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quinta-feira, 5 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26888: (In)citações (272): "A guerra nunca acaba, fica connosco" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 2 de Junho de 2025:


"A guerra nunca acaba, fica connosco"
Arturo Pérez-Reverte

Era eu um jovem, feito homem, quando fui convocado para prestar o serviço militar. Passado um ano, fui forçado a partir para a Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau) para, como diziam os mandantes da Pátria, defender o solo pátrio do ultramar, por outras palavras; defender a soberania portuguesa, e porque não; os interesses dos senhores do grande capital.

Tinha duas hipóteses: aceitar, a contragosto, e pegar em armas, ou despedir-me da família, dos amigos, da Pátria que me viu nascer, e fugir para o estrangeiro, até ao fim da vida, sob o risco, de no caso de ser preso, partir de imediato para os locais onde a guerra era mais impetuosa.
Empada - José Teixeira escrevendo

Apenas dois anos dados à Pátria, os quais rapidamente recuperávamos, graças à nossa juventude, diziam os mandantes.

Mas não foi bem assim. Andei dois anos perdido, é um facto. Vivi situações de difícil descrição. Vi morrer, sem poder valer. Salvei vidas de militares e civis vítimas da guerra que ninguém queria. Salvei vidas de crianças (bebés) com crises de paludismo, que atingiam 42ºC de temperatura corporal. Consegui fazer daqueles dois anos um tempo de vitórias e algumas derrotas, de algumas alegrias no meio de muito sofrimento. Vivi momentos em que senti a morte a meu lado, nos estilhaços cravados na terra a centímetros da minha cabeça, nas balas que passavam a assobiar e se cravavam na árvore, onde me protegia, da mina anticarro que destruiu a viatura da qual tinha saltado segundos antes…

Passados dois anos regressei à “mãe pátria” e tentei esquecer aquele amargurado tempo que nunca mais passava, mas a guerra ficou cá dentro, e nunca mais acabou.

Regressei com uma sensação de vazio dentro de mim, e encontrei vazios muitos dos espaços, onde antes de partir, centrava a minha vida. Até a família, apesar do intenso calor humano e amor, com que fui recebido, estava diferente. Tinham feito caminhos que eu não palmilhei. Sentia-me estranhamente só. Os amigos e amigas tinham partido para outras aventuras onde não eu estive. Perdi-os. Já não tinha lugar junto deles. Estava com um atraso de dois anos. Tive de conquistar de novo, a pulso, o meu lugar, onde me foi possível.

Do emprego recebi um não. Não havia lugar para mim. Tive de aceitar a parca indemnização que me ofereceram e partir para outra aventura. Na valorização académica, foi um começar de novo, com muito esforço. A mente parece que tinha adormecido e recusava-se a retomar o caminho da aprendizagem que precisava de fazer para construir o futuro.

Tantas outras barreiras que tive de ultrapassar para me encontrar!

Será que me consegui encontrar? Não!

Fui caminhando ao meu encontro. Reconstruir a vida era o desafio mais cativante e absorvente. Encontrar caminhos novos, caminhos diferentes, seguir novas pistas e sorrir para a esperança. Uma vida longa, com muitos momentos gratificantes, faz-me sentir um homem realizado, diferente do jovem que partiu para a Guiné.

Dentro de mim, tentava apagar os resíduos da guerra, mas quando pensava que tinha enterrado uns, apareciam outros. E, assim tem sido pela vida fora.

Recordo que quinze dias depois de regressar apareci debaixo da cama, sem saber como fui lá parar. Apenas uma porta tinha batido com um pouco de violência, provocada pelo vento.

Nos primeiros tempos tentava recusar-me a pensar na Guiné. Nem sequer falar ou ouvir falar de guerra. Qualquer cena de guerra na TV me angustiava. Os meus filhos dizem (muito mais tarde) que me viam chorar frente à TV a preto e branco, quando passava filmes de guerra, ou reportagens sobre conflitos armados, que infelizmente continuaram a surgir em várias partes do mundo).

Com a Revolução de Abril, surgiu como que um abafado silêncio, talvez medo, perante as correntes que denunciavam a guerra colonial e os seus efeitos, enquanto defendiam, e muito bem, a autodeterminação e independência para as colónias. Nós, os veteranos que tínhamos sido forçados a viver essa guerra, sentíamos uns olhares acusativos, como fossemos nós os culpados.

Depois, surgiu uma necessidade tremenda de falar, de contar o que me tinha acontecido, mas logo notei que não era compreendido. As pessoas não conseguiam entender. Ouviam. Ouviam… como para mim bastasse que ouvissem. Nem eu sabia o que queria com aqueles desabafos.

Passados cerca de vinte anos senti a carência das amizades que nasceram e frutificaram naqueles dois anos, os camaradas de aventura, os companheiros da minha Companhia Militar, e toca a tentar encontrá-los. Cerca de cinquenta atenderam a chamada. Três não responderam. Tinham tombado para sempre na Guiné. Outros já tinham partido no caminho que não tem retorno. Muitos, tinham emigrado. Houve, também, quem tentasse pôr uma pedra definitiva sobre os tempos de guerra, mas o encontro fez-se, e vieram as mulheres e os filhos. Depois, os netos e bisnetos. Vieram as dores, as enxaquecas, as artroses, indícios da velhice que não perdoa. Vieram as dores ao ver alguns partirem para a eternidade. Mas, continuamos a reservar um dia por ano para nos encontrarmos, falarmos de nós, da guerra que vivemos, das barreiras que tivemos de ultrapassar, dos caminhos novos que tivemos de construir, dos tempos que correm e que não entendemos. Da crueza das guerras que rebentam por todo a terra e que nós sentimos como ninguém, porque também vivemos uma guerra. Sabemos que quem as faz, não as quer fazer. Quem as manda fazer, não padece no corpo, os seus efeitos. Quem sofre os seus efeitos é o povo, as gentes humildes que querem viver em paz.

Para tentar acabar com a “guerra” que vagueia dentro de mim, parti para a Guiné, em romagem aos locais onde senti de perto os seus efeitos, onde a vivi. Procurei os lugares onde mais sofri. Os locais onde vi camaradas partirem para a eternidade sem lhes poder valer, locais onde acolhi e tratei feridos. Chorei as dores, que não tivera tempo de chorar no momento dos acontecimentos.

Procurei os amigos que por serem guineenses por lá ficaram na guerra. Tinham vindo comigo, no coração. Receberam-me em abraços. Muitos já tinham partido, alguns dos quais barbaramente assassinados, pelos conquistadores da “liberdade” da Pátria Guineense, por terem sido cobardemente abandonados por Portugal, que os considerava filhos e os motivara para a guerra na sua terra contra os seus irmãos de sangue, para os abandonar e lhes tirar a cidadania, entregando-os nas mãos dos combatentes contra quem tinham lutado, por Portugal. Trouxeram-me a família, mulheres, filhos, netos. Passei a ser “ermon di coração”. Seus filhos viram em mim o pai, seus netos, o avô.

Encontrei, em sã convivência, antigos guerrilheiros que me saudaram sem qualquer remorso, que tentavam localizar encontros de guerra, batalhas de frente a frente, sem nos vermos. Recordamos o ruido das armas, os mortos e feridos de ambas as partes. Ainda foram alguns, esses desencontros de outrora que tanto nos fizeram sofrer, a mim e a eles. Estranhamente sentimos necessidade de contarmos pormenores, localizarmos posições, historiarmos aqueles momentos, tal como fazemos quando encontramos algum camarada que partilhou connosco a terrível aventura da guerra. A necessidade de darmos o abraço da paz, apossou-se de nós em cada encontro. A frase “discurpa ermon, mas guerra é guerra” bailou nos nossos lábios, por ordem expressa do coração. Nos nossos olhos brilhava a luz da paz, do reencontro de “ermons” desavindos, e a amizade ganhou vida.
Ingoré, 2015, José Teixeira rodeado de crianças

Visitei as tabancas que me tinham acolhido, de quem retenho boas memórias. As “bajudas” raparigas de então, hoje, esposas, mães e avós. Fui reconhecido, chamado pelo nome. Sucederam-se os abraços, os ajuntamentos familiares, a festa cheia de sorrisos tão quentes como os de outrora. Recordamos tempos em que no ar pairava o medo da morte, a dúvida, a insegurança, ao lado da esperança do fim de uma guerra injusta. Hoje, respira-se paz e harmonia entre as gentes da Guiné, tão divididas naquele tempo. Há o bem-estar possível, num país continuamente adiado, mas onde a alegria caraterística dos povos africanos expressa nos ritmos e batuques, ocupou de novo o seu lugar.

A Tabanca de Matosinhos surgiu da necessidade de nos encontramos, os que passaram pela Guiné, de falarmos de nós, das nossas “guerras” numa linguagem que só nós entendemos. De convivermos numa “caserna” real, onde todas as semanas há sempre novidades da guerra. Já se passaram vinte anos, mas continua bem viva.
Uma quarta-feira na Tabanca de Matosinhos

O blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné foi outro espaço de reencontro comigo, com camaradas que viveram dramas idênticos, e como eu continuam a sentir a guerra dentro de si e a pôr em comum dramas e aventuras, momentos bons e momentos menos bons da sua guerra.

Voltei à Guiné, mais tarde, outra e outra vez, à procura da paz interior, mas a guerra nunca acabou. Continua cá dentro.

José Teixeira
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Nota do editor

Último post da série de 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26828: (In)citações (271): Eu vivo na Lisboa que amo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

terça-feira, 22 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26715: Convívios (1021): XXIX Convívio do pessoal da CCAÇ 3398/BCAÇ 3852 (Buba, 1971/73), dia 10 de Maio de 2025, em Santo Tirso (Joaquim Pinto Carvalho, ex-Alf Mil)

XXIX CONVÍVIO

DIA 10 DE MAIO DE 2025 EM SANTO TIRSO


Amigo "Incendiário":

Vamos celebrar mais um ano de convívio, será o 29.°, desta vez regressamos ao norte do País: a Santo Tirso.

A data escolhida foi a de 10 de maio de 2025 (Sábado).

O ponto de encontro será no Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção, em Monte Córdova, Santo Tirso.

Agendamos esta chegada pelas 10:30 horas.

Pelas 11:30 horas deslocamo-nos para o Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção, onde será celebrada uma cerimónia religiosa, pelo pároco local, em memória dos nossos camaradas falecidos.

Após esta cerimónia seguiremos para o Restaurante O Cleto - Monte Córdova, Santo Tirso.


A ementa será composta por:

Entradas:
Pão; manteigas; rissóis; presunto; moelas e rojões

Sopa de legumes;

1.º Prato: Bacalhau com cebolada
2.º Prato: Vitela/Lombo assado com batata assada

Sobremesas:
Bolo de bolacha e pudim
Café e digestivos.

Por último, o tradicional Bolo de Aniversário da Companhia.

O preço por pessoa é de 40,00€. Crianças dos 6 aos 12 anos: 20,00€.

Como compreendem agradeço que confirmem a vossa presença bem como a totalidade dos familiares que vos acompanham, até ao dia 25/04/2025, através de mensagem para o telemóvel 966 743 750.

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Nota do editor

Último post da série de 18 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26701: Convívios (1020): Rescaldo do Encontro Anual do pessoal da CCAV 8351/72 - "Tigres de Cumbijã", levado a efeito no passado dia 5 de Abril de 2025, em Castelo Branco (Joaquim Costa, ex-Fur Mil AP Inf)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26642: Historiografia da presença portuguesa em África (475): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1911 (29) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Para sermos fiéis à verdade dos factos, isto é, ao conteúdo dos Boletins Officiais que estamos a analisar, parece que a I República não se distingue da monarquia constitucional, o Boletim Official convoca as mesmas temáticas mas surge agora uma novidade que não deixa de nos surpreender: o governador Carlos Pereira enviara uma gama de quesitos aos residentes, perguntas inusuais, tais como: os utensílios ou ferramentas utilizados em meio agrícola; se existia indústria acessória à agricultura (destilação, moagem, descasque mecânico de arroz,,,); quanto se pagava por homem e mulher em cada dia de trabalho; quanto vale em médio um boi vivo;em que constituem as penalidades ou multas que o Residente aplica; se existia ou não abundância de mantimentos entre os indígenas. E temos o depoimento do Residente de Buba que nos dá um quadro explicativo daquela guerra aniquiladora e que devastara a economia da região. Estes quesitos aparecem no Boletim Oficial como uma pedrada no charco, e servem para relevar que o investigador não pode abdicar da leitura do Boletim Oficial em qualquer período que seja de 1880 até à independência.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1911 (29)


Mário Beja Santos

Convém ir um pouco atrás, a um Boletim Official de 1910, onde se publica o termo de posse dado ao 2.º tenente Carlos de Almeida Pereira, como governador da província, isto ocorreu a 23 de outubro de 1910, no Palácio do Governo, estiveram presentes o encarregado do Governo, a Junta Municipal, magistrados judiciais, funcionários civis e militares, lavrou-se o termo de posse, foi lido e depois assinado.

Agora sim, estamos em 1911, e no Boletim Oficial n.º 3 de 21 de janeiro de 1911, surge-nos um apontamento bem curioso com o título Subsídios para o Estudo Hidrográfico da Província da Guiné, assina o capitão dos portos Joaquim Vieira Botelho da Costa, vejamos o que ele escreve sobre o rio Geba:
“O Geba é de fundo quase igual, de margem a margem, salvo em poucos locais. Navegar a meio, é quase regra segura em todo o seu curso, na sua grande maioria o fundo é de lodo, de cascalho em S. Belchior; pedra um pouco a montante desta população, no Xime, na margem direita do rio perto de Geba e em Bafatá; de areia em raríssimas partes. As águas comportam-se no curso do Geba desigualmente; são influenciadas pelas marés oceânicas da sua foz até Fá, do montante de Fá a pouco além de Geba correm pouco em enchente: vazam quase sempre um pouco a montante de Geba.
A enchente do rio, na parte em que se faz sentir, dura em média quatro horas; a amplitude das marés, que nas regiões da foz é de 2 braças, vai gradualmente diminuindo até Geba, onde, quando muito, será de 1 braça. As correntes, da foz até quase Fá, são violentas: de 5 milhas na vazante, de pouco mais no começo da enchente, o macaréu de enchente neste mês traz talvez uma força de 7 milhas e uma altura apenas de 0,2 metros. Este rio é largo em todo o seu curso, sendo a mínima largura de 20 metros; acima de Bafatá, na baía de Paxangone, por exemplo, e perto de Xime, sítios em que a sua largura é máxima, ela é de 150 metros. Pode-se dizer, de um modo muito geral, que é regularmente mais largo nas regiões do montante, de Geba para cima terá uns 50 metros em média, da parte de jusante terá uns 30 metros. A região da foz, a montante de S. Belchior, é também bastante larga. No porto de Bafatá o banco de laje da margem direita está só indicado na carta para não largar o ferro sobre ele, o caminho é rastejar a margem direita e em fundão a laje.”


Permito-me aqui a uma intervenção minha, tenho sérias dúvidas que o senhor capitão dos portos tenha alguma vez navegado no Geba, acho um exagero falar em 50 metros em média; aliás, e basta ver fotografias do início do século XX, no Geba estreito, do Xime até Bafatá, eram pequenas embarcações que podiam navegar no curso sinuoso do rio e com margens bastante estreitas.

Bem importante se revelam os anexos ao Boletim Oficial nº21, com data de 27 de maio de 1911, intitulados “Relatórios das Residências, Quesitos do governador em 25 de novembro de 1910 distribuído pelos residentes”.

São extensos os quesitos do governador Carlos Pereira, vamos, a título de curiosidade, ver algumas perguntas e o caráter das respostas dadas pelo residente de Farim.

Perguntado se a residência tem horta, ele responde que tem, encetara-se a plantação de algumas laranjeiras, cola, caju e mango e ananases; havia três pés de coqueiros e na época pluviosa do ano anterior plantara-se mancarra, milho, mandioca, feijão, etc. Não havia qualquer indústria acessória à agricultura. E quando perguntado se seria possível formar-se uma companhia agrícola de larga iniciativa, obtendo-se para tal a suficiente mão de obra, respondia o residente assim:
“O indígena, indolente por natureza, contenta se com o seu necessário para o seu passadio quotidiano e assim, sem muito trabalho, aproveitando a riqueza que o seu solo proporciona, trabalhando unicamente o necessário para a sua fraca alimentação, certamente, não aceitará o trabalho assalariado voluntariamente. Uma companhia agrícola que aqui viesse estabelecer e não tivesse a proteção do Governo, lutaria com sérias dificuldades para obter braços para o trabalho. É, pois, necessário, antes de uma companhia pensar em aqui se estabelecer, educar o povo pelo ensinamento da cultura adiantando o Estado os capitais criando novas necessidades, o que se conseguirá pelo aumento do comércio local, e, só assim se conseguira para o futuro braços no trabalho assalariado.”

Fala sobre o valor do trabalho, o respetivo preço, a natureza do gado e as suas epidemias e perguntado sobre as distâncias entre Farim e os vários centros de produção e consumo, responde do seguinte modo: “De Buba para Bolola, 8 km; para Cumbijã, 18; para Contabane, 32; para Xitole, 36; para Fulacunda, 30; para Impadá de Cubisseco, 42; e para S. João, 72.” Refere as dificuldades de viajar na época das chuvas por terra, abordam-se outros assuntos como o serviço de arrolamento e cobrança, pergunta-se pelo nome dos régulos da região e como é que se procede à sua nomeação, etc.

O Residente de Buba informa sobre quem é quem na sua circunscrição:
“Toda a região desta circunscrição era domínio dos Biafadas, para onde, pouco a pouco, vieram os Fula-Forros, tendo aqui recebido dos Biafadas toda a qualidade de represálias e vexames. Assim oprimidos, a colónia Fula que no Forreá se foi tornando cada vez mais numerosa, trataram de se libertar dos seus opressores, para o que se foram sucessivamente preparando, até que, julgando-se aptos para a luta, nomearam as cabeças do movimento, Bacar Guidali, pai do régulo Monjur do Gabu; Bacar Demba Biró, pai e tio do régulo Abdulai de Contabane e Umaru Hogó, avô do régulo de Bolola, Cherno Cali. Estes cabecilhas, auxiliados pelo rei de Labé, que o fez com a condição de ficar subordinado a ele o chefe que fosse escolhido para a região do Forreá, conseguiram livrar-se dos seus opressores, sendo nomeado chefe do Forreá Bacar Dembá, que mais se havia evidenciado nas lutas, porém, Bacar Guidali mandou matar não só este como o seu irmão Biró, sendo ele nomeado chefe. Estes factos passaram-se anteriormente a 1882, tempo em que o chefe do Forreá, Bacar Guidali, prestou vassalagem ao Governo português. Durante muitos anos a seguir, continuaram a luta e os Biafadas que foram esbulhados dos seus territórios do Forreá, sem que a autoridade nisso interviesse, embora por mais de uma vez tivessem pedido ao Governo para que as auxiliasse na sua defesa contra os Fula-Forros, foram, pouco a pouco, assaltando as feitorias estabelecidas nas margens do Rio Grande, que roubaram e distribuíram como represália aos brancos, feitorias que foram completamente aniquiladas. Os Fula-Pretos cativos dos Fula-Forros também oprimidos por estes, revoltaram-se contra os seus senhores, sendo chefe do movimento e principal instigador Samcobá da povoação de Candumbel, morto pelos Fula-Forros na margem esquerda do rio Corubal, na altura de Contabane, tomando nessa ocasião conta do movimento Damam, pai do atual régulo do Corubal e Demba Jae, que mais tarde foram nomeados régulos da região e onde se estabeleceram quadno libertos dos seus opressores.

Foi, pois, durante essas lutas, que o comércio em Buba ficou completamente aniquilado. Os regulados foram divididos posteriormente em chefados, não só para maior facilidade da execução das ordens da residência como também para haver vantagem para o Estado na dispensa do pagamento do imposto de palhota aos chefes das povoações, pois, anteriormente era relativamente grande o número de dispensas e hoje ficou assente que só se dispensaria aos chefes nomeados, que são 16 no regulado de Bolola, 3 em Cumbijã, 3 em Contabane e 3 no Corubal, enquanto que anteriormente excediam a 200 as palhotas dispensadas.”


O documento ainda aborda a nomeação dos régulos e o seu poderio, os direitos civis, a religião, as crenças e superstições.

Assina o Residente de Buba, José António de Castro Fernandes.

Confesso que estes quesitos e a natureza das respostas dos residentes permitem alargar a visão destes funcionários coloniais, orientando-nos para os usos e costumes dos espaços das residências, a natureza da atividade económica, as suas observações clivadas de preconceitos como a de dizer que os indígenas são indolentes, e até a explicação que o residente de Buba dá para a guerra do Forreá, diga-se de passagem, apresentando dados legitimados pela documentação existente. Veremos em breve o que ainda em maio desse ano nos veio informar o Residente de Bissorã, Viriato Ramos da Silva, tenente de Infantaria.

Telegrama publicado a 30 de maio, 1911, houvera eleições, os republicanos estão em estado de graça
Duas imagens retiradas do livro de Travassos Valdez África Ocidental Notícias e Considerações, 1864
Dançarino Mancanha, 1910
Chefe religioso, 1910.
Imagens retiradas do site Coleccionar com História, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 26 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26619: Historiografia da presença portuguesa em África (474): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1908; 1909 e 1910 (28) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26393: Historiografia da presença portuguesa em África (461): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos em 1891, chegamos a 1892 (18) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
É o final da governação de Augusto Rogério Gonçalves dos Santos, irá entrar em funções Luís Vasconcelos e Sá. No acto de posse do novo governador, o secretário-geral interino, o capitão Passalagua, produz uma peça impressionante, não esconde o tumulto em que vive a província, as operações no Geba, as sequelas da guerra do Forreá, a necessidade de expulsar Mussa Moló, as hostilidades de Papéis, Balantas e Grumetes na ilha de Bissau; debelavam-se as sublevação, faziam-se acordos de paz, tudo era precário, o capitão Viriato Zeferino Passalagua dirá mesmo ao recém-chegado governador que ele está ao comando de uma província onde tem que combater e destruir um a um os obstáculos. E começa-se o ano de 1892 com uma espantosíssima concessão de terrenos a dois condes de apelido Buttler, concessões extensíssimas, espalhadas por todo o território, terão morrido à nascença, a vida das sociedades agrícolas e comerciais na Guiné, com exceções daquelas que irão prosperar como a Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, tiveram vida meteórica.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos em 1891, chegamos a 1892 (18)


Mário Beja Santos

Como se procurou sublinhar no texto anterior, o Governador Augusto Rogério Gonçalves dos Santos envolveu-se na operação a que chamou Guerra de Geba; no ano anterior houvera outro foco de incêndio, a Península de Bissau, hostilidades de Papéis, Balantas e Grumetes, fora debelada. Quanto à guerra de Bissau, o Governador tomara decisões: nomeou um oficial da classe dos capitães, conhecedor da ilha, Caetano Alberto da Costa Pessoa, tudo correu bem; a guerra de Geba envolveu lanchas canhoneiras a cooperar com a coluna de operações na circunscrição de Geba, sufocada a rebelião era louvado o capitão Zacarias de Sousa Lage pela dedicação, coragem, brio e valor militar e mérito com que dirigira as operações. E no rol dos louvores também apareceram civis:
“Tendo chegado ao meu conhecimento os serviços que a este Governo levaram diversos negociantes estabelecidos em Bissau, quando foi organizada a coluna de operações que devia bater os revoltosos na circunscrição do presídio de Geba, cujos serviços são dignos de ser tomados na maior consideração da sua natureza e importância, atendendo às circunstâncias em que foram prestados:
Hei por conveniente louvar os cidadãos seguintes:
Cidadãos franceses Gentil Maffrá e Benjamin Potin pelo oferecimento que fizeram como agentes da casa Blanchard & Companhia, de duas embarcações para transportarem tropas a Geba e não terem exigido frete por material que para ali foi transportado em embarcações diversas pertencentes à casa que representam;
Súbdito alemão Otto Schacht, como representante de Bernardo Soller; pelo oferecimento que fez de duas embarcações para conduzirem força e género a Geba, e duzentas libras de pólvora para auxiliares, e por ter gratuitamente posto à disposição do comandante militar de Bissau uma embarcação para descarregar carvão de pedra que estava a bordo do vapor Bissau;
José Sebastião de Sena, súbdito português, por ter oferecido um bote para transportar arroz para os auxiliares em Geba – e uma chalupa para transportar a esta capital uma força vinda do Geba;
Ricardo Barbosa Vicente, súbdito português, por ter oferecido uma chalupa para o desembarque do carvão de pedra que estava a bordo do vapor da empresa nacional.”


A 22 de junho de 1891 mudamos de Governador, agora é o tenente-coronel Luís Vasconcelos e Sá, toma posse com pompa e circunstância, recebe as laudes do secretário-geral interino, capitão Zeferino Passalagua. Avisa o novo Governador que a área da província é grande, porém a esfera de ação do domínio português é limitada. Fora dos pontos por nós ocupados e além de uma faixa com a escassa largura de 120 metros em volta dos muros ou das paliçadas que delimitam esses escassos pontos da presença portuguesa, a nossa autoridade e o nosso prestígio são iguais a zero, diz o secretário-geral interino. Entende não dever dizer na cerimónia as causas do abatimento, o novo Governador irá ler os documentos oficiais, limita-se a dizer a quem chega que os diversos selvagens que povoam esta região não conhecem o deslumbramento da civilização e do progresso – "são hoje tão selvagens como há quatro séculos quando ocupámos esta colónia; enquanto não conseguirmos civilizá-los, não conseguirmos também que o nosso prestígio se alevante e a nossa autoridade seja conhecida e respeitada.” E vai continuando a dizer verdades como esta: A não ser na ilha de Bissau, em que a nossa autoridade é respeitada, nos outros pontos é permanente o desassossego. Refere o que se passou no Forreá, que em Buba é preciso uma vigilância permanente, o presídio de Geba também não goza de tranquilidade e na sua circunscrição há permanente rebelião; o secretário-geral interino não esquece os dissabores provocados por Mussa Moló. E termina assim a sua alocução:
“Vem Vossa Excelência governar-me a província onde tem que combater e destruir um a um os obstáculos, os atritos e as dificuldades que a todo o momento hão de surgir, para prejudicar todos os projetos que Vossa Excelência conceber para bem administrar esta colónia; e quanto mais sublimes e grandiosos forem esses projetos, maior será a luta em que Vossa Excelência terá de empenhar-se para conseguir alevantar a província do marasmo, que a definha.”

Início de novo ano, há estrangeiros a cobiçar as terras da Guiné. No Boletim Official n.º 2, de 9 de janeiro, vemos que o Governo está pronto a cedências, através da Direção Geral do Ultramar, do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar. Recorda-se que há consideráveis tratos de terrenos incultos na Guiné, completamente desaproveitados pelos indígenas, são necessários modernos processos agrícolas que assegurem um rápido desenvolvimento moral e intelectual dos habitantes, e depois de vários consideramos decreta-se a concessão para explorações agrícolas cruciais à companhia ou sociedade que for legalmente constituídas pelos súbditos franceses, conde Buttler e conde Raoul Buttler, os terrenos públicos baldios, e são citados territórios manjacos, parte de território das Balantas e Brames situados entre a margem esquerda do rio Cacheu, terrenos na margem direita do rio Geba perto de S. Belchior, territórios limitados a Oeste pelo mar, ao Sul pela margem direita do rio Cacheu até Farim, ao Norte pela fronteira franco-portuguesa… Tudo isto é impressionante, vai até à ilha das Cobras ao Norte de Bolama e às ilhas Caraxe, Caravela e Galinhas. Reza o decreto que ficavam expressamente excluídos da concessão todos os terrenos ocupados e plantados pelo gentio, a companhia devia estar legalmente constituída dentro de um ano, ficando para todos os efeitos sujeita às leis portuguesas. E dizem-se quais as obrigações da sociedade concessionária: explorar agricolamente os terrenos da sua concessão e introduzir novas culturas, até hoje não empreendidas na Guiné; a fazer a exploração vegetal, a fazer todas as obras necessárias para a canalização e navegabilidade do rio Corubal; a ceder ao Governo português os terrenos que forem precisos para a construção de caminhos de ferro, estradas, fortificações, alfândegas ou quaisquer outras obras ou estabelecimentos do Estado. Ao que se sabe, nenhuma concessão foi criada.

Morança do Régulo de Chulame. Manjacos. Região de Cacheu, por Fernando Schiappa de Campos, 1959. Imagem da exposição Habitats tradicionais da Guiné-Bissau¸ que decorreu no Museu Nacional da História Natural e da Ciência, em 2018
Fortaleza de São José da Amura, na atualidade
Todos ao aeroporto de Bolama, é um modesto campo de aviação, vão chegar os aviadores portugueses, 2 de abril de 1925

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 8 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26362: Historiografia da presença portuguesa em África (460): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, começou a última década do século XIX (17) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26310: Historiografia da presença portuguesa em África (458): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, finais de 1888, início de 1889 (15) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
A governação da província, nestes tempos, passa do contralmirante Teixeira da Silva para a governação interina de Joaquim da Graça Correia e Lança, o Boletim Official não deixa de ter um tom monótono de entradas e saídas, nomeações, assuntos da fazenda pública e alfândega e raramente dados que possam ser aproveitados para a investigação. O que aproveitei deste período foi a vinda em comissão extraordinária dos chefes do serviço de saúde a Bissau que existiu sobre a necessidade de derrubar o muro à volta da povoação, ele achava que a vila devia sair de Bissau e ir para Bandim, ali havia melhores ares e condições de salubridade, insiste na vasta superfície lodosa e imunda da praia, na baixa-mar e na má construção das casas existentes na vila, faz referência ao lazareto que estava no Ilhéu dos Pássaros, devia ser transferido para o Ilhéu do Rei e termino com a apresentação dos enviados do régulo Mamadi Paté, do Forreá, este fazia questão de reiterar os seus protestos de fidelidade ao rei, então D. Luís,. No próximo texto, far-se-á um cômputo dos acontecimentos de 1889, morre o monarca e o Infante D. Augusto.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, finais de 1888, início de 1889 (15)


Mário Beja Santos

Há muito pouco mais a dizer sobre o ano de 1888, encontrei o relatório do Chefe de Serviço de Saúde em Bissau, datado de 12 de março desse ano, é assinado por Aristides Bernardo de Sousa, contém informações que reforçam outras já conhecidas, mas também há aspetos inovadores, como o leitor apurará. Um tanto à semelhança do documento lavrado por Damasceno Isaac Costa, ele apresenta a ilha de Bissau e a respetiva fortaleza, destaca a situação da vila e dá uma sugestão:
“Como em diferentes capitais e filas das nossas províncias ultramarinas, na instalação da vila não presidiu infelizmente o elemento mais essencial da higiene, a escolha do terreno, porque era a todos os respeitos preferível para sede da capital da província a aldeia de Bandim, ponto relativamente elevado e com vertentes para a praia que é completamente arenosa. Ainda não era tarde para se mudar a capital para a aldeia de Bandim e não seriam grandes os sacrifícios encarregados com a transferências das repartições públicas, dos quartéis, do hospital e de outros edifícios.
Os negociantes que de futuro quisessem estabelecer-se na Guiné preferiam prontamente a nova capital e muitos dos atuais encontrariam grande compensação na maior garantia da sua saúde.”


E o problema da higiene atormenta-o:
“São várias as causas que tornam insalubre a praça de Bissau. As medidas higiénicas não podem decerto modificar as condições meteóricas, mas removendo tudo quanto possa concorrer para poluir o solo e inquinar a atmosfera, podem aniquilar ou ao menos atenuar as causas da insalubridade. Cercada por um muro, a vila acha-se soterrada num vale e é dominada por alturas e com uma área de circunscrição incomportável com a sua população; de onde resulta a aglomeração dos seus habitantes.
As ruas são estreitas e na construção das casas não se observaram s mais rudimentares preceitos da higiene. O muro que cinge a população obsta à disseminação da população, ao desaperto das casas e à circulação do ar e da luz difusa. A permanência do muro é incompatível com eficaz saneamento geral. O principal e imprescindível empreendimento, referente à saúde pública, deve ser a demolição do muro, porque só assim desaparecerá o perigo da acumulação alargando-se o terreno e desafogando-se as ruas e as casas.”


O chefe do serviço de saúde aborda seguidamente o Ilhéu dos Pássaros onde tinham sido construídos três barracões para o isolamento dos doentes, ilhéu com 219 metros de comprimento e 33 de largura, refere a superfície lodosa, a natureza do terreno, os ventos, a composição dos barracões, observando que estes barracões podem comportar 18 leitos, são construções temporárias que não poderão durar mais de 1 ano, a bagabaga já estava a destruir a madeira. “Tendo, porém, visitado ultimamente os dois ilhéus que defrontam com a praça de Bissau, parece-me que é o ilhéu do Rei que deve ser escolhido para futuro lazareto permanente da Guiné, e para enfermarias isoladas, porque além de estar mais próximo da praça, tem bastante água potável e condições meteóricas mais constantes.”

Atenda-se a outros aspetos higiénicos da vila de Bissau e à enfâse que o relator põe:
“Tendo percorrido a vila mais de uma vez, observei que eram regulares as condições da limpeza pública nas ruas e nos domicílios. Não se pode conseguir muito mais da população indígena que geralmente não prima pelo asseio e está aferrada a conceitos velhos. Peço finalmente a atenção do ilustrado Governo da província para os melhoramentos que exige o Hospital de Bissau, cujo teto está bastante deteriorado e o sobrado também precisa de ser reparado. Além disso, o edifício em grande parte não está caiado por dentro, há muitos anos, apesar das repetidas instâncias do delegado de saúde. A farmácia precisa também de armação e de vidrame novos. Faltam também os mais indispensáveis artigos de mobília que convém prover-se tão importante edifício.
A existência das muralhas e dos fossos, circundando a praça; a vasta superfície lodosa e imunda da praia, na baixa-mar; a má construção das casas existentes na vila, são outros tantos fatores que se no estado ordinário prejudicam a salubridade da terra, muito mais agravantes são quando reina uma epidemia.
Muitas edificações precisam ser reparadas e convirá determinar que os pavimentos de todas as casas tenham certa e determinada altura do nível das ruas; que os pavimentos sejam argamassados ou assoalhados de madeira; que as portas e janelas sejam largas a fim de que o ar circule livremente. Depois de demolido o muro, será também conveniente ordenar-se que as futuras construções sejam feitas fora do recinto da atual praça.”


E terminam as referências a 1988 com uma notícia publicada em novembro e referente a Buba:
“No dia 19 de novembro estiveram nesta capital os grandes de Forreá, Bóbójintos e Saná, enviados por Mamadi Paté, régulo principal daquele território, os quais acompanhados de um intérprete vieram pedir uma audiência ao conselho governativo, que de bom grado lhe a concedeu. Na sessão do conselho desse dia disseram que: - Vinham encarregados pelo seu rei de significar ao governo provincial, como delegado de Sua Majestade El-Rei de Portugal a amizade que lhe dedicava e reiterar-lhe os seus protestos de fidelidade, por isso que só conhecia e respetiava a nossa bandeira à sombra da qual desejava viver e o nosso Governo de quem gostosamente recebia ordens e a quem somente queria estar sujeito, por cujos motivos solicitava do Governo lhe permitisse estreitar mais as suas relações de amizade com os portugueses, consentido a sua aproximação à praça de Buba pelo estabelecimento de três tabancas, sendo uma em cada um dos postos denominados Sambafim, Iaocunda e Cam-Ióbá, pelo que prometia prestar todo o auxílio que lhe for pedido pelo comando da praça, para onde fará convergir todos os seus produtos a fim de os permutar, demonstrando por esta forma o empenho que tem em estreitar as suas relações de amizade já referidas.”

Nada de relevante encontrei nos primeiros meses de 1889, aa partir de 4 de maio, e depois em 11 e 18, temos um relatório do serviço de saúde da vila de Bissau que merece referência, mais adiante se falará do estado de suspensão de garantias no presídio de Geba por insurreição do régulo de Ganadu, e teremos depois um documento do comando militar de Buba, bastante interessante.

Notícia do falecimento do Infante D. Augusto, Duque de Coimbra
Notícia do falecimento do rei D. Luís
Monumento a Nuno Tristão, Bissau, década de 1960
Uma imagem que vale por mil palavras
Ilhéu dos Pássaros, Guiné-Bissau

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 18 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26279: Historiografia da presença portuguesa em África (457): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1888, há bons relatórios e pouco mais (14) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26303: Notas de leitura (1757): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
A originalidade desta narrativa memorial passa pela bem conseguida assembleia de conversa que o José Brás urdiu numa estonteante viagem entre a infância e a adolescência e a comissão na Guiné, toda passada em quartéis do Sul. Usa o discurso direto, aponta-nos o dedo, quase que nos pede resposta, mas nos antípodas da diacronia a que é manifestamente avesso, saltita quase febrilmente nos tempos e lugares, é uma montanha-russa que mete quartéis como o das Caldas da Rainha e Tavira, tascas com cenas de naifada, corpos carbonizados na estrada para Buba, flagelações, tudo isto se vai passar num tabuleiro restrito daquele Sul da Guiné que ele não quer ver apagado do mapa, Mejo, Cutima-Fula, Guileje, Gadamael, não terá estacionado muito tempo em Aldeia Formosa e seguramente que ouviu os rebentamentos ali ao lado, no octógono de cimento e sofrimento que se chamou Gandembel. Se um bom livro é obrigatoriamente uma história bem contada, José Brás passa com distinção e louvor.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (2)

Mário Beja Santos

Vale a pena recordar que o mais recente livro de José Brás, "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", Chiado Books, 2024, tem uma matriz de gabarito, trata-se do, seu romance premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, em 1985, "Vindimas no Capim". Está de novo em ação Filipe Bento, continuamos numa ruralidade da Estremadura e naquele Sul da Guiné onde se combate ferozmente, Filipe Bento tem a sua comissão em Mejo e arredores, não esquece de nos contar que qualquer coluna de abastecimento seja a Buba ou a Gadamael é uma autêntica operação, por vezes próximo do inferno. O poder arquitetural da escrita de "Lavar dos Cestos" assemelha-se muito às "Vindimas no Capim", salta-se com a maior das facilidades das vinhas para o mato guineense, daquela vida duríssima do preparo da terra e das cepas, a puxar terra aos pés, a podar, a empar, a cavar, a sachar, a sulfatar, a enxofrar, a vindimar, tudo para ganhar uma miséria, era esta a condição deste povo vindimador, e num ápice estamos na guerra.

Toda a obra é uma sala de conferência, temos direito a desabafos íntimos: Daniel Padeiro era um vigarista, aldrabava no pão, no carvão, no que podia, apanhamos as conversas na tasca, irmanamos com a dureza do trabalho; e, como num salto sobre o abismo, caímos na Guiné, barquinho rio abaixo até Cacine, até Catió, Gadamael, mas também Gandembel, um octógono de cimento e sofrimento, Quebo ou Aldeia Formosa, é mais ou menos esta a quadricula de eleição onde se processa a liturgia da guerra; e saltamos ao passado, isto é, a terras estremenhas, à catequese, ao rio Tejo, ao major Leiria que era lá da terra e que Filipe Bento reconheceu no quartel, integrados somos na vida das instituições militares e, por artes mágicas, voltamos à floresta subtropical, também no quartel, é como se viajássemos de um pesadelo para outro, e as viagens pelos rios não têm graça nenhuma, como Filipe Bento conta quando foi de Bissau para Mejo no batelão Anita, furando a noite já funda, caiu uma chuvada das antigas, houve quem procurasse proteção no meio dos sacos de farinha, de lá saiu enfarinhado.

Foi gerente do bar, experiência para esquecer, ou não, pelo que se viu ter apanhado contas mal feitas. E voltamos às colunas, o cabo Júlio morreu entre labaredas, é uma descrição tremenda:
“Ali aos pés tinha o volume do resto do que fora o corpo do Júlio, meio aterrado ainda, com os coutos dos braços e das pernas a fumegarem, apontando ao alto. A pele da barriga esticara, rebentado, e mostrava um amontoado de carvão.
Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também.
A posição agora seria a mesma que seria sentado na viatura, de pernas de fora.
Só que das pernas restavam uns espetos, maior o da direita, mais curto o da esquerda, mas ambos dobrados na bacia, fazendo o ângulo da posição mal sentada.
Os braços, mostrando os ossos dos pulsos, estavam também estendidos para a frente, quase perpendiculares ao corpo. Apenas as mãos haviam desaparecido.”


A pirotecnia da escrita, acompanhada destes saltos bruscos em que andamos por dois continentes, surpreendentemente, não nos desorientam porque um bom livro é sempre uma história bem contada, ainda há pouco andávamos de sachola na vindima, o Filipe Bento fez a recruta e a especialidade, já está a caminho de Buba, recorda as delícias do seu amor com Luísa, soa a voz do capitão Velês a deitar os bofes pela boca, Filipe está agora em Cutima-Fula, recorda a tasca do João Gato e a preparação que teve em Tavira, seguem-se as colunas a que não falta metralha, mas bem vistas as coisas Cutima-Fula era o paraíso, em termos de comparação com Mejo e o que se seguiu. Mas aquelas colunas ao cais de Buba não tinham mesmo graça nenhuma, dito por ele, reafirmado mil vezes:
“Eram uns trinta quilómetros para cada lado, a picar estrada, a cinco à hora, com um calor lixado, a água nunca chegava… e com a emoção da busca e descoberta de uma mina ou outra, de um fogachal daqueles e a incerteza permanente na alma dos malteses embarcados em Lisboa.
Vergar a mola à bruta na estiva do cais de Buba a carregar o material nas carripanas. Toneladas de trampa a fingir de produtos alimentares, remédios, balas, granadas, vinho mais que duvidoso, cerveja e outras bugigangas que, durante o percurso de volta, haviam de ser descarregadas para desatascar as viaturas, e transportadas ao longo da malta para uns metros à frente, atolados na chafurdice da bolanha, e carregados de novo, várias vezes repetindo o exercício no tempo das chuvas, com o estômago vazio e muita sede.”


Os nomes sucedem-se: Mejo e Guileje, Sangonhá e Cacoca, Catió e Cufar, Cabedu e Bedanda, Cacine, Mato Farroba, Cufar e Caboxanque, Salancaur e Cumbijã, e há lembranças de uma viagem em que se passava fome e foi possível comprar doze peixinhos, eram bicudas, pelo peixe, lá se fez uma fogueira em Catió, impossível não invocar aqui o repasto.

E há a denúncia dos compadrios: “O furriel Machado regressou a Lisboa tuberculoso. Deixou o pessoal de boca aberta. Parecia vender saúde e, de repente, zás, um rádio de Bissau a chamá-lo ao Hospital Militar.
E o Espírito Santo, que dois dias depois regressava de férias no Puto, informava-nos que encontrara o gajo de boa saúde no aeroporto com guia de marcha para a metrópole. Mais tarde soubemos que a doença dele se chamava Beja ou Évora ou lá o que era… seu tio.”

Voltemos ao universo estremenho, não havia campo de futebol, fazia-se bola com o que calhava, na falta do campo o adro da igreja era o único lugar capaz para garantir alguma distância entre dois pares de calhaus a fazerem as balizas e com duas equipas de cinco ou sete jogadores. Filipe é adolescente e sentiu a campanha de Humberto Delgado, o seu pai sempre prudente, talvez medroso, empolga-se com a campanha e explica porquê:
“Ponham-se vocês no meu lugar, nascido numa aldeia de ganhões de vinhas, de terceiros, de meeiros… gente que rebentava a vida inteira a fuçar sem tirar os cornos das cepas; anos e anos a fazer vinho, a bem dizer, dos torrões; a tirá-lo das veias para meter nos tonéis do senhoritos, senhorões filhos da puta; a apodrecerem na lama do inverno, a estorricarem no Sol de verão, a endoidecerem na hora dos acertos com o merceeiro, com o armazenista, com o aldrabão, sem um protesto, sem uma praga, sem um gesto de insubmissão. Na minha aldeia era tudo boa gente.”
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras


(continua)
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Notas do editor

Vid. post de 16 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerras", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26294: Notas de leitura (1756): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (6) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26227: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - X Parte (Adenda): A todas as nossas enfermeiras paraquedistas, um bem-haja !


Domingos Robalo, ex-fur mil art,
BAC 1 / GAC 7 / GA 7, Bissau, 1969/71;
foi comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda
(1969/70); nasceu em Castelo Branco,
trabalhou na Lisnave,
vive em Almada; tem cerca de
 3 dezenas de referências no nosso blogue.
1.  Comentário postado na página do Facebook da Tabanca Grande, 2 de dezembro de2024, 18:30


Creio que foi a 1 de janeiro de 1971. Eu e o capitão de artilharia Viriato Osório, estamos a bordo de uma DO com destino a Buba onde íamos fazer uma regulação de tiro de artilharia. Já quase a chegarmos a Buba reparamos na exagerada atenção do piloto sobre as comunicações. Apercebemos- nos que algo de mau estava a acontecer. Antes de nos fazermos à pista o piloto informa que nos ia largar na pista e regressar a Bissau para uma evacuação.

Ok, tudo bem.

Tudo bem, não. Porque ao avistarmos a pista, havia nesta uma movimentação muito fora do normal.

Antes de aterrarmos já sabíamos que mais 3 DO voavam de Bissau para Buba.Estava em curso a assistência médica de urgência, porque um pelotão ao fazer os preparativos para uma 
patrulha já tinha várias baixas. Num acidente, 
não raro, daqueles que ao chibatarmos para cima do ombro as granadas amarradas entre si por um “cordel", provocou um rebentamento na caserna. Imagina-se a “desgraça “.

Rapidamente mais 3 DO se fazem à pista e as primeiras pessoas a sair foram as enfermeiras paraquedistas. Em correria iniciaram a execução das suas tarefas. Cuidar, estabilizar e embarcar. 

Num ápice as 4 DO levantam voo e procedem à evacuação dos feridos, alguns deles graves. Já não sei fazer referência a mortos, porque a 54 anos de distância muita coisa a memória foi perdendo. 

Às nossas camaradas enfermeiras paraquedistas, que em muitas circunstâncias foram as salvadoras de muitos camaradas,  o meu obrigado. Merecem mais do que reconhecimento, merecem a nossa gratidão o nosso respeito. A todas um bem-haja!.

Assisti a um episódio semelhante na semana de Carnaval de 1971, em Piche, durante os preparativos da Operação “Mabecos”.

Desabafo de um artilheiro-combatente.

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 19 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20364: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - IX (e última) Parte: Nunca mais esquecerei aquele abraço, num lojeca em Bissau, antes do meu regresso a casa, daquele negro de Fulacunda, o Eusébio, suspeito de colaborar com o IN, e a quem poderei ter salvo a vida...

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26095: Historiografia da presença portuguesa em África (449): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Não houvera circunstância, no texto anterior, de incluir o tratado de paz celebrado em Buba entre Fulas e Biafadas, por intervenção do Governo da Província, trabalho a que já se acometera o Governador Pedro Ignácio de Gouveia, e tinha agora o seu remate feliz. O que mais impressiona neste ano de 1886, e já estou em julho, é não haver uma só palavra quanto à perda do Casamansa, nem uma só menção à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, paradoxo maior não conheço, até porque posterior à data desta convenção ainda o administrador de Cacheu dá informações sobre o estado de saúde em Ziguinchor... O que verdadeiramente me impressiona é o relatório elaborado pelo facultativo Damasceno Isaac da Costa, não é a primeira vez que este nome vem à baila, na coleção de reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa há trabalhos por ele assinados; mas este relatório irá ser publicado às pinguinhas desde 27 de março, em quatro números de abril, em dois boletins de maio, um de junho e outro de julho impressionam pelo acervo informativo, mesmo com a inclusão de alguns dislates e imprecisões, que o leitor facilmente deterá. Dada a extensão do relatório, dar-lhe-emos sequência no próximo texto.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (8)


Mário Beja Santos

Antes de se passar diretamente para 1886, importa fazer uma referência ao Boletim Official n.º 50, de 12 de dezembro de 1885, abarca um conjunto de documentos relativos ao tratado de paz celebrado em Buba entre os Fulas e Biafadas, por intervenção do Governo da Província, é um conjunto de três atas. Na primeira, referem-se as presenças, entre outras do Governador e do comandante do Batalhão de Caçadores n.º 1, dá-se notícia das intimações ao chefe dos Fula-Forros Bacar Quidaly: entrará na praça de Buba sem representação de força nem grandeza; apear-se-á fora da paliçada, bem como a sua comitiva, e aí deporão as armas e mais símbolos de guerra; esperará que um oficial lhe comunique a permissão de entrar na praça, onde só tem ingresso Bacar Quidaly e o seu Estado-maior, todo o resto da sua gente ficará fora da paliçada; o Governador deseja ter explicações muito sérias com Bacar Quidaly, pois que o seu procedimento não tem sido dos mais corretos com o Governo, mas só será recebido nas condições acima apontadas, e em caso de recusa da sua parte o Governo tomará tal facto como um ato de desobediência às suas ordens.

Na segunda ata, referente a acontecimento ocorridos no dia seguinte (25 de novembro de 1885), Bacar Quidaly pedia permissão para ter ingresso na praça, mas para que a conferência tivesse lugar na casa que serve de quartel, para se ver próximo da sua gente, o régulo precisa de manter a autoridade sobre o seu povo, satisfez-se o pedido do régulo; a terceira ata contém a essência da reunião, quem nela participou, esteve por parte do régulo Mamadu e mais chefes Fulas e seus conselheiros, um conjunto de chefes Biafadas, tanto do Cubisseco como de Boduco. Declararam ambas as partes quererem e aceitarem a paz que o Governo lhes propõe, esquecem agravos e ressentimentos que os tornaram inimigos, procurará cada um dos povos por sua parte animar o comércio nas feitorias e estabelecimentos que existem já nos seus territórios, tomam o Governo como fiador e garantia desta paz. O Governador trazia também as suas reivindicações, estabelecia-se os limites do território do Forreá. O documento iria ser assinado por todas as partes envolvidas. Vai ganhar realce ao longo de um conjunto de boletins a publicação do relatório do serviço da delegação da Junta de Saúde da vila de Bissau, referente ao ano de 1884, pelo facultativo de 2.ª classe do quadro de saúde da Guiné, Damasceno Isaac da Costa, é um documento que transcende pela riqueza de informações tudo o que até agora nos foi dado de ler em relatórios de idêntica circunstância, é tal o acervo de informações que vale a pena aqui reproduzi-las, no seu cotejo essencial.

Começa por dizer que o concelho de Bissau compreende a vila de S. José, o presídio de Geba, Fá e S. Belchior e todos os demais pontos ocupados e a ocupar nas margens dos rios de Bissau, Corubal e Geba. Localiza a ilha de Bissau, dirá que está dividida em dez tribos com as seguintes denominações: Antula, Antim ou Intim, Cumuré, Prábis, Safim, Torre, Biombo, Bigemeta e Quitexe. O régulo de Antim tem a presunção de descender de alta prosápia, isto é, dos antigos reis da lha; o de Bandim alimenta a mesma presunção nobiliárquica. Refere o trabalho desenvolvido pela companhia de Grão-Pará e Maranhão e a construção da fortaleza, não faltaram atos de selvajaria dos gentios à volta dela. Para pôr cobro a tais hostilidades, o rei D. Pedro II ordenou ao 1.º capitão-mor de Bissau, José Pinheiro, que construísse uma fortaleza com 40 praças, um capitão-mor e um feitor da fazenda. A povoação assim amparada possuía 200 cubatas e 5 casas cobertas de telha, habitadas pelos negociantes portugueses, comissários das casas comerciais inglesas de Gâmbia e francesas de Goreia e pelos Grumetes, uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição e um hospício para os missionários. A fortaleza durou apenas 66 anos, houve que a demolir.

Depois de um largo conjunto de citações, alude aos ziguezagues fluviais no rio Geba. Dirá que os Biafadas que outrora ocupavam as margens do rio Geba fechavam a navegação quando queriam, especialmente em ocasiões de guerras que travavam com os Fulas, exigindo avultadas indemnizações às embarcações que com grandes dispêndios e grandes carregamentos transitavam no rio. Em 1847, o Governador da Província de Cabo Verde ordenou que se suprimisse a verba vexatória que a título de presentes era abonada a esses piratas que desde aquela época poucas vezes se repetiram casos de semelhante natureza. Para levar em efeito esses atos de pirataria, os Biafadas amarravam uma corda na árvore de uma margem, que passando pela superfície de água, ia terminar igualmente noutra árvore da margem oposta. Os extremos da corda traziam duas campainhas para anunciar a chegada de qualquer embarcação que tocasse a corda. Em tempos que não vão longe, esses piratas foram acossados pelos Fulas-Pretos e desde essa época cessou aquele sistema de saque às embarcações. Os Balantas, para a execução do tão mencionado plano seguem-se de troncos de árvores que espetam no rio.

O rio Corubal é bastante extenso e importante pela grande quantidade de âmbar que roja às praias. É quatro vezes mais largo do que p rio Geba até a uma maré de distância, onde se estreita para tornar a alargar. Esta estreiteza constitui a baliza dos territórios ocupados pelos Biafadas e Fulas. É junto a este lugar que está situada uma feitoria francesa denominada Granja. Raso em toda a sua extensão, o rio Corubal é somente navegável junto à margem esquerda. Da estreiteza acima mencionada, transporta-se facilmente e em menos de 24 horas para a praça de Buba, atravessando as tabancas do régulo Fula-Forro Mamadi Paté, derrotado pela nossa força militar em 28 de setembro de 1882. Segundo afirmam pessoas de todo o crédito, o rio Corubal tem a sua origem no território do Futa-Djalon e vem desaguar no oceano próximo da ilha de Bissau. Nas margens do rio Corubal, divisam-se extensas e graciosas colinas e vales, notando-se no fundo destas águas que brotando de diversas rochas e lugares correm com sussurro para desaguar no rio.

Em todos estes rios e canais habita o crocodilo, o hipopótamo, o tubarão e uma infinidade de variados peixes. Nas espessas e copadas matas que revestem as margens dos mencionados rios e no feracíssimo solo de Bissau, Geba, Corubal e outros pontos das suas dependências, encontram-se o elefante, onça, pantera, leopardo, hiena, lobo, gazela, porco-espinho e diversos outros animais, muitos dos quais são bastante interessantes.

Nas margens do rio Geba encontram-se diferentes feitorias e o facultativo refere os seus nomes dizendo que há muitas outras que estão agora abandonadas em consequência das opressões dos Fulas que habitam as margens do rio Geba. E prepara-se agora para falar da vida em Bissau.

Notícia do falecimento, em 16 de dezembro de 1885, de D. Fernando II
Ao consultar a publicação Jornal da Europa, ano de 1926, encontrei esta imagem de Bissau, a qualidade não é famosa, mas permite visualizar a zona do Pidjiquiti, as embarcações no Geba e ao fundo os poilões da Fortaleza da Amura
Imagem muito conhecida da Conferência de Berlim, 1884-1885
1.ª página do Estatuto da Província da Guiné, 1956, veja-se a definição da superfície da Província com base na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886
A influência portuguesa na Goreia, Dacar.
Fotografia de Robin Taylor, publicada na página do Instituto Camões. Com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 23 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26071: Historiografia da presença portuguesa em África (448): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1885 (7) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estamos em 1883, o Governador Pedro Ignácio de Gouveia revela-se um homem de mão cheia, continua o programa de concessões de terreno, o exemplo que aqui se cita vem do chão manjaco, chovem os regulamentos e os regimentos, pretende-se instituir uma biblioteca, o governador tem mão pesada para capitães delituoso, pensa-se no embelezamento e na higiene de Bolama e arredores, o comandante militar de Bissau vai até à ilha de Jeta celebrar tratado com o régulo das Ilhetas, é um documento de grande valor, de que aqui se deixa uma citação, e o alferes Francisco Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba, face ao rapto de umas bajudas em S. Belchior, mete-se ao caminho com civis até ao Indornal, estamos em 1883, vamos vê-lo percorrer a região do Casamansa, passou por terras onde lhe pediram para ele se despir, nunca tinham visto um ser humano de pele branca. É texto que já publicámos no blogue, bem como a sua sequência, um texto não menos notável de Pedro Ignácio de Gouveia para o Ministro da Marinha e do Ultramar.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3)


Mário Beja Santos

1883 revela-se um ano de profusa legislação, como se exemplifica: regulamento das alfândegas da província da Guiné Portuguesa; regimento para as delegações da junta da Fazenda da província da Guiné; regulamente para o serviço marítimo da Guiné Portuguesa; regulamento do Ministério Público nos tribunais militares. O Governador é Pedro Ignácio de Gouveia, logo no Boletim Oficial n.º 1, de 6 de janeiro, chama a atenção a Nota do degredado chegado a esta província em 17 de dezembro de 1882, vindo da província de Cabo Verde no vapor Angola: Lourenço Rodrigues d’Almeida, condenado a trabalhos públicos por toda a vida, por acórdão da Relação de Lisboa por crime de homicídio voluntário. No Boletim seguinte, de 13 de janeiro, chama a atenção o pedido de conceção no rio denominado Mampatas, no território manjaco e o Governador “hei por conveniente, com o voto do Conselho do Governo, conceder 500 hectares de terreno a Ernesto Gourdau em cada um dos pontos seguintes: Pelundo, Babaque, Padim, Tamé, Canhobé, Mata dos Elefantes, Cajegut, Tumatte e Palufe, sendo a última na embocadura do rio dos Brames".

Não menos curiosa é a publicação neste mesmo Boletim Oficial n.º 2 a necessidade de criar uma biblioteca, o texto de Pedro Ignácio de Gouveia é de uma enorme elegância:
“Sendo de reconhecida vantagem e conveniência a instituição de uma biblioteca, para desenvolvimento intelectual de todos, e em que cada um possa compulsar os diferentes autores para aumentar os seus conhecimentos, desenvolvendo a sua instrução.
Sendo certo que a prosperidade, riqueza e bem-estar social é função de estado intelectual dos seus habitantes; e tendo em vista, que na classe civilizada dos habitantes da província, se encontra, em regra, o gérmen da aplicação que apesar dos poucos recursos que alguns dispõe procuram cultivar o espírito nas horas de ócio que as suas ocupações lhes deixam;
Considerando que se pode assim mais facilmente desenvolver o estudo, esse campo vasto onde a inteligência não encontra limites tangíveis, e pelo qual o homem pode crer na sua proficuidade, pela utilidade de que é alvo, e pelos benefícios que a seus concidadãos pode prestar, pelo derramamento de luz que só a cultura intelectual pode dar, etc. etc. Hei por conveniente nomear uma comissão para ver qual a maneira possível de instituir uma biblioteca.”
Nesta composição figurava o vigário-geral da Guiné Marcelino Marques de Barros.

Era visível que o novo Governador vinha disposto a cortar a direito, no despacho n.º 1 emitido no quartel-geral em Bolama, em 13 de janeiro, dava-se a saber que foram considerados presos para conselho de guerra os capitães Pedro Moreira da Fonseca e Boaventura Ribeiro da Fonseca. Falece em Buba na noite de 13 o tenente do batalhão de caçadores n.º 1 José Joaquim Sertório de Almeida, seguia-se uma alocução falando num crime hediondo, o tenente fora assassinado quando rondava as sentinelas postadas na praça de Buba, assassinado por um soldado, caso que enodoava o Exército; fora exonerado o capitão Caetano Filipe de Sousa, que era comandante militar e administrador do concelho de Buba; e quanto à prisão dos dois capitães, dizia-se que não tinham recebido a prisão imposta com respeito e acatamento devido, cantando até depois de recolher ao quarto que lhes servia de prisão, pelo que lhe fora agravada a pena com a proibição de receber visitas, sofreram uma prisão rigorosa de 30 dias.

No Boletim n.º 19, de 12 de maio, nova medida enérgica: “Tendo chegado ao meu conhecimento um ofício do comandante militar de Cacheu em que participa que o chefe do presídio de Farim, Luiz Xavier Monteiro tem praticado actos que podem considerar-se criminosos, a serem verdadeiros; hei por conveniente, em harmonia com o código administrativo suspender do exercício de funções e vencimentos ao mencionado chefe, devendo permanecer em Cacheu sob a vigilância da autoridade local enquanto se procede à sindicância que nesta data lhe é mandada instaurar.”

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 2 de junho, vem publicado um interessantíssimo relatório assinado pelo comandante militar de Bissau, Carlos Maria de Souza Ferreira Simões, que foi celebrar um tratado de paz com um régulo das Ilhetas, ilha de Jeta, Adju Pumol. É texto extenso, aqui fica uma passagem:
“Disse finalmente o régulo Adju Pumol que as provas de confiança e consideração que acabava de receber do Governo português enviando aos seus domínios um delegado seu para tratar com ele e com o seu povo, lhe impunha o dever de ser sempre grato e leal aos portugueses e de lhes prestar todo o auxílio de que pode expor sempre que lhe por qualquer forma se ofereça para isso ocasião. Terminado o discurso, convidei o régulo para ir connosco a bordo da canhoneira Guiné, convite que ele aceitou sem hesitação, a despeito de algumas manifestações em contrário que involuntariamente deixaram perceber dois ou três dos seus grandes, e principalmente uma das suas mulheres, que chegou a segurá-lo por um dos braços para o não deixar ir, e à qual ele disse que ia porque tinha confiança nos portugueses e se morresse era apenas uma vida que se perdia. Acompanharam-no um filho mais velho e um dos grandes.

Chegado a bordo, o comandante foi mostrar-lhe o navio, pelo que ele se sentiu muito reconhecido, examinando tudo com muita atenção e fazendo algumas perguntas. Ceou connosco, e quando depois da ceia lhe perguntámos se queria ir para terra ou ficar a bordo, respondeu que preferia ficar a bordo, e ir para terra de madrugada. Dormiu sossegadamente num dos almofadões da câmara do navio.”

No Boletim n.º 81, de 4 de agosto, consta o relatório apresentado pelo chefe do presídio de Geba acerca da sua viagem ao Indornal, há alguns anos publicou-se no blogue este notável documento assinado pelo alferes Francisco Marques Geraldes e qual a informação dada por Pedro Ignácio de Gouveia ao Governo em Lisboa.

Voltando um pouco atrás, e dentro daquele vasto plano de regulamentações de que inicialmente se fez menção, penso que é útil referir que no Boletim n.º 13, de 31 de março, o Governo reconhece a grande vantagem e conveniência para a regularidade e embelezamento da capital da província e de outras terras secundárias, estabelecer-se um plano definitivo de edificações em que se atendam às condições de higiene, ventilação, perspetiva e outras. E assim fora adotado com o voto unânime do Conselho do Governo o plano de edificações e reedificações em Bolama. O seu artigo primeiro anuncia que o Governo mandará imediatamente proceder a um plano geral dos melhoramentos da capital, atendendo neles ao das suas praças, jardins e edificações existentes, e à construção e abertura de novas ruas, praças, jardins e edificações com as condições de higiene, decoração, cómodo alojamento e livre-trânsito do público. Esse plano seria elaborado pela comissão composta do diretor de obras públicas, um vogal proposto pela Câmara Municipal e um vogal da Junta de Saúde Pública. Texto minucioso em que se chega ao cuidado de referir a altura das edificações determinada pela largura das ruas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Igreja católica na Guiné Portuguesa, imagem muito antiga retirada do site da Casa Comum
Bajudas Fulas lavrando a bolanha, imagem antiga retirada do site Casa Comum

(continua)
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Notas de editor

Vd. post de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)