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domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 – P25159: (Ex)citações (427): Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974" (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974"

Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.

A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa. Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular, para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos camaradas imagens por todos certamente relembradas. 

      Angola, Moçambique e Guiné, hoje países independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.

      A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.

      Aportei em solo guineense cerca das 14 horas locais no dia 2 de agosto de 1973.  Ao descer do avião deparei-me, de imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou, todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante, assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível realidade”.

      Os primeiros contactos com os nativos transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que dantes havia idealizado.

Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal. Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava fronteiras aéreas a caminho da guerra.

      Todas as histórias têm um vínculo que nos transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos diametralmente oposto: a guerra e a paz.

      A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos. As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN (inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram evidentes nos campos de batalhas.

      Do conflito da Guiné há retratos que ao longo dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha, nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às forças lusitanas.

      Teoricamente seria essa a intenção dos homens de Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito, mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a guerra operacional dos galões amarelos.

      Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta. As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.

      Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer, faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela dureza.

      Sabe-se que foram muitos os que morreram no palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram, felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.

      O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero.        

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 – P24917: (Ex)citações (426): Vidas (José Saúde)

 



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

O texto vidas reflete o que é, quase na sua essência, a nossa existência ao cimo deste globo terrestre como antigos combatentes, como é este o caso, de uma guerra na Guiné que deixou marcas em cada um de nós, sendo o futuro uma eventual incógnita.

Eu, 72 anos na altura, cai ao sair do meu carro desamparado de que resultou uma outra malazenga, para além de um AVC que muito me apoquentou, dado que tive de ser hospitalizado, sucedendo que neste momento encontro-me numa fase de recuperação.

Esta é uma passagem pelo meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ BISSAU 1973/1974”, Edições Colibri, Lisboa, que incide afinal o que é na presença no planeta Terra.

O mundo é pequeno e as nossas recordações gigantescas

Vidas




Não obstante a velocidade estonteante que contempla um desgastar imutável de vidas que paulatinamente vão marcando gerações, eis-nos perante uma realidade que consome nacos de uma existência que marcará eternamente a nossa presença neste cosmos terrestre.      

Assumindo a minha condição de exímio septuagenário, sou, de quando em vez, embalado imaginariamente ao colo da minha saudosa mãe por um sentimento nostálgico onde as luzes da ribalta transcende o hino das emoções e nos conduzem, quiçá inadvertidamente, a vidas sentidas dos tempos de tropa e da guerra.      

Tempos em que nós, miúdos e de caras joviais, dávamos um pontapé nas estrelas, sendo que nesse exorcismo irreal deixávamos um sinal claro que o nosso futuro passava irremediavelmente pelo dia da chamada do futuro mancebo para engrossar as fileiras do exército português.      

Porém, uma certeza não invadia as nossas almas: a guerra no Ultramar. Ou seja, um cenário gigantesco que ditava como encenação provável uma comissão militar em território de além-mar. Mas, existiam também nuances que acarretavam preocupações acrescidas a rapazes que viviam anos de uma efervescente juvenilidade. O futuro, sempre imensurável, sugeria um sonho que nos fazia sorrir. A guerra era coisa distante. Parecia.      

Todavia, escondido no nosso ego lá permanecia uma faixa negra onde se lia: segue em via rápida uma encomenda que transporta a tão conhecida frase “carne para canhão”!... Ainda assim, a utopia transmitia um similar de odores onde esperança falava mais alto. “Vou à guerra, mas regressarei um dia são e salvo ao meu rincão sagrado. Não quero medalhas, mas exijo apenas um simples reconhecimento pelos momentos de padecimento sofrido. Ponto final”.      

E muitos regressaram isentos de malazengas contraídas nos campos de batalha. Outros, infelizmente, chegaram tendo à sua espera uma secção de militares do quartel mais próximo da sua residência que honrava o defunto com uma rajada de G3. Depois seguia-se o discurso que ornamentava o fúnebre momento, frisando o oficial de serviço o heroísmo do camarada agora já cadáver. Bolas, que pudica mensagem de voz!      

A tropa apresentou-se, creio certamente, para todos nós como uma universidade da vida na qual recolhemos informações que nos levaria a efetivos doutores de uma licenciatura concluída num mar de aventuras e que coabitava com o desenrolar das nossas vidas. A tropa foi, e afirmo obstinadamente, uma inquestionável experiência que muito nos ensinou.      

Lembro o dia 10 de outubro de 1972 quando dei entrada como mancebo no CISME, em Tavira. Depois veio Lamego, Operações Especiais/Ranger. O dia 4 de janeiro de 1973 traçou-me um novo destino. Abençoado pela Serra das Meadas, a bíblia dos futuros rangers, tornei-me um exemplar militar e adquiri louros para uma especialidade que me fez crescer na sua plenitude. Seguiu-se a Guiné e Gabu recebeu-me com “pompa e circunstância”.      

Recordo o dia que ousei desafiar calendas escondidas e obrigatoriamente parti para uma comissão militar na Guiné. Num outro lado, África esperava-me e o solo guineense “abençoou” a minha chegada. Constatei de imediato que o bafo causado pela aquela terra vermelha me aconselhava cuidados atempados.       

Cuidados que, posteriormente, disparariam em todas as direções. O dia-a-dia em Gabu evidenciava novas aventuras. Aventuras que coincidiam com patrulhamentos, proteções às colunas, quartel e pista de aviação, com visitas permanentes a tabancas, operações, saídas constantes para o adensado mato, enfim, um rol de procedimentos comuns imputados a um operacional em tempo de guerra.       

Evoco outros momentos em que o clima de África contemplava as nossas vidas. O paludismo, que me visitou por três vezes, derrubou-me, mas levantou-me. Foi uma espécie de ataque de morteiro sem recuo onde a versão primária levou o debilitado combatente a exercitar a sua já usada condição de ranger.      

E é neste permanente propagandear de vidas preenchidas em território guineense, que me ocorrem situações em que o facilitar permitia o desenvolvimento de momentos caóticos. Alguns fatídicos.      

Jovens militares que acreditaram na sorte. Vidas que, inconscientemente, se perderam, tão-só pelo simples facto de não premeditavam o futuro imediato. Facilitavam. Depois vinha a desgraça.      

50 anos depois…                 

      


Um infortúnio que 50 anos depois eis que o “rebentamento de uma mina antipessoal” me atirou para o leite do hospital de Beja. Fémur fraturado e que originou uma intervenção cirúrgica urgente, tendo sido necessário levar “material suplementar”, ou seja, um “espigão” que vai do colo do fémur ao joelho pelo interior do referido osso, bem com parafusos para suportar o equilíbrio do membro inferior direito, aquele que ficou meio funcional após o meu AVC, um mal que já leva 17 anos de existência. Abraço camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

4 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24723: (Ex)citações (425): Ainda a propósito do Jornal Voz de Bissau, a atividade Política em Bissau no pós 25 de Abril (Victor Costa, ex-Fur Mil)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um relato memorial de quem passou a sua comissão militar na região de Nova Lamego, conta os antecedentes, como se formou antes de ir para a guerra, desvela como aqueles pontos da região Leste passaram da acalmia à turbulência. É uma narrativa serena, não há para ali prosápias nem arroubos heroicos, o que o António Henriques de Matos desejava era preparar os seus soldados para terem a quarta classe, foi um sucesso completo. Manifesta um pleno orgulho em ter concluído em regime noturno o curso liceal e a licenciatura em economia, depois da vinda da Guiné, trabalhou num banco prestigiado mais de 40 anos, chegara a hora de pôr por escrito a sua vida militar e as suas recordações do Gabu.

Um abraço do
Mário



Memórias de um combatente na Guiné (1969-71), por Diogo Aloendro

Mário Beja Santos

Diogo Aloendro é pseudónimo de António Henriques de Matos, fez parte do BCAÇ 2893, pertenceu à CCAÇ  2618, e escreveu agora as suas memórias, 5livros.pt, 2021. Dá-nos conta da sua vida de furriel atirador desde a recruta nas Caldas da Rainha, a especialidade em Tavira, a passagem pela Amadora, a ida para Chaves formar batalhão, e depois toda a sua comissão na região de Nova Lamego. Deixa-nos belos parágrafos de profundo afeto por quem o tratou bem em Lisboa, para onde emigrou aos quinze anos, não esqueceu as vicissitudes da sua formação militar, as novas formas de camaradagem, largados na Serra do Caldeirão com alguns instrumentos de orientação e rações de combate, chuvas inclementes, e guardou memória de um episódio de terem andado por sítios inóspitos, ali estava todo encharcado e apareceu alguém a convidá-lo a entrar para secar a roupa e descansar um pouco, uma senhora convidou-o a ir ao quarto do filho e vestir um pijama. Observou que o quarto estava impecavelmente arrumado e com a cama feita, tinha numa das paredes uma moldura de um soldado, vestiu o pijama, entregou à dona de casa a farda encharcada, comeu um caldo à mesa com o casal. O filho tinha falecido havia dois anos, morto em combate na Guiné.

São parágrafos tocantes:
“O quarto mantinha-se tal qual ele o deixou na última noite que ele lá dormiu. Não estávamos preparados para tamanha desgraça. Levaram-nos o nosso filhinho que era tudo o que tínhamos Como poderemos suportar esta dor, sabe explicar-nos?
– Ninguém sabe explicar – desabafava a mulher – numa voz sofrida. Ninguém sabe, acrescentava, como que a pensar alto. Soletrava estas frases com os olhos tristes já sem lágrimas para verter, enquanto o seu homem a aconchegava no ombro pedindo-lhe, carinhosamente, força e ânimo para o ajudar também a ele, a suportar o desgosto.”


Ele não podia aceitar dormir na cama do filho, acabou por ir descansar num barracão onde havia palha no chão. E na manhã seguinte juntou-se aos seus camaradas para continuar a subir e descer na Serra do Caldeirão. Concluída a especialidade, foi enviado para Beja, depois para o Regimento da Infantaria 1, na Amadora, mobilizado para a Guiné foi formar batalhão em Chaves. Continuava a estudar, queria concluir o sétimo ano.

Em novembro de 1969 chega à Guiné. Descreve Nova Lamego, é ali que está a sede do batalhão:
“Era uma pequena cidade implantada ao longo de uma rua principal, que se confundia com uma estrada, à imagem do que aconteceu na formação das nossas aldeias e vilas. Aqui se encontravam algumas casas de betão, a sede da Administração, composta pelo Comando Administrativo. Para além deste edifício, havia uma casa comercial, um cineteatro e o quartel militar, um edifício colonial de dois pisos, que servia de instalação ao Comando do batalhão. Contíguo a este edifício na parte de trás, existia uma vasta área onde se localizavam as casernas e alguns espaços, como sendo um campo para jogar futebol de salão. Nestas casernas se instalaram duas companhias. Vivia-se então um estado de acalmia.
Não fossem as preocupantes notícias, trazidas pela tropa que aportava a Nova Lamego, onde se vinham abastecer, ou de passagem para os respetivos aquartelamentos, nada se passava naquele paraíso”.

Lê, escreve e estuda. Tendo ficado órfão de pai aos oito anos de idade, dedica-lhe uma elegia, uma conversa em voz alta no fulgor das recordações de quando era petiz, gostaria muito de um dia ir à Angola visitar-lhe a campa.

Cabe-lhe fazer patrulhamentos à volta de Nova Lamego, há um pelotão que está destacado em Canssissé, este a cerca de 40 km da sede do batalhão. Fazem-se patrulhamentos diários, o objetivo era impedir as movimentações dos guerrilheiros, recorda que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969, ficara uma grande área a descoberto para infiltrações. Surgem situações inesperadas, por vezes caricatas, barulhos dentro da mata, pensa-se inicialmente que vai haver confronto com grupo guerrilheiro, afinal é um grupo de javalis que passa a tropel. Descreve minuciosamente esses patrulhamentos, perto e longe de Nova Lamego, os contactos com o inimigo são esporádicos. O comandante do pelotão entra em depressão, foi hospitalizado depois de uma emboscada, é ele que assume interinamente as funções de comandante.

Decide dar aulas aos soldados que ainda não possuem a quarta classe, constituíam a maioria, é por essa altura que o pelotão do Matos é destacado para Cansissé, descreve a povoação e o sistema defensivo, as casernas dos soldados eram feitas de lona, a situação era um pouco melhor para furriéis e alferes. Não perde oportunidade de descrever as alegrias no recebimento do correio. E dá a compreensível importância às aulas para se chegar ao exame da quarta classe. “Achei mais apropriado ter apenas uma sessão diária de duas horas em simultâneo para ambos os alunos, logo após o pequeno-almoço, o rancho da manhã. Tinha inscrito catorze alunos para a quarta classe e dois cabos e um soldado propunham estudar para fazerem o primeiro ciclo, ou seja, o primeiro e o segundo ano, a fazer num só ano. Do nosso pelotão de trinta soldados, vinte e sete e três cabos, pelo menos, catorze, não tinham a quarta classe”. E dá-nos conta de como implantou o método mais adequado e obteve apoio do batalhão para adquirir livros. A vida em Canssissé podia não ser o paraíso, mas não havia flagelações, não se esquece de nos contar as desinteligências e até homicídios entre civis. Fizeram-se obras, apareceu o heliporto. E de Canssissé regressam a Nova Lamego. Continua a estudar e irá fazer exames no Liceu Honório Barreto.

A vida calma naquela região do Leste da Guiné vai conhecendo sobressaltos. Chegou a hora do pelotão do Matos provar uma mina anticarro, felizmente sem danos mortais. As coisas parecem complicadas em Pirada e Buruntuma. Foi o que aconteceu quando o pelotão do Matos foi até Cabuca, tudo parecia estar a correr bem, não picaram no regresso, uma mina anticarro rebentou no rodado da GMC.

Já se passou um pouco mais de um ano da sua comissão, como muitos outros autores ele vai acelerar a prosa, descreve sumariamente a ação psicológica nas tabancas à volta de Nova Lamego, os patrulhamentos, há depois o ataque a Nova Lamego, aparecem os mísseis, e o Matos vai dar instrução a pelotões de milícias em Contuboel, experiência que lhe agradou imenso. Ainda voltou a Cansissé, a comissão está praticamente no fim, já estão no Cumeré a aguardar embarque.

Concluída a viagem, frente ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, sente a diferença do que vivera dois anos antes:
“Não voltaram ao cais os familiares dos camaradas que lá perderam a vida. O desespero, os gritos e desânimo de quantos, há dois anos se vieram despedir, contrastava com a alegria incontida, em cada abraço que se multiplicavam no cais da nossa esperança”.

Igreja de Nova Lamego, Foto Serra, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24743: Ataques ou flagelações com foguetões 122 mm: testemunhos (2): Nova Lamego, 5 de abril de 1970: seis "jactos do povo", sem consequências, contra a nova pista de aterragem (Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, CART 11, 1969/70)



Infografia: Nuno Rubim (2007)


1. Iniciámos uma nova série,  "Ataques ou flagelações com foguetões 122 mm: testemunhos" (*). Temos hoje os comentários ao poste P24735 (**), de dois camaradas nossos, da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70), os ex-fur mil at inf, Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, que estavam em Nova Lamego, quando a nova pista de aterragem (renovada para receber os Fiat G-91) foi   flagelada com seis "jactos do povo" em 5 de abril de 1970, sem consequências.

Esta e outras acções do IN, nos anos de 1969 e 1970, estranhamente não vêm mencionadas pela CECA (2015), embora se fale do aparecimemto da nova arma, sem se precisar a data e o local da sua estreia (que terá sido Bedanda,  em 24 de outubro de 1969) (***).



Guiné > Região de Gabu > Carta de Nova Lamego (1957) (Escala: 1/50 mil) > Posição relativa de Nova Lamego, aeródromo e Coiada

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


(i) Valdemar Queiroz:

Oi, ouvi-os passar por cima da cabeça que pareciam foguetes a subir zzzeeeeeeee ao céu para rebentar em dia de romaria, mas com pouco entusiasmo.

Foi em Nova Lamego a 5 de abril de 1970. Na História da Unidade está escrito:

"05Abr - Cerca das 20h30 o IN desencadeia uma flagelação a Nova Lamego com foguetões 122. Os disparos foram executados com grandes intervalos, tendo sido encontrados seis pontos de impacto entre Coiada e a estrada de Bafatá, junto ao topo Oeste da nova pista de aterragem.

Não resultou qualquer baixa ou prejuízo para as nossas tropas nem para a população.
Qualquer que tivesse sido o objectivo a atingir, povoação e instalações militares ou a
pista de aterragem, a precisão dos disparos revelou-se bastante precária".


Julgo que seria para acertar na nova pista de aterragem, mas nenhum rebentou. No outro dia, foi o meu Pelotão que descobriu o local da instalação da "rampa" de lançamento dos 122, que devia ter sido accionada por baterias auto (?), a cerca de 12 km de Nova Lamego. (...)

8 de outubro de 2023 às 14:13

(ii) Abílio Duarte:

Olá,  Valdemar, era esta situação que tu relatas, que anteriormente quis relatar.

Então , é assim:  estava eu e mais alguns camaradas a jantar no libanês, em Nova Lamego, depois de um bom bife, e estava na sobremesa, verdade, um gelado, quando começaram a assobiar os foguetes sobre Gabú...

De seguida, sem fazer conta com o dono do restaurante, a malta começou a correr para o nosso aquartelamento (Quartel de Baixo, como era conhecido).

Porra, estava de havaianas, comecei a correr como um desalmado como os outros e cheguei ás nossas valas, descalço, e os pés todos f_d_dos.

Por isso estranhei anteriormente, falarem nestas armas do PAIGC, só em 73 e 74, quando em 70 já estávamos a levar com elas.

Este ataque a Nova Lamego foi antes da inauguração da renovação da pista para terem os Fiats, que foi inaugurada pelo Silva Cunha, ministro da ditadura. (****)

A minha companhia. CART 11, nesse dia fez a segurança móvel a Nova Lamego, sempre em movimento, e em viaturas, e no palanque do evento, nunca tinha visto tantas amarelas, eram oficiais da NATO e mais, tudo a monte, naquele pequeno território.

No reconhecimento que o Valdemar fala, o meu pelotão também esteve presente, assim como no local onde os foguetes caíram, deram cabo de um cajueiro, no fim da pista. A pista não tinha sido atingida, e as celebrações, foram efetuadas.

8 de outubro de 2023 às 15:31


(iii) Valdemar Queiroz:

Certo Duarte, eu estava de serviço no Quartel.

Na primeira passagem zzzzzzeeee ninguém se apercebeu o que era, foi preciso alguém (?) dizer 'é um ataque', correr à nossa caserna (#) buscar a G3 e vir para a Parada juntar o pessoal, que a nosso serviço era a defesa do gerador público.

No Quartel, estava de passagem um 1º. sargento velhote que ficou dentro do edifíciom encostado à parede e disse-me 'despe essa camisola branca'.
Juntei os soldados que apareceram e saímos para o gerador, e passaram outros zzzzeeeeees, mas nada de rebentamentos ou tiros.

Não me lembro de mais nada, quem ficou nas nossas valas,  e se o Canatário das armas pesadas chegou a fazer fogo com o morteiro 81. (O abrigo/espaldão do morteiro 81 era no meio da parada.)
 
(#) O mais correcto seria dizer correr para os nossos quartos. As instalações do Quartel de Baixo, em Nova Lamego, eram umas divisões/salas de parte do edifício da Administração Regional que nos foi cedida, e que transformámos em quartos dormitório de oficiais e sargentos.



(***) Vd, Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume:  aspectos da actividade operacionaç Tomo II: Guiné, Livro II,  Lisboa: 2015, 608 pp.

(****) Segundo um apontamento meu, e com base na história da minha unidade, a CCAÇ 12, 1969/71, a ida do Silva Cunha, ministro do Ultramar,  a Nova Lamego deve ter sido em 14 de março de 1970, sábado, quinto da visita á Guiné: 

(...) Em 14 de Março, o Ministro do Ultramar, acompanhado do Com-Chefe e do comandante do Agrupamento nº 2957 (Bafatá), visitou o Reordenamento de Bambadincazinho. Foi montado o devido cordão de segurança por forças da CCAÇ 12 e outras subunidades. 

Na véspera, Bafatá tinha sido elevada a cidade, em cerimónia presidida pelo Dr. Silva Cunha, o homem grande de Lisboa (vd. reportagem fotográfica do nosso camarada Américo Estorninho sobre a recepção do Ministro do Ultramar por parte das autoridades e população de Bissau). (...)

Mais concretamente: a inauguração do aeródromo de Nova Lamego foi no quinto dia da visita do ministro do Ultramar à Guiné (aonde chegou a 10 de março de 1970), conforme reportagem da RTP que passou no noticionário nacional de 19 de março de 1970. Ver aqui: Vídeo, 28' 32'', RTP Arquivos


Resumo analítico (da responsabilidade da RTP - Arquivos, com a devida vénia...):

Vistas aéreas a partir de helicóptero; Nova Lamego: revista às tropas; inauguração do Aeródromo do Gabú; Monsenhor Amândio Neto, prefeito apostólico, faz a bênção; descerramento da placa inaugurativa; Silva Cunha cumprimenta populares e recebe oferendas da parte dos régulos; discursos do General António de Spínola e de Silva Cunha.

Festival aéreo realizado pelo Grupo 1201 da base aérea nº 12 da Força Área da Guiné; cartazes dando vivas a Portugal; travessia das ruas a pé e em jipe (multidão); plantação de tomate e instalações pecuárias.

Viagem de helicóptero militar à região do Boé; inauguração e visita à estação central militar da base aérea n.º 12 de Bissau em Bafatá; visita às regiões de Guileje (guarnição), a Gadamel, a Cassine (sic) [ Cacine] (guarnição e bairro em construção), às ilhas Melo e Como (cerimónia de receção); à Ponta de São Vicente (construção de estrada) e a Jolmete (aquartelamento)
[ em 16 de março, segunda-feira] . 

Inauguração de obelisco em Pelundo; visita a Chulame (casas em construção); a Teixeira Pinto (multidão, honras militares, hospital, capitão-médico Tavares de Pina, campos de arroz, mesquita), a Có (construção de casas) e a Bula (população a correr junto do carro).

Travessia de barco entre Cacheu e Bissau; vista em movimento de povoação.


Vd. também poste de 26 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15159: O nosso querido mês de férias (3): 10 de março de 1970: eu a partir e o ministro do ultramar, Silva Cunha, a chegar, no mesmo Boeing 707, da TAP ( Manuel Resende, ex-alf mil da CCaç 2585 / BCaç 2884, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71)

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 – P24657: Memórias de Gabú (José Saúde) (100): Os homens do volante. A minha singela homenagem aos condutores. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.


As minhas memórias de Gabu

 Os homens do volante

A minha singela homenagem aos condutores

 A linha do tempo

Camaradas,

É no recanto das memórias que revejo que a linha do tempo existente dentro de nós, acumula inesquecíveis recordações e que nos dizem, em surdina, que fomos outrora singelos observadores do mundo, quiçá enlouquecido, que girava à nossa volta. O entusiamo dos nossos plenos 20, 21, 22 e 23 anos, crescia a uma velocidade alucinante em corpos que deambulavam por horizontes literalmente inolvidáveis, todavia, existia em cada um o tremendo sobressalto que a guerra de além-mar se apresentava como real.

E é nessa mesmíssima linha do tempo que caminho rumo a encruzilhadas, mas onde os trilhos armadilhados da Guiné se acrescentam a outros instantes da vida em que a alegria se cruzou com a tristeza.

Neste contexto, ouso afirmar que somos, e sempre o seremos, eternos seres humanos que combatemos numa guerra que, numa sensibilidade simplesmente verídica, conhecemos as mais distintas especialidades do exército português num conflito armado que deixou marcas.

E se é verdade que cada combatente terá feito o seu melhor no ramo para o qual foi então especializado, não deixa de ser também verdadeiro que todos fomos aguerridos guerreiros num palco onde ainda hoje proliferam as mais variadas lembranças em mentes que, felizmente, ainda se preservam ativas. Porém, aos camaradas que já partiram que descansem em paz, sendo que as suas memórias ficarão exatamente salvaguardadas.  

Falei no meu último texto sobre o saudoso enfermeiro Dinis, da minha companhia, dedico, agora, a minha singela homenagem aos nossos condutores. Não importava a natureza do fardamento que envergavam, nem tão-pouco o trilho por onde a sua viatura rodava, rodavam num caminho no qual o momento seguinte era uma incerteza.

Todos tinham a noção de que uma mina anticarro poderia, eventualmente, despoletar ao longo do seu percurso. As picadas apresentavam-se como cruéis, sendo por isso um dado adquirido a importância daqueles que, à frente às viaturas, lá iam picando cuidadosamente o terreno, mas com o devido cuidado.  

Para eles, os condutores em particular, fica expresso o texto que a seguir subscrevo e que faz parte do meu livro, o nono dos 11 já editados, – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974” , da Editora Colibri, Lisboa.

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A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné

Os homens do volante 

A coluna segue o seu destino com os cuidados redobrados dos condutores  

Somos, na generalidade, conhecedores do empenho que os condutores impunham numa especialidade à qual se dedicavam desinteressadamente. Sabemos o quão importante foram os conhecimentos adquiridos ao longo de uma singular aprendizagem que lhes proporcionou um contacto real com o universo da condução. Fizeram tudo o que esteve ao seu alcance, isto na minha singela opinião, obviamente. Cumpriram com os seus deveres e não viraram a cara à luta, não obstante as tormentas que o rebentar de uma mina obstinasse o seu querer e naturalmente dos camaradas.

Percebi, nessa altura, que a universalidade da especialidade não era comum a todos e distribuíam-se consoante as necessidades ou a sorte que lhes coube na roda da aventura. Razão esta que me leva a viajar num tempo sem tempo e citar especificamente a honorabilidade de camaradas que conheceram, por dentro, os teores de uma guerra que nos fora deliberadamente bárbara. Padeceram com condições adversas e suportaram as agruras impostas por uma peleja que não dava folgas.

Visualizar a sua despretensiosa ação pela mais recôndita picada numa Guiné a ferro e fogo, sabendo de antemão que as minas anticarro eram comuns, os condutores foram camaradas que não viravam a cara à luta e lá partiam para mais uma coluna, ou para as frequentes visitas a tabancas quando o momento passava por mais uma jornada em que a chamada “psicó” ditava ordem.

É evidente que façamos uma justa destrinça entre as colunas de reabastecimentos e de transporte de pessoal, onde normalmente se utilizavam as Berliet, por vezes intercaladas com Unimog, mas sendo este último veículo usado nas idas às tabancas onde íamos distribuir os aplaudidos “mezinhos” para uma população de todo carente e que vivia isolada na mata a contas com as duas frentes de guerra.

Creio que será de bom senso não desvirtuarmos uma veracidade bem patente que se prende com o facto de uma certa inexperiência evidenciada por alguns dos condutores nos seus inícios das comissões. Aliás, pressuponho que a dita e amadurecida experiência era adquirida com o decorrer das comissões onde um melhor conhecimento do terreno ganhava estatuto.

Uma coluna que transportava pessoal civil e viaturas particulares na região de Gabu

Conheci situações em que o medo se apoderou do meu então jovem corpinho. Vamos aos comentários das ditas ocorrências: uma delas aconteceu numa das visitações a tabancas localizadas na zona de Gabu. Seguia no Unimog da frente, ao lado do condutor, quando numa picada estreita o “ás” do volante deixou a “máquina de assalto” entrar pelo capim fora, sendo que a malta se viu às aranhas para ultrapassar o incidente deparado. Houve umas pequenas mazelas e restou um tremendo susto. Depois fez-se o reconhecimento que a ocasião impunha e o Unimog lá prosseguiu rumo ao seu destino.

Este curto texto visa, essencialmente, abordar o tema que enaltece a bravura comum de camaradas de uma especialidade, condução, que conheceu, em paralelo, momentos de horror.  

Não sei e nem tão-pouco vou lançar achas para uma fogueira alvitrando o número de condutores que terão perdido a vida na Guiné por via de emboscadas ou de minas rebentadas pelos rodados dos veículos por eles conduzidos. 

Eu, a comandar uma coluna na estrada entre Nova Lamego e Bafatá. Ao meu lado esquerdo, em calções, o condutor da Berliet 

Com leigo de uma matéria que não domino, deixo, porém, o repto aos camaradas para que possamos ter uma ideia desse infortúnio, sabendo nós que o número exato das mortes na guerra guineense jamais será real.

Os algarismos conhecidos são, pelos vistos, virtuais.

Um abraço, camaradas 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24620: Memórias de Gabú (José Saúde) (99): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis (José Saúde)

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24620: Memórias de Gabú (José Saúde) (99): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis (José Saúde)



Enfermeio Dinis, militar e amigo



O Alfredo Dinis, já falecido




Fotos (e legendas): © José Saúde (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.



As minhas memórias de Gabu:
Recordando o saudoso enfermeiro Dinis

Camaradas,

Contemplando alguns dos momentos em que a “pica” da guerrilha guineense atormentava o mais paciente combatente, eis-nos perante uma manhã onde o calor imperava, o que aliás era normal, e um imprevisível estrépito som que impôs momentos de autêntica aflição aos camaradas que, entretanto, descansavam ou que passavam algum do seu tempo disponível no quartel, este o quartel novo construído na orla de Nova Lamego, ou seja, rente à estrada que nos levava a Bafatá, sendo o outro aquartelamento no interior da urbe.

O som, deveras enorme e que tudo fez tremer, foi, tão-só, o rebentamento de uma panela na messe de sargentos que, entretanto, já cozinhava o almoço para a rapaziada. É óbvio que alguns dos nossos camaradas cozinheiros foram apanhados de surpresa, sendo o mais fustigado o Filipe, com queimaduras no corpo.

Na verdade, o conflito armado que nos fora comum, trouxe, também, inevitáveis “chagas” em corpos de jovens que num qualquer instante se viam confrontados com alterações do seu próprio físico.

Era, no fundo, o agitar de uma guerrilha que se expandia por todo o território de uma Guiné que a todos incomodou, não obstante o lugar para qual tivéssemos sido arremessados.

Dinis na sua missão como enfermeiro a tratar das mazelas que ficaram bem patentes no corpo do camarada Filipe

De estatura física a atirar para o baixo, arrisco um metro e sessenta ou um pouco mais, franzino, mas sempre ágil na sua entrega à vida, o enfermeiro Dinis, camarada da minha companhia, era um rapaz cuja dedicação à causa que a tropa lhe concedera muito o terá notabilizado.

Lembro-me, perfeitamente, dele passar defronte às minhas instalações ao lado de um outro camarada, creio que de transmissões, e que muitas vezes apelidei como a sorte grande e a terminação.

A razão deste meu pequeno devaneio prendia-se com o facto do Dinis, pequeno em altura, mas com um coração enorme, ombrear lado a lado com um camarada alto e esguio que se mandava para mais de um metro e oitenta.

Curioso é que o Dinis, um militar simpático e afável, nunca impunha restrições para uma espontânea cavaqueira na missão que escrupulosamente cumpriu como antigo combatente na Guiné. De um outro modo, recordo as minhas idas à enfermaria e ser atendido, com pompa e circunstância, pelo meu amigo Alfredo Dinis que se predispunha a uma ajuda momentânea caso a necessidade assim o determinasse.

Por uma questão de ética olvidemos o Alfredo e falemos simplesmente do enfermeiro Dinis, como era hábito a malta tratá-lo no interior do aquartelamento. Na minha memória subsiste a imagem de um jovem, cara de menino, cuja pronuncia era tendencialmente marcada pela dicção de uma Invicta que todos conhecemos como a maravilhosa cidade do Porto.

Numa intromissão às temáticas de Gabu em memórias, revejo a irreverente ação militar do enfermeiro Dinis. Foram muitas as idas para o mato em que este nosso amigo acompanhava o grupo e vincava presunçosamente a sua próspera especialidade numa população onde o valor das carências impunha óbvias restrições humanitárias.

Recordo, por exemplo, as visitas às tabancas de Gabu em que o Dinis, munido com sua mochila entolhada em mesinhos, distribuía remédios santos para gentes nativas que viam nele um deus caído do céu. A patologia constatada implicava uma receita urgente. E o Dinis já conhecia os males e as suas curas. Tanto mais que naqueles lugares ermos nem o sol quase penetrava pela orla do denso mato que rodeava a tabanca e as queixas eram as rotineiras.

As minhas recordações guardam, igualmente, outras circunstâncias em que afabilidade do Dinis denotava uma mensurável devoção à causa que mui dignamente serviu.

Lembro, uma ocasião em que um gerador, adstrito à messe de sargentos, rebentou. O estrondo no quartel foi enorme e a manhã foi de autêntico sobressalto para toda a rapaziada. Uns ainda dormiam e outros matavam o tempo com premeditados afazeres. Uma carta para a namorada escrita sob um cenário de guerra, ou uma missiva, quiçá faustosa, para uns pais sempre carentes de notícias da peleja de além-mar e sobretudo do estado físico do seu querido descendente.

Estava eu sentado num confortável cadeirão, feito à maneira de um homem grande, situado à frente dos aquartelamentos dos sargentos, ao lado da messe, meditando num horizonte onde a guerra não perspetiva melhorias e eis-me a ouvir o tamanho estrondo.

Confesso que o estampido me pareceu que vinha das traseiras da messe de sargentos. Não hesitei e lá fui para saber o que acontecera. Viveram-se então momentos de pânico, sendo o infeliz contemplado da desgraça o camarada Filipe, um rapaz que trabalhava na copa da nossa messe.

O corpo do militar Filipe registava fartas queimaduras e a dor sentida pelo camarada era grande. Havia partes do seu corpo em que a pele queimada dera lugar a uma mancha vermelha que deixava antever preocupação. O rosto e os braços, em particular, indiciavam dor.

Perante o sucedido o Filipe ficou entregue aos cuidados do pessoal de enfermagem da nossa companhia. O furriel enfermeiro Navas e o Dinis prestaram-lhe os primeiros socorros, seguindo-se os cuidados diários do nosso saudoso homem do Norte. Sei que o enfermeiro Dinis foi incansável nos seus préstimos, sei também que este meu velho camarada portuense já partiu para a tal famigerada viagem sem regresso, que descanse em paz, restando, porém, alvíssaras ao nosso amigo Filipe que nunca mais soube da sua presença territorial.

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 24 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24585: Memórias de Gabú (José Saúde) (98): Histórias e explanações sobre a existência de Gabu (José Saúde)

sábado, 26 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24589: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (4): Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE José Maria Barata, CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)... Voltou lá, em 2015, "numa viagem que nunca acabará"...

 

Foto nº 1 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > 1970 >  Inauguração de uma nova escola,  na qual a Adelaide foi  a menina branca a pegar na fita,  segura do outro lado por uma menina guinenese, que se vê perto dela, para o gen António Spínola cortar...  Repare-se na atenção com que a Adelaide escuta o "homem grande de Bissau"... A sua colega, pelo contrário, está de costas voltadas... Uma foto fabulosa! Uma imagem que vale por mil palavras!

Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Bissau > 4 de novembro de 2015 > Cemitério do tempo colonial  >  Talhão da Liga dos Combatentes... Vê-se que o talhão estava então cuidado e que havia flores nalgumas campas.

Foto nº 3  > Guiné-Bissau >Bissau > 3 de novembro de 2015 >  O edifício da UDIB -União Desportiva Internacional de Bissau, na atual av Amílcar Cabral.

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 23 de outubro e 2015  > Uma das terras mais bonitas,,, 

(...) Esta viagem podia ser intitulada de "Branco umbelélé", esta era a saudação por quem passávamos ao longo das aldeias, pelas crianças principalmente. À medida que nos afastávamos de Bissau, a paisagem abraçavamo-nos como irmãos que retornam. Os sorrisos das crianças eram mais sonoros e as mãos dos adultos mais demoradas nas nossas. No dia 23 de Outubro conheci uma das terras mais bonitas da Guiné - Buba.(...)

Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 23 de outubro de 2015  > Uma das terras mais bonitas,,,  Este é o BU [um chimpanzé, ou "dari", em crioulo, que ] vivia em cativeiro numa reserva natural em Buba. 

Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá  > Bafatá > Outubro de 2015 > A viagem continuou de Buba até Bafatá por estradas de terra molhada pelas chuvas que caem sem pejo, escondendo o alcatrão de outrora  Em Bafatá revi o sr. Dinis [João Dinis, 1941-2021], que conheci em Nova Lamego, na altura tinha uma escola de condução que permanece ainda hoje em Bafatá.  Ele lembrava-se muito bem dos meus pais, e de nós os três ainda meninos.

Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > Outubro de 2015 > Ponte Nova > Pôr do sol no rio Geba 

Fiti nº 8  Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 27 de outubro de 2015 > Vendedeira de mangas

Foto mº 9 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 27 de outubro de 2015 > Cartaz ao projeto de eletrificação "Bambadinca sta claro"
 



Fotos nº 10 e 11  > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Parque Natural das Lagoas de Cufada  (PNLC) > 24 de outubro de 2015 > Foi assim que começámos o dia 24 de outubro de 2015. Fomos visitar o Parque Natural das Lagoas de Cufada. Contudo, chegámos próximo, a água que caiu na noite anterior não nos permitiu avançar. Os guardas do parque vieram ter connosco e aconselharam-nos a não avançar mais. Ainda tivemos tempo para saborear a paisagem e tirar algumas fotos [vd. acima]. Depois seguimos para Fulacunda. Local inóspito onde a Guiné é mais dela, o tempo parou e as crianças quase não existem. Os mais velhos falam dos portugueses de outros tempos.

Vd. a localização do parque no Google Map. No tempo da guerra colonial, era um dos "santuários" do PAIGC...  Foi criado em 2000... É constituído pelas lagoas de Biorna, Bedasse e a própria Cufada. O PNLC fica situado na parte leste da Região de Quínara,  mais concretamente a leste e sudoeste do sector de Fulacunda e a noroeste do sector de Buba. A sua superfície total é estimada em 89 000 ha (890 km²) (sendo maior portanto que nosso Parque Nacional da Peneda-Gerês, que tem 702,9 km²).






Fotos nº 12 e 13 > Guiné-Bissau > Região de Quínara >  Outubro de 2015 > Travessia do rio Grande de Buba (ou, melhor do "canal do porto"), de São João para Bolama, vindo de  Fulacunda.

(...) Depois de passar por Fulacunda, seguimos a caminho de Bolama. À beira estrada surge-nos uns montes de argila vermelha compacta, que podem atingir os dez metros de altura e pesar toneladas, são erguidos pelas formigas térmitas ou salalé, que na Guiné se denominam por "Bagabaga".

Ao longo da estrada avistam-se braços do rio Geba onde corpos nus se banham dando conta da nossa passagem. Sempre a contornar as poças de água na estrada e em ziguezague chegámos ao fim da estrada, a S.João, onde iríamos atravessar as águas profundas para chegar a Bolama.

Alguns rapazes que se encontravam neste cais improvisado, prontificaram-se para chamar o dono da piroga para nos levar. Atravessámos as águas que se rasgavam no casco da piroga e vimos pequenos peixes saltavam brilhando ao sol.(...)



Foto nº 14 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Piche > 28 de outubro de 2015 > Restos da capela

(...) Depois da estadia de 2 dias em Gabu, prosseguimos para Pitche, muito perto da fronteira de Guiné - Conacry. Tivemos oportunidade de ter uma visita guiada pelo que se mantém "em sentido" do antigo quartel. Vimos a porta de armas, as paredes da capela , a cozinha e o monumento em homenagem aos militares que morreram em combate

(...) Quando regressávamos ao centro, um homem interpelou-nos com uma recordação da tropa de cavalaria [guião do BCAV 2922,] que lá deixou marcas: "Foi um militar que me deu e eu guardo-o até hoje!!!". Foi com orgulho que falou, como que com uma saudade dos tempos que recorda como se tivesse sido ontem. (...)

Foi uma tarde agradável, onde parece que nada se passa, a não ser o abandono e a recordação.(...)
 
 (...) A  viagem à "minha Guiné" nunca acabará, porque não há dia em qua não nos lembramos do que vivemos lá e não há melhor do que relembrar, com tanto carinho, esta gente e esta terra.(...)


Fotos (e legendas): © Adelaide Barata Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Adelaide
 com 8 anos
1. Há anos depois que não temos notícia da nossa amiga  Adelaide Barata Carrêlo, filha do tenente SGE José Maria Barata, da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71), e que se senta à sombra do poilão da nossa Tabnaca Grande no lugar nº 721 (*). 

A Adelaide tem 34 referências no nosso blogue. Tem página no Facebook e é amiga da nossa página, Tabanca Grande Luís Graça. Como filha de militar, estudou no Instituto de Odivelas (frequentou também  o 3º ano da Faculdade de Direito / Universidade de Lisboa).  Nasceu em Nampula, Moçambique. Vive e trabalha em Lisboa. 

Recorde-se que estava na Guiné, em Nova Lamego, com a família (pai, mãe, irmã gémea e e irmão mais velho)   na altura da segunda parte da comissão de serviço do pai (1970/71) (entretanto falecido, em 1979, com o posto de capitão), quando o quartel e a vila  em 15/11/1970  foram violentamente flageladas por um numeroso grupo IN, estimado em 150 elementos, com armas ligeiras e 4 morteiros 82, tendo disparado cerca de 122 granadas, durante 35 minutos .

As NT tiveram 3 mortos (incluindo o srgt mil enf da CCAÇ 5, Cipriano Mendes Pereira),  4 feridos graves (incluindo 1 milícia), enquanto a população teve 8 mortos (incluindo a esposa do nosso camarada Cipriano), 50 feridos graves e 30 ligeiros.  As NT reagiram com fogo de morteiro 81 e canhão s/r, manobra de envolvimento e perseguição, apoiadas  pela FAP. A artilharia de Cabuca e Piche bateram com fogo de obus os prováveis itinerários de retirada do IN.

A Adelaide, com apenas sete aninhos, apanhou o maior susto da sua vida. Nem por isso  quis esquecer as melhores imagens dos dias maravilhosos que passou no Gabu. E fez questão de  lã voltar muitos anos depois, mais de quatro décadas depois, em outubrto e novembro de 2015 ... Disse aqui que foi a "viagem da sua vida".

(...) "Tudo começou quando o meu filho nos disse que tinha sido selecionado para trabalhar na TESE em Bafatá. Foi como um relembrar daquilo que nunca vi mas sabia que não poderia ser muito diferente de Nova Lamego há quarenta e quatro anos atrás. Muito estranho este sentimento, não tive medo de o deixar partir. Claro que em condições diferentes de quem partiu para lá durante a Guerra.(...) "

Do álbum fotográfico dessa viagem de saudade (de que publiámos 14 postes) (***) vamos fazer uma seleção de algumas das melhoree fotos, com interese documental, para a série "Por onde andam os nossos fotógrafos"- (****)

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(*) Vd. poste de 11 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16294: Tabanca Grande (490): Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)... Com sete anos apenas, sofreu a brutal flagelação do IN ao quartel e vila do Gabu, em 15/11/1970, que causou 3 mortos e 4 feridos graves entre as NT e 8 mortos e 80 feridos (graves e ligeiros) entre a população... Passou a ser a nossa grã-tabanqueira nº 721

(**) Vd. poste de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14322: Ser solidário (179): "Bambadinca Sta Claro", projeto-piloto na Guiné-Bissau, de uma central híbrida fotovoltaica, leva luz a 8 mil habitantes de Bambadinca. Documentário produzido pela ONG TESE e entrevista da Antena 1 a Sara Dourado



Vd. postes anteriores:
(...) Fotobox é um Programa, na RTP 3, sobre fotografia. Aos sábado 11h45. Autor: Luiz Carvalho. Realização: Luiz Carvalho. Tem página no Facebook. O autor e realizador é um fotojornalista conhecido, professor de fotografia e arquitecto.

Luiz Carvalho tem-se mostrado interessado em levar alguns dos fotógrafos do nosso blogue ao seu programa Já lá levou, por exemplo, o nosso veteraníssimo Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ, Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63)-

Por razões de agenda (de ambas as partes) e de saúde (do nosso editor), ainda não foi possível concretizar o seu desejo de fazer um ou mais programas com os nossos colaboradores que precisam de ser contactados e autorizarem a divulgação das suas imagens (e eventualmente serem entrevistados).

O autor e realizador do Fotobox prefere a fotografia a preto e branco. Na expetativa desse colaboração do nosso blogue com o Luiz Carvalho, vamos dar início a esta série, com o título "Por onde andam os nosso fotógrafos ?", listando alguns dos nossos fotógrafos ou donos de álbuns fotográficos com fotos no nosso blogue.(...)