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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26095: Historiografia da presença portuguesa em África (449): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Não houvera circunstância, no texto anterior, de incluir o tratado de paz celebrado em Buba entre Fulas e Biafadas, por intervenção do Governo da Província, trabalho a que já se acometera o Governador Pedro Ignácio de Gouveia, e tinha agora o seu remate feliz. O que mais impressiona neste ano de 1886, e já estou em julho, é não haver uma só palavra quanto à perda do Casamansa, nem uma só menção à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, paradoxo maior não conheço, até porque posterior à data desta convenção ainda o administrador de Cacheu dá informações sobre o estado de saúde em Ziguinchor... O que verdadeiramente me impressiona é o relatório elaborado pelo facultativo Damasceno Isaac da Costa, não é a primeira vez que este nome vem à baila, na coleção de reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa há trabalhos por ele assinados; mas este relatório irá ser publicado às pinguinhas desde 27 de março, em quatro números de abril, em dois boletins de maio, um de junho e outro de julho impressionam pelo acervo informativo, mesmo com a inclusão de alguns dislates e imprecisões, que o leitor facilmente deterá. Dada a extensão do relatório, dar-lhe-emos sequência no próximo texto.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (8)


Mário Beja Santos

Antes de se passar diretamente para 1886, importa fazer uma referência ao Boletim Official n.º 50, de 12 de dezembro de 1885, abarca um conjunto de documentos relativos ao tratado de paz celebrado em Buba entre os Fulas e Biafadas, por intervenção do Governo da Província, é um conjunto de três atas. Na primeira, referem-se as presenças, entre outras do Governador e do comandante do Batalhão de Caçadores n.º 1, dá-se notícia das intimações ao chefe dos Fula-Forros Bacar Quidaly: entrará na praça de Buba sem representação de força nem grandeza; apear-se-á fora da paliçada, bem como a sua comitiva, e aí deporão as armas e mais símbolos de guerra; esperará que um oficial lhe comunique a permissão de entrar na praça, onde só tem ingresso Bacar Quidaly e o seu Estado-maior, todo o resto da sua gente ficará fora da paliçada; o Governador deseja ter explicações muito sérias com Bacar Quidaly, pois que o seu procedimento não tem sido dos mais corretos com o Governo, mas só será recebido nas condições acima apontadas, e em caso de recusa da sua parte o Governo tomará tal facto como um ato de desobediência às suas ordens.

Na segunda ata, referente a acontecimento ocorridos no dia seguinte (25 de novembro de 1885), Bacar Quidaly pedia permissão para ter ingresso na praça, mas para que a conferência tivesse lugar na casa que serve de quartel, para se ver próximo da sua gente, o régulo precisa de manter a autoridade sobre o seu povo, satisfez-se o pedido do régulo; a terceira ata contém a essência da reunião, quem nela participou, esteve por parte do régulo Mamadu e mais chefes Fulas e seus conselheiros, um conjunto de chefes Biafadas, tanto do Cubisseco como de Boduco. Declararam ambas as partes quererem e aceitarem a paz que o Governo lhes propõe, esquecem agravos e ressentimentos que os tornaram inimigos, procurará cada um dos povos por sua parte animar o comércio nas feitorias e estabelecimentos que existem já nos seus territórios, tomam o Governo como fiador e garantia desta paz. O Governador trazia também as suas reivindicações, estabelecia-se os limites do território do Forreá. O documento iria ser assinado por todas as partes envolvidas. Vai ganhar realce ao longo de um conjunto de boletins a publicação do relatório do serviço da delegação da Junta de Saúde da vila de Bissau, referente ao ano de 1884, pelo facultativo de 2.ª classe do quadro de saúde da Guiné, Damasceno Isaac da Costa, é um documento que transcende pela riqueza de informações tudo o que até agora nos foi dado de ler em relatórios de idêntica circunstância, é tal o acervo de informações que vale a pena aqui reproduzi-las, no seu cotejo essencial.

Começa por dizer que o concelho de Bissau compreende a vila de S. José, o presídio de Geba, Fá e S. Belchior e todos os demais pontos ocupados e a ocupar nas margens dos rios de Bissau, Corubal e Geba. Localiza a ilha de Bissau, dirá que está dividida em dez tribos com as seguintes denominações: Antula, Antim ou Intim, Cumuré, Prábis, Safim, Torre, Biombo, Bigemeta e Quitexe. O régulo de Antim tem a presunção de descender de alta prosápia, isto é, dos antigos reis da lha; o de Bandim alimenta a mesma presunção nobiliárquica. Refere o trabalho desenvolvido pela companhia de Grão-Pará e Maranhão e a construção da fortaleza, não faltaram atos de selvajaria dos gentios à volta dela. Para pôr cobro a tais hostilidades, o rei D. Pedro II ordenou ao 1.º capitão-mor de Bissau, José Pinheiro, que construísse uma fortaleza com 40 praças, um capitão-mor e um feitor da fazenda. A povoação assim amparada possuía 200 cubatas e 5 casas cobertas de telha, habitadas pelos negociantes portugueses, comissários das casas comerciais inglesas de Gâmbia e francesas de Goreia e pelos Grumetes, uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição e um hospício para os missionários. A fortaleza durou apenas 66 anos, houve que a demolir.

Depois de um largo conjunto de citações, alude aos ziguezagues fluviais no rio Geba. Dirá que os Biafadas que outrora ocupavam as margens do rio Geba fechavam a navegação quando queriam, especialmente em ocasiões de guerras que travavam com os Fulas, exigindo avultadas indemnizações às embarcações que com grandes dispêndios e grandes carregamentos transitavam no rio. Em 1847, o Governador da Província de Cabo Verde ordenou que se suprimisse a verba vexatória que a título de presentes era abonada a esses piratas que desde aquela época poucas vezes se repetiram casos de semelhante natureza. Para levar em efeito esses atos de pirataria, os Biafadas amarravam uma corda na árvore de uma margem, que passando pela superfície de água, ia terminar igualmente noutra árvore da margem oposta. Os extremos da corda traziam duas campainhas para anunciar a chegada de qualquer embarcação que tocasse a corda. Em tempos que não vão longe, esses piratas foram acossados pelos Fulas-Pretos e desde essa época cessou aquele sistema de saque às embarcações. Os Balantas, para a execução do tão mencionado plano seguem-se de troncos de árvores que espetam no rio.

O rio Corubal é bastante extenso e importante pela grande quantidade de âmbar que roja às praias. É quatro vezes mais largo do que p rio Geba até a uma maré de distância, onde se estreita para tornar a alargar. Esta estreiteza constitui a baliza dos territórios ocupados pelos Biafadas e Fulas. É junto a este lugar que está situada uma feitoria francesa denominada Granja. Raso em toda a sua extensão, o rio Corubal é somente navegável junto à margem esquerda. Da estreiteza acima mencionada, transporta-se facilmente e em menos de 24 horas para a praça de Buba, atravessando as tabancas do régulo Fula-Forro Mamadi Paté, derrotado pela nossa força militar em 28 de setembro de 1882. Segundo afirmam pessoas de todo o crédito, o rio Corubal tem a sua origem no território do Futa-Djalon e vem desaguar no oceano próximo da ilha de Bissau. Nas margens do rio Corubal, divisam-se extensas e graciosas colinas e vales, notando-se no fundo destas águas que brotando de diversas rochas e lugares correm com sussurro para desaguar no rio.

Em todos estes rios e canais habita o crocodilo, o hipopótamo, o tubarão e uma infinidade de variados peixes. Nas espessas e copadas matas que revestem as margens dos mencionados rios e no feracíssimo solo de Bissau, Geba, Corubal e outros pontos das suas dependências, encontram-se o elefante, onça, pantera, leopardo, hiena, lobo, gazela, porco-espinho e diversos outros animais, muitos dos quais são bastante interessantes.

Nas margens do rio Geba encontram-se diferentes feitorias e o facultativo refere os seus nomes dizendo que há muitas outras que estão agora abandonadas em consequência das opressões dos Fulas que habitam as margens do rio Geba. E prepara-se agora para falar da vida em Bissau.

Notícia do falecimento, em 16 de dezembro de 1885, de D. Fernando II
Ao consultar a publicação Jornal da Europa, ano de 1926, encontrei esta imagem de Bissau, a qualidade não é famosa, mas permite visualizar a zona do Pidjiquiti, as embarcações no Geba e ao fundo os poilões da Fortaleza da Amura
Imagem muito conhecida da Conferência de Berlim, 1884-1885
1.ª página do Estatuto da Província da Guiné, 1956, veja-se a definição da superfície da Província com base na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886
A influência portuguesa na Goreia, Dacar.
Fotografia de Robin Taylor, publicada na página do Instituto Camões. Com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 23 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26071: Historiografia da presença portuguesa em África (448): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1885 (7) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estamos em 1883, o Governador Pedro Ignácio de Gouveia revela-se um homem de mão cheia, continua o programa de concessões de terreno, o exemplo que aqui se cita vem do chão manjaco, chovem os regulamentos e os regimentos, pretende-se instituir uma biblioteca, o governador tem mão pesada para capitães delituoso, pensa-se no embelezamento e na higiene de Bolama e arredores, o comandante militar de Bissau vai até à ilha de Jeta celebrar tratado com o régulo das Ilhetas, é um documento de grande valor, de que aqui se deixa uma citação, e o alferes Francisco Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba, face ao rapto de umas bajudas em S. Belchior, mete-se ao caminho com civis até ao Indornal, estamos em 1883, vamos vê-lo percorrer a região do Casamansa, passou por terras onde lhe pediram para ele se despir, nunca tinham visto um ser humano de pele branca. É texto que já publicámos no blogue, bem como a sua sequência, um texto não menos notável de Pedro Ignácio de Gouveia para o Ministro da Marinha e do Ultramar.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3)


Mário Beja Santos

1883 revela-se um ano de profusa legislação, como se exemplifica: regulamento das alfândegas da província da Guiné Portuguesa; regimento para as delegações da junta da Fazenda da província da Guiné; regulamente para o serviço marítimo da Guiné Portuguesa; regulamento do Ministério Público nos tribunais militares. O Governador é Pedro Ignácio de Gouveia, logo no Boletim Oficial n.º 1, de 6 de janeiro, chama a atenção a Nota do degredado chegado a esta província em 17 de dezembro de 1882, vindo da província de Cabo Verde no vapor Angola: Lourenço Rodrigues d’Almeida, condenado a trabalhos públicos por toda a vida, por acórdão da Relação de Lisboa por crime de homicídio voluntário. No Boletim seguinte, de 13 de janeiro, chama a atenção o pedido de conceção no rio denominado Mampatas, no território manjaco e o Governador “hei por conveniente, com o voto do Conselho do Governo, conceder 500 hectares de terreno a Ernesto Gourdau em cada um dos pontos seguintes: Pelundo, Babaque, Padim, Tamé, Canhobé, Mata dos Elefantes, Cajegut, Tumatte e Palufe, sendo a última na embocadura do rio dos Brames".

Não menos curiosa é a publicação neste mesmo Boletim Oficial n.º 2 a necessidade de criar uma biblioteca, o texto de Pedro Ignácio de Gouveia é de uma enorme elegância:
“Sendo de reconhecida vantagem e conveniência a instituição de uma biblioteca, para desenvolvimento intelectual de todos, e em que cada um possa compulsar os diferentes autores para aumentar os seus conhecimentos, desenvolvendo a sua instrução.
Sendo certo que a prosperidade, riqueza e bem-estar social é função de estado intelectual dos seus habitantes; e tendo em vista, que na classe civilizada dos habitantes da província, se encontra, em regra, o gérmen da aplicação que apesar dos poucos recursos que alguns dispõe procuram cultivar o espírito nas horas de ócio que as suas ocupações lhes deixam;
Considerando que se pode assim mais facilmente desenvolver o estudo, esse campo vasto onde a inteligência não encontra limites tangíveis, e pelo qual o homem pode crer na sua proficuidade, pela utilidade de que é alvo, e pelos benefícios que a seus concidadãos pode prestar, pelo derramamento de luz que só a cultura intelectual pode dar, etc. etc. Hei por conveniente nomear uma comissão para ver qual a maneira possível de instituir uma biblioteca.”
Nesta composição figurava o vigário-geral da Guiné Marcelino Marques de Barros.

Era visível que o novo Governador vinha disposto a cortar a direito, no despacho n.º 1 emitido no quartel-geral em Bolama, em 13 de janeiro, dava-se a saber que foram considerados presos para conselho de guerra os capitães Pedro Moreira da Fonseca e Boaventura Ribeiro da Fonseca. Falece em Buba na noite de 13 o tenente do batalhão de caçadores n.º 1 José Joaquim Sertório de Almeida, seguia-se uma alocução falando num crime hediondo, o tenente fora assassinado quando rondava as sentinelas postadas na praça de Buba, assassinado por um soldado, caso que enodoava o Exército; fora exonerado o capitão Caetano Filipe de Sousa, que era comandante militar e administrador do concelho de Buba; e quanto à prisão dos dois capitães, dizia-se que não tinham recebido a prisão imposta com respeito e acatamento devido, cantando até depois de recolher ao quarto que lhes servia de prisão, pelo que lhe fora agravada a pena com a proibição de receber visitas, sofreram uma prisão rigorosa de 30 dias.

No Boletim n.º 19, de 12 de maio, nova medida enérgica: “Tendo chegado ao meu conhecimento um ofício do comandante militar de Cacheu em que participa que o chefe do presídio de Farim, Luiz Xavier Monteiro tem praticado actos que podem considerar-se criminosos, a serem verdadeiros; hei por conveniente, em harmonia com o código administrativo suspender do exercício de funções e vencimentos ao mencionado chefe, devendo permanecer em Cacheu sob a vigilância da autoridade local enquanto se procede à sindicância que nesta data lhe é mandada instaurar.”

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 2 de junho, vem publicado um interessantíssimo relatório assinado pelo comandante militar de Bissau, Carlos Maria de Souza Ferreira Simões, que foi celebrar um tratado de paz com um régulo das Ilhetas, ilha de Jeta, Adju Pumol. É texto extenso, aqui fica uma passagem:
“Disse finalmente o régulo Adju Pumol que as provas de confiança e consideração que acabava de receber do Governo português enviando aos seus domínios um delegado seu para tratar com ele e com o seu povo, lhe impunha o dever de ser sempre grato e leal aos portugueses e de lhes prestar todo o auxílio de que pode expor sempre que lhe por qualquer forma se ofereça para isso ocasião. Terminado o discurso, convidei o régulo para ir connosco a bordo da canhoneira Guiné, convite que ele aceitou sem hesitação, a despeito de algumas manifestações em contrário que involuntariamente deixaram perceber dois ou três dos seus grandes, e principalmente uma das suas mulheres, que chegou a segurá-lo por um dos braços para o não deixar ir, e à qual ele disse que ia porque tinha confiança nos portugueses e se morresse era apenas uma vida que se perdia. Acompanharam-no um filho mais velho e um dos grandes.

Chegado a bordo, o comandante foi mostrar-lhe o navio, pelo que ele se sentiu muito reconhecido, examinando tudo com muita atenção e fazendo algumas perguntas. Ceou connosco, e quando depois da ceia lhe perguntámos se queria ir para terra ou ficar a bordo, respondeu que preferia ficar a bordo, e ir para terra de madrugada. Dormiu sossegadamente num dos almofadões da câmara do navio.”

No Boletim n.º 81, de 4 de agosto, consta o relatório apresentado pelo chefe do presídio de Geba acerca da sua viagem ao Indornal, há alguns anos publicou-se no blogue este notável documento assinado pelo alferes Francisco Marques Geraldes e qual a informação dada por Pedro Ignácio de Gouveia ao Governo em Lisboa.

Voltando um pouco atrás, e dentro daquele vasto plano de regulamentações de que inicialmente se fez menção, penso que é útil referir que no Boletim n.º 13, de 31 de março, o Governo reconhece a grande vantagem e conveniência para a regularidade e embelezamento da capital da província e de outras terras secundárias, estabelecer-se um plano definitivo de edificações em que se atendam às condições de higiene, ventilação, perspetiva e outras. E assim fora adotado com o voto unânime do Conselho do Governo o plano de edificações e reedificações em Bolama. O seu artigo primeiro anuncia que o Governo mandará imediatamente proceder a um plano geral dos melhoramentos da capital, atendendo neles ao das suas praças, jardins e edificações existentes, e à construção e abertura de novas ruas, praças, jardins e edificações com as condições de higiene, decoração, cómodo alojamento e livre-trânsito do público. Esse plano seria elaborado pela comissão composta do diretor de obras públicas, um vogal proposto pela Câmara Municipal e um vogal da Junta de Saúde Pública. Texto minucioso em que se chega ao cuidado de referir a altura das edificações determinada pela largura das ruas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Igreja católica na Guiné Portuguesa, imagem muito antiga retirada do site da Casa Comum
Bajudas Fulas lavrando a bolanha, imagem antiga retirada do site Casa Comum

(continua)
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Notas de editor

Vd. post de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25915: Nos...tal...gia(s): há 50 anos entregámos os nossos quartéis ao PAIGC e regressámos a casa (1): Buba, 4/9/1974 (António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74)



Foto nº 1 > A velhinha e ferrugenta LDG 105, NRP Bombarda... um "elo de ligação a Bissau", o que queria a dizer, "do cu de Judas a Bissau, porta de saída para casa", a três horas de avião, ou cinco dias de barco... 

Foto fantástica (de antologia!)  com a malta e a tralha  a acomodar-se e a aprontar-se para partir, enquanto um "djubi" espreita, do pontão de abicagem, aquele monstro de ferro que fez as maravilhas de muitos de nós...  antigos combatentes... Se há viagem que quase ninguém poderá esquecer, mais do que as dos Niassa, dos Uige, dos Ana Malfalda... foram as de LGG e LDM pelos rios da Guiné... (A 6 dias da independêcia do territ6ório, "de jure et de facto", aquele "djubi" não parece nada alvoraçado com a perspetiva galganizante e histórica da chegada dos "libertadores" do PAIGC...Antes, pelo contrário, ele parece querer gritar aos "tugas": "Eh!, nos furié Cruz, leva djubi no barco grandi!).



Foto nº 2 >  Outra fota fabulosa!... Os últimos soldados do império e os seus trastes velhos, amontoados na LDG 105 NRP Bombarda, de saudosa memória para muitos de nõs, com as instalações militares de Buba ao fundo...

Guiné > Região de Quínara> Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74)  


Fotos: © António Alves da Cruz (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


António Alves Cruz


1. "Guiné 04/09/74: Faz hoje 50 anos que foi entregue Buba ao PAIGC e o nosso regresso a casa", escreveu o nosso grão-tabanqueiro António Alves da Cruz na sua página do Facebook...   

Não foram tempos fáceis, os dos últimos soldados do império... Como eu entendo o amargo comentário do Cruz: 

"Tanto sofrimento,  para quê ?!,,, A  entrega de Buba ao PAIGC, o arrear da nossa bandeira nacional,  e o hastear da bandeira do PAIGC"...

 António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74) tem, no nosso blogue, o melhor álbum fotográfico sobre a Buba do seu tempo, incluindo a cerimónmia da desativação e entrega do aquartelamento ao PAIGC (*)

O dia 4 de setembro de 1974 foi  o último dia da sua estadia em Buba, na sequência da execução do plano de retracção do dispositivo e a desativação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, de acordo com os compromissos assumidos no Acordo de Argel, assinado em 25 de agosto de 1974, e que fixou a independência da Guiné-Bissau em 10 de setembro desse ano.

Dois dias depois, a 6 de setembro de 1974, o António Alves da Cruz estava em casa (regresso de avião, através dos TAM - Transportes Aéreos Militares). Depois da "peluda", trabalhou na Lisnave. Desse tempo tem saudades, não da guerra,  mas dos seus verdes anos...Como todos nós.  E da sua "Lisnave". E do seu gato. E da Guiné só voltou a lembra-se quando se reformou. Como muitos de nós...

Há imagens que valem por mil palavras... Estas duas terão, obrigatoriamente, que figurar no álbum derradeiro da Tabanca Grande, que iremos organizar, quando um dia destes (não sabemos quando, mas esse dia há de chegar...) fecharmos de vez o nosso blogue... (Na realidade, vinte anos a blogar, é um quarto das nossas vidas, dez comissões na Guiné!)

Obrigado, Cruz, estas tuas duas fotos arrasaram-me, emocionalmente falando!... Para mais sempre detestei  o mês de setembro, o fim do verão, o fim das férias grandes, do "docle far niente", da irresponsabilidade, a estação terminal da alolescència,  a antecâmara do pecado, dos amores românticos e breves, das ejaculaçóes precoces, da vida adiada pela tropa e pela guerra, o adeus à casa paterna, a difícil aprendizagem da arte de ser homem, a descoberta da liberdade... 

Em contrapartida, as tuas fotos, a tua/nossa efeméride dos 50 anos das nossas "partidas derradeiras"... não vão para o lixo, para cesta secção do esquecimento... Pelo contrário, vão ser o ponto de partida para uma nova série dedicada à(s)  "Nos...tal...gia(s).  Também temos direito à nostalgia, à saudade, ao exorcismo, à catarse de emoções, sem temermos que nos acusem de... reacionários, saudosistas e outras palavras merdosas com que os portugueses adoram insultar-se uns aos outros, há pelo menos mil anos.
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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

29 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24896: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (13): cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte I

30 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24902: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (14): Cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte II

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25754: Historiografia da presença portuguesa em África (432): Crenças e costumes dos indígenas de Bissau, do século XVIII (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Dá-se um pontapé e surge uma pepita de ouro. O Franciscano António Joaquim Dias é o investigador e historiador Dias Dinis, foi Vigário-Geral da Guiné e andou envolvido naquela grande polémica sobre Nuno Tristão, o primeiro navegador que chegara à Guiné tese contrariada por outros historiadores como Teixeira da Mota, Vitorino Magalhães Godinho, Fontoura da Costa e Duarte Leite, Nuno Tristão terá morrido algures no rio Gâmbia. O investigador encontrou um interessantíssimo documento, o segundo volume da Crónica da Província Franciscana de Nossa Senhora da Soledade, dela respigou os usos e costumes dos Papéis, bem interessante o que ele registou sobre a Virgem da Candelária, o apreço dos Papéis pelos portugueses e as cerimónias fúnebres dos reis da ilha de Bissau. Espero que um dia os Franciscanos que tanto estão a investigar sobre a sua presença na Guiné, e que nela hoje têm um papel preponderante e um impressionante trabalho desenvolvido, reeditem este belo trabalho de Frei Francisco Santiago, é repositório do maior interesse para o legado luso-guineense.

Um abraço do
Mário


Crenças e costumes dos indígenas de Bissau, do século XVIII

Mário Beja Santos

Na revista Portugal em África, revista da Cultura Missionária, 2.ª Série, ano II, n.º 9, maio/junho de 1945, e ano II, n.º 10, junho/agosto de 1945, encontra-se um artigo assinado pelo Padre António Joaquim Dias, Franciscano, ex-Vigário-Geral da Guiné (seguramente o investigador Dias Dinis, com diferentes trabalhos sobre a Guiné) intitulado Crenças e Costumes dos Indígenas na Ilha de Bissau no Século XVIII, segundo manuscrito inédito.

Escreve este padre Franciscano que os missionários Franciscanos portugueses tinham adquirido em 1953, numa biblioteca particular de Braga, o segundo volume da Crónica da Província Franciscana de Nossa Senhora da Soledade, autógrafo inédito do cronista Frei Francisco Santiago, também autor do primeiro volume da mesma obra, impresso em Lisboa, em 1697.

Àquela Província pertenceram, depois de 1663, o Convento de S. Francisco da Ribeira Grande, da ilha de Santiago de Cabo Verde, hoje arruinado, e os Hospícios de Cacheu, Bissau e Geba, na Guiné. Frei Santiago dedicou algumas páginas aos costumes e crenças dos indígenas. Bebeu-as nos relatórios escritos pelos missionários, na correspondência destes e nos relatos orais dos seus confrades que então por ali trabalharam. O que o investigador nos informa é que vai transcrever os dados relativos aos indígenas de Bissau, observando que, em muitos pontos, traduzem os costumes atuais dos Papéis, etnia predominante na ilha.

Apresenta assim os Papéis: quadra-lhes bem o nome, porque com facilidade se dobram, por serem de natural mais dóceis e brandos que os outros da sua cor. E aos portugueses têm particular atenção, preferindo-os a todas as outras nações da Europa, no respeito e no afeto, só aos portugueses denominam por brancos. E quanto às suas crenças: há um Deus, superior a todas as criaturas e essências, os Papéis não adoram ídolos, não creem na imortalidade da alma racional, e fazem sacrifícios nas chamadas “Chinas”, que são na forma de um chapéu de Sol, coberto de palha; há entre eles feiticeiros chamados Mandigas, etíopes negros. Mas são supersticiosos: entre as muitas e variadas superstições que têm, uma é guardarem em casa, pela melhor relíquia, sangue de qualquer rês ou ave que matam; outra é que chamam falar-lhe o seu defunto, isto é, vão consultar uma Baloba para lhe dizer o sucesso que qualquer negócio que intentem.

Frei Santiago fala depois na guerra e na alimentação dos Papéis: quando vão à guerra, vão com o espírito de furtar, chegam a uma terra de outros gentios, esperam escondidos que apareçam homens ou mulheres descuidados e trazem-nos para os vender; alimentam-se de fundo, milho ou arroz, peixe seco malcheiroso, óleo de palma, a tudo chamam Mafé, também comem caranguejos a que chamam cáqueres, as carnes só as comem nos chamados Choros, que as mais são para venderem aos brancos; as armas que levam para a guerra são traçados e zagaias; se acontece matarem algum ou alguns, têm o mais que diabólico costume, que é cortar cabeças e as partes pudendas, as cabeças as metem em troncos de árvores, os poilões, e as partes vergonhosas as assam ao fogo e depois de tudo bem torrado o pisam fazendo-o em pós, que todos bebem em vinho de palma.

Segue-se um olhar para a Justiça Papel: quando fere um ou outro, tanto paga o que deu como o que apanhou, ou seja, com razão ou sem ela; se há morte, paga o que matou um certo número de escravos ao rei, se é forro; e, se é escravo, paga o seu senhor, e sendo forro que não tenha com que pagar fica escravo do rei.

Temos agora as práticas religiosas: o que chamam Ronias são as adorações que fazem às Chinas; junto ao mar têm os gentios desta ilha uma China geral, debaixo de uma grande árvore aonde vão fazer a sua adoração em certos dias do ano; e não pode nenhum deles semear arroz, sem primeiro oferecer a esta China o seu arado e fazer uns tantos roubos com ele defronte dela.

É altura de descrever Bissau: tem esta ilha de Bissau 28 léguas de circunferência, pouco mais ou menos, é de clima o mais salutífero de toda aquela costa, assim pela pureza dos ares como pela frescura e bondade das águas; o número dos seus habitantes estima-se em 20 mil famílias que, comumente, são de natural mais dócil e brando que os outros da sua cor preta; além do rei principal, que se intitula de Bissau, teve a ilha mais outros sete reis inferiores que são os de Quixete, Cumeré, Safim, Tor, Biombo, Bijamita, e Antula e outros tantos Jagras (chefes de tabanca); porém, o cabeça-maior é o chamado o de Bissau, o qual, em algum tempo, governava sobre todos os outros; é esta ilha a mais vistosa e aprazível de toda aquela costa, e os habitantes dela negros bem parecidos, com dentes e beiços delgados; é de dotar que não herdam o reino os filhos de tal rei; mas, para o ser, vão buscar o filho da irmã do rei, porque, como este tenha muitas mulheres, há dúvidas se será o filho seu; mas o filho da irmã é certo ser parente dele; a este sobrinho do rei chamam Morgado do Rei, que é como entre nós Príncipe, sucessor do reino.

Frei Francisco de Santiago dá-nos depois uma descrição sobre o local e o cerimonial do enterro do régulo, segue-se uma observação quanto a Bissau e à sua defesa. A povoação dos cristãos nesta ilha fica junto ao porto dela, que é a parte do sul, perto da ponte de Leste. E tem hoje de 500 até 600 pessoas de Sacramento; já teve mais, e ainda a estivera se os brancos do reino e das ilhas não fugissem de viver ali, pelas muitas e grandes vexações e injúrias que lhes fazem o rei e gentios; para se defenderem deles, o rei D. Pedro II levantara ali fortaleza no ano de 1686, com artilharia e munições de guerra; e lhes pôs Cabo que a governasse, um filho da mesma terra, chamado Barnabé Lopes, homem poderoso e de respeito, a quem os gentios se sujeitavam; os que se seguiram não mereceram tal respeito e também a fortaleza caiu rapidamente em ruína e D. José mandou reedifica-la em 1753; o mesmo monarca enviou um corsário de guerra, Nossa Senhora da Estrela, com soldados e munições necessárias, houve depois combate, em que dos gentios morreram mais de 500 e dos nossos só 9 soldados, a seguir o gentio prometeu obediência ao reino de Portugal.

Interessante é o que nos escreve Frei Santiago sobre a imagem da Virgem da Candelária: imagem de muita devoção, não só os cristãos mas ainda os gentios; no tempo em que aquela igreja era coberta de palha – que hoje é de telha – costumavam os gentios, por devoção, levar dela umas palhinhas, para serem bem-sucedidos; na psicologia do guinéu, o Irã de Branco é mais poderoso que o Irã dele; o interesse e não a devoção o impele até aos pés da tusta imagem da Senhora da Candelária, conservada ainda na pequena e pobre igreja paroquial da cidade, dentro da fortaleza.

Guiné Portuguesa - Jovem de raça pepel
(Legenda original)
Guiné Portuguesa - Velho de raça pepel
(Legenda original)
Circumscripção de Mansôa - Uma estrada para o Enchalé
(Legenda original)
Buba - Ponte na estrada para o Xitoli
(Legenda original)
Bolama - Palácio do Govêrno e Repartições publicas
(Legenda original)
Mesquita em Bissau
(Legenda original)

Estas quatro últimas ilustrações são provenientes dos Anuário da Província da Guiné de 1925, por Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro

(Fotos editadas por CV)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25732: Historiografia da presença portuguesa em África (431): João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25711: Historiografia da presença portuguesa em África (430): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Entrei nesta busca de documentos de João Barreto depois de ter participado numa cerimónia evocativa do autor da única História da Guiné na Casa de Goa. O seu neto Aires Barreto bem procurou saber mais informações sobre este avô que deixou a avó Julieta e a filha Genoveva em transe quando vinda de Margão até Lisboa descobriram que o médico partira para a Guiné com outra companhia. Só se encontrou esta fotografia de João Barreto que aqui se mostra, bem procurei mais elementos, nada se encontrou, é sabido que labutou na Guiné 12 anos, dali partiu altamente considerado, terá sido em Lisboa que pesquisou documentação e escreveu a sua História da Guiné, de que pouco se fala, injustiça habitual, não é recomendável louvarmos os pioneiros... As peças científicas existentes é este relatório de 1927, o artigo que escreveu sobre a doença do sono da Guiné em 1926 para a revista da Agência Geral das Colónias e a sua colaboração para um artigo sobre craniometria na Guiné Portuguesa, terá sido o fornecedor da matéria-prima, recolhida no cemitério de Bolama.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (2)

Mário Beja Santos

O primeiro trabalho que se conhece de João Barreto é o seu relatório apresentado em 1927 à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene, será publicado pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama, em 1928. Ele é diretor do laboratório de análises do Hospital Civil e Militar de Bolama. Barreto faz parte de uma missão que procedeu a estudos que tinham por fim averiguar se a doença do sono existia, ou não, entre as populações indígenas da colónia; e, ao mesmo tempo, praticar a vacinação antivariólica e proceder a inquéritos sobre outras doenças tais como lepra, filarioses, bilharzioses, etc.

Confesso que me dou muito bem com estilo narrativo de João Barreto, este seu relatório sobre a doença do sono, apresentado à Direção dos Serviços de Saúde e Higiene da Guiné, é um modelo de rigor e até de divulgação científica: explica a missão, quem nela intervém, os inquiridos e aonde, o que historicamente se conhece da doença do sono, as outras doenças tropicais com que os médicos da missão se confrontarão, desde as elefantíases à lepra, o modo como se executou a missão diante colheitas de sangue, vacinação antivariólica, captura de insetos hematófagos. E para comprovar que conhece o contexto em que está a trabalhar não só descreve ao pormenor a demografia da circunscrição de Buba como esclarece que naquele local ocorreu uma guerra devastadora, a do Forreá, que teve um impacto económico medonho, arrasou as grandes promessas de uma agricultura próspera no Sul.

Este gosto pela análise histórica e observação social a propósito da demografia levam-no a escrever as razões do despovoamento e abandono daquele território da circunscrição de Buba, onde encontraram grande número de crianças doentes, e nem sempre é claro que uma boa parte dessas manifestações de doença possam ser atribuídas à doença do sono. E escreve:
“Os poucos elementos por nós colhidos não nos habilitam a tirar conclusões se há um parasitismo crónico entre os Fulas de Buba e se esta endemia contribuiu para o abandono da região. No entanto, há um facto que não podemos deixar de prestar atenção.
Dentro da colónia da Guiné notam-se duas regiões em que o decrescimento da população se acentua progressivamente não tendo até hoje quaisquer medidas de ordem administrativa conseguido evitar o seu lento abandono.

Estas zonas estão situadas uma, ao Norte do rio Cacheu, compreendendo quase toda a circunscrição de S. Domingos, e, outra, entre as sedes administrativas de Buba e Cacine, abrangendo os territórios banhados pelos rios Bolola, Tombali, Cumbijã e Cacine. Ora é precisamente nestas duas zonas desabitadas pelos indígenas que a produção e desenvolvimento das glossinas parece ter atingido o máximo da sua intensidade; e esta aparição exagerada da mosca, quer a consideremos como mera coincidência quer como elemento causal do despovoamento, não é de molde a favorecer a fixação do indígena.”


Este relatório vai culminar com a apresentação de providências sanitárias, que João Barreto enumera assim:
“Reconhecida a existência da tripanossomíase humana dentro das nossas fronteiras, cabe-nos o dever de organizar um plano de combate dessa endemia. Não vamos enumerá-las, uma por uma, porque nos parece desnecessário transcrever para aqui aquilo que já está escrito e assente entre os tratadistas.
Podemos estabelecer um programa completo de campanha anti-hipnótica socorrendo-nos das lições que as autoridades sanitárias portuguesas têm colhido com a prática destes serviços nas colónias de Angola, S. Tomé e Príncipe.

A execução destas providências na colónia está dependente de uma medida fundamental, que é a criação de uma Brigada Médica com caráter permanente, especialmente destinada a este fim, tornando-se, porém, obrigatória a inclusão da respetiva verba no orçamento ordinário da colónia. Esta Brigada Sanitária, constituída por um médico, dois enfermeiros e pessoa auxiliar, fixaria a sua sede em Cacine ou Buba, teria por missão, percorrer especialmente ao longo da fronteira, as circunscrições de Buba, Cacine, Gabu, Bafatá, Farim e S. Domingos, a fim de descobrir e tratar os indígenas atacados da doença do sono, executar as medidas agronómicas para a destruição ou afastamento das glossinas, mosquitos e outros insetos hematófagos; defender a fronteira terrestre contra a invasão de moléstias contagiosas, podendo também auxiliar a Polícia Pecuária contra a importação das epizootias; proceder à vacina antivariólica; tratar as doenças endémicas como, por exemplo, a boba e sífilis.”


Recorde-se que João Barreto já escrevera grande parte destas sugestões para limitar a doença do sono no artigo intitulado “Doenças do sono na Guiné Portuguesa” publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, ano 2.º, n.º 11, mais de 1926.

Temos agora a referência à sua colaboração no trabalho “Contribuição para o estudo antropológico da Guiné Portuguesa”, publicado em Coimbra na Imprensa da Universidade em 1932, onde se diz expressamente ser o primeiro trabalho acerca da craniometria dos indígenas da Guiné Portuguesa. Recorde-se que nesta época existia doutrina, hoje totalmente contestada e abolida, que a craniometria permitiria conhecer as diferenças rácicas, chegar ao conhecimento dos indicadores de inteligência, etc., houve filosofia nazi neste sentido, o objetivo era conhecer as características dos homens superiores e das raças inferiores. O capitão médico João Barreto foi o fornecedor de um conjunto de crânios que os outros dois autores do artigo, Pires de Lima e Constâncio Mascarenhas, introduziram informação de índole craniométrica.

Nada mais conhecemos da obra científica de João Barreto, muito se agradece se o leitor puder contribuir com quaisquer informações sobre outros trabalhos deste historiador amador, autor da única História da Guiné.

Trata-se da única fotografia que se conhece do médio João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Mapa étnico da Guiné, seguramente enviado por João Barreto aos seus colegas
Doente portador da doença do sono
A lepra, um flagelo que ainda não está completamente erradicado
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Nota do editor

Último post da série de 26 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25685: Historiografia da presença portuguesa em África (429): João Vicente Sant’Ana Barreto, médico em Bolama (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 30 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25702: Fichas de unidade (36): CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)



Guiné > Região de Quínara > Buba > CCAÇ 2382 (1968/70) > Dia do "santo patacão", o do pagamento do pré. Cap Mil Art Gomes de Araújo, sentado, alf mil Curado, de pé, à direita, o sargento Boiça, à esquerda  e o fur Mil Henrique, ao centro, em segundo plano. 

A foto é do nosso camarada Manuel Traquina, retirada e editada, com a devida vénia, do seu livro, "Os tempos de guerra: de Abrantes à Guiné" (Abrantes: Palha de Abrantes, 2009, pág. 130).




Guião da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70), "Por picadas nunca estradas, por estradas nunca picadas"... Um trocadilho bem achado..., ó Zé do Olho Vivo!

Companhia de Caçadores nº 2382

Identificação: CCaç 2382

Unidade Mob: RI2 - Abrantes

Crndt: Cap Mil Art Carlos Nery de Sousa Gomes de Araújo

Divisa: "Por picadas nunca estradas, por estradas nunca picadas"

Partida: Embarque em 1mai68; desembarque em 6mai68

Regresso: Embarque em 3abr70

Síntese da Actividade Operacional

Em 18mai68, seguiu para Bula, a fim de efectuar a instrução de aperfeiçoamento
operacional com a CCaç 2312, sob orientação do BCav 1915, tendo tomado parte em operações realizadas nas regiões de Blequisse, Ponta Consolação e Bajope, nas quais obteve excelentes resultados. 

Entretanto, a referida instrução foi interrompida por razões operacionais e a subunidade seguiu para Aldeia Formosa, por fracções, em 3jun68 (dois pelotões) e em 8jun68, a fim de reforçar o dispositivo do BArt 1896 e depois do COSAF/COP 1, em face de pressão inimiga então verificada na região do Forreá.

Em 7jun68, dois pelotões ocuparam Contabane e em 11jun68, o comando e os outros dois pelotões instalaram-se em Mampatá; no entanto, em 18Jun68, a sede da subunidade passou para Contabane, ficando um pelotão
destacado em Mampatá. 

Em 1jul68, por evacuação de Contabane, voltou de novo a instalar-se em Mampatá, agora com dois pelotões destacados em Buba e Patê Embalá.

Em 13jul68, substituíu temporariamente a CArt 1612 no subsector de Aldeia Formosa até à chegada da CCaç 2381, em 8ag068, com os seus pelotões disseminados por Nhala, Mampatá, Chamarra e Patê Embalá, este até 3ag068 e depois deslocado para Buba, em reforço do BCaç 2834.

Em 12ag068, a subunidade foi então transferida para Buba, com um pelotão destacado em Nhala, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2834, e depois do COP 4, quando criado, com a missão de intervenção e reserva; nesta função, efetuou diversas operações na zona de acção e exerceu o seu esforço na contrapenetração, tendo capturado elevadas quantidades de armamento e material e de que se destaca uma emboscada efectuada a uma coluna de reabastecimentos inimiga, no rio Chinconhe, em 22nov68.

Em 290ut69 e 8nov69, foi rendida, por frações, pela CCaç 2616 e recolheu a Bissau, a fim de se integrar no BArt 2866 e colaborar na segurança e  protecção das instalações e das populações, tendo ainda um pelotão destacado em Sanfim e João Landim.

Em14mar70, foi substituída pela CArt 2411, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 96 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM). 

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 367/368.

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 d maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25466: Fichas de unidade (35): BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70)

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guine 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)


Carlos Nery, foto de perfil do
Facebook. Grande ator
da Companhia Maior




1. Texto soberbo, antológico, escrito com garra, raiva e objetividade, do  Carlos Nery Gomes de Araújo, o nosso Carlos Nery, ex-cap mil inf, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70. 

Poucos dos comandantes operacionais, com apenas um mês de Guiné,  seriam capazes de vir a público dizer isto, no final de uma ataque devastador de 3 horas, uma experiência brutal para o Carlos Nery, os seus homens e o povo de Contabane :

 "As palavras soam-me tragicamente absurdas, 
sinto na garganta um aperto inenarrável e,
 com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —,
 sinto que muito de mim se perde, 
se perde irremediavelmente".







Noite Longa em Contabane

por Carlos Nery Gomes de Araújo


— Morteiro 60?

— Pronto, meu capitão!

— Lança-granadas?

— Presente!

— Dilagrama?

— Estou aqui!

Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.

— Meter uma bala na câmara!

O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.

— Patilhas em segurança!

Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.

— Está «no ir»!

Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».

Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.

— Aumentar os espaços entre cada dois homens!

— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!

As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç Nat na documentação operacional).

Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.

Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.

– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...

Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.

Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.

– Vamos lá então ver essa tabanca.

******

Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Rachid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.

– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.

– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.

Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá 
[de 22 de maio e 11 de junho de 1968, respetivamente] e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.

A companhia cujo comando me fora entregue, interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.

Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.

O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos.  As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.

Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.

Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.

- Capitão! Capitão! — ouço num apelo lancinante.

Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem Caçador Nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.

– Acode-me! Capitão, acode-me!

Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.

– O enfermeiro! 

A ordem percorre os homens ainda de borco. A resposta chega-me a medo.

– Não veio...

Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.

– Salva-me, capitão!

Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.

Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido. Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.

Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.

Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.

*******

O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.

Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta-mato, trazíamos pela estrada.

Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.

Instalar os canhões em posição de tiro direto, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.

Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.

******

Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.

Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.

Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «Por uma Guiné Melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.

Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.

Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.

Carlos Nery (2010).
Nasceu no Funchal em 1933.
Aos 35 anos estava a comandar
um companhia operacional
na Guiné

******

Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser
chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. À medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.

Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo  
de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida,  que, não escondendo a suacontrariedade, iam ser preparados «à pressão»  para assumir
 o  comando de homens nas três frentes 
de combate em África.

Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.

Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.

Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.

– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.

Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.

Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tetos de colmo seco das casas.

Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.

Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma coletiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detetar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.

Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.

Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direções.

A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.

– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.

O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro. Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.

Abrigados junto de uma parede semidestruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa tarde e do furriel enfermeiro da companhia.

– Então, como está ele? — pergunto.

– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!

Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.

O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.

Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.

– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.

O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.

Em combate noturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!

Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?

Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.

Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.

– Há mortos?

– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?

– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.

– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.

O perigo da situação residia, efetivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.

O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.

A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.

O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.

O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.

Sinal de retirada, viríamos a saber.

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Clareia o dia.

Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.

O incêndio, os impactes dos projéteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.

Fatumatá, mulher grande do régulo Sambel 
[foto acima, de 2005] (*),  apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objetos que satisfaçam a sua cobiça.

Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.

A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina antipessoal acionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.

O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.

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'Nino', comandante da Frente-Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.

Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.

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Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.

Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.

Somos sobrevoados por jatos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.



A então ten enf pqdt Ivone Reis
 (1929-2022),
em Cacine, 12/12/1968. 
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Envergando o seu camuflado de paraquedista, adianta-se uma mulher:

– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma exceção e espero aqui com vocês.

Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira paraquedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu,  facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.

Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.

– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... 
 ouço-me dizer.

Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?

Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:

– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.

 
As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente. 

Carlos Nery Gomes de Araújo (**)

In Memórias da Guerra Colonial, volume 2: carne para canhão.
 S/l, Andrómeda Publicações, 1984, 158 pp.


(Revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: CV/LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (18): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatumatá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)