por Luís Graça
Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.
Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro. Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.
Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.
Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu, todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.
Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino, seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele.
As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo a milhares de quilómetros... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão". A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta, mandinga, biafada, manjaco, papel...
Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".
Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes. Dos "tugas".
"Certo ou errado, Malan" ?
Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar".
Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda".
O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele. Mas a verdade é que eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o terreno do subsetor que fora atribuído à companhia.
Mas sabias que no passado eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam outros, que a história é o soma-e-segue -come-e-cala. Ele era um obscuro biafada. Sabia lá o que era a história. E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos " cães dos colonialistas" e julgamentos populares...
Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas e dececionantes férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão. Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo. Ainda hoje.
Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".
Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos. Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra, para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval. E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado". Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.
Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe uando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia. "Sim, meu capitão. Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"
Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971, obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te.
Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.
País em guerra ? Quando chegaste ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).
O teu mano tinha ido, pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira. A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.
E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar.
À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial.
Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homnes. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem nos amores. Ias tendo sorte na guerra, vá lã. Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas. Nisso, eras um tosco.
No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste sempre a sempre remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM ? Foste para o COM por mérito. E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco". O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.
Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de tropa- fandanga. Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.
Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães. E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.
Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava.
Férias, disseste tu ?!...
Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.
Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra. Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a cena.
Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo. Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem podia, se quisessee, ter-te escondido no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.
Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço, tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.
Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ? Sabias pouco, mas havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado.
Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.
"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ?
"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada.
Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa, cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...
O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.
O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava. E para mais de cavalaria. Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".
− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...
Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:
− ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?
− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.
− Mas..., qual é então a minha missão ?
− Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro, apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.
O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança". Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".
O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.
Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.
Ainda hesitaste:
− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou. Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...
− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.
E prosseguiu:
− Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.
Não tiveste coragem de discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte.
Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar.
Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso, o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado.
Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros, era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.
Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia. Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.
Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses. Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.
O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.
Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraste, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época. "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.
Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares. O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis. Os dados estavam lançados.
Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"...), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!
Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana.
Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto: com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)
As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.
O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria", numa festa do concelho... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.
Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e lutas de machos ?
− Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.
A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.
... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.
_________________
Nota do editor:Último poste da série > 14 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27015: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (42): Nascido com o cu virado para a lua
1 comentário:
Lê-se na Wikipedia sobre a serra do Caldeirão:
(...) Os árabes exerceram grande influência na serra do Caldeirão. Introduziram a amendoeira e a laranjeira e estão na origem do atual tipo de povoamento, constituído por aldeias dispersas de pequenas dimensões – os montes –, com toponímias curiosas, normalmente baseadas em características físicas locais: Alcaria, Azinhal, Cabeça Gorda, Cumeada, Barranco do Velho, Ameixial. A memória da presença árabe permanece ainda a nível arquitetónico, de que são exemplos o castelo velho de Alcoutim ou o povoamento do Cerro das Relíquias, e a nível cultural (regionalismos, contos e lendas envolvendo mouras e mouros encantados).
A população da serra do Caldeirão viveu isolada durante séculos. Raramente ia ao litoral, e ainda hoje os serrenhos (designação pela qual são tratados os habitantes das serras algarvias) chamam «Algarve» às zonas baixas do litoral e do barrocal algarvios. Durante séculos, as notícias de fora eram trazidas pelos almocreves, juntamente com os produtos do litoral, como peixe e sal. Ainda na atualidade existem muitas marcas do modo de vida antigo, como azenhas, levadas, açudes, moinhos de ventos ou fornos. As casas típicas da serra do Caldeirão são feitas de pedra e caiadas de branco, com telhado de cana, normalmente de uma só água. As diversas funções dividem-se frequentemente por edifícios separados, não raro com uma única porta em cada um deles. Por vezes não se caiam os fornos e os palheiros. (...)
Enviar um comentário