domingo, 15 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 – P26267: (Ex)citações (432): Noite de descontração. (José Saúde)

 

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Noite de descontração

Camaradas,

Numa declinar fase das nossas existências que queremos, e desejamos, que seja ainda longa, pois ninguém é eterno, e não vamos olvidar esta evidente realidade, mas onde os nossos já “débeis” corações se apressam para o reviver de um passado no qual proliferaram sentimentos de alegrias e de tristezas, sendo que esta dicotomia de vida nos envia para um fugaz reencontro com memórias que o tempo, sem termo, ousa desafiar, eis-nos perante pequenos retratos que a nossa passagem por terras da Guiné registou e que nós guardaremos eternamente no baú das recordações.

Éramos jovens, com sangue na guelra, corpos marcados pela elegância e de cabelos abastados, não temíamos, por vezes, a imprevisibilidade que uma ida para o mato impunha, alimentávamos, e sempre, esperanças num futuro que todos perspetivávamos de faustosos, mas, a vida, aliás, as vidas remetem-nos para uma ida ao confessionário e de mansinho implorarmos ao universo que, por enquanto, continuamos a fazer peso à terra.

Perante o que atrás descrevo, deixo-vos uma foto e o texto adiante narrado, acerca de uma noite de batuque no nosso quartel e que ainda recordo com extrema nostalgia.  

Batuque na tabanca e na messe de sargentos

 Noite de descontração  

O som do batuque deliciava-me! Encantava-me a alma. Noite de batuque era noite de ronco na tabanca. A população, numa correria louca, desfazia-se em contactos e os nativos, sempre faustosos, marcavam presença no local do aconselhado e de atrativo ronco. O tocador, ou tocadores, bem cedo diziam presente. As bajudas, sempre destemidas, envergavam indumentárias garridas e davam cor ao espetáculo. Os rapazes, com vestes compridas, impunham a sua condição de machos negros e as pomposas donzelas esculpiam os seus salientes rabos ao toque do tambor. 



Ao lado, homens e mulheres já entrosados na idade, agitavam-se com os estrondos vindos dos instrumentos das mãos dos tocadores. Os corpos do pessoal do batuque desenhavam figurinos encantadores. Descalças e descalços o pessoal da tabanca obsequiava com humildade os convivas. Paulatinamente os corpos joviais, alguns divinais, iniciavam o processo da transpiração. Um processo que não colocava senãos a gentes que por teimosia ousavam desafiar o calor da noite. Os cheiros não importavam! Conhecíamos já esses velhos odores. Faziam parte do nosso quotidiano. O perfume Hugo Boss, deixado, entretanto no baú das recordações, era um esmero anfitrião, mas para outros momentos de afirmação social. Naqueles instantes a festa era outra! De arromba. Os cheiros natos da jovialidade apresentavam-se para nós como mais uma página a acrescentar ao calendário de uma comissão que paulatinamente evoluía no tempo, mas devagarinho. 

Recordo as minhas saídas noturnas com outros camaradas a caminho de tabanca para ouvirmos e vermos ao vivo as maravilhas de um batuque das gentes guineenses. Em noite de luar era mais fácil a aproximação à manga de ronco. A pequena multidão, em círculo, faturava momentos ímpares de incontidos prazeres.

O toque do batuque generalizou-se aos quartéis, não obstante admitir uma opinião quiçá contraditória, ao interior dos quartéis, porém, era pressupostamente usual os militares terem nas suas instalações os respetivos tambores, sendo alguns deles comprados a quem fazia da arte um esmerado primor. Numa noite de plena descontração a rapaziada juntou-se e toca a batucar. Nesta perspetiva, um grupo de tocadores improvisados brindou a malta da messe de sargentos do quartel de Nova Lamego, um aquartelamento localizado à beira da estrada que nos levava a Bafatá, com os melodiosos sons oriundos de caixas feitas pelos ilustres mestres negros.

A recetividade da iniciativa mereceu honras dos camaradas que a seguir, e à nossa volta, se predispuseram para ofertar refrescantes bebidas aos tocadores. Numa noite de batuque, e sem danças feitas por corpos ondulantes, uma cuba livre foi divinal!  


Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:  

29 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26212: (Ex)citações (431): Ainda o caso do nosso saudoso António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo": nas vésperas do "verão quente de 1975" era herói da literatura de cordel nas feiras e romarias do Norte

 

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