque a um dos seus destacamentos, lá para os lados de Aldeia Formosa, já na segunda parte da comissão, em inícios de 1967, em  plena época das chuvas.

− Os gajos atacaram-nos,  às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu.  Apoio de artilharia não havia.

O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".

− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Até mioleira lá deixaram!... Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves. 

E só por milagre, é que a população se safou. Teve apenas alguns feridos ligeiros.  Mas a tabanca ficou praticamente calcinada. 

− E com ela perdemos também os nossos haveres e os improvisados abrigos onde tínhamos os géneros alimentícios, bem como as outras palhotas que tinham sido cedidas à tropa. Ficámos só com a roupa que trazíamos no pêlo.

A descrição não poderia ser mais pormenorizada:

− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa.  Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, 'puta-fulas', e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.

− 'Puta-fulas' ?!... Queres dizer futa-fulas... Os fulas eram leais à nossa tropa…

− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.

− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…

− Ficámos de calções e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A malta dormia prtaicamente nua, por causa do calor... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!... 

− Medonho, hã?!

−  O mais grave é que ficámos sem comes e bebes, incluindo as rações de combate. Lá se aproveitou uma ou outra maldita lata de cavalas ou de conservas de pêssego da África do Sul… Claro que a população também pilhou o que não ardeu... Nestas situações, os seres humanos são todos iguais, sejam brancos ou pretos: há sempre uns tantos que tiram partido da desgraça dos outros...

De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna só chegou ao fim do segundo ou terceiro dia. E trazia alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?

− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… mais a as milicias e a população. Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.

A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores" (sic).

Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos.

 Com algum dinheiro que poupou em África e um pequeno empréstimo bancário e mais uma ajuda de um dos irmãos que fora 'a salto' para França, fugindo à tropa, e que agora estava lá bem, perto de Paris, o “Duque de Palmela" comprou a quota de um seu antigo patrão, que se reformara, e que fazia parte de uma cooperativa de panificação num dos concelhos vizinhos. Essa Panificadora deu muitas voltas, depois do 25 de Abril, passou a sociedade anónima, até que o M. Santos se tornou o acionista principal, com o filho e com o irmão que estava em França.

Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando  "manga de patacão" , e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.

− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho. Ou dos filhos, há um irmão meu que também é sócio, minoritário.... O meu velhote e minha pobre mãe que ficou viúva tão cedo...

Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.

− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros e cozinheiros”...

Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.

− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto,  que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.

E acrescenta, com alguma euforia:

− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.


Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:

− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Umas "furão" ... Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego,  num banco, num escritório, nas finanças, nas caixas de previdência, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, que é  a minha  amante (mais cara que uma amante!), continuo a ser um gajo simples…

 Pelo que vejo e pelo que me contam...

−  O que é queres que eu te diga mais, camarada ?!... Põe aí, no teu canhenho,  que sei dar valor ao dinheiro e ao trabalho, e sou amigo do meu amigo, camarada do meu camarada!

Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho e absentismo por doença, nos anos 90.

 A Panificadora tinha então ganho um prémio de segurança no trabalho, e poderia ser um potencial estudo de caso de “boas práticas”… Conheci o pai e o filho através do médico do trabalho que tinha uma avença com a empresa e que fora meu aluno. Conversa puxa conversa, acabei por saber que o "patrão velho" tinha estado na Guiné, antes de mim, mas não longe dos sítios por onde passei e penei…

Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.

− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estivera com ele, já depois de enviuvar.

− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca tiraram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, antes de me dar uma macacoa, mas não sei se tenho força nas canetas…

− Mas já agora diz-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não te ofender… – pedi-lhe eu.  

Pesou a pergunta antes de responder:

− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com  um misto de bonomia e malícia. 


− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.

− Olha, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. O rio Grande de Buba, o Geba também, mas não o raio do Corubal... Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.

Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo  escrever a história de vida deste homem…  


Soube depois, pelo médico do trabalho meu conhecido,  que o Santos acabara por concretizar o seu sonho de voltar à agora Guiné-Bissau e ainda encontrara gente do seu tempo, nas tabancas por onde andara… 

E, ao que parece, deixou, a uma ONGD, a operar na zona, uma "nota preta" para ajudar a construir uma  pequena escola na antiga tabanca onde estivera destacado, e que ardera em 1967. Julgo que quis fazer as pazes com o passado, tal como alguns de nós.

Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra. 

Vim a  a saber, afinal, que era seu hábito estender a mão, muitas vezes, aos amigos dos seus amigos, quando se apresentava,  dizendo com graça: 'O Duque de Palmela, para o servir!'... Inclusive tratava a esposa por “duquesa… de Santiago do Cacém”. Tinha sentido de humor.

Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:

− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia… 

− Afinal, foi um camarada com azar ao jogo e sorte aos amores e aos negócios  − conclui eu.

− Quando chegou a Bissau, já toda a malta o tratava por “Duque de Palmela”… E acho que é também uma justa homenagem, visto o filme ao contrário, da frente para trás…

− E, olha, é uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres...  aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras.  Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"... 


Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que num próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a Comenda da Ordem do Mérito... 

Não seria nada de mais justo, de resto, ver um antigo "pé descalço" (que não tinha vergonha do seu passado!), um  ex-combatente da Guiné, um antigo padeiro e agora  um industrial de panificação  de sucesso  a ser tratado pelos "grandes do Reino" como  comendador,  depois de ter comido o pão que o diabo amassou.  

Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se  as vontades, as honrarias e as mercês...

© Luís Graça (2019). Revisto em 10 de março de 2024.

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24560: Antologia (98): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – IX (e última) Parte


O Comité de Desertores Portugueses de Estocolmo manifestando-se contra Portugal. Outubro 1973. (Foto: Aftonbladet Bild) (Cortesia de Tor Sellström, op. cit., 2008, pág. 187)

Não sabemos quantos portugueses refractários e desertores da guerra colonial  foram acolhidos pela Suécia... O grosso sabe-se que  ficou em França. Os americanos, opositores à guerra do Vietname, que a Suécia recebeu, são estimados em 800. Os portugueses, desertores e refratários da guerra colonial, que conseguiram asilo (político) na Suécia, poderão ter sido, no máximo, uma centena, entre 1961 e 1974. (Na foto acima, não parecem ser muitos...)

(...) "O primeiro desertor da guerra em Moçambique a aparecer publicamente na Suécia, foi o capitão português Jaime Morais, que apresentou o seu caso à imprensa no início de fevereiro de 1971. Sendo um dos oficiais de comando durante a Operação Nó Górdio, Morais
denunciou a ”guerra portuguesa de agressão a gente inocente” e declarou que a ”FRELIMO
tem o apoio da população moçambicana” (...). 

"Chegou à Suécia no início de 1971. No ano anterior cerca de trinta (e, de acordo com algumas fontes, quase cem) (...) opositores portugueses à guerra tinham chegado à Suécia, atraídos pela ”crítica feita pela Suécia ao colonialismo português”. (...)

"Alguns portugueses que tinham saído de Portugal para fugir ao alistamento e que tinham ficado em França e noutros países, tendo como destino final a Suécia (não se trata de desertores das frentes de combate), viram indeferidos os seus pedidos de asilo e foram remetidos para os seus primeiros países de refúgio. Uma vez que esses países, entre os quais se contava a Dinamarca, eram membros da OTAN e havia grandes hipóteses de os opositores à guerra serem enviados de volta para Portugal, formou-se uma corrente den opinião forte a seu favor. Entre 1967 e 1975 a Suécia recebeu também cerca de 800 desertores e opositores à guerra entre os EUA e o Vietname." (Tor Sellström,op. cit., 2008, pãg. 185).

(...) "Foram formados Comités de Desertores Portugueses nas cidades de Lund, Estocolmo e Uppsala. Para além de solicitarem asilo político, os membros dos comités uniam forças com os Grupos de África locais, defendendo activamente o apoio ao PAIGC, ao MPLA e à FRELIMO e dando força aos argumentos políticos a favor dos movimentos nacionalistas". (Tor Sellström, op. cit., 2008, pãg. 186).


1. Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro, de 290 páginas, "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

Nessa publicação ele conta-nos como é que os chamados Grupos de África (organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral, e nomeadamente contra o apartheid), o partido social-democrata e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar na Guiné-Bissau, no final dos anos 60. 

O território, então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC, a lutar pela sua independência, era na altura praticamente desconhecido do público sueco.

A partir de 1969, a Suécia começou a dar, ao PAIGC, uma "ajuda humanitária" substancial, primeiro em géneros, depois em dinheiro, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. Em meados dessa década, fechou abruptamente a torneira, ao perceber que estava a mandar o dinheiro dos contribuintes para o lixo.

"As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". 

Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

São factos que já pertencem ao domínio da História. Mas, passados estes anos todos, julgamos que ainda pode ter algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais sobre o envolvimento da Suécia, mesmo que indireto, na "nossa" guerra colonial.

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, o último excerto do livro de Tor Sellström (na parte da ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172). Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, Amílcar Cabrak, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico

(1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAI (mais tarde, PAIGC); 

(ii) a batalha do Como em 1964: 

(iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil  habitantes (!) por parte do PAIGC; 

(iv) as escolas, os hospitais e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; 

(v) a morte de Amílcar Cabral e o seu contexto; 

(vi) a declaração unilateral da independência em 24/9/1973, na região do Boé;  etc.

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que são úteis do ponto de vista documental e até têm informação relevante  mas são extremamente fastidiosas para  a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto."bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos um ou outro erro de português. Os excertos, que reproduzimos,  seguem o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.


Disponível em
https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar).  
Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. 

Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem, quase em exclusivo,  da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau (Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes (numa população de pouco mais de meio milhão)... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (Parte V, pp. 152-154).

Os suecos quiseram, na sua ajuda "não-militar", privilegiar os sectores da educação e a saúde. onde o PAIGC estava confrontado com "enormes desafios". O pressuposto era de que,  em 1971, calculava-se que viviam 400.000 pessoas nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, (...) na sua maioria artesãos e camponeses (sic) (Parte VI, pp. 154-157. Uma estimativa, disparatada, que fazia parte do arsernal de  propaganda do PAIGC...

Uma das maiores "mistificações" foi a entrega de 100 toneladas de "sardinhas" (ou arenques juvenis)  sob a forma de cerca de 400 mil latas de conservas, de 225 gr cada uma (peso líquido), e que terão sido profusamente distribuídas pelas "zonas libertas" (sic) até chegarem a Bissau... (O nosso amigo Cherno Baldé disse-nos que chegou a provar essas tais "sardinhas", e não lhe sabiam a nada...) (Parte VII, pp. 157-161). 

Referência, por fim, à missão especial da ONU que, em abril de 1972, faz uma visita"clandestina" à Guiné,  concluindo que o PAIGC  "não apenas controlava militarmente, mas governava de facto os territórios libertados" (Parte VIII, pp. 161-168).

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC - IX ( e última):

 A independência e para além dela (pp. 168-172) (*)

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 


A independência e para além dela

A diplomacia do PAIGC era em grande medida norteada pelo objetivo de obter o máximo de apoio internacional possível para a vindoura declaração de independência, prevista para o início de 1973. Confiante na vitória, num futuro não muito remoto, Cabral usava nesse campo de todo o seu pragmatismo (177). No caso da Suécia e dos outros países nórdicos, a sua disponibilidade para o compromisso não teve, contudo, contrapartida, que teria sido o reconhecimento antecipado da independência da Guiné-Bissau.

Amílcar Cabral acabaria por não assistir à independência do seu país, nem ao fim do colonialismo português em África. Exercendo de facto o controlo sobre a maior parte da Guiné-Bissau, o PAIGC vinha, desde o início de 1970, a discutir a forma como esta situação se deveria traduzir num reconhecimento internacional de jure da independência nacional. Aliás, a questão tinha sido levantada, por exemplo, por Cabral, durante uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Estocolmo, já em julho de 1971 (178).

O reconhecimento da Guiné-Bissau como estado independente tinha sido recomendado aquando da missão de apuramento de factos das Nações Unidas, em abril de 1972.

O PAIGC organizou eleições populares nas zonas libertadas em Agosto–Outubro de 1972. Um ano mais tarde, a 24 de setembro de 1973, reuniu-se a primeira Assembleia Nacional do Povo da Guiné, na região leste do Boé, na qual se proclamou o Estado da Guiné-Bissau como um ”Estado soberano, republicano, democrático, anti-colonialista e anti-imperialista”. As fronteiras do país coincidiam com as da Guiné continental ”portuguesa” (179).

Luís Cabral foi eleito presidente. Como únicos jornalistas ocidentais presentes (180), a cerimónia solene foi documentada pelos cineastas suecos Lennart Malmer e Ingela Romare (181).  O seu filme exclusivo, com uma hora de duração, ”O Nascimento de uma Nação”(182), foi transmitido via televisão pela empresa oficial sueca de televisão (183).

Apesar dos portugueses continuarem a deter o controlo da capital Bissau e dos principais centros do país, o novo Estado foi imediatamente reconhecido por um grande número de nações. Por volta do mês de outubro de 1973, o reconhecimento diplomático tinha-se alargado a mais seis governos e, a 19 de novembro de 1973, a República independente da Guiné-Bissau foi formalmente aceite como o quadragésimo segundo membro da Organizaçãode Unidade Africana (184).

Aplicando, designadamente, o princípio do controlo integral do território (185), o governo sueco teve, contudo, dúvidas em reconhecer o novo Estado, o que provocou fortes reacções dos Grupos de África e do Partido de Esquerda Comunista (186), mas também no seio do próprio partido no poder.

Em dezembro de 1973, a deputada social-democrata Birgitta Dahl que, em finais de 1970 visitara as zonas libertadas da Guiné-Bissau, confrontou o Ministro dos Negócios Estrangeiros Sven Andersson (187) no Parlamento, exigindo que lhe fosse prestada informação sobre a posição do governo (188). 

Menos de seis meses depois a questão foi resolvida, apesar de tudo, pela ”revolução dos cravos” em Portugal. Grandemente influenciada pelas guerras em África, nomeadamente na Guiné-Bissau (189), o Movimento das Forças Armadas (MFA) derrubou o regime fascista de Caetano a 25 de Abril de 1974, abrindo o caminho para a democracia no país e para a concessão da independência nacional às colónias em África. 

No final de julho foi emitida uma declaração oficial de intenções com esse efeito, e dez dias depois, a 9 de agosto de 1974, o governo sueco reconheceu a República da Guiné-Bissau (190). 

A independência formal de Portugal foi concedida a 10 de Setembro de 1974 (191) e, na semana seguinte, o novo estado aderiu às Nações Unidas (192).  Séculos de opressão colonial tinham assim terminado. A Guiné-Bissau podia enfim ocupar o seu legítimo lugar entre as nações independentes do mundo, na difícil senda de transformar espadas em arados.

O PAIGC foi o primeiro movimento africano de libertação com quem o governo sueco criou um programa global de cooperação. Apesar de os primeiros contactos entre as duas partes terem sido estabelecidos apenas em finais da década de sessenta, e de a ajuda humanitária englobar apenas um período de meia década, o relacionamento com o PAIGC viria, de forma significativa, a desbravar terrenos desconhecidos e a preparar o caminho para a posterior participação da Suécia no esforço dos movimentos de libertação na África Austral. 

A possível ajuda ao PAIGC tinha sido mencionada de forma clara nas alocuções históricas do parlamento sueco em maio de 1969. Ao avaliar a nova política, volvidos dois anos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros declarou que ”as experiências em termos de ajuda têm sido muito positivas até esta data”, acrescentando que ”a solidariedade com os países em vias de desenvolvimento, de que é exemplo a ajuda dada aos movimentos de libertação, resulta em boa-vontade que, por sua vez, e a longo prazo, acabará provavelmente por ter uma importância cada vez maior para a Suécia” (193). 

 Vista sobretudo como um investimento político, e menos como caridade humanitária, concluía-se na avaliação que ”há todas as razões para continuar na linha daquilo que se fez no passado, mas aumentando o valor da ajuda” (194).

No final da década de sessenta, a decisão de alargar a ajuda oficial directa ao PAIGC e aos movimentos de libertação da África Austral não levantava qualquer celeuma política na Suécia

O Partido Moderado (conservador) viria pouco tempo depois a opor-se aos mesmos argumentos que, em 1969, tinham sido usados como informação para a tomada unânime de posição por parte do Comité Permanente das Dotações, presidido pelo seu futuro líder Gösta Bohman

Em vincado contraste com outros partidos com assento parlamentar, o Partido Moderado retirava conclusões bastante negativas dos primeiros anos de cooperação com os movimentos de libertação. 

Por exemplo, em 1972, numa reunião da Comissão Permanente para os Negócios Estrangeiros, concluía que “apoiar ativamente movimentos revolucionários não está conforme com o princípio da não intervenção, consagrado no direito internacional, nem com a posição de neutralidade assumida pela Suécia. [...] Há, a nível internacional, muitas dúvidas quanto à ideia (do alargamento) da ajuda às populações africanas, sob a forma de apoio a um determinado movimento de libertação. No caso particular de um estado que pretende conduzir uma política credível de neutralidade, dever-se-ia abdicar da concessão de ajuda desta forma" (195).

O Partido Moderado que, na altura, representava cerca de 15 por cento do eleitorado, era o único partido com assento parlamentar que se opunha à ideia de ajuda humanitária oficial direta aos movimentos de libertação.

Depois dos seus primeiros e ainda tímidos passos nos inícios de 1969, o governo sueco  acabaria, ao longo dos anos e de acordo com valores actuais, por canalizar um total de 53,5 milhões de coroas suecas para o PAIGC (196). 

Concebido pelo PAIGC como um programa de ajuda em géneros, a ajuda foi aumentando rapidamente, acabando por cobrira maior parte das áreas da actividade civil do movimento de libertação, centrando-se na alimentação, transportes, educação e saúde, para além de toda a gama de artigos enviados para os armazéns do povo.

De um ponto de vista administrativo, foram utilizados métodos de planeamento semelhantes aos aplicados em programas de cooperação com países independentes, o que simplificou o processo de transformação da ajuda humanitária em programa de ajuda ao desenvolvimento depois da independência da Guiné-Bissau. Tal como viria mais tarde a acontecer com os movimentos de libertação da África Austral, a ajuda humanitária à luta pela governação por parte da maioria e para a independência nacional abriu caminho para a cooperação a mais longo prazo.

Como resultado do apoio dado ao PAIGC durante a luta de libertação, a Guiné-Bissau foi (como único país da África Ocidental) e a partir do ano fiscal 1974–75, incluído nos ”países-programa” que recebiam ajuda ao desenvolvimento da Suécia (197).  

Com resultados umas vezes melhores que outras (198), o valor total da ajuda sueca à Guiné-Bissau independente, dada durante o período 1974/75 – 1994/95 cifrou-se (a preços fixos de 1995) em 2,5 mil milhões de coroas suecas (199), o que colocava a Suécia entre os três principais doadores ao país (200).

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 Notas do autor:

177. Cabral participou em 1972, em representação dos movimentos africanos de libertação, nos preparativos da Conferência Internacional Nações Unidas/ OUA de Peritos para Apoio às Vítimas do Colonialismo e do Apartheid na África Austral, que se realizou em Oslo, na Noruega, em abril de 1973. 

Ao debater a ordem de trabalhos e com o ”objectivo de sermos ’realistas’ em vez de perdermos tempo em polémicas acesas”, disse que a conferência, para além da questão da ajuda humanitária, devia concentrar-se nas questões de índole política e diplomática, deixando ao cuidado dos governos, cada um por si, decidir quando à questão da ajuda militar (Eriksen em Eriksen (ed.) op. cit., p. 59).

178. Ethel Ringborg: Memorando, Estocolmo, 6 de julho de 1971 (MFA). Na altura, os altos funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros concluíram que ”já se justifica, nesta altura, analisar a forma como uma tal proclamação de independência deve ser formulada, do ponto de vista do Direito Internacional. Esta questão tem tanto mais interesse quando a Suécia é membro da Comissão das Nações Unidas para a Descolonização” (ibid.).

179. A proclamação de independência não incluiu as ilhas de Cabo Verde.

180. Conversa telefónica com Lennart Malmer, 7 de outubro de 1999.

181. Malmer e Romare haviam apresentado, em 1971/72 a luta moçambicana de libertação aos telespectadores suecos (...).

182. Lennart Malmer e Ingela Romare: ”En nations födelse”, Sveriges Television (SVT).

183. Na altura não havia redes comerciais de televisão na Suécia. Em 1973, Malmer e Romare produziram também um documentário sobre as crianças e a luta de libertação na Guiné-Bissau, para a estação pública de televisão, com o título ”Guiné-Bissau är vårt land” (”A Guiné-Bissau é o nosso país”), Sveriges Television (SVT). A seguir à independência,produziram, entre outros, os documentários para televisão ”Guiné-Bissau: Ett exempel” (”Guiné-Bissau: Um exemplo”) e ”Guiné-Bissau efter självständigheten” (”Guiné-Bissau a seguir à Independência”), SverigesTelevision (SVT), 1976.

184. Rudebeck op. cit., p. 55.

185. As outras considerações do governo sueco tinham a ver com o relacionamento com Portugal e a situação em Cabo Verde.

186. Cf. ”Resposta do Ministro dos Negócios Estrangeiros a uma pergunta do Sr. Måbrink no parlamento”, 25 de outubro de 1973, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1973, Estocolmo, 1976, p. 155.

187. Sucedendo a Krister Wickman (1971–73), Sven Andersson foi Ministro dos Negócios Estrangeiros no período crítico entre 1973 e 1976.

188. ”Resposta do Ministro dos Negócios Estrangeiros a uma interpelação pela Sra. Dahl”, 10 de dezembro de 1973, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1973, Estocolmo, 1976, pp. 155–59.

189. Vários oficiais que lideraram o golpe de Lisboa, entre os quais o General António de Spínola e o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, tinham passado muito tempo na Guiné ”portuguesa”. 

Spínola, que em Fevereiro de 1974 levou a cabo um importante prelúdio do golpe, ao publicar o seu famoso livro Portugal e o Futuro, tornou-se presidente da república portuguesa em maio de 1974, mas saiu de cena quatro meses mais tarde. Spínola tinha exercido o cargo de governador e de comandante em Bissau entre 1968 e 1973. 

Otelo de Carvalho trabalhou no sector da informação e propaganda do quartel-general de Spínola na Guiné, onde se convenceu da injustiça moral e política das guerras coloniais. 

Entre as fileiras dos oficiais influentes do Movimento das Forças Armadas destacados para Angola e Moçambique, contavam-se o Almirante Rosa Coutinho que, por exemplo, tinha estado destacado para Angola, onde tinha chefiado o governo militar após o golpe de Abril de 1974.

190. "Press release”, 9 de agosto de 1974, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1974, Estocolmo, 1976, p. 180. Chabal, e outros observadores que se lhe seguiram, engana-se quando declara que ”nem um único governo ocidental reconheceu a Guiné-Bissau até o governo português o fazer” (Chabal op. cit., p. 131).

191. O ministro sueco dos Negócios Estrangeiros, Sven Andersson, fez uma intervenção na televisão portuguesa no dia da independência da Guiné-Bissau (”Declaração pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sr. Sven Andersson, à televisão portuguesa por ocasião da declaração de independência da Guiné-Bissau de Portugal”, 10 de setembro de 1974, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1974, Estocolmo, 1976, pp. 180–81).

192. O processo conducente à independência de Cabo Verde foi mais complicado. Após eleições para a Assembleia Nacional, as ilhas tornaram-se na República Independente de Cabo Verde a 5 de julho de 1975. O PAIGC era o partido dominante na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, até à cisão em janeiro de 1981, altura em que o PAIGC foi substituído nas ilhas pelo PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde).

193. Ethel Ringborg: Memorando (”Stöd till befrielserörelser”/”Ajuda aos movimentos de libertação”), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 7 de setembro de 1971 (MFA).

194. Ibid.

195. Citado em Olav Stokke: Sveriges Utvecklingsbistånd och Biståndspolitik (”Suécia: Ajuda e política para o desenvolvimento”), Instituto Escandinavo de Estudos Africanos, Uppsala, 1978, p. 17.

196. Consulte a tabela junta de transferências da ASDI para o PAIGC.

197. A República de Cabo Verde receberia, desde 1974/75, uma verba da Suécia, que foi gradualmente aumentando. Expressa em preços fixos de 1994, a ajuda cifrou-se, em julho de 1994, num total de 1,4 mil milhões de coroas suecas (SIDA: Bistånd i Siffror och Diagram /”Ajuda ao desenvolvimento em valores e gráficos”/, Estocolmo, janeiro de 1995, p. 60). Deve notar-se que Portugal recebeu da Suécia, durante um período mais curto, ajuda ao desenvolvimento a partir de 1975/76.

198. A ajuda sueca ao desenvolvimento da Guiné-Bissau independente não foi muito bem-sucedida. Para fazer uma avaliação factual, consulte Peter Svedberg, Anders Olofsgård e Ekman: Evaluation of Swedish Development Cooperation with Guinea-Bissau (”Avaliação da cooperação sueca ao desenvolvimento na Guiné-Bissau”), Secretariado para Análise da Ajuda Sueca ao Desenvolvimento (SASDA), Relatório nº. 3, Ds 1994:77, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 1994. 

Desde 1980, Patrik Engellau, que foi representante da ASDI na Guiné-Bissau no final da década de setenta, publicou um conto bem planeado e estruturado sobre as dificuldades pelas quais passou um cooperante sueco na República (fictícia) do Candjambari. Sem dúvida situada na Guiné-Bissau, esta história retrata os problemas e armadilhas que o movimento de libertação teve de enfrentar depois de assumir o poder, bem como as que passou o país doador, apesar das suas boas intenções (Patrik Engellau: Genom Ekluten (”Passar por dificuldades”), Atlantis, Estocolmo). 

De volta à Guiné-Bissau vinte anos depois da visita que fizera às zonas libertadas do PAIGC, Anders Ehnmark fez, em 1993, uma reflexão semelhante sobre a libertação e a liberdade, a independência e o desenvolvimento, os sonhos e as realidades, num ensaio chamado ”Viagem ao Kilimanjaro”, onde conclui que ”aconteceu algo que não estava previsto” (Ehnmark (1993) op. cit., p. 113). 

Em 1998, as lacunas económicas e as divisões étnicas e sociais não resolvidas levariam ao estalar de uma guerra civil na Guiné-Bissau. Tragicamente, o exemplo aglutinador dado por Amílcar Cabral e pelo PAIGC durante a luta pela libertação, tiveram um fim violento.

199. Sida: Development in Partnership: Sida and Swedish Bilaterial Development Cooperation in Africa (”Desenvolvimento em Parceria: A ASDI e a cooperação bilateral sueca para o desenvolvimento bilateral em África”), ASDI, Estocolmo, 1997, p. 23. 

Os valores correspondentes para a Tanzânia e para os países da África Austral prioritários para a Suécia eram: Tanzânia 20,3 mil milhões de coroas suecas, Moçambique 11,5, Zâmbia 6,9, Angola 3,9, Zimbabué 3,8 e Botswana 3.2.

200. Svedberg, Olofsgård e Ekman op. cit., p. 20.

 [ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

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Notas do editor:

 (*) Vd. postes anteriores da série >

17 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24482: Antologia (90): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte I

19 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24489: Antologia (91): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte II

24 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24502: Antologia (92): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte III

28 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24510 Antologia (93): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte IV

30 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24518: Antologia (94): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte V