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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27158: Felizmente ainda há verão em 2025 (25): Cabo Verde, onde os sonhos proliferam e as águas azuis dão as bem-vindas aos visitantes (José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Especiais da CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), com data de 25 de Agosto de 2025:

Cabo Verde, onde os sonhos proliferam e as águas azuis dão as bem-vindas aos visitantes

Visita aos seus sabores, às suas gentes e a Ilhas de inigualáveis prazeres

Cabo Verde, com nove ilhas habitadas – Santiago, Fogo, Maio, Brava, Boa Vista, Sal, São Vicente, Santo Antão e São Nicolau -, é atualmente um país onde os seus sabores comestíveis, ou a delicadeza das suas gentes, ou, ainda, as suas Ilhas que são literalmente merecedoras de inigualáveis prazeres e possuidoras de características únicas de uma nação na qual existem místicas ancestrais que se enquadram com os valores naturais que os seus anfitriões recebem os forasteiros.

Jamais olvidaremos que o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde – foi um movimento revolucionário fundado em 1956 que teve como grande impulsionador o nacionalista, e líder, cabo-verdiano Amílcar Cabral, um homem que havia nascido na Guiné-Bissau. Amílcar era um vanguardista que promoveu então a revolução Socialista e que lutou para derrubar o Império Português. O seu projeto passava por uma unificação de Cabo Verde com a Guiné-Bissau.

No ano de 1961 iniciou-se a Guerra Colonial em Angola, depois Moçambique e por fim na Guiné. Como sabeis camaradas que ao longo da guerrilha do ultramar, as nossas tropas tiveram sempre militares instalados em Cabo Verde. Lembro, também, de camaradas que iam passar férias a Cabo Verde, sendo os seus alojamentos marcadas pelo regozijo. Mariscos, cachupa, frutas, a versatilidade do milho e os vinhos do Fogo, faziam dos forasteiros um mar de prazeres. Mas, com a Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974, as antigas colónias tornaram-se países independentes, sendo Cabo Verde pátria de uma viagem a não perder.
Por ironia do destino, a minha filha mais velha, a Marta, assistente de bordo da SATA, tirou uns dias de férias e lá foi a caminho de Cabo Verde, com o meu genro Pedro e o meu neto Salvador. Sendo ela assistente de bordo e conhecedora de grande parte do Mundo, diz-me que a Ilha do Sal, onde se encontra, é um dos sítios mais acolhedores que até agora visitou. Pessoas simpáticas, onde os seus manjares são puramente divinais e as suas histórias deveras enternecedoras.

Nós, conhecedores da aproximação existente entre a Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde, tanto mais que fomos combatentes em solo guineense, ouvíamos “contos” que nos encantavam.

Agora, encostados ao peso de uma idade que não perdoa, resta-nos puxar pela memória, viajarmos nas “asas do vento”, partir ao encontro de camaradas cabo-verdianos com os quais convivemos no dia-a-dia na guerrilha da Guiné, deixando aqui um curto texto sobre um camarada ranger, furriel miliciano Ramos, natural de Cabo Verde, quando a 2 de agosto de 1973 chegámos à Guiné. História, a dele, emotiva e, quiçá, argumento para um filme que que transmitiria emoção.

O Ramos, foi para o Batalhão de Pirada, eu para o de Nova Lamego, Gabu.


Ramos, furriel miliciano ranger que desertou para o PAIGC

De Tavira à Guiné
Com o Ramos nos barracões (onde dormíamos) no QG, em Bissau

O seu sorriso encantava! Entrava-me no goto. Já éramos dois tendo em conta a nossa habitual expressão facial. Um moço que se integrava facilmente em qualquer ambiente. O esmalte dos seus dentes, a sua bondade emocional e a forma afável como curtia com os camaradas desafiadas conversas de têmpera diversa, levaram-me a travar com ele uma amizade recíproca ao longo de um certo período das nossas vidas militares.

Assentei praça com o Ramos no CISMI, em Tavira, no dia 10 de outubro de 1972. Ficámos em companhias diferentes, todavia cedo existiu entre nós uma empatia que nos tornou amigos. O Ramos estava junto a outros camaradas que tinham viajado com ele de Cabo Verde.

No final da recruta em Tavira, o Ramos, o Daniel e um outro camarada cabo-verdiano, acompanharam-me na viagem a caminho de Lamego. Operações Especiais/ Ranger foi o nosso fim. O Daniel foi para o curso de oficiais e nós para o de sargentos.

A nossa amizade reforçou-se. Penude fortaleceu laços emocionais que partilhámos durante um tempo… sem tempo.

Fomos ambos para a Guiné e justamente na mesma altura. Quis o destino que o nosso reencontro se apresentasse como dado adquirido nas instalações do Quartel-General (QG), em Bissau. Um abraço forte entre dois rangers selou a nossa afeição.

O Ramos foi para o Batalhão de Pirada e eu para o de Nova Lamego. Ficou a promessa de voltarmos a reencontrarmo-nos um dia. Todavia, essa promessa dissipou-se no tempo e nunca mais encontrei o meu simpático camarada de armas.

Soube, muito posteriormente, e numa conversa com o camarada Pedro Neves, também ele ranger e do nosso curso em Lamego, que o bom do Ramos se pirou, a dada altura, para o PAIGC. Não foi um guerrilheiro ativo contra as suas anteriores tropas, confessava. Foi um operacional, mas em áreas diferentes. Da aventura ficou a certeza, deduzo, que esteve integrado num movimento que lutou no terreno pelos seus direitos, sendo que alguns dos principais dirigentes do PAIGC oriundos de Cabo Verde, também o terão feito, por honra ao seu torrão materno.

Depois do 25 de Abril de 1974 o Pedro Neves e o Ramos reencontraram-se em Bissau. O Ramos, sempre desperto para a conversa, e sobretudo alegre, contou as suas peripécias, assumiu a sua aventura, e após a independência o simpático homem de Cabo Verde, num estilo simples, cordial, referiu que tinha regressado ao exército português que o terá levado de volta ao seu país.

Uma história maravilhosa de um rapaz, sem vaidade, que no momento exato cedeu ao que o seu coração lhe pediu. Tinha, com certeza, referências sobre os líderes que assumiam o comando de um Partido que lutava pela independência da sua pátria mãe.

Até um dia, camarada ranger Ramos!

Abraços, camaradas
José Saúde
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Nota do editor

Último post da série de 27 de Agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27155: Felizmente ainda há verão em 2025 (24): amigos e camaradas da Guiné, não havia régulos em Angola... apenas sobas e regedores (Fernando de Sousa Ribeiro)

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro.   Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo de férias. A milhares de quilómetros de distância... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta,nalu, mandinga, biafada, manjaco, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  Dos "tugas".

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda". E ria-se.

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o difícil território do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabias que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam  outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala-te. Ele era um obscuro biafada. Um "cão rafeiro". Sabia lá o que era a história.  E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos "cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas quanto dececionantes  férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo na memória. Ainda hoje. Não foram as férias que tanto idealizaste.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe quando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia. "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. 

À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homens. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  aos amores.  Ias tendo sorte na guerra, vá lá . Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco. 

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste  sempre a remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de "tropa- fandanga". Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não, não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?!...    

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem poderia, se quisesse,  ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.

 Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço. Tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas tinha havido ou havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas não era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? 

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada, de férias. 

Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa. Um gajo morto cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava.  E para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".  

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com a malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso,  o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado do velho.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.  

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo mesmo. Pouco sociável. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais  ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.

Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraras, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho, no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto:  com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)

As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.

O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.

O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria" ( sic), numa festa da vila... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.

Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e luta de machos ?

O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz. O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres criaturas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda a latejar  no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúva e dos pais. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a dar pormenores. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se passava mal ou comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos teria a 4ª classe e  achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido. 

Estavas com receio de não estar à altura de  desempenhar esta delicada tarefa... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos gestos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram-te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva. Só podia ser. E tu eras o "mensageiro da morte"... Ela percebeu logo que era alguém da tropa. Que vinha por causa do marido. Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Oficial e cavalheiro, estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. E ela mesmo sentou-se numa banqueta, junto à  lareira, a dois metros de distância. Recatada. E ligeiramente ofegante. Reparaste que era bonita.

Sem grande palavras, deste-lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse de direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui que nem uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos àquela gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Desapertaste-lhe a blusa de flanela no colarinho. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma jovem mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava  desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Numa missão humanitária. 

Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

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Nota do editor:

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27015: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (42): Nascido com o cu virado para a lua



"Da janela do meu quarto, na madrugada do dia 28 de setembro de 2015, por volta das 4h20, o firmamento celeste apresentava o tão esperado acontecimento astronómico do ano, a ocorrência de Super Lua em simultâneo com um Eclipse Total da Lua...

Peguei na máquina e obtive esta e outras imagens,  que quis partilhar com os nossos leitores... Já estava a meio o eclipse, eu devia ter-me levantado mais cedo...  

Dizem que os lobisomens é que uivam à lua cheia, mas também em luas negras, e provavelmente em noites de eclipse... Quando eu era puto, acreditava em lobisomens... Se acreditava!... E até me diziam que tinha um tio-avô que era lobisomem... Metiam-nos medo, aos putos, os safados dos graúdos, com essas histórias de lobisomens, bruxas, almas penadas e espíritos maus que cochichavam por detrás das paredes, portas e armários... Havia amuletos, gestos, rezas e mezinhas para nos defendermos do mau olhado e dos encontros funestos com estes seres do mundo das trevas."

Foto (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. 


Contos com mural ao fundo > 
 Nascido com o cu virado para a lua

por Luís Graça


 "Nascer com o cu virado para a lua" é uma expressáo da chamada  sabedoria popular, aplicada a quem tem muita sorte na vida,  traduzida  em geral pelos sinais do sucesso,  do amor ao dinheiro, da saúde aos negócios. Sucesso obtido de maneira aparentemente natural,  fácil, quando não mesmo inesperada... Claro, as histórias de sucesso causam sempre inveja aos outros que se queixam de não ter tido sorte na vida. 

Pode ter sido o caso do Ulisses C..., ,  senhor embaixador, já falecido. Diziam na terra que ele nascera de um parto distócico. De costas, de barriga para baixo, de cu para o ar. E para mais em noite de luar de janeiro. E sobrevivera.  Contra todos os temores. O que a velha parteira interpretou como um sinal de que vinha ao mundo já abençoado. 

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado, senão te importas... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso, Ulisses  C...

Foi um "puto mimado", confirmavam os dois interlocutores.  O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. Ou rica e importante, como se queira .

Na escola, o Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (que eram à compita, para ver quem dava menos erros)... Mas também no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!..,

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha pobre mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!... Eu nasci de cu para o ar."

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. Nasceu, de facto,  de cu para o ar. Podia não ter-se safado.  E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...− atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara,  a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas duas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele   confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, e numa posição difícil... Mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Alfredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos em plena II Guerra Mundial,  em 1943, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa, como o Jorge, o Nando e todos os demais da sua geração...

− Lembrava o pai que foi em plena batalha de Leninegrado, quando o Exército Vermelho conseguiu, pela primeira vez, abrir um corredor que levou a esperança aos sitiados −  acrescentou o Jorge.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

De facto, o doente (sobretudo quem tinha algo de seu)  ficava acamado em casa, era tratado pelo João Semana ou por  alguma "curiosa" e, se era caso para morrer, morria em casa, rodeado de filhos e netos... , depois de receber a extrema-unção pelo padre da paróquia.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o "historiador da terra", o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que se sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o senhor Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante! 

− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.

− A "Anselma", como diziam as más - línguas. Não a conheci...Mas era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências...

− A "Anselma"!... Cheia de mordomias... A minha ex-mulher, que Deus também já lá tem, tinha-lhe um ódio de morte...

 − Mas... exilado, o Ulisses, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Não foi por razões políticas. Como sabes, ele fugiu à tropa. Tão simples quanto isso.

Não, não era um desertor, mas um refratário... Não era a mesma coisa: legal e tecnicamente, o Ulisses não foi um "fujão", como se costumava dizer na época em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era, no entanto,  bem mais grave do que faltoso na época, em que o país estava em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa jóia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota do seu  sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o mais profundo rancor e desprezo… 

− Só soube isso muito mais tarde... Mas também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais da vila,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos... por não terem morrido pela Pátria...

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital das doenças infectocontagiosas, em Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se muito pouco ou nada.  Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sorte, isto é,  sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais. 

Tinha a vantagem de não ter passado. Não se lhe conheciam os "podres",  como diziam as alcoviteiras da terra. Mas também ninguém sabia se tinha nascido com o cu virado para a lua, como o filho...

A verdade é que aqui casou,  aqui teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos palermas dos putos da escola)…  

Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e sobretudo  promissores, com países da Europa do Norte e Centro. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começara no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

O Jorge  ainda era do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital, e que parava em todas as terras... E a maior parte das estradas do concelho ainda não eram alcatroadas.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado muito mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a abertura da economia ao exterior, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos na Palestina − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores). 

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. E calou de vez o coro das mulheres que, no lavadouro público, também lavavam a "roupa suja" dos ricos da terra...

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais, os " caciques", que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era uma fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros, ou um mês de jornas de um "cavador de enxada"...

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia,  entre dentes, que era "maçon", coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era;  pior só jacobino,  mas muito pior ainda ser comunista...

O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a digníssima esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das beatas.

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter andado na marinha mercante inglesa e ter uma bomba da Shell). Terá sido dos primeiros a ter rádio e luz elétrica em casa. E constava que ouvia a BBC. E mais: dizia-se que era espião dos ingleses.

− Mas finório e cínico como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo: sabia que eu era do "contra" e até simpatizava comigo. Nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958, depois das eleições do Humberto Delgado,  o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe (em boa verdade,  tinha um curso técnico na área da mecânica fina, era autodidata e poliglota).

Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um  convite (esse menos lisonjeiro) para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Todavia, a  razão nem  era essa: ele já movimentava mais dinheiro e empregava mais gente que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público, abrir um estradão ou calcetar uma rua...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo inegável talento para os negócios e as relações públicas, deixou bem claro, à tacanha elite local, de agrários, comerciantes e "mangas de alpaca", que não precisava da política para subir na vida... 

Restaurou o melhor palacete da vila ( doado â esposa por morte da tia e madrinha),  para inveja de alguns senhores da terra. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele recusava-se terminantemente falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verossímil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Estava na mesa do escritório onde ninguém entrava a não ser a criada para a limpeza semanal do pó...  

Sabe-se que o Anselmo só conheceu a futura terra dos seus filhos depois do casamento, na véspera da II Guerra Mundial. Conheceram-se, ele e a futura esposa,  ao que parece, num cruzeiro da Cunard-White Star. Ele fazia parte da tripulação do navio. E ela acompanhava a tia e madrinha que, além de viúva e sem filhos, era rica e tinha o bom gosto de viajar.  

O Anselmo era um sedutor e um "gentleman": depressa caiu nas boas graças da tia e da sobrinha.  O copo de água foi  na Figueira da Foz. A madrinha morreria no pós-guerra e deixaria o palacete à sobrinha e afilhada.

Lá em casa, garantia o Jorge, também nunca se falava do passado, não  havendo por isso  grande curiosidade em saber mais sobre a  vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados do papá Anselmo. Afinal, todo a gente de bem tinha um ramo pobretana na família.

Das poucas vezes que ele,  a mulher e os filhos foram a Vieira de Leiria, em passeio, aproveitando para "revisitar o passado",  deu para perceber melhor a sua origem: os seus "parentes afastados" ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, quanto mais fosse, alegadamente,  só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar")... No fundo, um pretexto para passar uns dias na "terra da sua querida mãe"...

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos, o  Ulisses e as manas,  detestavam,  que horror!, preferindo de longe São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as poucas famílias burguesas, abastadas, da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França e a Alemanha, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril. 

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamente as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público  (quando começaram a aparecer os planos de urbanização),  ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"... 

Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas.  As máquinas já não vieram a tempo de suprir a falta de braços, Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas". 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. Os democratas do 26 de Abril, nascidos como cogumelos.

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República. E "morreu republicano", garantiu o Ulisses, num "in memoriam" que escreveu sobre o pai, e publicado no jornal da terra.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam (o que era muito naquele tempo!)...Eu sou da colheita de 1946.   Além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico", o primeiro a ter uma  "vespa".

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. De bibe, impecável, engomado e  passado a ferro pela criada.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. E ninguém entrava descalço. 

Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 15 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas (seguramente por conselho ou imposição do pai)... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, pondo-o a salvo, antes que as coisas dessem para o torto (como deram).  Nunca apanhou o "vírus" das greves estudantis...

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1943. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. 

Vinha munido de uma valente cunha e de um extenso relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar, que por sinal era de Leiria e seu conhecido.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi  uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte.  A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos papás.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas. De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de hereges, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores, mesmo sabendo que ia para o céu". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, esbelta, viajada, culta, mas  conservadora,   beata, benfeitora e amiga dos pobres. Fundou uma creche que o Anselmo doaria mais tarde â santa casa da misericórdia local e que hoje tem o nome da esposa.

E o Anselmo não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes. 

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, logo em 1961. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras".

A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Doze  contos de réis era muito dinheiro naquele tempo de incerteza. Ele já tinha interesses no ultramar (em Angola, mais concretamente). E alguém tinha que os defender... Os filhos dos outros, devia ele pensar.

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. 

Segundo ele, passou a ter uma reforma dourada e um vasto capital de relações sociais... Era agora livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vivia entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não se falavam desde que o Jorge se divorciara da irmã. Nem nunca mais aparecera pela santa terrinha. 

−  Nunca morremos de amores um pelo outro...Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Jorge. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

E concluiu:

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Neerlandês, como se diz agora... Mas eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um bom paizinho − comentou, irónico,  o  Fernando.

− Foi tudo junto... Cumpriu-se, afinal,  a profecia da parteira, quem nasce de cu virado para a lua tem sempre sorte na puta da vida...


PS - O Ulisses C... morreu uns tempos depois desta conversa. De qualquer modo, o nome é fictício, mas a sua história de vida é real.

© Luís Graça (2022). Última revisão:  14 de julho de 2025.

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Nota do editor LG: