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domingo, 21 de setembro de 2025

Guiné 61/74 – P27239: (Ex)citações (438): Noite de petisco: cabrito assado no forno (José Saúde, ex-fur mil op esp / ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74)

 




Nova Lamego >c. 1973/74 >Noite de petisco: cabrito assado no forno > Os furriéis Godinho, o Santos, um camarada de Coimbra, o outro Santos, o Rui Álvares e eu. 

Foto de José Saúde (2025)





1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.



Noite de petisco Cabrito assado no forno: momentos inesquecíveis


por José Saúde


Camaradas,

A linha do tempo vai, vagarosamente, alimentando uma infinidade de prazeres onde a nossa juvenilidade proporcionava um mar de gigantescas emoções aquando da comissão militar por terras da Guiné. Eramos jovens, com as mentes a enviarem-nos para sensatos sonhos, mas para muitos dos nossos camaradas esses mundos dos sonhos quedaram-se em maquiavélicas crueldades que a guerrilha proporcionava.

Porém, existiram momentos inesquecíveis que nos embalavam para uma imensidão de alegrias quando a hora passava pelo refrescar as gargantas e alimentar estômagos já fatigados de refeições servidos em “pratos de loiças cuja criação tinha a marca de Bordalo Pinheiro e de talheres prateados”. Claro que estes utensílios que aqui menciono, entre ásperas, são meras ficções, dado que o nosso 2º sargento Martins, o homem que orientava a nossa messe, servia a rapaziada com pompa e circunstância, quer na qualidade de refeições, quer no conjunto de vasilhames que colocava nas mesas. O sargento Martins, um homem de Elvas, fazia jus em colocar-nos na mesa bons repastos, atendendo à circunstância então deparada. O pessoal não reclamava e toca a encher o “bandulho”.

Hoje, recorrendo às muitas fotografias que armazenei, lá vou puxando pelas imagens que arrumo, com paixão, no meu baú, recordando, com saudade, os tempos em que a nossa camaradagem se fixava num elo comum onde amizade obviamente proliferava.

Sabemos, pois é irreversível, que um dia viajaremos para uma outra plenitude, mas dessa antiga expedição, forçada, transportaremos connosco vivências que o tempo jamais ousará apagar. Guiné, sim a Guiné, aquela terra vermelha por nós calcorreada, foi palco das mais dispares crueldades. Mas, por outro lado, fica a razão que aqui vos deixo, sobrando o afirmar que o petisco fora feito pelos cozinheiros do rancho geral.

Estava divinal! O jovem animal foi comprado na tabanca e não recordo quantos pesos terá custado. O banquete teve lugar na cantina dos soldados e assado no forno com o saber do mestre padeiro da unidade. O rapaz nunca se refutou a pedidos desta estirpe. Estava sempre disponível! A sua presença no repasto assumia-se como imprescindível e o seu trabalho reconhecido.

Uma mesa comprida, bancos alongados, uns sentados, outros em pé e com a inevitável presença das velhas sagres, a rapaziada comeu e bebeu que se fartou registando-se cenas hilariantes durante o beberete. O Santos, com um sorriso fechado, assemelhava-se a um emigrante desconhecido que parecia não entender o motivo da festança. O seu pensamento levava-o, talvez, a meditar num levantamento de uma mina anticarro que poderia, eventualmente, ser o seu próximo destino. O Rui, vagomestre da Companhia, mostrava os seus dotes de comediante. O ranger Rui, ao meu lado, desfazia-se com as brincadeiras. O Godinho, em frente, ria que nem um doido. Eu, já toldado, apontava a cara do homem de Coimbra e ele presenteava-me com caretas que faziam rir todo o grupo em período de dar ao dente.

A noite de petisco - cabrito assado no forno com batatas - foi sobejamente regada. Uma festança que conheceu outros capítulos. A guerra naquela noitada foi outra: comida e bebida que chegou, sobrou e regalou os jovens combatentes.

Aquele pessoal da cantina dos soldados era formidável. Um pedido nosso – furriéis – era logo timbrado com um profundo SIM. 

Ao sair da guerra do comestível, e já um pouco desequilibrado com excesso de álcool, cai num buraco feito à entrada da cantina que, não obstante o seu aviso de alerta, me deixou sequelas numa perna.

Aquilo a que chamávamos buraco era um abrigo feito propositadamente por antigos camaradas que por ali tinham passado e que se abrigavam dos ataques noturnos do IN. Um símbolo que a rapaziada fazia jus em preservar. O local era conhecido, mas naquela noite surpreendeu-me. Fui arrastado pelo devaneio de umas cervejas a mais e de um inoportuno ziguezaguear que me levou a calcorrear por um trilho referenciado, mas atempadamente esquecido.

Sobrou a maravilhosa noite de convívio de homens que viviam em pleno palco de guerra!

Abraços, camaradas

José Saúde

Fur Mil OpEsp/RANGER, CCS / BART 6523

___________ 

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

30 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)

sábado, 30 de agosto de 2025

Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo

Camaradas,

Não fomos, com o devido respeito para com todos os camaradas, combatentes que desafiávamos a temperatura do ar condicionado, ou onde a “calma” das esferográficas e das velhas máquinas de escrever que ditavam narrativas para os superiores hierárquicos, lá longe, analisarem, concluírem e decidirem. Não fomos, por isso, semidivindades de uma guerra onde a luta pela sobrevivência se circunscrevia na velha expressão: “matar para não morrer”. Fomos, somente, rapazes, melhor, miúdos que desfiávamos o imprevisto do momento seguinte pelo interior de um denso mato. Cada um de nós tem as suas histórias, ou estórias para contar. Tudo ficou, como é evidente, registado em memórias que ainda hoje mexem connosco. Importa não menosprezar opiniões de camaradas que contam as suas realidades, mas nunca alicerçando em depoimentos de outros que, numa posição de autodefesa, “estraçalham mato” e partem para as mais vituperas e vácuas apreciações.

Neste contexto, revejo factualidades por nós conhecidas nos três palcos de guerra; vendo histórias de gentes africanas que ao longo das suas vidas se confrontaram com diversos problemas impostos por etnias que os olhavam de esgueira; lendo sobre modos de vida de sementes que por lá deixámos e como alguns eram, e são, vistos pelo meio comunitário onde convivem; analisando o sofrimento daqueles cujos espermatozoides que fecundaram um óvulo de uma jovem e geraram um ser humano; analisando a forma como, passados muitos anos, é possível constatar uma inequívoca veracidade que todos, ou quase todos, conhecemos, ou seja, o sexo em tempos de guerra; concluindo, afinal pelo mais invulgar e decrépito lugar por onde passámos lá ficaram as marcas que, entretanto, ousámos desvendar, tendo em conta a minha força moral que me incutiu trazer à estampa veracidades que tendiam ficar amorfas numa prateleira onde o bicho da madeira cria um casulo onde os segredos tombariam em saco roto.

Do efeito desta conversa espadaúda, ficam as avestruzes que enterram a cabeça na areia e quebro a veracidade de um silêncio que fora verdadeiramente real.

A propósito, retirei, com a devida vénia, do texto escrito pelo camarada Zé Teixeira, em humor da caserna, que a “Maria tira di brancu”, acrescentando o seguinte: “Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo, encabaçado, tinha vontade e… inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Este foi, meteu a cunha e gozou… de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago”.

Obrigado, Zé, pois, com coragem e brio, tocas num tema tabu, mas literalmente verdadeiro. Acho que não deves levar a mal este meu atrevimento, mas achei o texto deveras interessante, daí que me deu vontade em ir buscar um outro por mim já levantado: Sexo na guerra. Tabu? Abraço, Zé Teixeira,

Camaradas, reconheço que o tema não é de nada generoso, mas é real. Deixo um dos muitos textos que fica narrado no meu livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974”. Editado pela Colibri, Lisboa.


Sexo na guerra
Tabu?

Indolente, obesa e com um falar melodioso a mulher grande impunha respeito à plebe que por norma a rodeava. A sua tabanca, simples e despida de preconceitos, situava-se entre o quartel novo onde estava instalada a CCS do BART 6523 e Nova Lamego. Um passeio noturno da rapaziada levava o pessoal a uma visita espontânea a casa da mulher grande.

Noites que procediam ao recebimento do fresco pré eram, normalmente, sinais evidentes para uma emboscada dos soldados à porta da idosa senhora.

É do conhecimento geral, e não vamos escamotear a inequívoca verdade porque se sabe que o contraditório de opiniões existentes obedece a uma vénia e profunda reflexão, que o sexo foi sempre uma evidente prática comum entre os seres viventes.

Desde os primórdios da humanidade que o ato se pratica em toda a sua extensão. Refere a Bíblia, património universal da Religião Cristã, que já Adão e Eva assumiram o sexo, ainda que virtualmente escondido, mas que no momento de calor e compaixão uniram os seus órgãos genitais e consumaram uma relação sexual.

Neste contexto, importa assumir o ato com frontalidade e não optar pela surdez, procurando o eventual pecador espontâneo imitar a velha avestruz num austero deserto australiano, isto é, esconder a cabeça na areia para passar em seguida como um ser imaculado. Nos tempos de guerra, está provado cientificamente, que são propícios a encontros amorosos. A guerra do ex-Ultramar não passou incólume a desvarios praticados e não assumidos.

A Guiné não foi um caso à parte. Em Nova Lamego, independentemente de encontros amorosos sob um silêncio colossal, havia quem fizesse render as aventuras de jovens em plena ascensão sexual a troco de patacão. Os pesos (escudos) na Guiné eram bênçãos divinas. Na minha conceção, embora discutível, admito que o ato sexual praticado pela mulher não passava exclusivamente por uma mera venda do corpo, mas pela maneira mais prática, e simples, em realizar uns magros pesos para sustentar inadiáveis compromissos familiares.

Negócio? Isso eram ajustes de gentes feitas com o sistema. A mulher grande que eu conheci em Gabu tratava o assunto com uma ligeireza perversa. “Arranjava” bajudas e a malta despejava os seus espermatozóides em vaginas dilaceradas pelos muitos serviços prestados. Consequências? Tudo era tabu! Há quem se refugie numa mítica opção tentando a todo o custo tapar o sol com uma peneira.

Tímidos e envergonhados afirmavam que voltaram virgens. As mãos arrogaram-se às brincadeiras das crianças. Parafraseando um velho político, já falecido, num momento áureo da Revolução de Abril, dizia ele para o camarada ao lado: “Olhe que não!”

Não constringiremos cenas passadas. Verídicas! Assumo que não fui imaculado. Hoje, tal como sempre, dou a cara. Deixo em prosa uma etapa da vida que não me passou ao lado. Pratiquei atos sexuais, sim senhor, como tantos outros camaradas de armas.

Afirmo, com segurança, que numa noite quente eu e um outro camarada, furriel miliciano da minha Companhia, ousámos desafiar a escuridão da tabanca e fomos parar junto a um casal de idosos que gentilmente nos recebeu propondo-nos, de seguida, uma visita à casa do lado, onde uma bajuda, feita a favores sexuais, nos recebeu.

Discutimos o valor, acertámos o custo final e, isoladamente, lá fomos fazer o respetivo serviço. Depois de pagarmos, e no meio de uma franca cavaqueira, apareceu-nos a bajuda, aquela que tinha saciado os nossos eternos anseios carnais, com uma deficiência descomunal numa das pernas. Infelizmente era coxa.

Ressalve-se, porém, que a rapariga era de facto bonita, mas a contingência da vida carimbou-a com um enorme defeito físico. Olhámos um para o outro e em mansinho comentámos: “A nossa amante foi mesmo esta bajuda? Muito bem, o serviço está feito e nada a comentar”, ficou a experiência.

Chegados ao quartel, como era hábito, tomámos um aprazível banho com água barrenta e introduzimos na uretra do pénis uma milagrosa pomada que, ao que tudo indicava, queimava o mais atrevido intruso verme que procurava poiso numa outra superfície humana desconhecida.

Numa outra noite e com a luz ténue de uma candeia à meia haste, fui ter com a mulher grande e perguntei-lhe se por acaso havia bajuda nova, a mulher, experimentada nestas andanças e com um olhar vazio, olhou-me de alto a baixo e atitou-me com esta: “ei furrie você é comando… manga di mau”.

Sinceramente não me apercebi da sua ligeireza ao detetar no camuflado os dísticos que sempre transportava na farda. Acalmei-a e disse que era na verdade ranger, não comando, mas mau… nunca. Coloquei em solene a minha forma de ser e a cordialidade que sempre marcou a minha amizade para com o próximo. A conversa prolongou-se e num repente a mulher grande brindou-me com o meu desejo. Ficou a certeza de que outros se seguiram.

De outros encontros pseudo amorosos ressalta também uma visita ao bairro do Pilão, em Bissau. Vagueando entre a imprevisibilidade de estreitas ruelas de tabancas nada iluminadas, algumas completamente às escuras, acompanhado de um velho amigo, desafiámos o imprevisto e fomos ao encontro dos nossos desejos sexuais. Confesso que chegámos a temer a aventura. Passavam por nós homens negros, altos, de túnicas compridas, enfim, silhuetas que em determinada altura nos levou a duvidar da fartura. Cumprimentávamos e eles, simpaticamente, respondiam. Tudo ok, comentámos.

O Pilão era um bairro dos subúrbios de Bissau onde a malta da metrópole por norma não passeava. A noite tinha um cunho arrojado. A palavra passava de boca em boca e os tropas arrepiavam caminho.

Todavia, decidimos desafiar essa perigosidade e encontrei uma jovem mulher e de corpo descomunal, a quem me entreguei por alguns momentos de delírio. Paguei e aventura terminou aí. Nunca mais a vi!

Concluindo: porquê escamotear verdades de jovens entregues a elementares gostos sexuais procurando, nalguns casos, tentar passar isento a constrangimentos entretanto criados? Tabu? Ou consequências lógicas dos nossos verdes anos?

Resenha final: assumamos, porque Deus fez o homem e a mulher e projetou os dois seres com um fim comum, amar e procriar.

Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

13 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27014: (Ex)citações (436): "Filhos de Tuga"... e o caso do meu mano, meu amigo, meu herói, militar de carreira, falecido em 2021 (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69; Vila do Conde)

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27137: A nossa guerra em números (35): Qual a probabilidade de o nosso saudoso Valdemar Queiroz (1945-2025) encontrar, em Nova Lamego, Gabu, em 1970, um libanesa, de olhos verdes, fatais ?



Pormenor de "A rapariga com brinco de pérola" (c. 1665)... Uma das obras-primas da pintura de todos os tempos, da autoria do pintor neerlandês Johannes Vermeer (1632-1675).  Óleo sobre tela (44,5 cm x 39 cm). Localização atual: Galeria Mauritshuis, Haia. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


De acordo com o assistente de IA / ChatGTP e a pesquisa feita pelo nosso editor LG, a cor dos olhos da rapariga na pintura "A Rapariga com Brinco de Pérola", de Johannes Vermeer (c. 1665), não é castanha nem verde. De acordo com análises detalhadas da obra, os seus olhos são descritos como cinzento-azulados, com um subtil toque de castanho-dourado claro.

Ou melhor: os olhos da jovem não têm uma cor definida de forma clara como o castanho ou o verde. Estudos técnicos e análises de alta resolução (como os realizados pelo projeto Girl in the Spotlight em 2018) revelaram que os olhos da rapariga aparecem num tom acinzentado-azulado, devido tanto ao uso de pigmentos como ao desgaste natural da tinta ao longo de mais de três séculos.

Além disso, o efeito de luz e sombra pintado por Vermeer, aliado ao fundo escuro, cria nuances que podem dar a sensação de um subtil reflexo dourado ou acastanhado, especialmente na íris. Ou seja, não se trata de uma representação fotográfica da cor dos olhos, mas antes de uma ilusão ótica criada pelo grande mestre da luz holandês.

Portanto, não se pode dizer que a rapariga tenha olhos verdes ou castanhos: a descrição mais fiel é mesmo cinzento-azulados com ligeiras tonalidades quentes.


1. Mulheres, libanesas,  de olhos verdes, fatais, na antiga Guiné portuguesa ?  Verdade ou treta ? (*)

Parece ser um estereótipo... No Líbano podia haver 4 a 5 % de mulheres de olhos verdes (no resto do mundo, são 2%)... 

A antiga Guiné Portuguesa, em 1950, teria cerca de 500 libaneses ou sírio-libaneses e seus descendentes (em 1924, seriam 101)... Todos comerciantes (e seus familiares). 
Valdemar Queiroz (Afife, 
Viana do Castelo, 1945 - 
Agualva, Sintra, 2025),
ex-fur mil at art, 
CART 2479 /CART 11,
 Contuboel, Nova
 Lamego, Canquelifá,~
 Paunca,  Guiro Iero Bocari, 
1969/70)


Com o início da guerra colonial (em 1961) alguns teriam saído do território ou ido para Bissau, por razões de segurança. (Poucos ficaram no mato, como o Jamil, no Xitole.)

Chegaram por volta de 1910/1920. Com a independência em 1974, muitos terão deixado o país. Há quinze anos atrás não seriam mais do que 200.

Qual a probabilidade de o nosso querido e saudoso Valdemar Queiroz (1945-2025) encontrar uma mulher libanesa de olhos verdes, fatais, em 1969/70, em Nova Lamego (hoje Gabu) ? Ele diz que nunca as viu em Nova Lamego, às libanesas de olhos verdes... E que era preciso ir a Bafatá para as ver... 

2. Resposta do assistente IA (Perplexity, Gemini, ChatGPT)  | LG:

A questão de mulheres de olhos verdes na antiga Guiné Portuguesa, mais especificamente em Nova Lamego (atual Gabú), está ligada a um estereótipo e a uma característica rara entre a população local.

(i) Contexto: População Sírio-Libanesa e sua distribuição

Na antiga Guiné Portuguesa, em 1950, haveria  cerca de 500 libaneses ou sírio-libaneses e seus descendentes, a maioria comerciantes que haviam chegado entre 1910/20. Em 1924 eram 101. Eram comerciantes ou familiares de comerciantes.

Grande parte dessa população concentrava-se em centros urbanos e em atividades comerciais: Bissau e Bafatá são as povoações mais citadas.

Com o início da guerra colonial em 1961, muitos migraram para Bissau ou deixaram o país após a independência em 1974. A população sírio-libanesa local diminuiu para algo perto de 200 (em 2009).
 


(ii) Sobre a probabilidade de encontrar uma mulher libanesa 
de olhos verdes em Nova Lamego em 1969/70:

Vamos à estimativa, considerando suposições conservadoras, já que fontes específicas não indicam números exatos de descendentes femininas libanesas na Guiné-Bissau em 1970:

Supondo cerca de 500 sírio-libaneses na Guiné-Bissau nos anos 1950 e que o número não tenha variado muito até 1970: proximadamente metade seriam mulheres: 250.

A prevalência de olhos verdes (4-5%) aplicada às mulheres: 10 a 12 mulheres descendentes de sírio-libaneses na Guiné-Bissau em 1970 poderiam ter olhos verdes (250 × 4% = 10; 5% = 12,5)

A probabilidade existe e estaria de acordo com a diversidade genética dos libaneses. Ou seja, mesmo num grupo pequeno como o dos sírio-libaneses na Guiné-Bissau, seria plausível encontrar algumas mulheres de olhos verdes em 1970.

Estes cálculos são estimativos, baseados na disponibilidade limitada de dados demográficos exatos sobre os sírio-libaneses da Guiné-Bissau e sobre proporção de olhos verdes na população libanesa. A resposta é, portanto, probabilística, mas perfeitamente plausível segundo a literatura histórica e genética citada.

População estimada sírio-libanesa em Nova Lamego em 1969/70: Nova Lamego não era o maior núcleo sírio-libanês (Bissau e Bafatá tinham maior concentração). Ainda assim, podia haver uma ou duas famílias sírio-libanesas na cidade.

Mulheres jovens/adultas: 

Dentre os 500 indivíduos, supondo distribuição uniforme e cerca de metade seriam mulheres, muitas delas poderiam já estar integradas em outros núcleos urbanos, saído do território (com o início da guerra colonial) ou casado fora da comunidade (houve casamentos mistos).

Mulheres de olhos verdes: 

A proporção de pessoas com olhos verdes entre os libaneses era pequena (4-5%, mesmo assim o dobro da média mundial) e a comunidade sírio-libanesa na Guiné Portuguesa era bastante pequena e dispersa, especialmente no interior (Nova Lamego).

Nova Lamego não era centro preferencial para os sírio-libaneses (muitos estavam em Bissau e Bafatá).

Tomando o máximo de 5% (num cenário otimista), mesmo que houvesse, digamos, 10 mulheres sírio-libanesas em Nova Lamego (contra todas as evidências), a expetativa estatística seria encontrar no máximo uma mulher de olhos verdes. 

Se fossem menos (cenário mais realista, segundo os testemunhos orais), a chance de encontrar seria muito baixa (tendendo a zero).

Ou seja, é estatisticamente plausível que Valdemar Queiroz (VQ) nunca tenha visto uma mulher libanesa de olhos verdes (e muito menos fatais) em Nova Lamego, em 1969/70. 

As poucas pessoas com essa característica possivelmente estavam em centros urbanos maiores, como Bafatá ou Bissau, o que explicaria a necessidade de, segundo ele,  "ter pena de nunca ter ido a  Bafatá para vê-las" (*), como outros felizardos.


(iii) Sobre o estereótipo das “mulheres de olhos verdes fatais”:

Esse estereótipo é muito mais ligado a percepções pessoais, culturais e subjetivas do que a uma distribuição real quantitativa.

Olhos verdes são raros na África Ocidental e entre os libaneses no território da Guiné-Bissau, ainda mais numa minoria pequena e dispersa.

A percepção da raridade pode ter sido marcada justamente pela pouca frequência em locais menos urbanos, reforçando o estigma de serem “fatais” pela sua singularidade.

(iv) Dados demográficos gerais da região:

A população da Guiné-Bissau tem cerca de 51-52% de mulheres atualmente, com maior número de mulheres nas regiões rurais e urbanas, incluindo Gabú (Nova Lamego).

Porém, conciliar isso com a distribuição sírio-libanesa, ainda menor e muito reduzida no interior, reforça a baixa probabilidade de avistamento de tal característica (olhos verdes nas mulheres) em locais como Nova Lamego.

Conclusão:

A probabilidade de Valdemar Queiroz (que infelizmente morreu em maio passado) ter encontrado uma mulher libanesa de olhos verdes, fatais, em Nova Lamego em 1969/70 era muito baixa, praticamente nula, dada a pequena comunidade, o padrão de concentração dessa população e a raridade genética da característica dos olhos verdes. 

Ir a Bafatá, com mais possibilidades de encontrar esse tipo de pessoa, era... sensato e condizente com a realidade.

Pode ser que o VQ, lá no céu, tenha mais sorte do que na terra,  e encontre a sua libanesa de olhos verdes, fatais...
 ______________

3. Distribuição mundial da cor dos olhos

Estudos e relatos indicam que poucos libaneses têm olhos claros (verdes ou azuis). Genes para olhos verdes são recessivos e, em populações do Oriente Médio, a prevalência é relativamente baixa, mas não desprezível. 

Fontes indicam proporções entre 4% e 5% de pessoas com olhos verdes no Líbano, devido à diversidade genética trazida por séculos de mistura étnica.


Quadro - Distribuição percentual (estimada)  das cores dos olhos, por região
Região / Cor (%)
Casta-
nhos 
Avelã /
Mel
Ver-
des
Azuis
/ Cinz
Mundo (média)~79~9~2~10
Médio Oriente (geral)85–907–101–2<2
Líbano (estimativas)70–7515–204–63–5


Os olhos verdes são, de fato, a cor mais rara na população mundial, e isso se aplica tanto a homens quanto a mulheres. Estima-se que apenas 2% da população mundial tenha olhos verdes (vd. quadro acima).

Embora não existam dados globais que separem especificamente a percentagem por género, alguns estudos sugerem que as mulheres têm uma probabilidade ligeiramente maior de ter olhos verdes do que os homens.

A distribuição percentual das cores de olhos na população mundial, de forma geral, é a seguinte:

  • Castanho: é a cor de olhos mais comum, presente em cerca de 55% a 79% da população mundial; é a cor dominante na maioria das populações da África, Ásia e América Latina;
  • Azul: com aproximadamente 8% a 10% da população mundial, os olhos azuis são mais comuns na Europa, principalmente nos países nórdicos;
  • Verde: a cor mais rara, com apenas 2% da população: os olhos verdes são mais frequentes em pessoas de ascendência celta, germânica e eslava, com altas concentrações em países como Hungria, Irlanda e Islândia;
  • Avelã (Hazel): uma mistura de castanho, verde e dourado, essa cor está presente em cerca de 5% da população;
  • Cinza: considerada uma variação dos olhos azuis, é uma cor extremamente rara;
  • Âmbar e Preto: são cores de olhos muito raras, sendo o preto um caso de olhos castanhos muito escuros, onde a alta concentração de melanina torna quase impossível distinguir a íris da pupila.

A cor dos olhos é determinada principalmente pela quantidade, qualidade e estrutura da melanina, um pigmento castanho escuro, dentro da íris.

Concentrações mais elevadas de melanina resultam em olhos mais escuros, enquanto concentrações mais baixas levam a tonalidades mais claras.

Para além da melanina, as propriedades físicas da interação da luz com a íris são cruciais. O espalhamento de Rayleigh, onde comprimentos de onda mais curtos de luz (como o azul) são espalhados de forma mais eficiente, é responsável pelos olhos azuis quando os níveis de melanina são muito baixos.

O espalhamento de Mie, frequentemente associado a partículas maiores, pode contribuir para a aparência dos olhos cinzentos.

Para olhos verdes e âmbar, um pigmento amarelo chamado lipocromo combina-se com vários níveis de melanina e espalhamento de luz para produzir as suas cores distintas.

A classificação das cores dos olhos pode ser complexa:

  • os olhos castanhos são a cor mais comum globalmente (4 em cada 5, variando de tonalidades muito claras a extremamente escuras; estes olhos possuem uma concentração relativamente alta de melanina;é importante notar que a menção de "olhos pretos" é, na verdade, uma referência às tonalidades mais escuras do espectro castanho, resultantes de uma concentração extremamente alta de melanina. Isso significa que não existe uma categoria biológica distinta de "olhos pretos", mas sim um extremo do espectro castanho;
  • os olhos azuis resultam de uma concentração muito baixa de melanina e da cor estrutural devido ao espalhamento de Rayleigh;
  • os olhos verdes são caracterizados por uma concentração baixa a moderada de melanina e a presença do pigmento amarelado lipocromo, combinado com o efeito de espalhamento azul;é crucial observar que os verdadeiros olhos verdes geralmente se apresentam como uma cor sólida; olhos com uma mistura de manchas verdes, castanhas ou douradas são geralmente classificados como avelã;olhos avelã frequentemente parecem mudar de cor, sendo uma mistura de castanho, verde e, por vezes, dourado resultam de uma quantidade moderada de melanina e espalhamento de Rayleigh;em alguns conjuntos de dados, o avelã é agrupado com o âmbar; 
  • os olhos âmbar são uma cor sólida distinta com um forte tom amarelado/dourado ou avermelhado/acobreado, potencialmente devido a uma maior concentração de lipocromo;
  • os olhos cinzentos são semelhantes aos olhos azuis na estrutura, mas podem ter depósitos maiores de colagénio no estroma, levando ao espalhamento de Mie e a uma aparência cinzenta; historicamente, os olhos cinzentos e azuis eram frequentemente combinados em estudos, mas classificações mais recentes reconhecem o cinzento como uma cor rara distinta; a variação na classificação, como o agrupamento de "Verde/Avelã" em alguns estudos e "Avelã/Âmbar" noutros , indica que não existe uma padronização universal na categorização da cor dos olhos, o que pode influenciar as percentagens exatas reportadas.

A cor dos olhos é uma característica poligénica, o que significa que é determinada pela interação de múltiplos genes (pelo menos 16 genes diferentes estão envolvidos) em vez de um único gene. Genes chave como o OCA2 e o HERC2 no cromossoma 15 desempenham papéis significativos na regulação da produção e distribuição de melanina na íris.

A cor dos olhos é uma característica humana altamente visível, mas a sua distribuição global está longe de ser uniforme. É um fenótipo complexo, determinado por mecanismos biológicos intrincados e influenciado por uma interação fascinante de fatores genéticos, geográficos e até mesmo subtis elementos relacionados com o género.

Vd. no quadro acima a sua distribuição regional e mundial.


4. Cores de olhos no Oriente Médio e no Líbano:


Existem menos levantamentos sistemáticos sobre cor de olhos específicos por país do que em populações europeias, mas dados de antropologia e genética já mostraram:

  • maioria de olhos castanhos-escuros (> 80%) em países como Arábia Saudita, Síria, Jordânia, Iraque;
  • Líbano, Palestina e algumas populações do Egito e do Magrebe têm maior proporção de olhos mais claros (avelã, mel, verdes e azuis) do que a média regional, fruto de séculos de mistura genética mediterrânea, cruzadas, invasões e migrações.

Alguns levantamentos populacionais (baseados em estudos de biometria, clínicas oftalmológicas e registros antropológicos) apontam que no Líbano a distribuição pode ser algo aproximado a:

  • Olhos castanhos (claros e escuros): 70–75%
  • Avelã / mel: ~15–20%
  • Verdes: 4–6%
  • Azuis / cinzentos: 3–5%

Conclusão:

É estatisticamente errado falar que "as libanesas são de olhos verdes", porque a grande maioria continua sendo de olhos castanhos.

Mas é correto observar que o Líbano tem uma incidência mais perceptível de olhos claros (verdes, mel, azuis) do que a maioria dos países árabes ou do Oriente Médio.

(Pesquisa: assistente de IA / Gemini, Perplexity, ChatGPT | LG) (Revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)
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(**) Último poste da série > 17 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27128: A nossa guerra em números (34): Colonos - Parte I: os sírio-libaneses

sábado, 21 de junho de 2025

Guiné 61/74 – P26945: Memórias de Gabú (José Saúde) (431): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné (José Saúde)

1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego -Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.

Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné 

Guiné/Bissau e as suas histórias 

O passageiro de além

Rapazes simples, fardados com um camuflado em pleno palco de guerra, mas, sendo que na partida para terras de além-mar as vestes que envergavam eram as de primeira propriedade. O momento passava por uma cerimónia “vil” por parte dos senhores da Nação. As famílias na Cais de Alcântara, ou no Conde de Óbitos, ou no aeroporto do Figo Maduro, em Lisboa, fechavam-se em rosto que transmitiam dor. Aliás, uma dor que lhes vinha do interior das entranhas, ou não fosse o momento deveras doloroso.

Os “miúdos” lá seguiam em grandes barcos que enfrentavam ventos e marés rumo ao seu destino. As viagens, algumas mais extensas, beneficiavam uma aproximação a um camarada que, entretanto, aparentava desespero. Entretinham-se, nesses longos instantes, ao jogo da lepra, ou, ainda, a outros passatempos ocasionais. Por vezes, a noiva, o seu grande amor, já guardava no ventre um pequeno ser humano fecundado com afeto. A mãe, sim aquela que o pariu, ficava desfeita e começa um “luto” com a ida do seu filho para a guerra.

Depois, lá vinham os aerogramas onde o militar, algures no mais incomum lugar das então províncias ultramarinas, recomendava calma à família e amigos, dado que tudo seguia à sonoridade de ventos sopravam (des) favoráveis. Nada de alarmismos. O rapaz, alguns com a barba ainda a rebentar no seu jovial rosto, com as borbulhas a indicar jovialidade, mandava fotografias para o pessoal descansar.

Lá longe, em Angola, Moçambique e Guiné, os “putos” lá se iam defendendo, entrementes, de uma guerra que não dava tréguas. Matar para não morrer era o slogan que todos, ou quase todos, partilhavam, todavia, alguns encontravam infelicidade pelo caminho e a morte, ou a incapacidade corporal, fora o fatídico selo que lhes impôs destinos impiedosos.

Em Gabu, o passageiro do além, vislumbrava que aquela guerrilha nefasta era tida como desigual. Não importava o bélico contagiante das nossas tropas, cerca de 40 mil, na altura, que lutava com um inimigo, PAIGC, ao que se comentava que tinham cerca de 10 mil. Outros motivos explicavam tal razão. O contexto generalizado da guerra ditava fatores que impunham ordens para um IN, sempre hábil, que aparentava superioridade nos campos de batalha. Porém, nem sempre assim o era.

            Por outro lado, nos céus da Guiné existia um rol de pássaros que eram imunes aos conflitos no terreno. No mato viam-se diversas espécies de passarada, ou animais, tipo macacos, lebres, de entre outras, que encantava camaradas com os seus lindos chilreares.

            Debruço-me, hoje, sobre a realidade dos abutres.

Abutres

Numa breve reflexão sobre a passarada guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava pela procura sistemática de restos de cadáveres.

Não vacilo, porém, recordar Hitchcock na sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis traduções que esbarravam em análises científicas. 

Mas demos um passo em frente, ouçamos abstratamente o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando nos abutres conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas, pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles, como inigualável. 

Simultaneamente ao evoluir das desgraças conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era, tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo registava “carne para canhão”.

Passemos licitamente à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.

 

A hierarquia dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada via internet)

Conheci o seu esvoaçar num horizonte interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos. Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz, de etnia fula, matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos previamente feitos.

Lembro, e foram muitas vezes a que assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.

Recordo, simultaneamente, as lutas desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro, tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.

Claro que as lutas dos pássaros desenhavam ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só uma pausa pontual ao arroz com salsichas. 

Para outros, pássaros de rapina imbuídos num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes, “não iam à mesa do rei”.

Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia proveitos monetários para alimentar a família.

Retalhos de vidas que em tempo de guerra abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas campais que ocorriam ali por perto.

Lá longe, muito longe, os arautos do despotismo debitavam discursos, qual abutres esvoaçando sobre negros horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos de guerra com honra e dignidade.

Na verdade, nós jovens lutávamos como heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.

Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)