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segunda-feira, 14 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27015: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (42): Nascido com o cu virado para a lua



"Da janela do meu quarto, na madrugada do dia 28 de setembro de 2015, por volta das 4h20, o firmamento celeste apresentava o tão esperado acontecimento astronómico do ano, a ocorrência de Super Lua em simultâneo com um Eclipse Total da Lua...

Peguei na máquina e obtive esta e outras imagens,  que quis partilhar com os nossos leitores... Já estava a meio o eclipse, eu devia ter-me levantado mais cedo...  

Dizem que os lobisomens é que uivam à lua cheia, mas também em luas negras, e provavelmente em noites de eclipse... Quando eu era puto, acreditava em lobisomens... Se acreditava!... E até me diziam que tinha um tio-avô que era lobisomem... Metiam-nos medo, aos putos, os safados dos graúdos, com essas histórias de lobisomens, bruxas, almas penadas e espíritos maus que cochichavam por detrás das paredes, portas e armários... Havia amuletos, gestos, rezas e mezinhas para nos defendermos do mau olhado e dos encontros funestos com estes seres do mundo das trevas."

Foto (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. 


Contos com mural ao fundo > 
 Nascido com o cu virado para a lua

por Luís Graça


 "Nascer com o cu virado para a lua" é uma expressáo da chamada  sabedoria popular, aplicada a quem tem muita sorte na vida,  traduzida  em geral pelos sinais do sucesso,  do amor ao dinheiro, da saúde aos negócios. Sucesso obtido de maneira aparentemente natural,  fácil, quando não mesmo inesperada... Claro, as histórias de sucesso causam sempre inveja aos outros que se queixam de não ter tido sorte na vida. 

Pode ter sido o caso do Ulisses C..., ,  senhor embaixador, já falecido. Diziam na terra que ele nascera de um parto distócico. De costas, de barriga para baixo, de cu para o ar. E para mais em noite de luar de janeiro. E sobrevivera.  Contra todos os temores. O que a velha parteira interpretou como um sinal de que vinha ao mundo já abençoado. 

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado, senão te importas... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso, Ulisses  C...

Foi um "puto mimado", confirmavam os dois interlocutores.  O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. Ou rica e importante, como se queira .

Na escola, o Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (que eram à compita, para ver quem dava menos erros)... Mas também no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!..,

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha pobre mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!... Eu nasci de cu para o ar."

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. Nasceu, de facto,  de cu para o ar. Podia não ter-se safado.  E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...− atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara,  a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas duas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele   confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, e numa posição difícil... Mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Alfredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos em plena II Guerra Mundial,  em 1943, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa, como o Jorge, o Nando e todos os demais da sua geração...

− Lembrava o pai que foi em plena batalha de Leninegrado, quando o Exército Vermelho conseguiu, pela primeira vez, abrir um corredor que levou a esperança aos sitiados −  acrescentou o Jorge.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

De facto, o doente (sobretudo quem tinha algo de seu)  ficava acamado em casa, era tratado pelo João Semana ou por  alguma "curiosa" e, se era caso para morrer, morria em casa, rodeado de filhos e netos... , depois de receber a extrema-unção pelo padre da paróquia.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o "historiador da terra", o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que se sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o senhor Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante! 

− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.

− A "Anselma", como diziam as más - línguas. Não a conheci...Mas era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências...

− A "Anselma"!... Cheia de mordomias... A minha ex-mulher, que Deus também já lá tem, tinha-lhe um ódio de morte...

 − Mas... exilado, o Ulisses, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Não foi por razões políticas. Como sabes, ele fugiu à tropa. Tão simples quanto isso.

Não, não era um desertor, mas um refratário... Não era a mesma coisa: legal e tecnicamente, o Ulisses não foi um "fujão", como se costumava dizer na época em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era, no entanto,  bem mais grave do que faltoso na época, em que o país estava em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa jóia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota do seu  sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o mais profundo rancor e desprezo… 

− Só soube isso muito mais tarde... Mas também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais da vila,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos... por não terem morrido pela Pátria...

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital das doenças infectocontagiosas, em Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se muito pouco ou nada.  Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sorte, isto é,  sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais. 

Tinha a vantagem de não ter passado. Não se lhe conheciam os "podres",  como diziam as alcoviteiras da terra. Mas também ninguém sabia se tinha nascido com o cu virado para a lua, como o filho...

A verdade é que aqui casou,  aqui teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos palermas dos putos da escola)…  

Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e sobretudo  promissores, com países da Europa do Norte e Centro. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começara no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

O Jorge  ainda era do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital, e que parava em todas as terras... E a maior parte das estradas do concelho ainda não eram alcatroadas.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado muito mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a abertura da economia ao exterior, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos na Palestina − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores). 

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. E calou de vez o coro das mulheres que, no lavadouro público, também lavavam a "roupa suja" dos ricos da terra...

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais, os " caciques", que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era uma fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros, ou um mês de jornas de um "cavador de enxada"...

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia,  entre dentes, que era "maçon", coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era;  pior só jacobino,  mas muito pior ainda ser comunista...

O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a digníssima esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das beatas.

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter andado na marinha mercante inglesa e ter uma bomba da Shell). Terá sido dos primeiros a ter rádio e luz elétrica em casa. E constava que ouvia a BBC. E mais: dizia-se que era espião dos ingleses.

− Mas finório e cínico como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo: sabia que eu era do "contra" e até simpatizava comigo. Nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958, depois das eleições do Humberto Delgado,  o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe (em boa verdade,  tinha um curso técnico na área da mecânica fina, era autodidata e poliglota).

Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um  convite (esse menos lisonjeiro) para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Todavia, a  razão nem  era essa: ele já movimentava mais dinheiro e empregava mais gente que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público, abrir um estradão ou calcetar uma rua...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo inegável talento para os negócios e as relações públicas, deixou bem claro, à tacanha elite local, de agrários, comerciantes e "mangas de alpaca", que não precisava da política para subir na vida... 

Restaurou o melhor palacete da vila ( doado â esposa por morte da tia e madrinha),  para inveja de alguns senhores da terra. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele recusava-se terminantemente falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verossímil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Estava na mesa do escritório onde ninguém entrava a não ser a criada para a limpeza semanal do pó...  

Sabe-se que o Anselmo só conheceu a futura terra dos seus filhos depois do casamento, na véspera da II Guerra Mundial. Conheceram-se, ele e a futura esposa,  ao que parece, num cruzeiro da Cunard-White Star. Ele fazia parte da tripulação do navio. E ela acompanhava a tia e madrinha que, além de viúva e sem filhos, era rica e tinha o bom gosto de viajar.  

O Anselmo era um sedutor e um "gentleman": depressa caiu nas boas graças da tia e da sobrinha.  O copo de água foi  na Figueira da Foz. A madrinha morreria no pós-guerra e deixaria o palacete à sobrinha e afilhada.

Lá em casa, garantia o Jorge, também nunca se falava do passado, não  havendo por isso  grande curiosidade em saber mais sobre a  vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados do papá Anselmo. Afinal, todo a gente de bem tinha um ramo pobretana na família.

Das poucas vezes que ele,  a mulher e os filhos foram a Vieira de Leiria, em passeio, aproveitando para "revisitar o passado",  deu para perceber melhor a sua origem: os seus "parentes afastados" ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, quanto mais fosse, alegadamente,  só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar")... No fundo, um pretexto para passar uns dias na "terra da sua querida mãe"...

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos, o  Ulisses e as manas,  detestavam,  que horror!, preferindo de longe São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as poucas famílias burguesas, abastadas, da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França e a Alemanha, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril. 

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamente as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público  (quando começaram a aparecer os planos de urbanização),  ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"... 

Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas.  As máquinas já não vieram a tempo de suprir a falta de braços, Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas". 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. Os democratas do 26 de Abril, nascidos como cogumelos.

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República. E "morreu republicano", garantiu o Ulisses, num "in memoriam" que escreveu sobre o pai, e publicado no jornal da terra.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam (o que era muito naquele tempo!)...Eu sou da colheita de 1946.   Além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico", o primeiro a ter uma  "vespa".

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. De bibe, impecável, engomado e  passado a ferro pela criada.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. E ninguém entrava descalço. 

Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 15 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas (seguramente por conselho ou imposição do pai)... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, pondo-o a salvo, antes que as coisas dessem para o torto (como deram).  Nunca apanhou o "vírus" das greves estudantis...

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1943. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. 

Vinha munido de uma valente cunha e de um extenso relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar, que por sinal era de Leiria e seu conhecido.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi  uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte.  A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos papás.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas. De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de hereges, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores, mesmo sabendo que ia para o céu". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, esbelta, viajada, culta, mas  conservadora,   beata, benfeitora e amiga dos pobres. Fundou uma creche que o Anselmo doaria mais tarde â santa casa da misericórdia local e que hoje tem o nome da esposa.

E o Anselmo não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes. 

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, logo em 1961. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras".

A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Doze  contos de réis era muito dinheiro naquele tempo de incerteza. Ele já tinha interesses no ultramar (em Angola, mais concretamente). E alguém tinha que os defender... Os filhos dos outros, devia ele pensar.

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. 

Segundo ele, passou a ter uma reforma dourada e um vasto capital de relações sociais... Era agora livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vivia entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não se falavam desde que o Jorge se divorciara da irmã. Nem nunca mais aparecera pela santa terrinha. 

−  Nunca morremos de amores um pelo outro...Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Jorge. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

E concluiu:

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Neerlandês, como se diz agora... Mas eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um bom paizinho − comentou, irónico,  o  Fernando.

− Foi tudo junto... Cumpriu-se, afinal,  a profecia da parteira, quem nasce de cu virado para a lua tem sempre sorte na puta da vida...


PS - O Ulisses C... morreu uns tempos depois desta conversa. De qualquer modo, o nome é fictício, mas a sua história de vida é real.

© Luís Graça (2022). Última revisão:  14 de julho de 2025.

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Nota do editor LG:

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26977: O segredo de... (50): uma recordação que ainda hoje me persegue: fiquei com fama de ter agredido um 1º cabo, "branco" da CCAÇ 2701 (e para mais meu conterrâneo de Águeda) para defender a honra de uma "preta" (mulher de um soldado meu, do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Saltinho >O crachá da CCAÇ 2701, "Os 3 SSS" (Saltinho, 1970/72)., comandada pelo cap inf Carlos T. Clemente.  Cortesia de Paulo Santiago.



1. Mensagem do Paulo Santiago, ex-alf mil inf,  cmdt Pel Caç Nat 53 (Saltinho, 1971/73) (é um histórico da nossa Tabanca Grande, tem já cercad 2 centenas de referências desde 22/6/2006).


Data - quarta, 2 de julho de 2025, 18:22

Assunto - Recordação que me incomoda de tempos a tempos


Luis,

Estes últimos textos sobre os "filhos do vento" vieram acordar uma mágoa com 54 anos.

Foi em julho de 1971, viria de férias em agosto,encontrava-me no bar após o jantar quando o meu soldado Mamadú Baldé entra transtornado.

- Alferes, o nosso cabo Manuel C... tentou abusar da minha mulher, agrediu-a.

Fiquei de cabeça perdida, ficaria sempre aqui com a agravante de o Manuel C... ser meu conterrâneo, da mesma freguesia.

Procurei o abusador e, quando o encontrei, dei-lhe uma carga de pancada.

Escapou-se para o abrigo onde foi buscar a G3. Teve azar,entretanto vieram outros elementos do Pel Caç Nat 53, detiraram-lhe a arma e levou mais uns murros.

O Manuel C... desapareceu nessa noite em direcção desconhecida. Apareceu passados três dias.

O Cap inf Carlos T. Clemente, cmdt da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72), mandou formar a companhia e disse ao cabo Manuel C... para dizer onde tinha andado e qual fora a intenção ao fugir.

Fugira com intenção de ir para a República da Guiné mas tivera receio de cair nalguma armadilha ou mina, e não se tinha afastado muito do quartel e do rio Corubal. Comera umas folhas e bebera água do rio.

Este cabo, da CCAÇ 2701,  tinha a especialidade de atirador mas não saía para o mato,estava na arrecadação de material de guerra com um 2º sargento.

Quando chegou ao fim da explicação dos três dias de ausência,diz o Clemente:

- O alferes Santiago vai decidir qual a punição a dar-te.

Fiquei lixado. Eu, conterrâneo do abusador, que também estava para vir de férias, é que ia decidir a punição.

Claro que o Manuel C... ficou sem o castigo merecido.

Apesar da ausência de punição, fiquei, à data, com a fama de ter agredido um conterrâneo para defender uma preta.

Acrescento: o tipo está num país da América do Sul, e os familiares "rezam" para que ele não venha a Portugal porque da única vez que veio, houve graves problemas.

O Manuel C... devia ter levado uma "porrada", não levou, e ainda hoje, quando me lembro, fico incomodado.

Paulo Santiago

PS - Luís, fica ao teu critério, publicar ou não.


2. Comentário do editor LG:



Paulo, obrigado pela confiança que depositas no blogue, na pessoa do seu editor, e teu velho amigo e camarada. Decidi partilhar o teu "segredo", por uma mão cheia de razões:

(i) não éramos meninos de coro;

(ii) este caso e o seu desfecho são exemplares e merecem ser conhecidos;

(iii) que fique claro: houve casos de violação (ou de tentativa de violação) de mulheres da população civil (e também de prisioneiras) no TO da Guiné; muitos ou poucos, não sabemos, não há estatísticas; houve casos, como em todas as guerras;

(iv) na guerra não vale tudo, e o exército português tinha princípios e valores;

(iv) este caso envolveu um graduado (1º cabo) d CCAÇ 2701, " branco" (e por sinal teu conterrâneo) e a mulher de um teu soldado, do recrutamento local, do Pel Caç Nat 53;

(v) houve violência (física), não chegou a haver violação; o que não atenua a gravidade do comportamento do teu subordinado;

(vi) tu eras comandante operacional de um subunidade, adida ao CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72);

(vii) com estrito respeito pela hierarquia, o cap inf Carlos T. Clemente (hoje cor ref), não quis fazer o "by pass", isto é, quebrar a unidade comando-controlo;

(viii) não podias deixar de agir, sob pena de perderes a autoridade e o respeito dos teus homens;

(ix) e agiste à boa maneira da malta de cavalaria e dos paraquedistas: uns bons murros valiam mais, naquele contexto, do que uma "porrada" averbada na caderneta militar (não faço juízos de valor nem discuto se, face ao RDM, tinhas outras alternativas);

(x) podia ter ficado cara a tua atitude lúcida e corajosa: o cabo "abusador" foi buscar a G3 com intenções malévolas (talvez de "vingança"); foi felizmente desarmado e, em desespero de causa, decidiu desertar; cobardolas e arrependido, voltou para o quartel ao 3º dia;

(xi) a lição que tu lhe deste, não sabemos se ficou para a vida; mas 1º cabo Manuel C... deveria ter-te ficado agradecido por não quereres vê-lo embrulhado numa folha de papel selado; se o caso chegasse ao com-chefe, o gen Spínola, o teu homem nem saberia de que terra era;

(xii) o caso foi público e notório (agressão a um elemento civil, insucordinação e tentativa de deserção), mas mesmo assim omiste o seu apelido, como de resto mandam as nossas regras editoriais;

(xiii) espero que ele, algures, na América Latina, ainda te possa ler, e mostrar, memso que tardiamente, arrependimento e gratidão (neste caso, pelo teu sentido de justiça);

(xiv) e, por fim e não menos importante, deves sentir orgulho, mesmo ao fim destes 54 anos (!), de não teres cedido à tentação do "nacional-porreirismo" e teres sabido defender a honra de uma mulher (para mais, mulher de um soldado teu), de acordo com o nosso código de ética como militares;

(xv) mais do que "oficial e cavalheiro", soubeste respeitar a tua consciência e honrar a tua farda!

...De qualquer modo, Paulo, e como já aqui temos dito, nesta série "O segredo de...",  há vítimas nem lugar para a vitimização, não há heróis nem vilóes... Em contrapartida, também não consentimos que camaradas insultem outros camaradas, seja a que pretexto for (e, muito menos, na sequência da revelação de um "segredo", seja qual for o seu conteúdo).  

Uns e outros teremos de ser razoáveis e tolerantes, dois exercícios (o da razoabilidade e o da tolerância) que nem sempre não fáceis... Esta série funciona como um verdadeiro... "confessionário". E ir ao "confessionário" é, antes de mais, "desabafar" sem receio de ser criticado (e muito menos  crucificado na praça pública). Vir aqui dar a cara e contar um "segredo" também é um ato de coragem.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25760: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (5): No RI 1, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...


1. Retomar (ou dar a conhecer) alguns dos seus escritos é também uma forma homenagear o  A. Marques Lopes (1944-2024), que em vida foi cor inf DFA, na situação de reforma, alf mil at inf, da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), membro da direção da delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grão-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis, tendo  entrado para a nossa tertúlia em 14/5/2005)...

 
Falando dos seus escritos, temos para já a sua página no Facebook e  o seu livro de memórias "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp., editado também no Brasil). Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.  No nosso blogue, tem tem cerca de 280 referências.

"Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015) é uma autobiografia,  elaborada com recurso ao artifício literário do "alter ego": o livro foi  escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

 Publicou, nos útimos dois anos,  na  sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais,  de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, 
João Gaspar Carrasqueira. De  ascendência alentejana, o A. Marques Lopes   nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 165/169 e 187/178, seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular). A cena inicial, a conversa entre os aspirantes Aiveca e Gonçalves (pp. 165/169) passa-se no bar de oficiais do RI 1 (Amadora).


No RI 1, Amadora, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...

por A. Marques Lopes 


Quando acabámos de almoçar fomos para o bar de oficiais. Pedimos cafés.

 Não queres um whisky?  
– perguntou-lhe o Gonçalves. (...)

 Chega-me um café.

Os outros dois enfiaram-se numa mesa a jogar poker de dados. Ele e o Gonçalves foram para umas cadeiras que estavam ao canto da sala.

 Então conta lá como é que te livraste daquela treta dos padres?

 
– Ora, fiz como tu. Um dia disse-lhes que me queria vir embora e vim. Mas, antes, andei mais de dois anos a magicar. Na altura em que estava na Filosofia já as minhas dúvidas tinham começado e avolumaram-se de tal modo que o director me mandou para o colégio do Porto, para pensar disse-me ele, vê lá. Tinha-lhe dito que não tolerava aquele ambiente, que havia lá uma cambada de hipócritas que batiam punhetas debaixo dos lençóis à noite, e que no dia seguinte pareciam anjinhos a rezar na igreja. Até lhe disse que também o fazia, não tive medo, mas ele, em vez de me dizer logo para me ir embora,  ainda fez que me massacrasse durante um ano e meio no Porto.

–  É, pá, mas então tinhas-lhe dito logo que querias sair. Eu não demorei tanto tempo. Foi cerca de um mês, só. Fui ter com ele, disse-lhe que não queria continuar e saí calmamente nesse mesmo dia. Fiquei livre, tirei o sétimo ano e fui depois para a Universidade.

 E não arranjaste um emprego?

 
– Não precisei. Os meus pais apoiaram-me. Até alugaram uma casa para mim em Lisboa. Onde ainda estou, aliás  disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e levantou o indicador direito  – ah, eu escrevi-te a dizer onde era, lembras-te?

–  Lembro-me, sim. É na Rua Almirante Barroso, ali para os lados do Chile.

O Gonçalves levou o copo do whisky à boca e eu aproveitou para continuar. Queria dizer-lhe antes que ele falasse novamente. Sentiu o à-vontade dele como uma injustiça.

 Pois é, para ti foi fácil, estou a ver, mas para mim não. Tive de ir viver apertadamente numa casa pequena onde já moravam os meus pais e os meus irmãos. Além disso tive de ir trabalhar para os ajudar, porque eles não têm as possibilidades que os teus, pelos vistos, têm. Foram as perspectivas que eu tinha destas dificuldades que também tiveram influência nas minhas hesitações antes de tomar a decisão de me vir embora. E como é que tu saíste assim tão de repente e nem sequer tiveste de esperar que viesse a dispensa dos votos para assinar? Se calhar os teus pais foram-te buscar ou então tinhas dinheiro, sei lá. Mas eu não, tive de esperar até ao fim e que me pagassem o comboio para Lisboa.

Ele tinha pousado o copo e olhava-o seriamente. Interrompeu-o.

– Espera aí, Aivec, tem calma, deixa-me dizer também. É claro que eu tinha dinheiro, sempre tive dinheiro guardado, estava-me borrifando para aquela treta do voto de pobreza. E a dispensa dos votos era problema deles, que o resolvessem, por mim deixei-me da castidade e da obediência. E quanto ao resto 
 apontou-lhe novamente o indicador  –  não penses que eu não tenho consciência das desigualdades que há, não estou de acordo com isso. E, olha, para te provar, estive metido num movimento contra esta situação toda, e é por isso que estou aqui agora. Fiz o primeiro ano na universidade mas, quando tinha começado o segundo, fui preso durante uma acção de contestação. Mandaram-me logo para a tropa.

 
– Estás a ver? – Aiveca apontou-lhe também o dedo, propositadamente, e sorriu, já estava calmo.   – Mais uma diferença. Tu ainda fizeste o primeiro ano, e vieste para a tropa por protestar. Se não te tivesses metido nisso tinhas acabado o curso, certamente, e só virias depois. Comigo não foi assim. Entrei na universidade em Outubro do ano passado mas em Janeiro deste ano já estava em Mafra. Ainda fui a uma repartição qualquer que há na Rua do Passadiço para pedir o adiamento, mas um gajo de lá perguntou-me em que Universidade eu andava. Quando lhe disse que estava em Letras,  o palerma riu-se. Que não davam adiamento porque não queriam atiradores de caneta, só os de canhota na mão.

 É, sei bem. Interessa-lhes é médicos, para tratar dos feridos, cortar braços e pernas, passar certidões de óbito, ou engenheiros, para construir quartéis, abrigos subterrâneos e aldeias para os pretos. Eu andava em Direito, não sei se lhes interessavam os gajos dali, nem sei se me deixariam acabar o curso, é que, sabes?, só não vão para a guerra os filhos e familiares dos governantes ou dos seus amigos.

Baixou a voz e inclinou-se um pouco para mim.

– E tu, estás disposto a ir para a guerra?

Admirou-se com a pergunta, encolhou os ombros e respondeu-lhe.

 É,  pá, o que é que hei-de fazer? É a vida, não há remédio.

–  Não há remédio,  o caraças. Tens de pensar 
–  e abaixou ainda mais a voz    que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida.

– 'Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas.

 Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar. Até já mudaste uma vez, não é?

Calou-se quando reparou que os oficiais estavam a abandonar o bar. Levantou-se, o Aiveca  também. Desceram até à parada.

 
– Bem, temos de ir embora ao trabalho. Depois vou para Lisboa, só durmo aqui quando estou de serviço. Não queres vir comigo? 

 
– Não. Estou a pensar ir a casa só aos domingos, para ver os velhotes.

–  Mas vem lá hoje, pá. O Serafim, aquele gajo que estava à minha frente na mesa durante o almoço, vai também. Anda lá, tenho uma ideia para ver contigo, agora não dá, e acho que te vais interessar.

–  Não, não vou. Prefiro dormir aqui do que na casa apertada dos meus pais. Depois falamos nisso.

O Gonçalves pareceu um pouco desiludido. Parou, pôs a mão esquerda no  ombro do Aiveca e estendeu-lhee a direita. Ele ficou  espantado com o gesto mas estendeu-lhe também a mão, instintivamente.

 – 
É pena, Aiveca. Adeus, se não nos virmos. Hás-de ter notícias minhas –  e afastou-se apressadamente.

Aiveca ficou  especado a vê-lo afastar-se. Estava completamente baralhado com o gesto e as palavras dele. Acabou por ir andando em direcção à CCS com um torvelinho de interrogações na cabeça. Aquela do aperto de mão não era normal num local onde todos se viam durante o dia inteiro, tanto mais que a saudação da praxe era bater a pala, mas isso não era entre eles, claro, porque eram da mesma patente. E o se não nos virmos, o adeus, será que já tinha sido mobilizado e ia formar companhia? Era capaz de ser isso, sim, mas podia ter-lhe dito quando estiveram a falar no bar…


Capa do livro 
"Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial",
de João Gaspar Carrasqueira 
(pseudónimo do nosso camarada
 A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.
ISBN: 978-989-51-3510-3,

Colecção: Bíos, Género: Biografia).


(...) Na segunda-feira levantou-se cedo, era o hábito que ganhara, e já estava pronto quando foi o toque de alvorada. Vagueou calmamente pela parada, observando tudo o que estava à volta dela, lendo os letreiros que estavam nos vários edifícios indicando a que se destinava cada um. Era uma forma de se inteirar de tudo aquilo, aproveitava aquele tempo para isso, pensando ao mesmo tempo o que é que o capitão lhe destinaria para aquele dia. Vi um soldado que se aproximava.

– O meu aspirante é o aspirante Aiveca ?

–  Sou. O que é que há?

–  O nosso capitão Ferreira quer que vá ter com ele ao gabinete.

Porra que o homem madrugara. Mas ainda bem, ia saber o que fazer. Viu logo que estava com má cara.

– Aiveca, você sabe onde está o aspirante Gonçalves?

 – Não sei, meu capitão, ainda não o vi hoje.

 – Que merda!  – estava mesmo lixado.  – Ele hoje está de serviço à companhia e já devia cá estar!

Olhou depois para ele de modo perscrutador:

– Eu vi que vocês os dois estiveram muito tempo a falar lá ao canto no bar de oficiais. Ele disse-lhe que tinha algum problema?

 Não, meu capitão, não me falou de problema nenhum. Disse-me que depois do serviço ia para casa, como habitualmente…

 É,  pá, tanto tempo e foi só disso que falaram?

Tocou-lhe uma campainha na cabeça e ficou alerta.

 Não foi só isso, meu capitão, claro. Fomos colegas na escola e estivemos a lembrar esses tempos.

Nem esteve para lhe dizer que a escola era o seminário. Não pareceu convencido, mas não insistiu.

– Bem, você vai ficar a substituir o aspirante Gonçalves. Daqui a pouco vai tocar para a formatura e eu vou estar lá para me apresentar a companhia.

Foi assim que entrou no vários serviços à CCS do RI 1. Formaturas, ver se os ranchos estavam bem, prevenções, etc.

O Gonçalves nunca mais apareceu e falou-se durante algum tempo no bar de oficiais, e a meia voz, que ele e o Serafim tinham desertado. Mais uma vez tomou uma atitude e decisão rápidas, pensou Aiveca. Deve ter ido para França, era para onde iam muitos, já sabia. Mas teve condições para isso, como quando saiu do seminário, os paizinhos ajudaram-no e vão continuar a ajudá-lo certamente. Mais uma diferença. Se ele, António Aiveca, quisesse fazer isso como é que podia? Só se fosse para os bidonvilles nos arredores de Paris viver miseravelmente como os milhares de imigrantes que lá estão. Continua a haver coisas que só alguns podem fazer. Tinha de ir para a guerra, que remédio. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  
165/169 e 176/178)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

_________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 
16 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25697: (In)citações (268): Desertar ou cumprir a missão ao serviço da Pátria, mesmo sabendo que o regime, irracional e anacronicamente, entendia o colonialismo como um processo moral e legal? (António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro)

Porta de Armas do Quartel da Serra do Pilar
Foto: © António Tavares, ex-Fur Mil SAM

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, (Mampatá, 1972/74), com data de 27 de Junho de 2024:

Estávamos ali reunidos em formatura na parada do quartel da Serra do Pilar, para a despedida da praxe.
Dentro de breves minutos entraríamos nos autocarros que nos deixariam no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa. Só um camarada faltou à chamada, por ter resolvido desertar, como no decurso desse mesmo dia vim a confirmar.

Não sei o que cada um dos presentes pensou da sua atitude, sei que eu próprio me interroguei se não o deveria ter imitado. E da interrogação fui evoluindo para a certeza de que se estava a cumprir uma missão ao serviço da Pátria, essa missão era um erro do regime que irracional e anacronicamente entendia o colonialismo como um processo moral e legal.

Ao longo do cumprimento da minha missão no sul da Guiné, durante penosos 26 meses, fui compreendendo que, para além da injustiça de um povo governar outro sem prévio acordo do governado, a guerra, mesmo que fosse legítima, era cada vez mais insustentável e conduzia a um morticínio inútil de jovens de pouco mais de vinte anos e sequelas físicas e mentais em muitos outros.

O ano de 1973, quando o PAIGC passou a ter a capacidade para praticamente neutralizar a nossa Força Aérea, tornou-se decisivo para convencer os Capitães de Abril a evoluírem da sua feição corporativa para um movimento revolucionário capaz de derrubar o regime. Pena foi que não houvesse condições políticas para o fazerem antes de 1974.

Nesse mesmo dia 27 de Junho de 1972 chegámos a Bissau, para ainda na madrugada do dia 28 sermos despejados na ilha de Bolama. O resto fica por contar.

Estou muito grato aos Capitães de Abril, sobretudo por terem terminado com a guerra.

Carvalho de Mampatá

_____________

Nota do editor

Último post da série de 24 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25678: (In)citações (267): Compensações às colónias (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

segunda-feira, 11 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste". Na foto, o sold Cristina, municiador do morteiro 81, que as circunstâncias obrigaram a tornar-se padeiro... Como muitos outros, espalhados pelos duzentos e tal aquartelamenntos e destacamentos da Guiné..."A necessidade faz o órgão"... Mas esta história que aqui se conta não tem nada a ver  diretamente com ele..., apesar de ter descoberto na ponte Caium a sua vocação e ter continuado  a ser padeiro pela vida fora.


Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (21) >  O pão que o diabo amassou 


por Luís Graça


− “Duque de Palmela”, imaginem!,  foi a alcunha que me puseram na tropa.

Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras ou bairros donde provinham: o Peniche, o Madragoa, o Setúbal, o Campanhã.... Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, os Carvalhos, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil do que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia de cor, nem o próprio… Andava-se com ele ao pescoço numa medalha metálica, picotada:

− Em caso de um tipo lerpar, cortavam uma metade e entregavam-na ao cangalheiro..., não fosse mais tarde haver troca de urnas − esclareceu o meu interlocutor.

Santos era o seu nome, um antigo 1º cabo atrador de infantaria, que se emocionava quando falava  da Guiné:  dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia; dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver:  "da fome e da sede que raparam"; dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… 

Emocionava-se ao falar do pão que amassou e cozeu em fornos, quase sempre improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a pá de padeiro...

Ainda se emocionava, enfim, quando falava da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!... Pode escrever aí!

Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido "lá para as bandas da Serra da Estrela", em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. 

− Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto por falta de fruta e legumes frescos, e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945, que fui eu. 

Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de "parceria pecuária": tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local nos anos 40.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobrirá, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz do seu distrito, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio (que só era de tantos em tantos meses, quando o barco lá passava).

De regresso à terra, casou e jurou a si mesmo que os seus filhos, se os tivesse e  fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos... De uma pneumia, mal curada. 

− Nunca ficou bom da 'doença dos pulmões' que trouxera da ilha do Sal, dizia-nos a nossa mãe.

Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…(Um em cada dois portuguesees ainda vivia na sua aldeia.)

O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo (como nas tabancas da  Guiné!), paredes meias com o rebanho, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria privilegiada de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. 

Os portugueses estavam então divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos  que de resto se contavam pelos dedos (Hospitais Civis de Lisboa e poucos mais...). 

Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhiam doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.

O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade dos ricos e remediados, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu belo carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira ou coisa parecida.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Roubar para matar a fome não é  
crime, camarada... Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à tua (vamos lá tratarmo-nos por tu como camaradas que fomos,  pode ser ?!) não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, ou dizes bem, camarada: pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…

Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam também moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, fizesse sol ou chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro  ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.

Aos vinte anos foi chamado para a tropa. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.

Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. 

Nas provas físicas, era o campeão. Fazia uma marcha  de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires.

Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” em Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado… À bazucada ou com tudo o que tiver à mão!...

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé, a varrer o capim… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… 

− Ah!, valente!...

− E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas, descavilhadas,  e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato.

Ainda chegou a ser "aliciado" para os comandos:

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me dou bem com as alturas! – explicou ele.

Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e até para o  Vietname.

− No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles, à despedida.

Para o “Duque de Palmela” era a sua independência económica, " o prémio da lotaria" que nunca lhe calhara, porque também "nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. 

− É verdade... E nem sequer é capaz também de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe, à espera de uma carta ou de um aerograma!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns deles
 era como ir para a forca! Outros iam com cara de enterro. 
Havia até quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e já com filhos… Eu até compreendia, Mas, para mim, não!... Solteiro, sem compromissos...
 
E explicou-se melhor: 

 Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, longe disso... Mas não conseguia esconder que estava algo excitado com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas também com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, a salto, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça,  um perdigueiro, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−És ou foste caçador ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram-te que eras um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. 

− ... Compensou-te ?!

− Sim, posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal e porcamente,  a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…

A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Juntava o pé-de-meia de soldado da fortuna e regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…

Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para a África do Sul ou para o  Vietname”. 

Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 

Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo para a Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guarda e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira, em Aldeia Formosa, e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… 

− E, claro, encostado a um poilão para me limparem o sebo, como fizeram a alguns desgraçados depois da independência!

Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … 

A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo, "ganhar calo", e se poder depois  alistar num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era, afinal, virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. 

E, depois, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos  em presídio militar… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal marcial, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…


Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, depois do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para a África do Sul ou para o Vietname... Também me falavam da Legião Estrangeira’mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os sul-africanos e os americanos...

E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

− Um pai, um amigo!,,,

Era miliciano, teria pelo menos dez ou  doze anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem de comnboio, para o embarque no Cais da Rocha Conde de Óbidos, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Aldeia Formosa.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "maluco" ou  "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’... – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção, um alívio.  Mas, não,  para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… 

− Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhei uma 'cadela de todo o tamanho'…

− Básico ?!... O pãozinho de todos os dias é que não podia faltar, ó  Santos!

− … Foi isso que acabou por me convencer... E no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, bem ataviado, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  
 
O “Duque de Palmela” não se deu mal com a “nova vida”, a de padeiro ... Deixou de fazer colunas, operações e serviço de guarda, etc.,  mas tinha que trabalhar de noite para ter pão fresco todas as manhãs para cerca de bocas, entre militares e civis, incluindo o chefe de posto e a família...

E a verdade é que a malta se habituou ao pão fresco todas as manhãs. E isso também ajudou a levantar o moral da tropa. 

O "casqueiro" era, reconhecidamente,  um parte importante da ração a que cada homem tinha direito. Cabia nos 24 escudos e 50 centavos que eram atribuídos a cada militar, do soldado básico ao general, para efeitos de alimentação. Quem era arranchado, recebia em géneros, quem era desarranchado recebia em espécie, sendo no caso dos africanos, muçulmanos ou animistas, que não comiam a comida dos brancos, um importante complemento do salário: dava para comprar um saco de arroz de 100 kg ou mais.

− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…

O Zé Soldado era "pãozeiro", como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros,  tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O  abastecimento era então irregular e incerto. 

− Em Buba, quando lá estivemos, apesar de tudo, tínhamos a lancha da marinha a abastecer-nos.

Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.). 

A farinha e a cerveja era dois géneros alimentares de “primeiríssima necessidade”… Ainda bem que a atividade operacional ficava mais reduzida, sobretudo de julho a setembro, meses de maior pluviosidiade, tanto para as NT como para o PAIGC. Em boa verdade, a guerra parava...

O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.

− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico',  e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…


− A caça ?!...

− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo... 

− Não queria dar confiança aos subordinados, compreende-se... 

− Por outro lado, ele não gostava nada que eu saísse fora do arame farpado, mas lá ia fechando os olhos… E eu também não era mau cozinheiro, diga-se em abono da verdade… Uma vez por outro fazia-lhe uns miminhos, como um cabritinho assado para a messe. Ou um leitão, iguaria que era mais difícil de arranjar, só indo roubá-la aos 'turras'...

A coroa de glória do “Duque de Palmela” foi quando a companhia, a dois grupos de combate, ficou com as calças na mão, mum medonho ataque a um dos seus destacamentos, lá para os lados de Aldeia Formosa, já na segunda parte da comissão, em inícios de 1967, em  plena época das chuvas.

− Os gajos atacaram-nos,  às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu.  Apoio de artilharia não havia.

O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".

− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Até mioleira lá deixaram!... Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves. 

E só por milagre, é que a população se safou. Teve apenas alguns feridos ligeiros.  Mas a tabanca ficou praticamente calcinada. 

− E com ela perdemos também os nossos haveres e os improvisados abrigos onde tínhamos os géneros alimentícios, bem como as outras palhotas que tinham sido cedidas à tropa. Ficámos só com a roupa que trazíamos no pêlo.

A descrição não poderia ser mais pormenorizada:

− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa.  Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, 'puta-fulas', e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.

− 'Puta-fulas' ?!... Queres dizer futa-fulas... Os fulas eram leais à nossa tropa…

− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.

− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…

− Ficámos de calções e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A malta dormia prtaicamente nua, por causa do calor... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!... 

− Medonho, hã?!

−  O mais grave é que ficámos sem comes e bebes, incluindo as rações de combate. Lá se aproveitou uma ou outra maldita lata de cavalas ou de conservas de pêssego da África do Sul… Claro que a população também pilhou o que não ardeu... Nestas situações, os seres humanos são todos iguais, sejam brancos ou pretos: há sempre uns tantos que tiram partido da desgraça dos outros...

De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna só chegou ao fim do segundo ou terceiro dia. E trazia alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?

− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… mais a as milicias e a população. Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.

A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores" (sic).

Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos.

 Com algum dinheiro que poupou em África e um pequeno empréstimo bancário e mais uma ajuda de um dos irmãos que fora 'a salto' para França, fugindo à tropa, e que agora estava lá bem, perto de Paris, o “Duque de Palmela" comprou a quota de um seu antigo patrão, que se reformara, e que fazia parte de uma cooperativa de panificação num dos concelhos vizinhos. Essa Panificadora deu muitas voltas, depois do 25 de Abril, passou a sociedade anónima, até que o M. Santos se tornou o acionista principal, com o filho e com o irmão que estava em França.

Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando  "manga de patacão" , e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.

− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho. Ou dos filhos, há um irmão meu que também é sócio, minoritário.... O meu velhote e minha pobre mãe que ficou viúva tão cedo...

Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.

− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros e cozinheiros”...

Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.

− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto,  que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.

E acrescenta, com alguma euforia:

− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.


Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:

− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Umas "furão" ... Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego,  num banco, num escritório, nas finanças, nas caixas de previdência, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, que é  a minha  amante (mais cara que uma amante!), continuo a ser um gajo simples…

 Pelo que vejo e pelo que me contam...

−  O que é queres que eu te diga mais, camarada ?!... Põe aí, no teu canhenho,  que sei dar valor ao dinheiro e ao trabalho, e sou amigo do meu amigo, camarada do meu camarada!

Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho e absentismo por doença, nos anos 90.

 A Panificadora tinha então ganho um prémio de segurança no trabalho, e poderia ser um potencial estudo de caso de “boas práticas”… Conheci o pai e o filho através do médico do trabalho que tinha uma avença com a empresa e que fora meu aluno. Conversa puxa conversa, acabei por saber que o "patrão velho" tinha estado na Guiné, antes de mim, mas não longe dos sítios por onde passei e penei…

Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.

− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estivera com ele, já depois de enviuvar.

− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca tiraram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, antes de me dar uma macacoa, mas não sei se tenho força nas canetas…

− Mas já agora diz-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não te ofender… – pedi-lhe eu.  

Pesou a pergunta antes de responder:

− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com  um misto de bonomia e malícia. 


− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.

− Olha, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. O rio Grande de Buba, o Geba também, mas não o raio do Corubal... Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.

Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo  escrever a história de vida deste homem…  


Soube depois, pelo médico do trabalho meu conhecido,  que o Santos acabara por concretizar o seu sonho de voltar à agora Guiné-Bissau e ainda encontrara gente do seu tempo, nas tabancas por onde andara… 

E, ao que parece, deixou, a uma ONGD, a operar na zona, uma "nota preta" para ajudar a construir uma  pequena escola na antiga tabanca onde estivera destacado, e que ardera em 1967. Julgo que quis fazer as pazes com o passado, tal como alguns de nós.

Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra. 

Vim a  a saber, afinal, que era seu hábito estender a mão, muitas vezes, aos amigos dos seus amigos, quando se apresentava,  dizendo com graça: 'O Duque de Palmela, para o servir!'... Inclusive tratava a esposa por “duquesa… de Santiago do Cacém”. Tinha sentido de humor.

Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:

− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia… 

− Afinal, foi um camarada com azar ao jogo e sorte aos amores e aos negócios  − conclui eu.

− Quando chegou a Bissau, já toda a malta o tratava por “Duque de Palmela”… E acho que é também uma justa homenagem, visto o filme ao contrário, da frente para trás…

− E, olha, é uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres...  aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras.  Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"... 


Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que num próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a Comenda da Ordem do Mérito... 

Não seria nada de mais justo, de resto, ver um antigo "pé descalço" (que não tinha vergonha do seu passado!), um  ex-combatente da Guiné, um antigo padeiro e agora  um industrial de panificação  de sucesso  a ser tratado pelos "grandes do Reino" como  comendador,  depois de ter comido o pão que o diabo amassou.  

Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se  as vontades, as honrarias e as mercês...

© Luís Graça (2019). Revisto em 10 de março de 2024.

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