quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26279: Historiografia da presença portuguesa em África (457): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1888, há bons relatórios e pouco mais (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Oficial de prestígio e com provas dadas em várias missões, o capitão Zacarias de Sousa Lage, então administrador do concelho de Bissau, envia para Bolama um relatório que se distingue pela linguagem franca: à exceção do presídio de Geba, em todos os outros pontos do concelho de Bissau não existia autoridade alguma: os roubos e a pirataria eram incontroláveis; dá-nos uma lista das casas comerciais existentes, o que compram e vendem; as dívidas dos contribuintes são na sua maioria inquebráveis, a administração da justiça está entregue a comerciantes que acabam por cometer graves negligências, é escandalosa a falta de um código penal; não esconde o estado deteriorado das instalações públicas, a má qualidade do ensino e a falta de recursos a nível hospitalar. Sousa Lage irá posteriormente comandar o presídio de Geba, onde teve comportamento valoroso.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1888, há bons relatórios e pouco mais (14)


Mário Beja Santos

Voltamos à formalidade do movimento marítimo, dos boletins de saúde, de quem foi preso e porquê, chegadas e partidas de funcionários, a ambientação política está praticamente ausente. Mas logo em janeiro deste ano de 1888, o administrador do concelho de Bissau, Zacarias de Sousa Lage, produz um sucinto relatório sobre os diferentes ramos de serviço afetos ao seu concelho. Justifica-se a citação de parágrafos considerados bastante impressivos:
“À exceção do presídio de Geba, em todos os outros pontos do concelho não existe autoridade alguma que possa apresentar-se como delegado do Governo português.
Dificilmente se pode avaliar as dificuldades com que luta a autoridade do concelho de Bissau, quando existem pendências a resolver nos territórios sob a sua jurisdição, por não haverem ali delegados. Frequentes são os casos de roubos e piratarias aos negociantes estabelecidos; roubos estes exercidos pelas tribos Balantas, gentio de Boty, Caió e Cajegute, que não tem convívio frequente com a praça de Bissau, e em geral ficam impunes resultando o contínuo abuso.
É necessário que o Governo tenha um representante nas tribos, o qual deve ter conhecimento de causa perfeita, fornecer-lhe todos os meios para ser respeitada a autoridade sem vexame; porque se entre os povos mais avançados, gozando das melhores leis, há sempre margem para descontentamentos, não é de estranhar que os espíritos rudes e vulgares, como o do selvagem, se não conformem com o regime que nos rege.

O gentio em geral é indolente, aqui não existem indústria própria; a agricultura é representada com meia dúzia de grãos ou milho lançados no solo, numa área que cada preto cultiva não excedente a 10 ou 12 metros de circunferência: e eis aí representado o seu trabalho fatigante que não lhe dá alimentação para mais de um ou dois meses!
Finda a colheita, e enquanto se existe com que alimenta, não trabalha; findo isto, aproveita-se da riqueza que a própria natureza lhes deu, fazendo a quebra do coconote e fabricando algum azeite de palma, isto unicamente para permutar com arroz, ou fazer a compra de uma arma, resumindo-se a sua única ambição a contínuas correrias; atacando uma ou outra tribo dotada de instintos.
A agricultura, se imperasse nesta tão decadente província, cujo solo é tão fértil, riquíssimo em fauna e flora, daria, com o andar dos tempos, a riqueza do nosso mercado colonial, tão decadente hoje. Hoje, porém, ainda nada se consegue porque o atraso dos filhos da Guiné não os deixa compreender quais os deveres que cabem ao cidadão".


Referindo-se à população, comércio e navegação, depois de falar em decadência, sublinha que o comércio de Bissau tem aumentado de ano para ano, Bissau é a primeira praça da província, mantendo relações comerciais com Bolama, Cacheu, Geba e Farim e com as tribos selvagens limítrofes, muito especialmente a dos Balantas, que diariamente abastece o mercado. Na praça de Bissau existem estabelecidas diversas casas comerciais, nacionais e estrangeiras, recebendo diretamente da Europa as mercadorias e exportando os produtos do país. As casas comerciais mais importantes aqui estabelecidas são: Blanchard & Companhia, de Marselha, F. C. Butman, de Boston, B. Soller, representante de uma casa de Hamburgo, British Congo & Companhia Limited, de Liverpool, casas estas que permutam produtos coloniais desta costa que se resumem ao coconote, cera, borracha, couros de boi secos e alguma goma copal, importando em grande escala o álcool, tabaco em folha, genebra ordinária, pólvora, bretanjil, panos da costa, etc., principais artigos indispensáveis ao indígena. Estas casas entretêm operações externas e algumas delas nos próprios territórios gentílicos onde exercem um perfeito comércio de concorrência, chegando mesmo a venderem-se mercadorias por preços inferiores ao deste mercado.

Tece considerações sobre a fazenda pública, diz abertamente que a maioria das dívidas de contribuintes é incobrável, que o movimento da delegação da alfândega é grande e o pessoal é pouco em relação ao trabalho. O edifício onde se aloja a alfândega acha-se muito deteriorado e precisa de grandes consertos. Mudando para o tema da administração da justiça, refere que existe neste julgado, desde 1880, um juiz ordinário e dois substitutos por nomeação do Governo da província. “Permita-me V.ª Ex.ª que eu diga que as autoridades judiciais neste julgado quase de nada servem, por isso que, sendo este importante ramo confiado a negociantes sem que por tal encargo percebam renumeração alguma dada pelo Estado, claro está que nada mais fazem se não tratar dos seus interesses, mandando ordinariamente arquivar os autos que pela sua autoridade administrativa lhe são enviados, alegando não terem escrivão nem pessoa de confiança que possa exercer este cargo.” E solicita as providências necessárias.

O último capítulo do relatório de Zacarias Sousa Lage é dedicado à instrução pública e à administração geral. Parece útil reproduzir o que ele escreve:
“Existem duas escolas régias, sendo uma para o sexo masculino e outra para o feminino. A do sexo masculino é frequentada por um grande número de rapazes sendo o contrário a do sexo feminino. A instrução pública pouco progride por lhe faltar o principal elemento, as habilitações dos mestres, quer de um ou do outro sexo, estão muito longe de poder satisfazer o cumprimento dos seus deveres.
E infelizmente assim está paralisada a instrução, permitindo-me Sua Excelência o Governador, ser tão prolixo nas minhas observações, mas que é de urgência a reforma deste grande ramo muito especialmente nesta vila em que o número de educandos é bastante elevado. A câmara municipal deste concelho dispõe de grandes recursos e não seria oneroso ao município o inscrever no seu orçamento uma verba condigna para a manutenção de uma escola e deixar de figurar a irrisória verba orçamental de gratificação mensal de 10 mil réis pagas aos professores régios, a título de gratificação.”


O relatório termina com uma exposição sobre o serviço de saúde, desempenhado por um facultativo, dr. Albino Ribeiro, que também tinha a seu cargo o hospital. “Infelizmente, apesar do edifício ser bom, faltam-lhe os principais elementos para poder ter o fim a que é destinado. As camas da enfermaria estão em péssimo estado, desprovidas de roupas e utensílios apesar de terem decorridos poucos meses que a fazenda lhes forneceu alguns artigos, sendo urgentíssimo o fornecimento de louças, roupa e acessórios indispensáveis a um hospital. A farmácia do Estado, única aqui existente, acha-se também alojada no mesmo edifício, carece de grandes melhoramentos para assim poder funcionar como estabelecimento desta natureza. De medicamentos acha-se quase sempre desprevenida dos mais indispensáveis, apesar das contínuas requisições, e dificilmente pode dar cumprimento às exigências do público. O administrado do concelho despede-se com um Deus guarde a V.ª Ex.ª e assina em 8 de novembro de 1887".
Cartografia do rio Corubal, 1897, Comissão de Cartografia, província da Guiné
Carta da província da Guiné, distribuída na Exposição Colonial do Porto, 1934
Balanta em Festa comemorando o ano da prosperidade. Imagem retirada do site cabazgarandi4, com a devida vénia
1.ª página do relatório do capitão Zacarias de Sousa Lage relativo às campanhas de pacificação de 1890-91, era então comandante do presídio de Geba. Créditos: Fundação Mário Soares

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 11 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26256: Historiografia da presença portuguesa em África (456): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, o importante relatório do chefe do presídio de Ziguinchor, Marques Geraldes, 1887 – 2 (13) (Mário Beja Santos)

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