Mostrar mensagens com a etiqueta História da CCAÇ 2679. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta História da CCAÇ 2679. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13731: História da CCAÇ 2679 (70): Em "O Jagudi" - Quanto vale a vida de um homem?" (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 9 de Outubro de 2014: 

Olá Carlos, bom dia!
Na senda da lenta revelação de episódios ocorridos no âmbito da comissão militar, tanto em estrito, como em largo senso, hoje envio-te uma referência a uma intervenção de um dinâmico parlamentar da antiga Assembleia Nacional, o Pedro Pinto Leite, que (em minha opinião) conjuntamente com o Miller Guerra eram os mais afoitos deputados da chamada Ala Liberal, onde o Sá Carneiro dava a nota "snob" do oposicionista com "pedigree" civilizado.
Por infortúnio do destino, o Pinto Leite faleceu na Guiné durante uma visita no âmbito das funções parlamentares.

A referência relaciona-se com o eco dado pelo Jagudi a uma reportagem sobre a discussão da Lei de Meios, hoje designada por Lei do Orçamento, ou simplesmente Orçamento.

Com um abraço amigo
JD

************

HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

"QUANTO VALE A VIDA DE UM HOMEM?"

Decorria a tarde sem incidentes que me fizessem levantar da cama, onde folheava um livro qualquer, quando, sem que a tempestade se fizesse anunciar, alguém me procurou para me apresentar ao capitão Trapinhos.
Ao passar a ombreira da porta do gabinete de SEx.ª, deparei com ele lívido e escanzelado que de costume, e num impulso de sobrevivência, atirou-me com a pergunta impertinente:
- Você quer foder-me, ou quê?

Posta assim a questão introdutória, a que reagi com um cauteloso silêncio, num gesto tenso de perturbação agarrou numa folha de papel que jazia na sua frente sobre a secretária, e deu-me a ordem clara para ler o conteúdo, esticando o braço com o papel na ponta dos dedinhos, enquanto me lançava um olhar vermelho de ódio incontido.
Tratava-se de uma mensagem-rádio proveniente de Bissau, que cito de memória:
- Encarrega-me S.Ex.ª o Com-Chefe de recomendar que, quando conveniente, os textos a inserir no Jagudi susceptíveis de interpretações deturpada, sejam previamente esclarecidos sobre o respectivo contexto.
Assinava o Brigadeiro Comandante-Militar.

Virei a folha para ganhar tempo e inspiração, pois no verso nada era acrescentado, fiz o gesto de lhe devolver a mensagem, que ele ignorou, enquanto parecia exigir o meu esclarecimento contextual.
Deixei cair o papel sobre a secretária, e com uma inusitada lata observei:
- Isto está a ser um sucesso!

O Trapinhos ficou tonto pela surpresa da resposta, e teorizei que o Sr. Com-Chefe, secundado pelo Sr. Comandante-Militar, não manifestava qualquer opinião condenatória, antes parecia só faltar mais clareza a dar estímulo para prosseguir.

Atónito, o capitão nada disse de relevante, mas advertiu-me, que se levasse uma porrada que lhe estragasse a carreira, haveria de vingar-se convenientemente.
Coitado, ainda não estava feliz. Para melhor compreensão da origem perturbadora da vida suave do comandante da Companhia, anexo o documento publicado.


____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13570: História da CCAÇ 2679 (69): O número 2 de "O Jagudi" (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13570: História da CCAÇ 2679 (69): O número 2 de "O Jagudi" (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)

HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

69 - O NÚMERO 2 DE "O JAGUDI"


1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 25 de Agosto de 2014:

Já antes dei notícia de que em Bajocunda editou-se um jornal de grande repercussão e prestígio junto da população militar ali habitante. Não é que lá faltassem informações, até boatos, mas era uma coisa nossa, feita com o carinho de uma comunidade geralmente amiga, e que tinha a sua própria visão do mundo. Quem quisesse, poderia dedicar-se à escrita de um texto, que submetido à comissão local de censura, se fosse aprovado, veria a luz do dia. Acho que foram todos. E a pomposa comissão local era só eu. Sendo assim, em que medida poderia um qualquer texto ser censurado? Desde logo se dissesse mal de mim, coisa óbvia, ao alcance dos cidadãos simples que se ofereçam para estes trabalhos. O problema, é que eram tão escassas as colaborações, que não tive oportunidade para o exercício desse mister, com a frequência que me daria importância histórica.

De facto, uma ocasião depois do golpe de Abril, para integrar uma comissão para a qual fora eleito, pedi uma declaração sobre uma eventual ficha na "extinta", e a resposta foi de uma pobreza total. É que nem bufo conseguira ser! Falta de aptidão, certamente. Outros, carregadinhos de informações e "desvios", estão agora muito bem na vida, inclusivamente em regime de acumulação de pensões. E não é só a um que me refiro. Nem da mesma fonte.

Regresso ao Jagudi, melhor, O Jagudi. Dava um bocado de trabalho. foi necessário integrar o capitão na vontade de o fazer, apesar dos prejuízos causados no saco azul, mas, em contra-partida, granjeava-lhe imenso fascínio e prestígio junto da população militar, ao mesmo tempo que lhe dispensava um ar de patrocinador diletante e despreocupado, sem necessidade de declarações para as finanças. Por trás dos respectivos óculos de ver melhor, dois sargentos lá alapados, faziam caretas sobre o desenrolar da iniciativa, e deitavam contas à despesa mensal intrínseca. Numa cera batia-se o texto e o arranjo gráfico de cada página, que depois das correcções introduzidas pela aplicação de verniz, sobre as quais se dactilografava o texto correctamente fixado, ia à máquina reprodutora de impressão gráfica. Isto acontecia para cada folha. Finalmente, seleccionavam-se as folhas de diferentes temáticas para cada exemplar, agrafavam-se, e punham-se ao dispor dos simpáticos cidadãos, que se dessem ao trabalho de as ler. E desta presunçosa actividade, nascia o dito cujo, órgão da informação, da cultura, de passatempo, e de outros adjectivos que a imaginação possa inculcar-lhe, de domínio colonialista, para não facilitar a vida aos "reaças". Não era bem assim, no meu entender, mas ao longo das edições, vou já antecipar a confusão.

Desta vez, dou a conhecer três textos do número dois. Um de ordem afecto-psicológica, uma espécie de introspecção sobre o papel de uma mãe ausente na vida de um tropa paisano e mobilizado algures na Guiné. Outra, de outro excelente camarada, reporta-se a uma temática pertinente para o ambiente da guerrilha, e tem a ver com o quotidiano de cada um de nós, no sentido de mantermos alertas, contra as mais dissimuladas e imprevistas actividades do IN. Finalmente, uma narrativa retirada de uma revista internacional, sobre os problemas de uma senhora trintona, da nobreza, que não foi a Bajocunda naquela época. Como teria sido diferente, e proveitosa, uma estadia que tivesse feito junto do pessoal da nossa Companhia. Mas acho que foi tudo produto de fértil imaginação.

Assim, deixo ao vosso cuidado a leitura e a eventual apreciação que possam fazer, não sem que, antes, e lealmente, vos alerte para as regras de boa educação que são timbre do Blogue, e de que eu, por inerência, também sou beneficiário.
Boa leitura.



************


************

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13466: História da CCAÇ 2679 (68): Flagelação muito concentrada e certeira (José Manuel Matos Dinis)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13466: História da CCAÇ 2679 (68): Flagelação muito concentrada e certeira (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 4 de Agosto de 2014:

Viva Carlos!
Tem paciência, aguenta lá com esta!

Um grande abraço
JD




HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

68 - FLAGELAÇÃO MUITO CONCENTRADA E CERTEIRA

Aconteceram muitas e variadas situações inopinadas durante a guerra que travámos na Guiné.
Não me lembro de todas em que participei, ou de alguma maneira fui envolvido; ainda não contei todas de que retenho memória, e julgo que algumas não contarei, por constituírem testemunhos merecedores do maior repúdio social, e já antes, por breves abordagens aos insondáveis desígnios humanos, recebi reparos de leitores que se sentiram ofendidos, na crença de que vivíamos na melhor das civilizações, apesar de nem terem sido beliscados nos conteúdos que subscrevi.
Somos assim, e eu não tenho a veleidade de mudar o mundo, mas se pudesse... ah! com certeza.

O que me proponho agora trazer a público, não tem nenhuma revelação estrénua, nem de cobardia, nem ofensiva da moral e dos bons costumes, apesar do insólito, e da atrapalhação gerada. E todos se salvaram, conforme o nosso propósito ao embarcarmos com destino à Guiné.

 Como se recordam, pelas dezoito horas, nas lonjuras de Bajocunda, o sol mergulhava nos confins do ocidente até se diluir no escuro da noite, que um bocado depois começava a evidenciar o estrelar faiscante do firmamento, numa profusão de riquezas diamantinas, que nos deixava de olhares sequiosos como quem espera ser compensado por tão longa deslocação.
Se uns se regalavam naquela contemplação, outros entregavam-se a Morfeu, e alguns ainda liam, escreviam, ou faziam lerpas batoteiras, antes de pregar olho.

Certa noite, provavelmente habitada por inúmeras recordações da juventude, por projectos de futuro, por requisição de momentos passados, ou inquietações perenes, sei lá por quê, dois furriéis que tinham frequentado o mesmo colégio, e cimentado entre si uma cumplicidade maluca, ficaram à conversa sem se darem conta da passagem do tempo.
Por alguma razão, que não vem ao caso, deram-se conta de que os restantes já dormiam a bom dormir. Cá para mim, devem ter imaginado os diferentes comportamentos quando desaba uma flagelação inimiga, que é uma coisa que ninguém aprecia, sobretudo, quando está a viver tal género de acontecimento. Algum deve ter imaginado confrontar a hipótese com a realidade e, de outro ângulo, apreciarem as reacções. Não acuso, especulo.

A fonte de luz lunar deve tê-los inspirado daquelas estórias fantasmagóricas, com sombras reflectidas na penumbra, sons suspeitos na passagem de cada porta, medo na travessia da escuridão e dos encontrões precipitados, entre os ingredientes do humor negro que já firmou autores de renome mundial que, ainda não é desta, não me proponho a alcançar. Essas reacções de medo, cagaço, incerteza, sangue, dor, e outras consequências drásticas, devassavam o cortex de muitos combatentes, que preferiam estar aninhados junto com as namoradas, já que ali não se conheciam adeptos de outro género.

Fez-se um plano de acção.
Estavam tão lúcidos os dois furriéis, que nem carecia de revisão, ia resultar em cheio.
Um deles foi buscar um rolo de corda à oficina, que se mostrava necessidade premente para temperar a situação de ficção em realidade. O outro abordou-se do local onde se juntava o lixo de garrafas vazias, que também constituía outra necessidade essencial no conjunto dos ingredientes para a acção, e reuniu algumas delas, que colocou em lugar estratégico. Entraram dentro do edifício com três quartos onde os restantes chonavam, e àqueles que se mostravam mais profundamente desligados da realidade perigosa, ataram os pés aos pés da cama, com um nó simples mas desencadeador de todos os cagaços. Depois, deram execução ao plano.

Enquanto no exterior, um deles bombardeava o telhado de zinco com tanta cadência de garrafas quanto possível, o outro andava pelos quartos aos berros que anunciavam ataque do IN, e já identificava um morto. Gerou-se uma atrapalhação, com gajos a imaginarem o céu a cair-lhes em cima, e outros que saltavam desajeitadamente sobre os atingidos, tudo num lapso de tempo escuro, que evidenciou o perigo da malta se deitar sem lembrança de quartos de sentinela.

Sucederam-se uns minutos impróprios de relatar aqui, mas pouco depois as inconscientes vítimas, empregavam novamente a roncar de profundo sono.

P.S. - Por respeito à vontade dos provocadores, omito as suas identidades.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12942: História da CCAÇ 2679 (67): Requerimento, talvez inédito (José Manuel Matos Dinis)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12942: História da CCAÇ 2679 (67): Requerimento, talvez inédito (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Abril de 2014:

Olá Carlos!
Muito obrigado pela publicação de um bilhetinho entre o maioral de Bajocunda, e este amanuense que às vezes dá trabalho.
Refere o texto publicado que "iam-se gramando, até que deixaram de gramar-se".
De permeio ainda decorreram uns mezitos, que na África quente e escaldante, às vezes por nossa culpa, pareciam anos.
Por causa daquela frase pensei antecipar a estória da circunstância em que "deixaram de gramar-se".
Aqui vai ela, e espero que a pressa não tenha omitido algum facto relevante.

Um grande abraço, extensivo ao tabancal
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

67 - REQUERIMENTO, TALVEZ INÉDITO

Tinha passado a noite na mata em emboscada noturna, depois de um dia de patrulha de combate, no âmbito das acções operacionais que a Companhia levava a cabo para controle militar da região.
Na ocasião, para além dos quatro pelotões operacionais, alguns já com défice acentuado de pessoal, havia ainda em rotina, adstritos à Companhia, um ou dois pelotões de Pirada, e o Pel Caç Nat 65, mas a área era extensa, e havia duas aldeias onde pernoitava um pelotão para cada uma delas, Amedalai, e reforço em Tabassai.
Em Bajocunda ficavam dois ou três pelotões operacionais durante a noite, enquanto dois estavam em permanência no destacamento de Copá, e na aldeia de Tabassai.

Com muita frequência, um pelotão passava a noite em emboscada. A aldeia de Amedalai, apesar de ter sido atacada uma vez, era a sede do regulado, pelo que teria ligações mais acentuadas com a população, e ao PAIGC não interessaria implicar demasiado com a tradição politico-juridica da influência do régulo.
Também lá estava em permanência um pelotão de milícias, que dava um ar de estreita relação com a autoridade portuguesa, participava em escassas acções, ora da exclusiva competência, ora em companhia de pelotões do exército.

Tudo isto decorria durante um período de relativa paz, e o PAIGC limitava-se a colocar uma ou outra mina nos itinerários, e a flagelar duas ou três vezes por mês os aquartelamentos. Faltava cerca de quatro meses para terminarmos a comissão.
Naquele dia, depois do almoço, o capitão chamou-me para dar indicação de que teria que sair ao entardecer para montar uma emboscada. Ora, era costume, que depois de uma acção como tivera na véspera, o pelotão ficaria de folga, muito menos se pensava em passar duas noites consecutivas no mato, e a comer ração. Protestei com estes e outros argumentos, mas ele afirmava outras razões, que me pareceram de total incompetência para comandar a tropa, e não saía dali; eu é que teria que sair, face às circunstâncias por ele aduzidas.

Não havia meio, os meus sucessivos argumentos não alteravam nada a decisão do comandante Trapinhos. Muito relutantemente fui informar a malta para estar preparada, e tive que arguir com alguma fantasia para evitar acirrar os ânimos.

As noites de mato, com o céu aberto mostravam a maravilha de míríades de pontos luminosos, e a malta entretinha-se a assinalar diferenças entre estrelas cadentes, pirilampos e "very-lights".
Naquela noite eu, pelo contrário, estava inquieto com a teimosia do capitão, que de algum tempo àquela data, insistia em embirrações comigo, que provocavam alguma perturbação à vida e normal desempenho do pelotão. Por vezes o pessoal queixava-se, e aventava, que era por não ter um oficial a comandar, que o Trapinhos andava a abusar e seria necessário tomar uma posição colectiva.

A tudo eu conseguia argumentar, que aqui ou ali poderíamos ser prejudicados, mas que não nos lembrávamos das acções dos outros para cotejo, e que não haveria nenhuma acção colectiva sem que eu autorizasse, na medida em que isso poderia constituir quebra da minha autoridade. O pessoal aderiu sempre aos meus argumentos, e tinha a convicção do meu bom desempenho na defesa do interesse colectivo. 

Durante a noite desassossegada, congeminei inúmeras possibilidades para responder em forma à tontearia do capitão. Ponderei no que podia reflectir-se contra mim, numa espécie de "deve" e "haver", cuja contabilidade era, no meu entender, favorável ao que eu estava a pensar adoptar.
Pensei muito no pelotão, nas amizades ali alicerçadas, nas vantagens que pudessem resultar para o pessoal, portanto, não seria desleal da minha parte. Seria uma decisão íntima. E ganhei confiança.

Quando entrei em Bajocunda fui tomar o pequeno-almoço. Comportei-me como se nada me afectasse, e não referi nada sobre as minhas preocupações. Se calhar, alguma brincadeira ainda me favoreceu a executar descontraidamente a decisão tomada. Depois dirigi-me à secretaria, pedi uma daquelas folhas de papel azul, que algumas vezes decidiam judiciosamente sobre nós, e redigi um requerimento a SExa. o Comandante-Chefe. Nele, depois de me identificar, resumia a matéria a um curto parágrafo: o pedido de transferência de Companhia por incompatibilidade com o comando.
Entreguei-o logo. Continuei a não referir o que fizera, e a levar a vida tão normal quanto era costume.

Talvez no dia seguinte, cruzei-me com o Trapinhos, sem testemunhas, que insinuou haver de ler o meu diário. Respondi-lhe com ironia, que se tinha amor à vida, devia fazê-lo, com certeza. Ele fez uma risada esperta, e acrescentou algo assim: sabe, parece que vai ser transferido para os Comandos Africanos.
Não me impressionei, e respondi com desfaçatez: antes com pretos decentes, que com alguns brancos ordinários.
E a coisa ficou por ali, mas bem mais definida do que antes, pensei eu. Não voltaria a ser voluntário para resolver problemas do capitão, e ele ficou incomodado, talvez molestado.

 Provavelmente ao terceiro dia, estava a fazer "O Jagudi" na secretaria, entrou um "foxtrot" a convidar-me para o acompanhar.
Quando transpus a porta fiquei surpreendido. Sobre o "submarino" (um paiol com formato de submarino construído junto do edifício do comando e secretaria) alinhava o pelotão, e com o pessoal bem ataviado para o que era costume. Um dos cabos dirigiu-me a palavra, que o pessoal estava incomodado com o que soubera, e queriam ouvir de mim, se sim, ou não, ia sair da Companhia.
Referi que não sabia ainda, e expliquei a minha diligência e os termos, que eram a incompatibilidade com o comando. Expliquei que esta frase tinha a ver com as dificuldades que sentia no relacionamento com o comando, mas que aguardava ser inquirido, ou instruções para consumar a transferência.
Pedi serenidade, e para não anteciparmos um qualquer resultado. Então o cabo que usava da palavra, referiu sobre a compreensão do meu argumento, mas colocou a questão do pessoal, em termos sentimentais e operacionais, pois ao longo dos meses tínhamos cimentado uma forte amizade (que ainda hoje prossegue com aqueles de quem tenho contacto), que depositavam em mim grande confiança, e que, se a transferência se consumasse, provavelmente ficariam sujeitos ao comando de um "piriquito", e o ambiente poderia desmoronar-se.
Voltei a referir que não tinha ainda qualquer informação a prestar sobre o requerimento, e reafirmei todo o gosto e sentido de camaradagem que tinha estabelecido com o grupo durante os meses da comissão, e que já faltava pouco para o termo da nossa obrigação na Guiné, pelo que dificilmente adviriam alterações importantes à vida do pelotão, e eu estava certo de que preservar o espírito "foxtrot" seria o mais importante para saber resistir a qualquer dificuldade.

Não houve despedidas, obviamente, mas todos estávamos sensibilizados. Pensei neste acontecimento durante algum tempo, nas dificuldades e demonstrações de solidariedade por que tínhamos passado, e senti um grande orgulho pela coesão que o grupo sempre manifestara. De alguma maneira, e eles expressaram isso mesmo, iriam sentir-se abandonados, o que não correspondia à verdade, mas era-me difícil de explicar melhor a minha posição.

Tomei então nova decisão.
Dirigi-me ao capitão e referi que não retirava o requerimento e estava apto para qualquer consequência, mas dava-lhe o arbítrio de fazer com ele o que entendesse. Nem reagiu, que me lembre. Por mais nada ter a dizer, nem ele, saí.
Compreendi que lhe tinha dado uma prenda, mas também fiquei com o pressentimento de que não arriscaria voltar a usar o pelotão como uma muleta salvadora, nem recorreria a excessos e litigâncias como era costume.

No final da comissão não perguntei pelo requerimento, pelo que não sei se o destino terá sido a "cesta secção", sem ter saído de Bajocunda.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12660: História da CCAÇ 2679 (66): "O Jagudi", o jornal de Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12660: História da CCAÇ 2679 (66): "O Jagudi", o jornal de Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 29 de Janeiro de 2014:

Viva Carlos!
Hoje vou dar notícia do aparecimento de um jornal em Bajocunda.
Não farei a transcrição na íntegra, por motivos óbvios, talvez com excepção de uma ou outra peça, mas darei luz a assuntos ali tratados.

Um grande abraço que inclua o resto do tabancal
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

Aperitivo para o que inspira o texto:

A Era do Abutre (1)
(Filii Negrantum Infernaliium)

A era do abutre abre os seus portões
De gelo, tormenta, trovão... Eu chamo a noite, sombras... mil sombras violam
A puta virgem... A execução em gargalhadas de aço e
Sangue, abraça a noite negra
Opressão, Tirania... Triunfará o mais forte
E nós, demónios, chupamos sangue, Fome de carne, fome de dor! E feiticeiras em escarlate
Coroam-me senhor (princípio da dor) infernal
O mal avança, chicote do espírito
Matéria, carne, monarca
Tiamat: Faz tremer o todo, Marte... Deus da guerra total (sempre imperial), 
O voo do abutre

(1) - Retirado da Wikipédia, autor não identificado

************

66 - "O JAGUDI"

O abutre (Jagudi, sinónimo guineense), é uma ave de rapina necrófaga, voraz, pesada, de asas compridas, que se alimenta de restos de quaisquer animais mortos (o político abutre nunca se contenta com os ganhos).
Pode dizer-se que tem a função ecológica de limpar os locais onde existam cadáveres, ou moribundos. É frequente no continente africano, mas também aparece em Portugal, nas regiões fronteiriças do leste, desde Trás-os-Montes, até ao Algarve, com predominância nas regiões Marvão a Mértola.
Parece, mas não é o grifo. Trata-se do abutre-preto, ou abutre-egípcio, a maior ave planadora dos nossos céus, que chega a ter a envergadura três metros.

Em Junho de 1971, na localidade de Bajocunda, que fica no nordeste da Guiné, então província ultramarina portuguesa, soprada pelas brisas quentes oriundas do deserto, nasceu, novinho, esperançoso e prometedor, um orgão da comunicação social baptizado de "O JAGUDI, Jornal da C.Caç.2679".


Magnifico pela satisfação que transmitia depois de produzido no stencil e de agrafado num corpo mais ou menos coerente, que lhe conferia o pretensioso epíteto de jornal, com tiragens que se prometiam regulares, posso dizer que se tornou um elo de ligação entre a juventude que agregada sob aquela unidade militar, costumava deambular naquela terra, e uma vez por mês tinha acesso às fresquinhas ali publicadas.
Mesmo que não o lessem, era o jornal dos madeirenses.

Não era rigoroso, nem coerente, nem de combate, mas era conforme as ocasiões, naif e experimental, chegou a merecer especial atenção de S. Ex.ª o Comandante-Chefe, bem como do Jornal do Exército que destacou, publicando um artigo de opinião sobre a emigração e a relação com as sociedades que se desenvolviam na África portuguesa; para além da simpática leitura no Pifas de alguns dos textos publicados.

Não era, ao contrário do que pode inferir-se da nota aperitiva, um jornal inspirador de guerras e guerreiros, com carnes a sangrar alarvemente em festas inspiradas por Ares, Marte e Odin, tal como as mitologias grega, romana e nórdica, visíveis com luzes arrelampadas, que projectavam sombras em festins bárbaros, com música de rajadas em substituição das tubas.
Pelo contrário, era o panegírico da "amizade e expressão de camaradagem", e "um mensageiro da Paz", que o editorial do primeiro número garantia transmitir "a certeza de que a integridade da Nação é um facto irrefutável", conforme o atestava o Comandante da Companhia, sem qualquer pressão ou inibição da liberdade de expressão - que eu saiba.

O JAGUDI não nasceu em maternidade, mas carecia dos meios que só a Companhia podia garantir, a utilização do stencil e o uso de químicos e papel, do resto eu prestava-me a fazer, num esforço para aprender a escrever à máquina com dois dedos, muito mais fantástico do que os dactilógrafos profissionais, que o faziam com os cinco dedos de cada mão. Essa ocasião foi aproveitada pelos xicos, que pensaram tirar o melhor partido da iniciativa, tanto que o 1.º sargento, em carta aberta, fazia votos para que não fosse de "carácter puramente belicoso, mas que se torne motivo de distração e humorista". "Fartos de guerra andamos nós", perorava em tom de aviso, e imaginava-se o homem do lápis azul, enquanto prosseguia com determinação "procuraremos imprimir ao nosso jornal aquilo que já dissemos, sem descurar um instante o porquê da nossa estadia aqui".

E passava pelo lombo o discurso da admiração em termos de falsa admiração: "Pais, regozijai-vos... Podeis estar certos que eles perpetuarão... este Portugal quase milenar", cimentados em "laços de sangue ideológico".

E depois de se dirigir às mães e aos pais, não se esqueceu das noivas, e prognosticou que os desejados laços se fundirão para sempre perante Deus e a sua Igreja. Finalmente, dirigiu-se às esposas, garantindo que os pais dos filhos bem merecem "este encargo", para além "da sua integridade e fidelidade conjugais".

Portanto, e para que conste, não houve cenas voluptuosas durante a nossa permanência em Bajocunda, e quando ao fim da tarde, com o cigarro pendurado ao canto da boca, e umas coisitas debaixo do braço, o 1.º Sargento rumava à tabanca, infere-se que lá ia imbuído de espírito religioso apenas para ajudar a minorar a pobreza local.

Sob a designação de "Tema" também foi publicado um texto do Furmil Dinis, que equacionava a continuidade do jornalinho, dependendo do interesse dos leitores, quanto mais não fosse, "para um dia mais tarde ir ao fundo da arca buscar uns papéis amarelos, que de algum modo nos façam pensar no que somos, no que seremos (tínhamos 20 aninhos) e no correr do tempo e da vida", e adiantava que "F. não é mais diferente daquele outro, e através de uma página do jornal está a querer conversar com todos, a expor as suas convicções ou o que aprendeu, está a ser um amigo", no que parecia um convite à participação.

Além disto só houve lugar a distracções e uma página com publicidade, mediante um contrato firmado com a principal empresa de águas naquele território.

O jornal foi enviado para o ComChefe e para o Pifas que desde então passou a ler extractos da publicação.

Voltarei para dar notícia do n.º 2.

O abutre rima com Futre, nutre-se de cadáveres, tira proveito da desgraça alheia, mas o JAGUDI, sem conseguir evitar a lei dos abutres, tinha propósitos mais generosos, que porventura não terá atingido, em virtude da ambição condicionada.

JMMD
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12566: História da CCAÇ 2679 (66): Amizade que ficou (Cândido Morais)

1. Mais um episódio para a série da História da CCAÇ 2679, desta vez a cargo do nosso camarada Cândido Morais (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) que nos fala de amizade, aquela que nos marca indelevelmente:


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

66 - Amizade que ficou 
(a veracidade dos factos aqui relatados, não implica realidade nos nomes dos intervenientes…)

Nos quintais da minha aldeia há sempre alguma coisa para fazer, e o meu não escapa a essa certeza. Se quisermos, podemos dispor de permanente entretenimento, que vai das tarefas mais rotineiras às mais pesadas ou mais complexas. Mas há também aqueles momentos em que decidimos intimamente ultrapassar as preocupações pelos trabalhos que nunca encontrarão o seu termo, aproveitando as condições de que dispomos, para usufruirmos alguns momentos de repouso e de libertação, apreciando as dádivas de Deus que tantas vezes nos passam despercebidas e temos ali sempre à mão.

Foi num desses momentos, numa amena tarde primaveril, que - estendido ao sol de um leve calor reflectido pelo empedrado do chão - espraiei o pensamento pelos anos vividos na Guiné-Bissau ao tempo da guerra colonial, dando comigo a reflectir sobre amizades firmes e indestrutíveis que lá consolidei. Na verdade, essas amizades foram de tal modo fortalecidas pelo tempo e pelas adversidades, que ainda hoje, passados tantos anos, estão declaradamente presentes nas palavras e na emoção dos nossos encontros, como se fosse ontem que nos despedimos no cais da cidade do Funchal.

Nessas cogitações, lembrei-me dum facto passado em pleno destacamento de Copá, que foi o local mais isolado que conheci na ex-colónia - na sua ponta leste -, e que quase penetrava o solo hostil dum dos países vizinhos que davam guarida ao IN.
A quietude do dia, a sensação agradável que sentia sob o sol ameno que me visitava no quintal, deram-me tempo para sentir saudade daqueles tempos difíceis, que não me inibo de abordar em conversas com os amigos, embora com muito pouca frequência. Intimamente, instalou-se em mim a convicção de que não albergo problemas de consciência relativamente à guerra, na qual compareci por imposição da pátria que todos tínhamos na altura, e durante a qual nunca me desviei dos caminhos que tiveram o seu inicio na minha terra natal, bem como das minhas mais profundas convicções sobre a convivência entre os homens, mesmo que sejam elementos activos e contrários duma dura guerra, e senhores de diferentes convicções.

Por vezes, passam-nos ao lado alguns factos da vida real em que fomos intervenientes ou que sucederam próximos. Por isso, penso que é bom que os rememoremos, para melhor entendermos a sua dimensão e os seus possíveis efeitos sobre a nossa própria vida: Os Silvestres do meu pelotão nada tinham a ver um com o outro. Nem parentesco, nem proximidade que se enxergasse nas suas características pessoais. Sempre distingui um do outro, conhecedor que era de cada uma das personalidades, que eles também não disfarçavam. Os únicos pontos que detinham em comum eram o facto de ambos usarem o apelido Silvestre, ambos serem casados (na Madeira, muitas vezes os casamentos ocorriam muito cedo…) e se não incorro em erro, ambos terem já deixado alguma descendência na pérola do Atlântico.

Um dia, descansava eu na espécie de palhota que utilizava para me proteger do sol abrasador em pleno dia - localizada no centro do destacamento -, dedicando quase exclusivamente o pensamento às questões do dia a dia do aquartelamento, por vezes também desviado para o Minho distante onde pairava a minha saudade, ou para problemas menores que se me apresentavam para resolver naquele inóspito local. De dia, raramente éramos atacados no aquartelamento, pois dispúnhamos de boa visibilidade para o exterior e o IN não conseguiria aproximar-se muito sem ser detectado pelos homens destacados nos abrigos e valas exteriores que cercavam completamente a tabanca e as instalações militares que com ela se misturavam. Seriam, por isso mesmo, um alvo fácil, e por isso também preferiam mover-nos ataques nocturnos, durante os quais conseguiam aproximar-se mais do arame farpado que era a nossa primeira resistência no terreno, imediatamente antes das valas que interligavam os vários abrigos entre si, em círculo de razoável dimensão. Na altura, a guarnição do aquartelamento era composta por dois pelotões, sendo um nativo – de homens recrutados no próprio território e que podiam ser de diversas etnias – e, o outro, um dos quatro pelotões da Companhia de Caçadores madeirenses (CCAÇ 2679), neste caso o 1.º pelotão, no qual me encontrava integrado.
O sossego que reinava naquele momento, acabou por ser bruscamente interrompido pelo José António, Cabo do meu pelotão a quem fora confiada a HK, que era natural da ilha de Porto Santo, onde ainda há pouco tempo detinha funções de funcionário camarário. Vinha ofegante, e transmitiu-me apressadamente:
- Meu furriel, venha ali a baixo, que os Silvestres estão engalfinhados! E parece-me que isto não vai acabar bem…

Levantei-me de imediato e parti em direcção ao local onde se desenrolava a contenda, tendo de imediato verificado que já havia bastante população local a assistir, de semblante carregado e aparentando reprovação. Dei imediatamente ordem, em voz alta, para que parassem com a briga, mas verifiquei, um pouco surpreso, que não me prestaram a mínima atenção. E por isso concluí que a coisa estava mesmo azeda e seria necessário tomar uma medida drástica, tanto no sentido de que se apercebessem da minha presença e acabassem com a contenda, como também para que a população se compenetrasse que a tropa tinha uma disciplina a cumprir, mesmo que fosse preciso que alguém de tal se encarregasse. Por isso, avancei sobre ambos – que se encontravam aos tombos pelo chão, agredindo-se mutuamente – e peguei o que na altura estava por cima, segurando-o firmemente pelos sovacos e atirando-o de imediato contra a parede de uma cubata próxima. O segundo levantou-se então e, sem ver sequer quem o separara do seu opositor, correu novamente sobre ele, recomeçando a luta, agora em pé. E foi esse momento que me deu azo a que, dispondo de ambos em posição normal e erecta, os agredisse uma ou duas vezes – não me lembro bem -, “fazendo-lhes ver” que era eu que estava presente e que era necessário que a briga acabasse ali mesmo.

Na verdade, sucedeu aquilo que lhes era exigido. Ambos pararam de se agredir e ambos se quedaram numa posição submissa, que muito me consternou na altura, de tal modo os vi abatidos e conscientes de que tinham participado numa grande asneirada. Não me detive muito tempo por ali e, vendo os ânimos serenados definitivamente, afastei-me aparentando calma e serenidade, mas intimamente envolvido num turbilhão de pensamentos e de interrogações sobre se eu próprio teria procedido da melhor maneira.

Para mim, as decisões que normalmente se seguem a grandes e inesperados acontecimentos, nunca devem ser tomadas a quente. E por isso me dirigi para a palhota, onde voltei a estender-me sobre a esteira de verga, reflectindo agora no incidente em que acabara de participar. “Que diabo, homens casados e com filhos na Madeira, a portarem-se assim”! E eu? Não acabara também por fazer o mesmo? Bem… não foi exactamente a mesma coisa, eu fiz isso apenas para separá-los e para impor a necessária disciplina, coisa que a mim competia nessa altura! Mas não haveria outro modo, sem ser a bater? Talvez houvesse, mas eles não obedeceram doutra forma…”

Foi longa a minha meditação sobre o assunto, que continuei a amadurecer durante a noite, julgando-me apto a reagir na manhã seguinte. E a primeira coisa que fiz foi mandar chamar os soldados Silvestre, a quem fiz questão de receber juntos. Quando os vi entrar – ambos de rosto alterado e demonstrando preocupação -, concluí de imediato que também eles não tinham passado bem a noite. Era sabido que atitudes como aquela, se participadas, poderiam ser alvo de duro castigo, e isso eles não queriam, a poucos meses do final da comissão de serviço. Por isso optei por falar com eles utilizando firmeza na voz mas alguma compreensão no semblante.

- Dá licença, meu furriel?
- Entrem, se fazem favor e fechem a porta.
- O “nosso” furriel mandou chamar?
- Mandei, mandei. Que é que vos parece?
- Pois…

E foi então que eu, com alguma verborreia para não correr o risco de eles me interromperem, lhes fiz ver a gravidade do que tinham feito. Falei-lhes no único inimigo que tínhamos de enfrentar e que se encontrava lá fora, na defesa da imagem da guarnição perante as populações nativas, na necessidade de preservação da harmonia no interior do pelotão, no perigo de um deles se magoar seriamente, nas “notícias” que poderiam ser enviadas para a Madeira pelos seus próprios colegas, nas questões disciplinares ligadas a factos como aquele, mas também no problema que me tinham criado quando me vi obrigado a agredi-los para manter a ordem e a disciplina, a eles, homens casados e já com filhos a crescer…

Conforme ia falando, também os fixava intensamente. E comecei a aperceber-me que os rostos crispados que detinham até ao início da conversa, se iam distendendo quase imperceptivelmente, e o olhar tenso se ia transformando, parecendo dar a entender algum alívio e compreensão pelo que eu ia dizendo, e que eles escutavam atentamente.
Quando acabei de falar, gerou-se um silêncio pesado dentro daquele exíguo espaço fechado, tardando a ser quebrado por um deles, que entendeu dizer-me:
- Meu furriel! É só isso que tem para nos dizer?
- É, Silvestre. É só isso que tenho para vos dizer…
- Pois, meu furriel, nós pensávamos que vínhamos cá para ouvir qual era a “porrada” que íamos apanhar…
- Não Silvestre, não há “porrada” nenhuma. Eu queria é que vocês tivessem mais juízo e não me obrigassem nunca mais a fazer uma figura daquelas!
- Mas, meu furriel, nós os dois já fizemos as pazes ontem, e até viemos juntos para cá. Aquilo foi um bocado de cerveja a mais, e passou logo…
- Pois passou – acrescentei eu – mas o espectáculo toda a gente o viu ou soube dele, e eu não escapei a isso tudo que vocês criaram. E isso não tinha que acontecer!
- O meu furriel dá licença que lhe diga? Pois bateu e bateu muito bem! Nós até vínhamos para cá a dizer que ainda tínhamos levado poucas, depois do sarilho que armamos. E até vamos ser muito mais francos, pois vínhamos também a conversar que, se apanhássemos uma “porrada”, ela seria muito bem merecida! O “nosso” furriel que nos desculpe, mas isto também nunca mais torna a acontecer.

Fiquei sentado por uns instantes, que julgo que foram breves. E avaliei a simplicidade daqueles homens endurecidos por uma vida adversa na Madeira, e depois por longos meses de isolamento no mato da Guiné, por noites sem dormir, e por tantas, tantas saudades que mal caberiam na pequena ilha onde os tínhamos ido buscar, e que não podiam visitar, mesmo no gozo das férias a que tinham direito, pois não dispunham de dinheiro suficiente para a viagem de avião. Intimamente, senti-me ainda pior do que quando decidi chamá-los, e experimentei um estranho aperto na garganta face àquela demonstração de genuína humildade, contendo a possibilidade de qualquer outra palavra que pudesse indiciar um pedido de desculpas que decerto eles não compreenderiam mas eu achava muito natural nesse momento.
Depois, em comedido impulso, dei eu próprio dois passos em frente, torneando a mesa que tinha entre mim e eles, e abracei ambos sem levar em conta a eventual existência de alguma regra militar que me impedisse de o fazer. Foi apenas um curto momento, resultante dum gesto espontâneo e imediatamente correspondido, qual bálsamo salutar e mitigador das asperezas duma guerra crua.

No calor ameno de um sol primaveril que me visitava no quintal, eu trouxe à memória o rosto dos Silvestres do meu pelotão, emergentes daquele grupo de homens rudes e humildes, que nos olhavam directamente nos olhos, e que eram solidariamente firmes como as rochas são dos montes, quando as incidências da guerra aconteciam. Os Silvestres nada tinham a ver um com o outro, a não ser o facto de terem nascido na mesma ilha, e de serem tão bravios quanto ela era há mais de 40 anos. Mas eram os homens do meu pelotão, em quem confiava cegamente e que me alegraram sempre com a sua amizade, presente ainda nestas cogitações - que por vezes alimento - sobre a crueza duma guerra que alguns querem fazer esquecer, mas que foi apenas mais uma, entre tantas que o mundo alimentou.

Nestes curtos momentos em que lhes dedico o meu pensamento, eu sinto por eles a mesma gratidão e a mesma amizade.

(Com esta história verídica, pretendo apenas prestar homenagem aos madeirenses de quem guardo grata memória)

Cândido Morais
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça em Bissau (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 12 de Dezembro de 2013:

Viva, Carlos!

Hoje vou referir-me à minha presença nos festejos militares de um dia de Camões, que se realizaram em Bissau.

Exactamente! Quando o IN mandou uns misseis para a zona da Sacor, felizmente sem terem causado danos, mas dando mostras da nossa vulnerabilidade. Por esta e por outras, muitas vezes convenço-me de que a estratégia do IN não nos queria dizimar, e fazia a guerra quase "doucement".
Mas é só para vos contar os meus episódios, irritantes, de inicio, com laracha e fortuitos acasos, depois, pelo que deixo para outros, ou para outras ocasiões a especulação que possamos fazer sobre uma "guerra amiga", ou "de baixa intensidade".

Lá vai com um abraço para o tabancal e votos de Boas-Festas natalícias
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

65 - DIA DA RAÇA

Num daqueles primeiros dias daquele longínquo mês de Junho de 1971 o capitão mandou chamar-me ao gabinete. Depois do habituais preparos numa daquelas circunstâncias, que exigia que vestisse os calções que me conferiam alguma dignidade de combatente pela Pátria, dirigi-me ao edifício do comando.

Entrei, e logo ele passou à explicação do chamamento: eu teria que partir para Bissau, a fim de participar nas cerimónias do 10 de Junho. Quase rejubilei. Afinal, a tropa ia conferir-me uma inopinada distinção militar pelos meus desempenhos ao longo da já extensa comissão. Sorri de satisfeito, e perguntei ao capitão se sabia com que medalha ia ser agraciado.

O tipo atirou, que com uma medalha de cortiça, e passou com a mão por baixo do queixo a segurar um sorriso sacana. Depois passou a uma explicação sintética, mas mais circunstanciada, referindo que eu ia a Bissau em representação da companhia.

Rebati logo, então e o pelotão? Quem sairia para o mato com o pessoal? Se para mim era tudo tão difícil por causa do reduzido quadro - eu e o furriel Feliciano Lopes, que viera da 26.ª para o grupo em finais de Março, havia só dois meses, não se encontrava outro pelotão com mais disponibilidade de quadros com vocação representativa?

Pois escusava eu de levantar problemas, já que tinha sido eu o escolhido. Além disso, numa primeira auscultação, ninguém quis tal incumbência, e eu, por ser o mais novo, teria que ir. Alto aí, o mais novo é o Feliciano. Estava bem, mas ele acabara de chegar, e não estava bem integrado no "espírito" da companhia. O diálogo andava neste diapasão, e eu não me safava de uma viagem não desejada. Logo então para representar a companhia. Do que é que isso implicaria? A que é que ficaria obrigado? Grande porra!

Mas ainda estava disposto a lutar pela minha dama, e argumentei que não tinha dinheiro, e ir a Bissau em estado "teso", era uma coisa que nem ao IN se desejava. Mas o capitão mostrou-se generoso, e prontificou-se a emprestar-me a massa. Ainda assim, não haveria um alferes disposto a lá ir? Sempre daria outra dignidade à representação.

Não, nenhum deles podia ou queria desempenhar aquela missão. E os nossos sargentos faziam muita falta na área administrativa para assegurarem que o gamanço não sofreria percalços. Era eu, e pronto!

Um dia qualquer preparei uma trouxa e preparei-me para a coluna que me levaria a Nova Lamego, onde um avião especial aguardava pela malta do leste. Grande festa, imaginei. À última da hora veio um sargento entregar-me uma maleta de madeira com o estandarte da CCaç, e eu já me sentia sacrificado à Martim Moniz.

Em Nova Lamego deixaram-me na pista, onde conheci um feliz contemplado, outro furriel, talvez de Cabuca, Canjadude, ou outro qualquer dos "lodges" que faziam a inveja do AB. Pelo caminho fui dizendo da minha revolta pela deslocação obrigatória, principalmente, porque estava teso e teria que ir para os Adidos, ou coisa parecida. Mas ele retorquiu que conhecia uma pequena pensão perto do Pintosinho, barata, onde poderíamos "acampar".

Dito e feito, para lá nos dirigimos com as maletas. Sem conhecimento do calendário das cerimónias e dos preparativos, no dia seguinte acordámos para o tarde. Comemos, e iniciámos o reconhecimento da cidade, que já assistia aos preparativos. Não falámos com quem quer que fosse, e ao fim da tarde demos conta que na Praça do Império já havia um estrado montado para suas excelências baterem pala à tropa desfilante, e para os discursos da praxe.

No dia seguinte, já não me lembro em que circunstâncias, fomos num automóvel Mercedes, dos velhos, com motorista às ordens, dar uma volta pelos arredores turísticos de Bissau, e desaguámos talvez em Nhacra, num "restaurant trés typique" onde comemos, e bebemos um monte de cervejas. No regresso, com o grupo visivelmente satisfeito, à cautela, saímos do Mercedes numa discreta rua paralela à avenida.

A curiosidade, porém, levou-nos a subi-la até à Praça e, enquanto nos deslocávamos, verificámos os postes engalanados e com altifalantes que, certamente, levariam os sábios discursos ao conhecimento do magote ansioso pelo desfile glorificador. À nossa chegada à Praça demos com muitos militares que ensaiavam a festa, e evidenciavam a preocupação de que nada falhasse. À nossa frente, um sargento do Exército português pegava num balde com cal, onde molhava uma trincha, que usava para fazer linhas equidistantes de marcações no alcatrão para que o pessoal perfilasse nelas. E que bem o fazia!

Ao mesmo tempo, na zona do palco concluíam-se as instalações eléctricas e experimentava-se o sistema sonoro. Entretanto, dois ou três oficiais com espessura de galões amarelos, entre eles o célebre Onze, comandante da Região de Bissau, ou lá o que era, perto de um microfone aberto, deitando um olhar à confusão circundante, abriu os braços e exclamou para os acompanhantes: "isto está uma merda", expressão que se repercutiu pela avenida até à baixa de Bissau. O IN, solidário na incompetência, não aproveitou a fonte.

No dia seguinte, para não darmos barraca, não nos apresentámos com os estandartes para a grandiosa festa da raça. No final fomos inquirir a um camarada que ali tinha exibido com orgulho o símbolo da sua unidade, e nos informou que ao outro dia havia avião de regresso.

Seguiram-se os trâmites do último dia, que, naturalmente, meteram comes e bebes até saciar. No regresso ao quarto fizemos conta a quanto esportulámos durante a missão, e verificámos que a massa sobrante era insuficiente para a conta da pensão.

Mas guerra é guerra, e nós andávamos lá para isso. Constatámos que não nos tínhamos identificado (afinal, naquele tempo, dois amarelejos ainda mereciam confiança), pelo que decidimos pelo óbvio, e procedemos à perigosa retirada estratégica até ao Dakota salvador.
____________

Notas do editor


Recorte de imprensa > Jornal O Século > s/ data > Notícia da agência noticiosa ANI [de 11 de Junho de 1971], sobre o primeiro ataque do PAIGC a Bissau, com foguetões de 122 mm, em 9 de Junho de 1971.

Imagem digitalizada por © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.

Último poste da série de 28 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12096: História da CCAÇ 2679 (64): Comportamentos e decisões determinantes (José Manuel Matos Dinis)

sábado, 28 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12096: História da CCAÇ 2679 (64): Comportamentos e decisões determinantes (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 26 de Setembro de 2013:

Viva Carlos!
Trago uma nova estória para o contexto da CCaç 2679, mas que, no meu entender, também se refere a comportamentos ou decisões determinantes da coesão e eficácia dos grupos de combate.
A instrução era bastante frágil, e a ordem que devia identificar cada força, era tão mais acessível, quanto a facilidade de relacionamento entre todos - a camaradagem, a intuição e tarimba que o dia-a-dia aprimoravam.
Aqui vai!

Envio-te um grande abraço de amizade, extensivo ao tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

64 - COMPORTAMENTOS E DECISÕES DETERMINANTES

Após o pequeno-almoço reuniu-se o Foxtrot em frente ao edifício da messe, onde eu os esperava. Para aquele dia tínhamos uma patrulha de combate, com uma deslocação para nordeste, saindo na direcção de Copá, direccionando em seguida para a linha de fronteira, que acompanharíamos na direcção leste/oeste, até um marco situado na divisória das ZA de Bajocunda e Pirada. Depois, aproximar-nos-íamos para perto da fonte, onde passaríamos a noite.

O pessoal juntava-se com as chalaças costumeiras, em conversas de amigos, ou envoltos em pensamentos privados, mas, no geral, todos se apresentavam bem dispostos e preparados.

Confirmei que estavam todos, e também o radiotelegrafista e o enfermeiro, dois especialistas indispensáveis em cada deslocação no mato, que nos transmitiam a confiança e segurança suplementares às nossas próprias capacidades para lidar com as diferentes situações susceptíveis de acontecerem.


Arrancámos, com a despreocupação própria de uma viagem rotineira, e a confiança resultante do hábito de não encontrarmos inimigos que nos surpreendessem, nem causassem danos. Até à porta de saída o pessoal deslocava-se com alegria, brincando e respondendo a brincadeiras, uns com os outros, ou com camaradas que ficavam no aquartelamento, ou com membros da população, principalmente as bajudas, a quem se faziam promessas de amor eterno após o regresso da acção.

Ao atravessarmos a pista já se formava a fila de pirilau, e adiante, num segmento da picada com mais visibilidade, eu arredava da progressão, para chamar a atenção aos que tinham tendência para se agrupar em conversas. Costumava deixar para o fim dois ou três dos melhores elementos que garantiriam a boa ordem, enquanto os prevaricadores aceleravam o passo, e tomavam lugar a seguir a mim, no inicio da progressão. Fazia esta manobra com frequência, pois sabia da tendência para acontecerem ajuntamentos na retaguarda.

O passeio corria bem. Algures, junto da fronteira, abancámos para a merenda. Depois de reatarmos o caminho remanescente, fui informado de que um elemento estava doente. A progressão estava comprometida. Com ele já se encontrava o enfermeiro, que diagnosticava paludismo. Acrescentou que ia ministrar um injecção, mas que o estado de saúde se agravaria, e a melhor decisão seria deslocarmo-nos a Bajocunda para o deixarmos sob os cuidados da enfermaria. E foi o que decidi. De inicio amparado, depois deitado numa improvisada maca, a partir de dois ramos de árvore e de um pano de tenda, chegámos ainda cedo. Falei com o capitão e preparava-me para sair e montar a emboscada, quando surgiu o sargento David, equipado de camuflado, arma e munições, que me perguntou se poderia acompanhar-nos. Respondi que não via razão para sair connosco, mas, se era voluntariamente que se apresentava, eu punha a questão do comando. Que não, apenas desejava ter uma experiência, e não pretendia comandar, que ficava ao meu cuidado.

Voltámos a sair, mas já não concluímos o traçado original para a patrulha. Dei uma volta até à aproximação do crepúsculo, e montei a emboscada nas proximidades da fonte, como era previsto. Tal decisão tinha que ver com a referência da posição perante os obuses de Bajocunda e Pirada, na eventualidade de uma aparição do IN, e permitir-nos-ia, em coordenação com as defesas dos aquartelamentos, proceder a um envolvimento da força atacante. Chamei dois elementos de confiança e dei-lhes a incumbência de vigiarem o sargento, normalmente dado a exuberâncias, no sentido de que a nossa posição não fosse denunciada nas cercanias.

Não houve qualquer incidente nem perturbação, e o sargento não levantou qualquer problema, apesar da estranheza da iniciativa. Cada deslocação de uma força militar fora do arame, era susceptível de uma diversidade de incidências inesperadas, e nós deveríamos ter a capacidade para tomar as melhores decisões, sob pena de prejudicarmos condições singulares ou colectivas.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12017: História da CCAÇ 2679 (63): O jogo do Poker (José Manuel Matos Dinis)

domingo, 8 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12017: História da CCAÇ 2679 (63): O jogo do Poker (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Setembro de 2013:

Olá Carlos!
Às vezes tenho saudades tuas e admiro a tua persistência na alimentação do blogue. Mas tenho andado com o inspiramento orientado para a política, sem verter coisa com coisa, terrível situação que os donos do jardim à beira mar plantado aproveitam para incrementar a exploração.
Hoje "naveguei" pelos últimos folhetins da História da 2679, e lancei o repto ao Morais para que desenvolvesse alguma narrativa com manifesto interesse histórico.
Entretanto ocorreu-me esta coisa dos vícios que a malta cultivava, e de que algumas vezes nos machucávamos. Espero que não desagrade.

Um grande abraço para ti e para o tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

63 - O jogo do Poker

Putos espigadotes, com 18 ou 19 anos, jogávamos durante as noites de sábado umas pokeradas muito bem esgalhadas, sempre em casa dos amigos Santa (um deles foi alferes no Gabú), cuja mãe tinha uma imensa paciência para nos aturar as madurezas. Havia um ritual: enquanto nos encaminhávamos para o "casino", depois da bica e, eventualmente, da amarelinha pretensamente cognacada, ainda fazíamos uma deriva por um quintal onde houvesse capoeira com aves. E já éramos "experts" nessa arte de pilhar galinhas durante as noites, quando o tempo de reacção dos donos era manifestamente lento para nos atingirem com uma hipotética carga de chumbo.

Uma noite invernosa a coisa não correu bem, e apanhámos uma pomba branca, que aconchegada por baixo da gabardine transmitia um calor muito agradável, e por isso era disputada por todos. O Calapez, alarve, já se babava na expectativa da canjinha, enquanto afagava a bicha para lhe manter o moral elevado, importante condição para a perservação da textura das carnes, mas os restantes, principalmente o Chabert, já se inspiravam que era a verdadeira pomba da paz, e remoíam a ideia do abate, em vez de olharem para ela como a inimiga de que nos tínhamos de livrar.

Chegados a casa, deixámos a pomba na cozinha, com um pedaço de miolo de pão para engordar até à hora do juízo final. A malta abancava em torno da mesa, onde os baralhos mereciam a maior contestação com tantas marcas em evidência. Dos bolsos jorravam as moedas de tostão e dois tostões. Quando um gajo tinha um trio, já era coisa para avançar com três tostões; e com um "fullen", era coisa para sete ou oito tostões, porque exibir prata aplicava-se para alta sequência. Pelas manhãs, havia quem perdesse ou ganhasse dois escudos, e era uma festa.

Voltando à noite da pomba, alguém tinha que se incumbir da matança, mas, contristados, os aspirantes a batoteiros não revelavam a decisão necessária para os grandes golpes. Quando o Chabert entrou na cozinha para saciar a sede, logo a malta acorreu fechando e trancando a porta, que a que dava para a rua já estava armadilhada.
- Chapa, só deves dar sinal depois de matares a pombinha!, gritaram-lhe.

Passados longos momentos, alguém se abeirou a perguntar pela situação, e o coitado do Chabert soletrou alguma coisa como "já está!"

Entreaberta a porta, os olhares curiosos verificaram que a pombinha ainda dava às asas. pendurada de uma corta que a asfixiava pelo pescoço. O Chapa, incapaz de a liquidar com a rapidez e eficácia desejadas, acabou por ser cruel ao admitir que assim custaria menos. Pronto, a dona da casa foi acordada, e pela manhã não faltou a canja reconfortante.

Embarquei para o Funchal com o Zé Tito a bordo do paquete Funchal que fazia uma viagem turística. Ao passarmos a barra, no tombadilho, com os olhos postos na orla costeira que se alongava até à nossa terra, confessámo-nos que estávamos tesos. A noite tinha sido de inflação desvairada. Por junto arranjámos cerca de um conto e trezentos, que logo foi decidido reproduzir no poker, que se jogava em várias mesas. O Tito decidiu que eu abancaria com um conto, enquanto ele foi para o bar encher-se de gins e morder as balzakianas.

Os parceiros eram pessoas simpáticas, mas "traiçoeiros" nas jogadas que consumiam as minhas "caves". Esgotava-se o saldo, quando eu começava a compreender os "mecanismos" da cada um, mas surgiu o Tito a informar-se de como decorria o negócio.
- Estou quase teso - respondi.

Surpreendentemente, passou-me outro conto para a mão, e em menos de uma hora ganhei cerca de seis contos. Pedi licença, e retirei-me satisfeito. No intervalo dos gins ele tinha ganho nos jogos de cavalinhos.

Quando desembarcàmos, seria sexta ou sábado, apanhámos um táxi para o Savoy. Na segunda apresentámo-nos e pedimos um abono ao Comandante, pois tivémos que alugar alojamento no Beco de Sta Emília, e fazer face às despesas de instalação e jantares. A vida correra-nos muito mal durante o fim-de-semana, com muita festa e o hotel de luxo para pagar. Estávamos novamente tesos.

Em Piche eu levava uma vida de alta competição, com uma constância quase imparável de patrulhamentos, colunas, operações e emboscadas noturnas metade das noites semanais. Quando dormia na cama, era para levantar cedo e abalar numa qualquer missão.
Uma noite, já eu pegara no sono, bebido, quando fui abanado. Reagi mal, como seria de esperar, e perguntei ao filho da puta o que queria. Já com os olhos abertos, deparei com a simpática carinha do nosso capelão, que me informava estar ali perto uma mesa muito simpática com malta para jogar o poker.
- Desculpe sô padre, não era para ofender. Vamos lá então durante um bocadinho.

Ganhei umas coroas, e voltei para a cama.

A cena repetiu-se por muitas vezes e, francamente, enquanto eu ganhava sempre, dei-me conta do milagre da multiplicação, pois o padre encavava todas as noites algumas notas de cem, sem retorno, e não tinha o ordenado de general. Mas se Deus escreve direito por linhas tortas, provavelmente estava ali para proteger o seu representante na terra, no sentido de não prejudicar a diplomacia necessária ao munus que ele exercia.

A minha última vez, aconteceu depois de eu sempre ter ganho.
Uma ocasião, os parceiros, com excepção do Zé Tito, tinham-se retirado da jogada. Na mesa, em disputa, estariam cerca de cinco contos, um dinheirão. Eu tinha ases por reis. O Zé apostou cem paus, e eu dupliquei. Ainda acrescentámos algumas notas ao monte que estava na mesa, e eu já me deliciava a imaginar o gajo em cuecas, teso como um carapau, esquecido pela alienação da nossa amizade

O Zé pagou para ver. Aí, exuberante e glorioso, atirei com as cartas para que todos vissem o mais mavioso dos "fullen" - full hand.


Quando me preparava para arrebanhar a massa, verifiquei que o Tito confrontava o seu jogo, e por cima dos óculos pousava o olhar nas minhas cartas.
Parecia desconfiado. Timidamente, ele demorava a dizer qualquer coisa, parecia que estava a mastigar alguma frase. E eu ampliava o gozo da minha vitória. Até que, numa posição de coluna curvada e quase prostração, o Tito balbuciou umas palavras que continham "sequência".


- O quê? - gritei ferido de morte.

Tomei consciência da vertigem e fiquei tão envergonhado que nunca mais voltei a jogar.
___________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

Vista aérea de Bajocunda
Foto: © Amílcar Ventura, com a devida vénia

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Junho de 2013:

Olá Carlos!
Já há algum tempinho que não dava notícias sobre a minha "guerra".
Hoje, subitamente, aflorou-me uma estória que passo a descrever.

Para ti, e para o tabancal, vai aquele abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

63 - INVASÃO EM BAJOCUNDA

Ainda hoje eu durmo profundamente, e passo entre 8 a 10 horas a dormir. É conforme. Também aguento menos, quando é preciso, mas por norma tenho um grande apego à cama. Naqueles tempos da juventude galdéria, se o corpinho era generoso a despender energias, também não abdicava das condições de recuperação, entre elas a de dormir profundamente, fosse debaixo do firmamento diamantino das noites guineenses, fossa no colchão de espuma da Manutenção Militar. Durmo, mas é raro roncar. Sou como um menino.

Tinha mudado para o quarto das traseiras, onde os ruídos da manhã levavam mais tempo a chegar, e eu permanecia sem dificuldades no limbo de sonhos quentes.

Uma ocasião, imprevistamente a meio da noite, senti uns abanões e abri os olhos sem força para reagir. Mas o que vi? Nosso Senhor! À minha frente, empunhando a espingarda-automática G-3, com o cinturão a pender da cintura, mas sem tapar o órgão genital, apresentava-se um contra-guerrilheiro, que identifiquei logo pela voz que, apesar de contida e assustada, permitia-me reconhecer um bravo combatente oriundo do Minho remoto, de Perre, mais propriamente, que adiantava: "eles estão cá dentro!".

Nem pensei no terrível significado daquela informação de alerta a exigir uma valente reacção, ou teria respondido para os mandar sair imediatamente, e que se pusessem na alheta para prosseguir a justa soneca. A minha displicência valeu-me um novo empurrão, e aí o Morais falou-me sério: "eles já estão cá dentro, mexe-te!". E dirigia-se à minha pessoa, não restavam dúvidas.

Soergui a cabeça e vi um autêntico homem-de-guerra, com uns chinelitos chineses enfiados nos dedos dos pés, fardado à pai Adão, feições rígidas, e equipado para matar. Pulei da cama, procurei a "canhota" e o cinto dos carregadores de municiação. Ainda procurei a boina, mas não era necessária. Nos quartos havia um bulício surdo. Estaríamos ali meia-dúzia de valentes furriéis à rasca com a situação. "Se eles já entraram, sabem que nós estamos aqui", disse um. "Foda-se!" respondeu outro. Com jeitinho cauteloso, alguém tentou abrir a porta para tentarmos constatar a situação no exterior, mas aquela merda velha e colonial, rangia com a deslocação e dava conta da nossa presença na casa.

Para que uma cabeça pudesse alcançar o exterior e perscrutar no escuro, foi preciso insistir no ranger da porta descaída, e logo soou um aviso sensato e acagaçado: "Não façam barulho com a porta, carago!". O Tito, que já usava uns óculos de lentes grossas, e estava dispensado das saídas noturnas porque se atirava paro o chão espampanantemente de cada vez que tropeçava numa ervinha, era, obviamente, o mais habilitado para proceder à observação.

Talvez por incapacidade para conter o nervosismo, ou para assustar o IN naturalmente surpreendido com a insólita decisão, começa a correr na direcção do pau-de-bandeira, na parada à nossa frente. Estupidamente solidário, atirei-me em correria atrás dele para lhe contar os balázios no caso do IN responder com artilharia. A meio caminho, já ultrapassados uns 20 metros de território beligerante, parámos surpreendidos pela total ausência de tiros.

"Foda-se! onde é que os gajos estão?" - interrogava-se um intrépido furriel miliciano, desejoso de aplicar uma valente lição nos irritantes perturbadores do sono alheio. Reorganizada a tropa como força de combate, dirigimo-nos para junto do Posto de Rádio de onde vinham vozes.

Estava lá o capitão Trapinhos, já antes alertado para a guerra e à procura de um lugar seguro, como seria o abrigo das transmissões, e mais alguma tropa de "especialistas". Ficámos então a saber, que o sargento David, movido pela insónia, ou pelos efeitos de alguns vapores etílicos, estava junto da porta da secretaria a contar carneiros que não acabavam, e viu umas silhuetas ao longe, a deslocarem-se com cargas destruidoras às costas em direcção aos obuses.

Ainda havia tempo para lançar o alarme, pois ainda nada tinha ido pelos ares. E foi o que fez. Dirigiu-se às Transmissões onde foi muito bem acolhido, e de onde, diligentemente, saíram os alertas para o capitão e oficiais. Ainda hoje não faço ideia como é que os furriéis foram alertados para a ameaça destruidora, mas lá que há bruxas, há!

Mais uma vez dei prova de uma estupidez descontrolada, e perguntei a s.exa. o capitão Trapinhos, se já tinha providenciado uma batida na aldeia, no sentido de evitar o pior. Não, não tinha. E logo me incumbiu de ali recrutar uma força para o efeito.

Lá fui com uma dúzia de bravos cozinheiros, mecânicos de viaturas e armamento, o escrita, o corneteiro, o básico, e mais alguns que não posso identificar. Dei uma instrução simples e fundamental, sobre a acção surpresa que íamos desencadear, sobretudo que não dessem tiros, ou teria que foder os cornos a algum gajo, para mais dos nossos.

Logo à segunda morança, talvez, entrei numa tabanca, pus a mão num cesto com milho, remexi, mas não achei nada além dos grãos. Na esteira, os olhinhos surpreendidos dos moradores, miravam-me estupefactos. Ainda havia um pequeno ajuntamento de panos, que segurei, mas nada de grave aconteceu. Entretanto, entrara atrás de mim, sem que disso me tivesse dado conta, um sacana que batisava as bajudas todas, e ao pousar os olhos sobre um gajo que ali estava encostado à parede de adobe, referiu que aquele não era dali. Confiado pelo absoluto conhecimento e identificação dos moradores, por parte daquele militar, aquela informação indiciava que ali havia coisa.

Disse ao desconhecido para sair comigo, o que o senhor fez sem protestos. Depois, já no exterior, chamei dois homens da força, e encarreguei-os de conduzirem o prisioneiro. "Para onde?" queriam saber. Caraças, em Bajocunda nem havia prisão! Mas, espertinho como sou, logo me lembrei de um local adequado, e mandei-o para o abrigo dos "auto-rodas", com a recomendação de que informassem o Pedro, que o cavalheiro ia ali passar a noite.

Depois, lembrei-me de como tudo tinha começado, e, conforme a informação, teria partido de uma constatação do sargento David, homem experiente de muitas guerras. "Pronto, malta! Vão mas é dormir, que já chega desta merda!"

E o pessoal destroçou. Eu regressei à cama onde me preparava para recomeçar a divagação de sonhos, quando começo a ouvir rajadas, que rasgavam chagas nas trevas da noite. Mas era do outro lado de Bajocunda, lá para o portão de acesso a Pirada. E os tiros continuavam numa cadência de uma arma solitária, com ligeiros intervalos, e dava-me conta que iam mudando de posição, e já pareciam vir do lado do portão de Amedalai.

Com frequência regular, percebia-se que a carga passaria em breve pelo arame do lado norte, e cheguei a pensar ir às traseiras da nossa casa, armar uma emboscada ao atirador, ou atiradores, que perturbavam o direito dos cidadãos ao merecido descanso.

Acabei por adormecer. No dia seguinte, fui acordado por um elemento da mecânica, que me transmitiu a pergunta do furriel Pedro sobre o destino a dar ao preso. "Ele que o meta num orificio", foi mais ou menos o que respondi. Depois levantei-me e fui tomar o valente "breakfast". Estavam lá dois ou três "gentlemen" mais madrugadores e muito bem informados, que comentavam os acontecimentos da noite.

Segundo eles, o bezanado quadro do exército português estava estacionado na varanda do edifício do comando, que também era sede da secretaria, e, nas traseiras, acolhia Jesus, o dedicado gerente do bar. Por entre desconformes raios visuais deve ter reparado em algum movimento de pessoal, provavelmente de militares do pelotão de artilharia que, oriundos da tasca em frente ao Silva, se deslocavam para junto dos obuses. Daí à operação mortífera sobre as NT foi só uma questão de extrapolação. Depois de desfeito o equívoco, o dito militar, não satisfeito, ainda decidiu lançar uma campanha de intimidação sobre o IN, pelo que convocou um condutor, e sobre um "unimog" circulante decidiu-se à perigosa tarefa de despejar carregadores atrás de carregadores, enquanto davam a volta à localidade, numa prática de despesismo em material de guerra, que deve ter ficado plasmado numa informação a letras de ouro, sobre a acção de rechassamento de uma qualquer suposta força inimiga.

Quanto à minha intervenção heróica, fiquei a saber que tinha capturado um parente de uma família residente, em passagem para um qualquer destino, mas de quem não se tinha conseguido a mínima informação de relação com o IN. Por fim, ainda decorrente da heroicidade do meu acto, o furriel Pedro tinha passado a noite de olhos arregalados, com a arma apontada para o inimigo capturado, que mecânicos e condutores lhe puseram à frente, em sinal de respeito e reconhecimento pela liderança na Secção. Andava a propalar que havia de dar-me um tiro nos cornos. Felizmente que ainda não os tinha, e acabou por esquecer o incidente.

Com homens desta fibra, defendeu-se, no meu tempo, a teoria do "direito real" no que respeitava à preservação histórica dos direitos lusitanos, sobre o exercício da posse e manutenção e desenvolvimento da integridade dos territórios pátrios.

JD
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Meus amigos Carlos e Cândido,
Aqui vai um novo trecho da História da CCaç 2679, desta vez subscrito pelo Cândido Morais, e que reporta num estilo bem comunicativo, mais uma estória sobre a sageza e oportunidade do nosso capitão Trapinhos.
O Cândido centraliza a estória na atitude tomada pelo Vieira, mas eu considero que é ele mesmo, o Cândido, o ilustre herói da narrativa. Porque heróis foram também todos aqueles que não se queixavam e estavam prontos para a solidariedade. É característica dele a altruísta entreajuda manifestada. A ele não caíam os parentes na lama, sempre que decidia ajudar um subordinado em dificuldades, pois a todos considerava camaradas.
Era um exemplo a seguir.

Daqui envio um grande abraço para ambos
JD

************

HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

62 - Um caso com o Vieira

Cândido Morais

O Vieira era um homem calmo, por natureza. Com ele podiamos conversar, sem corrermos riscos de algum atropelo verbal, pois media cuidadosamente tudo o que dizia, tornando-se evidente que se preocupava com o interlocutor, não pretendendo maçá-lo e deixando ao seu critério a duração duma conversa. A ele, ninguém poderia apelidar de cansativo, pois estava ali apenas para conversar e não para se constituír parte integrante de uma enfadonha conversa.
Não sei como e quando isso lhe aconteceu, mas chegou ao meu conhecimento que o Vieira tinha grandes dificuldades para dormir. Na verdade, tinha sido atingido pelos efeitos colaterais de uma "roquetada", que, pelos vistos, embatera na frente do abrigo de um posto avançado, projectando os seus estilhaços para as costas do Vieira, que se soerguera um pouco na vala quando respondia a fogo do IN. Pelo menos, foi essa a informação que chegou ao meu conhecimento.

A minha preocupação principal não se concentrou nos tais estilhaços. Segundo me fora dito, os mesmos poderiam manter-se por ali indefinidamente, e o Vieira poderia viver até aos 100 anos com eles nas costas, e não seria por causa disso que entregaria a alma ao Criador. O que realmente me preocupava, era o sacrificio que me fora confidenciado por um camarada de armas, que acrescentara a enorme dificuldade que o Vieira sentia quando fazia reforço nos abrigos, pois, como lhe era dado dormir pouco, acabava por executar duplo esforço, enquanto olhava para lá do arame farpado na solidão que se proectava savana fora.

Um dia, tive com ele uma das tais conversas, durante a qual me contou grande parte da sua vida e me confessou as dificuldades que passava, por causa dos tais estilhaços. Acabei a ouvi-lo atentamente, e a pensar como poderia ajudá-lo em tão doloroso sofrimento, definindo lentamente uma decisão:
- Olhe, Vieira, eu não me importo de fazer o seu turno de reforço. Ao fim e ao cabo, são duas horinhas que tiro ao sono, e a essas horas da noite, até dá para pensar um pouco mais, ali sozinho, longe de tudo e de todos.

Eu não contava que o Vieira aceitasse tão prontamente, desfazendo-se em elogios e agradecimentos endereçados à minha pessoa. Disse-lhe que nada tinha a agradecer, e antes era meu dever colaborar com todos os camaradas, para levarmos aqueles dois anos a bom termo, dentro da maior amizade e camaradagem. Pedi-lhe, por isso, que não comentasse a minha disponibilidade, e que o facto ficasse apenas entre nós, pois não havia vantagem nenhuma em que mais alguém soubesse.

Mas soube. Não foi preciso passar muito tempo para se saber que o furriel estava a fazer os turnos de reforço do Vieira, não por que este tivesse falseado a sua promessa de sigilo, mas por que talvez não fosse habitual os furriéis consagrarem-se a essa actividade. Ao fim e ao cabo, eu teria sempre de ir acordar o reforço seguinte, que estranharia a minha presença nessa missão diária...

Passou-se, contudo, um mês, sem qualquer ocorrência, ligada ao facto, que importunasse esse desempenho. Até que, um dia, me vieram dizer que o Comandante de Companhia soubera do que se passava e, mais uma vez, decidira dar o seu ar de mando, chamando o Vieira e perguntando-lhe se tal era verdade. Este, segundo me informaram, respondeu prontamente que sim, voltando a referir a minha pessoa em tom elogioso e dizendo que isso lhe aliviava, e muito, o sofrimento. O nosso Comandante ouviu-o atentamente e, depois, mandou-o embora, dizendo-lhe que o chamaria brevemente, para continuarem a conversa.

Essa conversa, não chegou a acontecer, nem com o Vieira, nem comigo. Mandou-lhe recado por um cabo da secção, dizendo-lhe que teria de reiniciar o reforço, pois as necessidades de pessoal eram grandes e o sacrificio tinha de ser repartido por todos. Nesta justificação, não teve oportunidade de ponderar a minha disponibilidade, e eu ainda hoje não sei quais foram as razões que o impeliram a proferir essa ordem por interposta pessoa.

Eu não assisti à cena que se seguiu, mas vieram contar-ma à camarata onde dormitava, e confesso que sorri ao ouvir esse relato, conhecedor que era das falas mansas do Vieira e da sua enorme vontade de não chatear ninguém, mesmo que fosse para levar a cabo uma acção radical. Disse-me então a minha fonte que o Vieira, depois de lhe ser transmitida a decisão do Comando, pegou numa granada de mão e dirigiu-se ao gabinete do nosso Comandante, onde pediu educadamente licença para entrar:
- O meu Comandante dá-me licença?
- Entre! O que o traz por cá?
- Disseram-me que o meu Comandante mandou que eu fizesse reforço outra vez, e eu vim cá confirmar...
- Sim senhor! Você vai ter de fazer reforço outra vez, e aliás nunca devia ter deixado de o fazer! - Disse-lhe o Comandante.
- Mas sabe, meu capitão, é que me doem tanto as costas!... argumentou o Vieira.

E, se havia uma coisa que o Vieira honrava, era não ser medroso. Por isso, mentalmente, engendrou a melhor forma de levar a cabo aquilo que se determinara fazer e, muito mansamente como era seu timbre, descavilhou a granada e, segurando a respectiva alavanca entre ela e a mão, pousou-a sobre a secretária:
- É que sabe, meu Comandante, as costas estão mesmo a doer-me muito...

Talvez influenciado pelo conhecimento de outros factos do género que, infelizmente, não rareavam entre a tropa e não só em terras da Guiné, o visado ponderou a situação.

 - Que acha, meu Capitão? Acha mesmo que devo fazer reforço?
- Ora, ora, senhor Vieira! Claro que vai deixar de fazer reforço. Eu só estava mesmo a ver se era tudo verdade o que se passava consigo!
- Eu bem me parecia, meu Capitão! Que diabo, as costas doem-me mesmo! Muito obrigado, meu Capitão, e se me dá licença, retiro-me.

Como já disse, eu não assisti a esta conversa. Contaram-ma depois e não foi preciso assistir a ela, conhecendo como conhecia o Soldado Vieira. Mentalmente, idealizei a cena e deu-me uma enorme vontade de sorrir novamente. No íntimo, penso que o Comandante procedeu sensatamente, pois ainda hoje não sei o que teria acontecido no Gabinete (eram três, as pessoas lá presentes), se o Vieira recebesse uma recusa pura e simples. Quanto a mim, que não fui tido nem achado em todo o processo, continuei calmamente a fazer o reforço do Vieira, remetendo insistentemente para o Minho o meu pensamento, naquelas longas e negras noites a olhar o mato ali tão próximo, donde por vezes surgiam ruidos estranhos, uns rápidos e fugazes, outros cansativamente persistentes, entremeados com o irritante riso das hienas, que não tinham pejo em tocar o arame farpado junto ao posto avançado, fazendo tilintar as garrafas de cerveja estrategicamente lá posicionadas para nos alertarem da presença dum intruso

Cândido Morais
ex-Fur Mil
CCAÇ 2679
Bajocunda
1970/71
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)